Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02A1008
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AFONSO CORREIA
Nº do Documento: SJ200301210010086
Data do Acordão: 01/21/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 1128/01
Data: 10/11/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" e esposa B, residentes no ..., Pernes, Santarém, demandaram C e esposa D e E e esposa F, residentes em Rua da ...., Casal do Cambra, Odivelas, pedindo a declaração, a seu favor, do direito de propriedade do imóvel identificado na petição inicial e a condenação dos réus a entregar tal imóvel, livre de pessoas e de bens.
A fundamentar tal pedido alegaram, em síntese:
por escritura pública de 23 de Fevereiro de 1913 foi celebrado um contrato de arrenda-mento rural entre os avós do autor e J, tendo por objecto uma parcela de terreno sita na freguesia de S. Vicente do Paul, em Santarém;
por morte do primitivo inquilino a sua posição transmitiu-se ao filho G, tendo o contrato caducado por morte deste último, em Agosto de 1996;
o prédio encontra-se, desde então, ocupado pelos réus, filhos de C, os quais, apesar de interpelados, recusam entregá-lo.
Citados, os RR apresentaram contestação conjunta na qual, em síntese, alegam:
ser a petição inepta por contradição entre o pedido e a causa de pedir;
os contratos de arrendamento celebrados na vigência do Código Civil de 1867 não caducam por morte do primitivo arrendatário ou dos seus sucessores, nem deixavam de se renovar no fim do prazo, sendo regulados pela lei do tempo da sua feitura.
Em reconvenção os réus pedem a condenação dos autores a pagar-lhes a quantia de 3.250.000$00 (três milhões e duzentos e cinquenta mil escudos) relativa a benfeitorias feitas no prédio, pedido este a ser considerado na hipótese de procedência da acção.
Os autores apresentaram ainda articulado de resposta à matéria da excepção e de contestação ao pedido reconvencional, concluindo pela inexistência de nulidade de todo o processo e pela improcedência do pedido reconvencional porque, nos termos contratuais, todas as benfeitorias ficavam a pertencer ao prédio, sem direito do inquilino a qualquer indemnização.
No saneador decidiu-se ser o Tribunal absolutamente competente, as partes legítimas e não haver nulidades ou excepções, do mesmo passo que se julgou improcedente a excepção de ineptidão da petição inicial.
Seleccionados os factos assentes e controvertidos, procedeu-se a avaliação das benfeitorias, a habilitação dos sucessores do A. A, entretanto falecido, e a audiência de julgamento com decisão da matéria perguntada no questionário, sempre sem reclamações.
De seguida proferiu o Ex.mo Juiz douta sentença que julgou a acção inteiramente procedente e a reconvenção de todo improcedente.
Entendeu-se em tal decisão, essencialmente, que era aplicável ao contrato de arrendamento rural em causa o regime fixado no Dec-lei n.º 385/88, de 25 de Outubro, por assim o determinar o art. 36º deste diploma.
Nos termos do art. 23º, n.os 1 e 2, al. b) e 4, do mesmo Dec-lei, o arrendamento não caduca por morte do arrendatário, antes se transmite aos seus herdeiros, mas apenas uma única vez.
Ora, tendo falecido em Agosto de 1996 o então inquilino G, filho do primitivo arrendatário, nessa data caducou o contrato que, por isso, se não renovou em 1997, quando teria decorrido sobre a entrada em vigor do CC (art. 297º, n.º 1) o prazo de 30 anos a que o art. 1025º CC imperativamente reduziu o prazo superior antes convencionado.

Quanto às benfeitorias não eram elas indemnizáveis por assim ter sido clausulado, além de que sempre teriam de ser autorizadas por escrito, nos termos do art. 14º, n.º 1, do Dec-lei n.º 385/88, de 25 de Outubro, ou 15º, n.º 1, da Lei n.º 76/77, de 29 de Setembro.

Apelaram os RR, mas sem êxito, que a Relação de Évora confirmou inteiramente o decidido, depois de julgar irrelevantes para decisão e não aplicadas as normas dos art. 297º, n.º 1 e 1025º do CC e 24º do Dec-lei n.º 385/88, de 25 de Outubro, cuja inconstitucionalidade vinha arguida pelos Recorrentes. Também o Tribunal Constitucional já decidira não ser inconstitucional a aplicação do regime estabelecido pelo Dec-lei n.º 385/88 aos contratos anteriores.
Ainda irresignados, pedem os RR revista insistindo na não caducidade do arrendamento e na inconstitucionalidade das normas que permitam interpretação ou aplicação contrária à não caducidade, bem como na procedência do pedido (subsidiário) de indemnização pelas benfeitorias realizadas.
Como se vê da alegação que coroaram com as seguintes conclusões:

1ª - O contrato de arrendamento rural para fins agrícolas celebrado em 23 de Fevereiro de 1913 entre antepassados dos Recorridos, como senhorios, e antepassado dos Recorrentes, como rendeiro, é regulado pela lei vigente à data em que foi celebrado;
2ª - Assim, tendo o contrato a duração de 99 anos e o seu início em 23 de Fevereiro de 1913, o seu termo final verifica-se em 23 de Fevereiro de 2012, como, aliás, os contraentes fizeram constar do próprio contrato, que foi reduzido a escritura pública, e decorre do que se estabelece nos Art°s 1619 e segs., do Código Civil de 1867;
3ª - Os Artigos 297° - 1 e 1025° do Código Civil vigente, interpretados no sentido em que o que neles se dispõe é aplicável aos contratos de arrendamento de prédios rústicos para fins agrícolas celebrados na vigência do Código Civil de 1867 são materialmente inconstitucionais;
4ª - O Artigo 24° do D.L. 385/88, de 25/10, interpretado no sentido em que o que nele se estabelece tem eficácia retroactiva, nomeadamente em relação aos contratos de arrendamento celebrados na vigência do Código Civil de 1867, é também materialmente inconstitucional;
5ª - Mesmo entendendo-se como conformes às normas constitucionais o que se dispõe nos referidos Artigos do Código Civil de 1966 e no Art.º 24° do D.L. 385/88, na indicada interpretação, o contrato de arrendamento em causa nos autos não caducou por morte do sucessor do rendeiro, e renovou-se, nos termos nele previstos, em 1 de Junho de 1997, e pelo prazo de 30 anos, ocorrendo, assim, o seu novo termo em 31 de Maio de 2027, já que não lhe são aplicáveis os regimes legais substantivos posteriores, nomeadamente as indicadas disposições legais.
6ª - Se se considerar que se verificou a caducidade do contrato de arrendamento, os Apelantes tem direito à indemnização pelas benfeitorias realizadas, independentemente do que foi clausulado no contrato e do que foi previsto em legislação posterior à data do contrato, se for entendido que norma imperativa se impõe à vontade das partes.
7ª - Decidindo como decidiu o Acórdão recorrido violou, entre outros, os Art°s 2° e 18° - n.º 3 da CR.P., e 12°, 297° - 1 e 1025° do Cód. Civil.

Responderam os Recorridos em defesa do decidido.
Colhidos os vistos de lei e nada obstando, cumpre decidir as questões submetidas à nossa apreciação, as de saber se

I - O contrato em apreço é regulado pele lei vigente à data em que foi celebrado, pelo que o seu termo final ocorre em 23.2.2012, decorridos 99 aos sobre a data da sua celebração, em 23.2.1913 - conclusões 1ª e 2ª;
II - são materialmente inconstitucionais os art. 297º, n.º 1 e 1025º CC quando interpretados no sentido de que quanto neles se dispõe é aplicável aos contratos como o em apreço, celebrados na vigência do Código de 1867 - conclusão 3ª:
III - é materialmente inconstitucional o art. 24º do Dec-lei n.º 385/88, de 25 de Outubro, quando interpretado por forma a conferir-se-lhe eficácia retroactiva, nomeadamente a contratos como o aqui em causa, celebrado na vigência do CC de 1867 - conclusão 4ª;
IV - ainda que aplicadas aquelas normas do CC e esta do Dec-lei n.º 385/88, de 25 de Outubro, o contrato renovou-se por trinta anos, em 1 de Junho de 1997 - conclusão 5ª;
V - decidido, contra o acordado, que o contrato caducou, então os Recorrentes têm direito às benfeitorias, independentemente do clausulado no contrato - conclusão 6ª.

Para tanto é mister ver que as instâncias tiveram por assentes os seguintes
Factos:

a) - Por escritura pública de 23 de Fevereiro de 1913, foi celebrado contrato de arrendamento rural entre os avós do autor H e I, na qualidade de senhorios, e J, também conhecido por ...., na qualidade de inquilino, tendo por objecto uma parcela de terreno de pousio com duas oliveiras, parte do prédio misto sito no .... na freguesia de S. Vicente do Paul, então descrito na Conservatória de Registo Predial de Santarém sob o n.º 3.069 - al. A).
b) - O arrendamento foi celebrado pelo prazo de noventa e nove anos, renováveis, e foi fixada a renda de cinco mil réis, a pagar em casa do senhorio, no dia 15 de Agosto de cada ano - al. B).
c) - O direito de propriedade sobre o referido prédio adveio ao autor marido por efeito da divisão feita com seus irmãos e cunhados em consequência da partilha realizada por óbito dos seus avós, primitivos senhorios - al. C).
d) - O prédio encontra-se actualmente descrito na Conservatória de Registo Predial de Santarém sob o n.º 49.534 do Livro B-126 e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 3 - Secção J da dita freguesia - al. D).
e) - O primitivo inquilino faleceu há cerca de quarenta anos, transmitindo-se a posição ao seu filho G, que também viria a falecer em Agosto de 1996 - al. E).
f) - Tal prédio encontra-se, desde então, ocupado pelos réus, filhos do falecido G - al. F).
g) - Na parcela de terreno em questão existem actualmente dois blocos de construção, sendo um com a área total aproximada de 100 m2 (cem metros quadrados) e outro com a área aproximada de 25 m2 (vinte e cinco metros quadrados), o qual tem adjacente umas paredes em ruínas de uma divisão com cerca de 15 m2 (quinze metros quadrados) - resposta aos quesitos 1º e 2º.
h) - Há cerca de dez anos C edificou uma construção anexa à anteriormente existente - resposta ao quesito 5º;
i) - O conjunto das construções existentes no prédio tem actualmente o valor de cerca de 750.000$00 (setecentos e cinquenta mil escudos) - resposta aos quesitos 6º e 7º.

Aplicando a estes factos o Direito

Como bem se diz na douta sentença, os AA configuraram a acção como de reivindicação, acção real (art. 498º, n.º 4, do CPC) prevista no art. 1311º do CC quando aí se permite ao proprietário exija de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence. Reconhecido o direito de propriedade, a pedida restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei - art. 1311º, n.º 2 - ou seja, quando o demandado não proprietário detém a coisa reivindicada com fundamento em título bastante, quando a ocupação é legítima e não contraria, antes vai buscar o seu primeiro fundamento ao direito de propriedade do reivindicante. Quando, como aqui acontece, o R. alega que possui a coisa por via de vigorante contrato de arrendamento.
De acordo com as regras gerais do ónus da prova, cumpre ao A. provar que é proprietário daquela coisa ocupada pelo R. (art. 342º, n.º 1, CC) e a este compete demonstrar a legitimidade da detenção, o título que legitima a ocupação (art. 342º, n.º 2, CC).
No caso em apreço os RR não contestam a propriedade dos AA sobre o imóvel reivindicado, pelo que resta decidir - não falando agora das benfeitorias - da subsistência ou não do contrato de arrendamento rural em que aqueles fundam a sua ocupação.
Nesta parte vem provado que por escritura pública de 23 de Fevereiro de 1913 foi celebrado contrato de arrendamento rural entre os avós do autor, na qualidade de senhorios, e J, na qualidade de inquilino, tendo por objecto uma parcela de terreno de pousio com duas oliveiras, parte do prédio misto sito no Casal do Casco na freguesia de S. Vicente do Paul, tendo tal contrato sido celebrado pelo prazo de noventa e nove anos, renováveis.
Mais se apurou que o primitivo inquilino faleceu há cerca de quarenta anos, transmitindo-se, então, a posição de arrendatário ao seu filho G que também viria a falecer em Agosto de 1996 e que desde então tem o prédio sido ocupado pelos réus, filhos daquele falecido G.

No dizer dos RR, porque o contrato de arrendamento em causa se rege pela lei vigente ao tempo da sua feitura, o Código Civil de 1867, cujo artigo 1619º determinava que "O contrato de arrendamento cuja data for declarada em título autêntico ou autenticado, não se rescinde por morte do senhorio nem do arrendatário ...." e tendo sido acordado o prazo, renovável, de 99 anos, continuou a vigorar o mencionado contrato, apesar do falecimento do primitivo arrendatário e do seu filho G, passando a assumir a posição de inquilinos os herdeiros daquele primitivo inquilino, isto é, o seu filho G, e, falecido este, os ora RR. Ocupação legítima, pois.
Para os AA - e para as decisões recorridas - aplicável ao caso sub judice é o hoje vigente regime do arrendamento rural que não consente mais de uma transmissão por morte. Pelo que o contrato caducou à morte do transmissário C, em Agosto de 1996. Sem arrendamento a justificá-la, é ilegítima a ocupação do prédio pelos RR.
Não sofre dúvida a validade substantiva - e só desta há que curar - do contrato de arrendamento em apreço à luz da lei vigente ao tempo da sua feitura, o Código de Seabra, designadamente dos artigos 1619º (sobrevivência do contrato à morte de senhorio ou arrendatário) e 1600º (não limitação de prazo do contrato e consequente possível renovação).
Entretanto o regime legal do arrendamento rural sofreu diversas alterações, de que se salientam, além do Decreto n.º 5411, de 17.4.1919, e da Lei n.º 2114, de 15.6.1962, o Código Civil de 1966 e, entre os vários diplomas posteriores a 25 de Abril de 1974, o Dec-lei n.º 201/75, de 5 de Abril, as Leis 76/77, de 29 de Setembro e 76/79, de 3 de Dezembro, e o hoje vigorante Decreto Lei 385/88 de 25 de Outubro.
A grande questão que nos ocupa e engloba as três primeiras acima mencionadas é a de saber qual o regime legal aplicável ao contrato em causa, se o vigente à data da sua feitura se outro, nomeadamente o hoje em vigor.
Interessa considerar o disposto nos art. 1025º e 297º do CC, aquele norma geral da locação (e, como tal, aplicável aos arrendamentos rurais (1) e este a fixar a forma de contagem de prazos estabelecidos por lei nova, mais curtos ou mais longos do que os constantes de lei anterior; releva, ainda, o actual regime do arrendamento rural.

Nos termos do art. 1025º do CC, a locação não pode celebrar-se por mais de trinta anos; quando estipulada por tempo superior, ou como contrato perpétuo, considera-se reduzida àquele limite.
Não pareceu ao legislador de 1967 conveniente o regime antes constante dos art. 1600º do Código de Seabra ou 2º do Decreto n.º 5411º, à sombra dos quais se celebraram no nosso país arrendamentos por 500 e 1000 anos (2) . Daí a redução legal a 30 anos.
«Trata-se de uma redução que exprime uma limitação de ordem pública. Entende-se haver inconvenientes, quer no aspecto económico, quer no plano social, em que o gozo de determinada coisa seja obrigatoriamente concedido para um período demasiado dilatado de tempo a quem não seja o seu proprietário ou usufrutuário.
A abolição dos casos de arrendamentos celebrados por prazos superiores ao fixado no art. 1025º far-se-á as mais das vezes com a cessação pura e simples do arrendamento (por redução do prazo ou caducidade do contrato celebrado) (3)».

Como disposto no n.º 1 do art. 297º, a lei que estabelecer, para qualquer efeito, um prazo mais curto do que o fixado na lei anterior é também aplicável aos prazos que já estiverem em curso, mas o prazo só se conta a partir da entrada em vigor da nova lei, a não ser que, segundo a lei antiga, falte menos tempo para o prazo se completar.
Por aplicação desta norma, o prazo de 30 anos imposto pelo art. 1025º do CC será o aplicável ao arrendamento por 99 anos celebrado em 1913 (por não se verificar a excepção da parte final do n.º 1 do art. 297º em análise), mas tal novo prazo só se conta desde a entrada em vigor do Código Civil, ou seja, desde 1 de Junho de 1967.

O Dec-lei n.º385/88, de 25 de Outubro, dispõe, no que se refere à transmissão por morte do arrendatário (art. 23º n.os 1, 2, al. b) e 4), que o contrato de arrendamento não caduca por morte dele, transmitindo-se aos parentes em linha recta, mas apenas uma única vez.
Por outro lado e sob a epígrafe Âmbito de aplicação da presente lei, o artigo 36º, n.º 1, do referido Decreto Lei 385/88 estabelece que aos contratos existentes à data da entrada em vigor da presente lei aplica-se o regime nela prescrito.

Aplicando estas normas ao arrendamento em causa, temos que o contrato viu imperativamente (art. 1025º CC) reduzido o seu clausulado prazo de 99 anos ao máximo de trinta fixados pela nova lei; mas este mais curto prazo apenas começa a correr com a entrada em vigor do CC, em 1 de Junho de 1967. No mais manteve-se o regime legal antes vigente e a legal transmissão do primitivo arrendatário, falecido há cerca de 40 anos, para o filho G.
Entrado em vigor o Dec-lei n.º 385/88, o falado contrato passou a reger-se pelo regime nele prescrito, como expressamente dito no seu art. 36º, n.º 1.
Falecido o C em Agosto de 1996 e não sendo possível a transmissão do contrato aos RR seus filhos, nos termos do visto art. 23º do mesmo diploma, morreu com ele o arrendamento, caducou nessa data o contrato de arrendamento rural a que os autos se referem.
Nem se diga que o contrato se renovou em 1997, decorridos trinta anos sobre a sua vigência no domínio da nova lei. Como bem se diz na sentença recorrida, o contrato caducara no ano anterior, com a morte do C. Nada havia a renovar em 1997 e improcede o concluído em 5ª.
Ponto é que, ao contrário do que defendem os RR, o contrato não seja regulado pela lei vigente ao tempo da sua celebração, que a aplicação destas normas - há claro lapsus calami quando os Recorrente referem o art. 24º; querem, certamente, dizer art. 23º e 36º do Dec-lei n.º 385/88, pois o art. 24º não vem ao caso nem foi aplicado - a contrato celebrado à sombra do Código de Seabra, com eficácia retroactiva, pois, não viole o disposto nos art. 2º e 18º, n.º 3 da Constituição, estando, por isso, feridas de inconstitucionalidade material e sendo defeso aos Tribunais aplicá-las, nos termos do art. 204º da CRP.

São do Prof. Menezes Cordeiro (4) as seguintes palavras:
«O problema dos conflitos de normas no tempo põe-se quando uma mesma situação jurídica entre em contacto com normas novas e velhas. O Direito transitório é, então, chamado a intervir. E pode fazê-lo por uma de duas vias: ou materialmente, fixando um regime de transição que assegure a passagem dum esquema para o outro; ou formalmente. limitando-se a apontar, das leis em conflito, qual a competente para solucionar o problema. Esta última solução, própria da técnica das normas de conflitos, do tipo do Direito internacional privado, é a mais frequente.
O Direito transitório formal pode, por seu turno, ser geral ou especifico. Geral, sempre que vise aplicar-se a múltiplas disciplinas, indistintamente consideradas: no essencial, ele encontra-se no artigo 12º do Código Civil. Especial, nos casos em que tenha sido articulado para operar perante disciplinas específicas: Direito penal, Direito fiscal ou Direito processual civil.
À primeira vista, poderia parecer que, perante uma sucessão de leis no tempo, a lei nova teria pretensões de aplicação integral: com a sua entrada em vigor, a lei velha seria proscrita da ordem jurídica, desaparecendo todos os seus efeitos, a favor da lei nova. Este radicalismo, em prol da lei nova, conduz a resultados inaceitáveis; basta ver que todas as situações duráveis, validamente constituídas ao abrigo da lei antiga - como, por exemplo, os casamentos - seriam postas em causa, quando ocorresse uma substituição das leis.
Perante esse obstáculo, poder-se-ia gerar um radicalismo de sinal contrario: todas as situações constituídas ao abrigo da lei velha deveriam perdurar tal e qual, quando surgisse uma lei nova, com o mesmo âmbito de aplicação.
O primado da lei velha também levaria a saídas inconvenientes: certas situações jurídicas ficariam, para sempre, inalteráveis, regendo-se por ordenamentos há muito desaparecidos. Assim sucederia como direito de propriedade o qual, no caso dos imóveis, se regeria pelo Direito romano ou, porventura, pelos Direitos lusitanos anteriores à romanização.
Como ponto de partida pode, assim, assentar-se em que lei nova e lei velha têm âmbitos próprios de aplicação. A repartição desses âmbitos há-de ter uma qualquer ligação com a data da entrada em vigor da lei nova, embora não possa depender, em toda a sua extensão, apenas desse factor.
O material reunido permite responder ao problema dos "direitos adquiridos" e dos efeitos produzidos.
A expressão "direitos" é, com frequência, utilizada sem o alcance técnico que lhe deveria caber. Visa-se, com ela, designar qualquer posição vantajosa do sujeito.
Em tais circunstâncias, impõem-se algumas distinções dentro do universo amplo "direitos"; ficam abrangidos:
- direitos subjectivos reconhecidos por sentença transitada ou equivalente;
- direitos subjectivos já formados na esfera jurídica do titular e exercidos; por exemplo, o direito ao preço, já recebido, celebrada uma compra e venda;
- direitos subjectivos já formados na esfera jurídica em causa mas ainda não exercidos; por exemplo, o preço vencido, mas não pago:
- expectativas: por exemplo, o direito a receber um preço ao abrigo dum contrato ainda não concluído.

Os direitos referidos são tutelados nos precisos termos acima considerados, a propósito dos graus de retroactividade.
No caso julgado não se pode tocar, sob pena de inconstitucionalidade. Os verdadeiros direitos subjectivos são direitos patrimoniais privados: ninguém pode ser despojado deles, sem justa indemnização.
As expectativas - por vezes ditas "direitos" ainda não formados - são vulneráveis. Ninguém tem direito ao preço dum contrato por celebrar».

Em sentido semelhante se pronunciou a Prof. Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (5):
Sempre que se coloca um problema de aplicação da lei no tempo, por se sucederem regimes legais diferentes potencialmente aplicáveis a relações jurídicas duradouras, a sua solução implica uma indagação sucessiva sobre a existência de normas de direito transitório especial (ou seja, normas da própria lei nova que disciplinem a sua aplicação no tempo).
Só na falta de tal norma especial é que se passa a averiguar, sucessivamente, da existência de normas de direito transitório sectorial ou de direito transitório geral - como é o regime fixado no art. 12º do CC - para, na sua falta, recorrer aos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência.
Por sua vez, Vaz Serra (6) ensina que «as regras do n.º 2 do artigo 12º do Código Civil são meras directrizes que somente em caso de dúvida são aplicáveis. A regra suprema em matéria de aplicação das leis no tempo é a da interpretação da lei em questão, visto que, não tendo natureza constitucional o principio da não-retroactividade das leis, depende da interpretação de cada uma delas a determinação de sua eficácia temporal, isto é, saber se a lei quer, ou não, abranger as situações jurídicas constituídas antes da sua entrada em vigor.
Por conseguinte, para se decidir se certa lei é, ou não, aplicável às situações anteriores, não basta, em rigor, atender às regras formuladas no artigo 12º do Código Civil, que só em caso de dúvida são de observar e não prevalecem sobre os resultados da interpretação da lei em causa.
Pois que não é princípio constitucional o da não-retroactividade das leis, e que as disposições do art. 12º do Código Civil não têm mais força vinculativa que as de outras leis ordinárias, daí deriva que não prevalecem sobre o resultado da interpretação destas outras.

Em matéria de efeitos dos contratos, entende geralmente a doutrina que são regulados pela lei vigente no momento da conclusão do contrato, ainda que se trate de disposições imperativas ou proibitivas da lei nova, porque «o equilíbrio das combinações contratuais não deve ser subvertido pela aplicação da lei nova; essas combinações serão desnaturadas se as tomarmos fora dos quadros da lei sob a qual se formaram; isto desde que a lei respeite a matéria contratual, dado que se regular o «estatuto legal» é imediatamente aplicável a todas as situações pendentes mesmo que estas se encontrem reguladas por cláusulas contratuais, pois, então, tais leis, «criando um conjunto de poderes ou faculdades e de deveres susceptíveis de interessar todos os membros da colectividade, são leis reguladoras de situações jurídicas institucionais ou legais, que constituem como que a base sobre a qual podem depois ser construídas as situações jurídicas contratuais.
Quer isto dizer, pois, que a situação jurídica institucional é como que uma situação jurídica primária em face da situação jurídica contratual, e que esta, como situação jurídica secundária, cede perante aquela, subordinando-se-lhe. Que, para efeitos de direito transitório, é à lei nova que se terá de perguntar o que constitui matéria de estatuto legal e o que representa matéria deixada à autonomia da vontade negocial. Nestes termos, não é inteiramente exacta a fórmula segundo a qual a lei nova se não aplica aos contratos pendentes. Para ser exacta teria de dizer: «a lei nova relativa ao regime dos contratos».
A tese de que os contratos são, no seu todo, regulados pela lei do tempo em que foram celebrados "abriga-se quase sempre na doutrina do Prof. Baptista Machado segundo a qual «sendo o contrato um acto de previsão e um acto de autonomia negocial, as partes tomam em conta, quando o celebram, a lei que então se acha em vigor e que é em função dessa lei que elas realizam o equilíbrio das suas convenções» - cfr. Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, 1968, pág. 108.
Contudo, esquecem-se, como todos os que assim pensam, que esta construção foi elaborada para os contratos em geral e no âmbito da aplicação do princípio da autonomia da vontade, o qual, no entanto, cede terreno no domínio dos arrendamentos vinculísticos, onde a lei restringe a liberdade contratual fixando o estatuto fundamental das pessoas através de normas de carácter público" (7) .
Isso mesmo ensina o saudoso Professor (8) quando defende a aplicação imediata da lei nova ao conteúdo e efeitos futuros dos contratos anteriores quando se trate de contratos normativos ou contratos ditados, como os contratos de trabalho ou, acrescentamos nós, contratos de arrendamento cujo estatuto legal, vinculado, normativo, está intimamente ligado às concepções político-sociais em cada momento dominantes; ou a aplicação imediata de «lei nova imperativa que venha fixar um prazo mais curto por razões de interesse público ligadas à condição jurídica geral das pessoas ou dos bens», pois tal lei nova «será de aplicar, em regra, às próprias relações constituídas por um contrato anterior - pelo que respeita aos períodos contratuais cujo decurso se inicie sob o seu domínio de vigência, ou a toda a duração futura do contrato, conforme os casos. Ex.: o prazo máximo do contrato de locação, fixado pelo art. 1025º em 30 anos» (9).
De qualquer forma, porque a lei nova - o Dec-lei n.º 385/88, de 25 de Outubro - contém norma transitória especial (art. 36º, n.º 1) que dispensa o recurso à norma geral do art. 12º do CC e manda aplicar o regime de novo prescrito aos contratos existentes à data da sua entrada em vigor, é manifesto que o contrato em causa ficou sujeito a tal regime e improcede o concluído em 1ª e 2ª, a menos que a aplicação de tal norma (e das demais indicadas, dos art. 297º e 1025º do CC e 23º do Dec-lei n.º 385/88, de 25 de Outubro) ao referido contrato ofenda o princípio constitucional da segurança jurídica e da protecção da confiança na ordem jurídica, consagrado nos art. 18º, n.º 3 e 2º da Constituição.

Desde a Revisão de 1982 a Constituição alude, nos art. 2º e 9º, b), ao "Estado de direito democrático" e estabelece no n.º 3 do art. 18º que as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
«A mudança ou alteração frequente das leis (de normas jurídicas) pode perturbar a confiança das pessoas, sobretudo quando as mudanças implicam efeitos negativos na esfera jurídica dessas mesmas pessoas. O princípio do estado de direito densificado pelos princípios da segurança e da confiança jurídica, implica, por um lado, na qualidade de elemento objectivo da ordem jurídica, a durabilidade e permanência da própria ordem jurídica, da paz jurídico-social e das situações jurídicas; por outro lado, como dimensão garantística jurídico-subjectiva dos cidadãos, legitima a confiança na permanência das respectivas situações jurídicas. Daqui a ideia de uma certa medida de confiança na actuação dos entes públicos dentro das leis vigentes e de uma certa protecção dos cidadãos no caso de mudança legal necessária para o desenvolvimento da actividade de poderes públicos.
Todavia, uma absoluta proibição da retroactividade de normas jurídicas impediria as instâncias legiferantes de realizar novas exigências de justiça e de concretizar as ideias de ordenação social positivamente plasmadas na Constituição. A ponderação dos valores jurídicos da segurança e da confiança e da conformação actualizada e justa das relações jurídicas pelos poderes normativos democraticamente legitimados justifica um melhor esclarecimento da retroactividade das fontes de direito.

Os limites jurídicos das leis e de outras normas jurídicas têm de ser aferidos segundo os parâmetros das normas constitucionais, devendo considerar-se que uma lei retroactiva é sempre inconstitucional quando uma norma constitucional assim o determina. Existe uma proibição constitucional de retroactividade no caso de: (1) leis penais (art. 29/1º/2º/3º e 4º); (2) leis restritivas de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (art. 18º/3); (3) leis fiscais (art. 103º/3, na redacção da LC 1/97).
A orientação normativo-constitucional não significa que o problema da retroactividade das leis deva ser visualizado apenas com base em regras constitucionais. Uma lei retroactiva pode ser inconstitucional quando um princípio constitucional, positivamente plasmado e com suficiente densidade, isso justifique (10) ».
Trata-se de saber se a nova normação jurídica tocou desproporcionada, desadequada e desnecessariamente dimensões importantes dos direitos fundamentais, ou se o legislador teve o cuidado de prever uma disciplina transitória justa para as situações em causa (11) .

A questão de saber se a aplicação da lei nova a contratos (de arrendamento urbano) celerados no âmbito de um quadro legal anterior diverso viola ou não o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático foi objecto de recente decisão (12) do Tribunal Constitucional, nos termos seguintes:
«Este Tribunal, na esteira de jurisprudência já perfilhada pela Comissão Constitucional, vem entendendo que o princípio do Estado de direito democrático (proclamado no preâmbulo da Constituição e, após a revisão constitucional de 1982, consagrado no seu artigo 2º) postula «uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas», razão pela qual «a formação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático terá de ser entendida como não consentida pela lei básica».
Consequentemente, o princípio do Estado de direito democrático há-de conduzir a que «os cidadãos tenham, fundadamente, a expectativa na manutenção de situações de facto já alcançadas como consequência do direito em vigor».
Todavia, isso não leva a que seja vedada por tal princípio a estatuição jurídica que tenha implicações quanto ao conteúdo de anteriores relações ou situações criadas pela lei antiga, ou quando tal estatuição venha dispor com um verdadeiro sentido retroactivo. Seguir entendimento contrário representaria, ao fim e ao resto, coarctar a «liberdade constitutiva e a auto-revisibilidade» do legislador, características que são «típicas»», «ainda que limitadas», da função legislativa (cf. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição da República Portuguesa, p. 309).
Haverá, assim, que proceder a um justo balanceamento entre a protecção das expectativas dos cidadãos decorrentes do princípio do Estado de direito democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele democraticamente legitimado, legislador ao qual, inequivocamente, há que reconhecer a legitimidade (senão mesmo o dever) de tentar adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as mais acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam «tocadas» relações ou situações que, até então, eram regidas de outra sorte. Um tal equilíbrio, como o Tribunal tem assinalado, será postergado nos casos em que, ocorrendo mudança de regulação pela lei nova, esta vai implicar, nas relações e situações jurídicas já antecedentemente constituídas uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico que regia a constituição daquelas relações e situações. Em tais casos, a lei viola aquele mínimo de certeza e segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de direito, impondo-se, então, a intervenção do princípio da protecção da confiança e segurança jurídica que está implicado pelo princípio do Estado de direito democrático, por forma que a nova lei não vá, de forma acentuadamente arbitrária ou intolerável, desrespeitar os mínimos de certeza e segurança, que todos têm de respeitar».
E justamente a propósito da norma de direito transitório aqui em causa, o art. 36º do Dec-lei n.º 385/88, há muito decidira o Tribunal Constitucional que «o princípio do Estado de direito democrático implica que os cidadãos possam ter fundadas expectativas na manutenção de situações de facto já alcançadas como consequência do direito em vigor, importando proceder, na sua aplicação, a um justo balanceamento entre tais expectativas e a liberdade constitutiva e a auto-revisibilidade do legislador.
Não se justifica a protecção mediante invocação do principio do Estado de direito democrático quando as expectativas dos interessados não sejam materialmente fundadas, se mostrem de tal modo enfraquecidas que a sua cedência, quanto a outros valores, não signifique sacrifício incomportável ou se não perspectivem como consistentes.
Não viola o princípio de Estado de direito democrático, assim entendido, a norma de direito transitório segundo a qual aos contratos de arrendamento rural celebrados no âmbito do ordenamento jurídico anterior ao Dec-Lei n.º 385/88, havendo processo pendente visando o despejo do arrendatário e em que ainda não tivesse sido proferida sentença em 1ª instância, é imediatamente aplicável o regime constante da lei nova - menos favorável ao arrendatário, privado da possibilidade de se opor à denúncia quando o senhorio pretenda explorar directamente o prédio arrendado» (13).
Voltando ao nosso caso, temos por certo que
- nem todo o conteúdo dos contratos é regulado pela lei vigente à data da sua celebração, antes o seu «estatuto legal» é regulado pela lei nova, imediatamente aplicável a todas as situações pendentes mesmo que estas se encontrem reguladas por cláusulas contratuais, pois, então, tais leis, criando um conjunto de poderes ou faculdades e de deveres susceptíveis de interessar todos os membros da colectividade, são leis reguladoras de situações jurídicas institucionais ou legais que constituem como que a base sobre a qual podem depois ser construídas as situações jurídicas contratuais;
- o mesmo acontece nos contratos ditados ou normativos, como o arrendamento, em que o legislador conserva larga margem de conformação às condições sócio-económicas em cada momento dominantes;
- ao reduzir a 30 anos (art. 1025º) o prazo acordado de 99 anos em contrato de arrendamento rural celebrado no tempo do Código de Seabra e mandando começar a contar este mais curto prazo da sua entrada em vigor (art. 297º, n.º 1), o Código Civil de 1967 obedeceu a ponderosas razões de ordem pública de regulação do uso da propriedade imóvel sem atingir desproporcionadamente as expectativas dos contratantes;
- ao mandar aplicar o novo regime do arrendamento rural a tais contratos, o Dec-lei n.º 385/88, de 25 de Outubro - e os seus art. 36º, 23º e 24º - não atinge de forma arbitrária ou intolerável aquelas expectativas (que os filhos do transmissário não tinham) nem desrespeita os mínimos de certeza e segurança postulados pelo princípio do Estado de direito democrático,
- pelo que não padecem de inconstitucionalidade material aquelas normas do CC ou do Dec-lei n.º 385/88, de 25 de Outubro, normas que, por não restritivas de direitos, liberdades e garantias, não caem na proibição constitucional de retroactividade contida, além doutras, no invocado art. 18º, n.º 3, da Constituição.

Improcede o concluído de 1ª a 4ª e o contrato caducou com a morte do transmissário C, em Agosto de 1996. Sem título que legitime a ocupação que vêm fazendo, os RR têm de abrir mão do imóvel e restitui-lo aos AA seus donos.
Importa, agora, decidir o pedido reconvencional formulado pelos réus de pagamento da quantia de 750.000$00 (setecentos e cinquenta mil escudos) a título de benfeitorias realizadas no prédio.
Como decidido pela 1ª Instância e confirmado pela Relação, "vem provado que na parcela de terreno em questão existem actualmente dois blocos de construção, sendo um com a área total aproximada de 100 m2 (cem metros quadrados) e outro com a área aproximada de 25 m2 (vinte e cinco metros quadrados), o qual tem adjacente umas paredes em ruínas de uma divisão com cerca de 15 m2 (quinze metros quadrados) e que há cerca de dez anos C edificou uma construção anexa à anteriormente existente, sendo o valor das construções actualmente existentes no local de cerca de 750.000$00 (setecentos e cinquenta mil escudos).
Anota-se que não ficou completamente esclarecido quais as construções que já existiam no local à data do início da vigência do contrato (cfr. respostas aos quesitos 3º e 4º), nem qual o seu valor (cfr. resposta aos quesitos 6º e 7º).
Em face da definição constante do artigo 216º do Código Civil, as obras levadas a cabo por G são, efectivamente benfeitorias úteis.
Caso se deva ter por eficaz o estipulado pelas partes contratantes do contrato de arrendamento invocado pelos réus e que, em verdade, permanecia válido e eficaz na data em que as benfeitorias terão sido efectuadas, não sendo tal cláusula afastada por norma imperativa em contrário, então haveria que dizer que as partes previram a realização de benfeitorias no local e que, expressamente, afastaram a possibilidade de indemnização ao rendeiro por parte do senhorio (cláusula sexta do documento junto a fls. 40 a 42).
Nada impedia os primitivos contratantes de fixar livremente, nessa parte, a inexistência de indemnização em caso de benfeitorias, o que vincula as partes em litígio na presente acção, impedindo os réus de exercer o direito a qualquer indemnização por benfeitorias efectuadas".

«Nada obsta à validade da cláusula, contida em contrato de arrendamento, segundo a qual as benfeitorias realizadas pelo arrendatário não lhe dão direito a qualquer indemnização» (14) .
"Mas caso se atente apenas na regulamentação legal relativamente à indemnização por benfeitorias feitas no âmbito dos contratos de arrendamento rural, ainda assim se mostra afastada a possibilidade legal de indemnização requerida.
Na verdade, nos termos do artigo 14º n.º 1 do Decreto Lei 385/88, de 25 de Outubro, as benfeitorias úteis só podem ser feitas com o consentimento escrito do senhorio e só relativamente a tais benfeitorias poderia haver lugar a indemnização, nalguns casos (artigo 15º n.º 1 e 3 do Decreto Lei 385/88, de 25 de Outubro).
Sendo as benfeitorias realizadas na vigência da Lei 76/77, de 29 de Setembro, com a redacção da Lei 76/79, de 3 de Dezembro (como parece ter acontecido face aos factos provados), então a sua realização deveria ter sido precedida de consentimento (ainda que não escrito) do senhorio (artigo 15º, n.º 1), sem o que, nos termos do artigo 25º do citado diploma não tinha o arrendatário direito a exigir benfeitorias do senhorio.
Analisando os factos articulados pelos réus a fundamentar o pedido reconvencional, constata-se, porém, que não foi por eles sequer alegado que tenha existido tal consentimento do senhorio, o qual, como se viu, constitui um dos requisitos do direito à indemnização peticionada.
Competindo aos réus invocar os fundamentos de facto do direito que pretendem fazer valer na presente acção, a ausência de alegação (e prova) de tal fundamento tem como natural consequência a improcedência do seu pedido reconvencional".

Mas - dizem os Recorrentes - é devida indemnização por benfeitorias, pois se o clausulado não vale para a renovação do contrato, recusada por aplicação de norma imperativa, também não pode valer a acordada renúncia a benfeitorias.
Argumentação aliciante mas infundada. Nada nos diz que as benfeitorias tenham sido feitas na perspectiva de duração indeterminada (99 anos, renováveis) do arrendamento, nem sequer quando era essa a disciplina regente do contrato.
Depois, bem sabia o arrendatário que não tinha direito a indemnização por benfeitorias, qualquer que fosse a duração do contrato. Falha, portanto, o pressuposto em que os seus sucessores fundam o pedido.
Pelo que improcede o concluído em 6ª e não se mostram violadas as normas ditas em 7ª - nem quaisquer outras.

Decisão
Termos em que se decide
a) - negar a revista e
b) - condenar os Recorrentes nas custas, por vencidos - art. 446º, n.os 1 e 2, do CPC.

Lisboa, 21 de Janeiro de 2003
Afonso Correia
Azevedo Ramos
Silva Salazar
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(1) - J. Aragão Seia, Manuel Calvão e Cristina Aragão Seia, Arrendamento Rural, 3ª ed., pág. 42, notas 9 e 10.
(2) - P. Lima e A. Varela, CC Anotado, II, 4ª ed., 348.
(3) - Ibidem
(4) - Parecer na Col. Jur. (STJ) Ano IV, I, 5 e ss.
(5) - Parecer na Col. Jur. (STJ) 1993-I-273, maxime 276/7.
(6) - Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 110º, pág. 271/272 e 274.
(7) - Ac. do STJ (Barata Figueira), de 6.7.2000, no BMJ 499-303.
(8) - Op. cit., 122.
(9) - Ib., 169, nota 116 bis.
(10) - Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6ª edição, 259/260.
(11) - Ibidem, 262.
(12) - Ac. de 27-6-2001, no DR, II série, de 9.11.2001.
(13) - Ac. do Tribunal Constitucional n.º 156/95, de 15/3/1995, Bol. 446 (suplemento), 545, sumariado na nota 31 ao art. 36º, na obra de A. Seia e outros, acima citada.
(14) - Ac. do STJ (A. Barros), de 11.10.2001, na Col. Jur. (STJ) 2001-III-69/75.