Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1116/11.3TBVVD.G2.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
ADVOGADO
INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
CASO JULGADO
DEVER DE LEALDADE
DEVER DE COOPERAÇÃO DAS PARTES
DEVER DE PROBIDADE PROCESSUAL
DOLO
NEGLIGÊNCIA
Data do Acordão: 06/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / MULTAS E INDEMNIZAÇÃO - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, I, 382; Litigância de Má Fé, abuso do direito de acção e culpa “In Agendo”, Almedina, 2006, 16 a 23.
- Paula Costa e Silva, Litigância de Má Fé, Coimbra Editora, 2008, 150 a 183.
- Pedro de Albuquerque, Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, abuso de direito e responsabilidade civil em virtude de actos praticados no processo, Almedina, 2006, 15 a 21, 30 a 41, 53.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 7.º, N.º1, 8.º, 542.º, N.ºS 2 E 3, 545.º, 635.º, N.º 4, 639º, N.º 1.
ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS, APROVADO PELA LEI Nº 15/2005, DE 26 DE JANEIRO: - ARTIGOS 92.º, N.º 2, 95º, N.º 1, A) E B).
REGULAMENTO DAS CUSTAS PROCESSUAIS (RCP): - ARTIGO 27.º, N.ºS 3 E 4.
Sumário :
I – É bem antiga a preocupação no combate aos comportamentos processuais desvaliosos e entorpecedores da realização da justiça, consagrando já o direito romano e, depois, o direito pátrio, uma multiplicidade de institutos destinados a sancioná-los.

II – Com tais mecanismos sempre se visou sancionar apenas a ilicitude decorrente da violação de posições e deveres processuais, o também chamado ilícito processual, gerador de uma “responsabilidade de cunho próprio”, assente em deveres de lealdade, colaboração e probidade das partes.

III - Após a revisão processual de 1995, o quadro normativo em matéria de litigância de má fé passou a ser bem mais exigente, impondo a repressão e punição não só de condutas dolosas, mas também as gravemente negligentes (anterior art.º 456º, n.º 2, e actual 542º, n.º 2, do CPC).

IV - No entanto, deve continuar-se a ser cauteloso, prudente e razoável na condenação por litigância de má fé, o que só deverá ocorrer quando se demonstre, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu dolosamente ou com grave negligência, com o fito de impedir ou a entorpecer a acção da justiça.

V - Litiga de má fé, com responsabilidade directa da sua Advogada (art.º 545º do CPC), a parte que, com o objectivo de protelar o reembolso das importâncias devidas ao Fundo de Garantia Automóvel, interpõe recurso em que suscita, de novo, a prescrição, questão que fora já objecto (exclusivo) de anterior recurso e constituía caso julgado.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Relatório


I – Fundo de Garantia Automóvel intentou acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra AA e BB, pretendendo ver estes condenados a pagarem-lhe solidariamente a quantia de € 28.682,94, acrescida de juros moratórios e das despesas que vier a ter com o reembolso, correspondente ao que suportou em consequência de acidente de viação ocorrido no dia 21 de Janeiro de 2006, devido a culpa exclusiva do segundo demandado, que conduzia o automóvel de matrícula JS-...-..., no interesse da demandada AA, proprietária desse veículo, sem beneficiar de seguro válido e eficaz.

Os Réus ofereceram contestação a sustentar, além de mais, a excepção peremptória de prescrição, a qual veio a ser julgada procedente, no saneador, com a sua consequente absolvição dos pedidos formulados pelo Autor.

Inconformado com tal decisão, apelou o Autor, com êxito, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 05.02.2013, decidido que ainda não havia decorrido o prazo de prescrição e ordenado o prosseguimento do processo.

Transitado em julgado esse acórdão, o processo retornou à 1ª instância e, após a realização da audiência de discussão e julgamento, no dia 18.02.2015, foi proferida sentença a absolver a Ré do pedido e a condenar o Réu BB a pagar ao Autor a quantia € 28.682,94, acrescida de juros moratórios a contar da citação, absolvendo-o do demais peticionado.

Discordando dessa decisão, interpôs o Réu BB recurso de apelação, tendo, por um lado, impugnado parte da decisão da matéria de facto e, por outro, reiterado a arguição da prescrição.

O Tribunal da Relação de Guimarães julgou improcedente o recurso e, por considerar indiciada a litigância de má fé, ouviu as partes sobre o tema, terminando por condenar o Réu BB, a esse título, na multa de 7 UCs, e, por entender que tal conduta envolvia também a responsabilidade directa e pessoal da sua Mandatária e subscritora da alegação recursiva (Dra. CC), determinou que fosse dado conhecimento à Ordem dos Advogados.


Inconformados, pediram, então, revista (conjunta) o Réu BB e a sua Mandatária, finalizando a sua alegação, com as seguintes conclusões:

1. O Réu entende que o Acórdão recorrido deve ser revogado quanto à parte da sua condenação como litigante de má-fé, já que usou critérios, no mínimo, de rigor excessivo, e não só, na avaliação da sua conduta processual.    

2. O Réu recorrente não agiu com o dolo ou a negligência grave a que alude o art.º 542º, n.° 1 do C.P.C..

3. A sua lide tem de ser, quando muito, entendida e catalogada de simplesmente imprudente, imprudência leve ou levíssima.

4. Não caracterizando, portanto, litigância de má-fé, dado que, como ensina o Professor Alberto dos Reis (C.P.C. Anotado, Volume II, pág. 262, 3ª Edição, Coimbra Editora), para a existência desta é necessário que as circunstâncias constantes do processo induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão ou oposição conscientemente infundada.

5. Pois, na verdade, o Réu recorrente, representado pela sua mandatária CC, nóvel advogada, com muito poucos anos de exercício da advocacia, procedeu de boa fé ao pôr a questão em causa.

6. Foi por um mero e simples erro de direito que entendeu que a decisão proferida em sede de saneador não fazia caso julgado material, pelo que agiu nessa conformidade sem intenção dolosa, nem sequer negligência grave.

7. Isto porque como houve recurso a final, pensou o Réu, através da sua mandatária, que ainda podia trazer de novo à colação a questão da prescrição.

8. E sabe-se quão movediço é o terreno em que se caminha em termos de caso julgado, já que este põe, a nível doutrinal e jurisprudencial, inúmeros e questionáveis problemas que vêm sendo resolvidos, ou não, com opiniões e decisões diversas e até contraditórias, servindo, sobretudo, de exemplo paradigmático, o que sucede na interpenetração do direito civil e do direito criminal.

9. Em suma, contrariamente ao decidido no Acórdão recorrido, em termos de rigor excessivo, e não só, o Réu, de modo algum, atuou de forma grosseira ou com dolo intenso.

10. Sabendo-se, também, que fácil é qualquer interveniente no processo lavrar em erro de direito, como, aliás, sucedeu com o julgador que proferiu a decisão da primeira instância em sede de saneador, estando esta, como é óbvio, bem longe de se poder enquadrar como uma situação de má-fé.

11. Por tudo o exposto, deve o Acórdão recorrido ser, na parte da condenação do Réu como litigante de má-fé, totalmente revogado sem condenação dele em qualquer multa, e sem responsabilidade pessoal e direta da sua mandatária, Dra. CC, não se justificando, assim, que se dê qualquer conhecimento ao Conselho Distrital da Ordem dos Advogados.


Não foi oferecida contra-alegação e, obtidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

A apreciação e decisão do presente recurso de revista, delimitado, como se sabe, pelas conclusões da alegação dos Recorrentes (art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil[1]), passam pela análise e resolução da única questão jurídica por eles colocadas a este tribunal e que consiste em dilucidar se existe fundamento ou não para a condenação por litigância de má fé imposta pelo Tribunal da Relação, decisão que, não obstante o valor da sucumbência ser inferior a metade da alçada daquele Tribunal, é susceptível de impugnação recursiva, pois, como decorre do disposto no art.º 542º, n.º 3, do Cód. de Proc. Civil, é sempre admitido recurso, em um grau, da condenação por litigância de má fé.

Os elementos factuais a ter em conta correspondem aos passos processuais, atrás descritos no relatório, aos quais caberá acrescentar ainda que, no inicio da lide, o Recorrente BB juntou procuração forense a favor de três Advogados que o patrocinaram, até à prolação da sentença, altura em que foi apresentada renúncia ao mandato por uma das suas Advogadas, continuando o patrocínio a ser assegurado pelos outros dois, sendo as peças processuais subscritas apenas pela também Recorrente Dra. CC.

Entrando, agora, no objecto do recurso, importa, antes de mais, sublinhar que é bem antiga a preocupação no combate aos comportamentos processuais desvaliosos e entorpecedores da realização da justiça, consagrando já o direito romano uma multiplicidade de institutos destinados a sancioná-los, sendo disso exemplo, entre outros, “as figuras da calumnia, da infâmia, da pluris petitio ou o da iusiurandum calumniae[2].

Igual preocupação se encontra também patente, no direito pátrio, desde as Ordenações Afonsinas, merecendo especial destaque o juramento de calunia e a sujeição do vencido malicioso ao pagamento de custas em dobro ou tresdobro[3], consoante o grau de culpa ou malícia.

Com tais mecanismos sempre se visou sancionar apenas a ilicitude decorrente da violação de posições e deveres processuais, o também chamado ilícito processual, gerador de uma “responsabilidade de cunho próprio”[4], assente em deveres de lealdade, colaboração e probidade das partes, distinta portanto da responsabilidade civil.

Entre nós, antes da reforma processual introduzida pelo DL 329-A/95, de 12 de Dezembro, era entendimento constante da jurisprudência e da doutrina que o art.º 456º do Cód. de Proc. apenas sancionava as condutas dolosas. Após a revisão processual de 1995, o quadro normativo em matéria de litigância de má fé passou a ser bem mais exigente, impondo a repressão e punição não só de condutas dolosas, mas também as gravemente negligentes (anterior art.º 456º, n.º 2, e actual 542º, n.º 2, do CPC).

No entanto, deve continuar-se a ser cauteloso, prudente e razoável na condenação por litigância de má fé, o que só deverá ocorrer quando se demonstre, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu dolosamente ou com grave negligência, com o fito de impedir ou a entorpecer a acção da justiça.

Mas se tal é certo, não se pode olvidar uma outra, diferente, perspectiva ou vertente. É que as partes (e não só) têm o dever de cooperar e concorrer para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio (art.º 7º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil) e devem também, agir de boa fé (art.º 8º do Cód. de Proc. Civil), ou seja, não formular pedidos injustos, não articular factos contrários à verdade e não requerer diligências meramente dilatórias.

No caso, afigura-se-nos ser manifesta e evidente a postura desleal e nada proba do Recorrente BB ao avançar com o recurso de apelação, nele reiterando a invocação da prescrição, questão que já antes fora decidida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em anterior recurso tendo por objecto precisamente tal excepção peremptória (cfr. acórdão de fls. 215 a 222, 2º volume). E também se apresenta óbvia a responsabilidade pessoal e directa da sua Mandatária, subscritora de tal peça processual, na medida em que ao elaborá-la não podia ignorar que a anterior decisão do Tribunal da Relação de Guimarães havia transitado em julgado e era já imodificável.

Refuta-se, assim, e não se acolhe a retórica argumentativa tecida pelos Recorrentes tendente ao afastamento da sua responsabilidade pelo arrastamento do processo, repristinando questão já definitivamente decidida. É que também na lide processual as partes devem comportar-se como é de esperar de uma pessoa honrada, de uma pessoa de bem, o que não sucedeu com o Recorrente BB.

Na verdade, em vez de assumir a sua responsabilidade pelo reembolso das quantias suportadas pelo Fundo de Garantia Automóvel, por ter omitido a sua obrigação de transferir para qualquer Seguradora a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros, com a circulação do seu veículo, avançou com o processo para recurso, protelando, por um lado, a execução desse reembolso e, por outro, sobrecarregando desnecessariamente o aparelho judiciário com a reapreciação da questão da prescrição já antes debatida e decidida, com trânsito em julgado.

Essa sua atitude encerra óbvio comportamento desvalioso e entorpecedor da realização da justiça, merecendo ser sancionado como litigante de má fé, como ajuizou o Tribunal da Relação de Guimarães.

No que concerne à Recorrente, também a sua responsabilidade é patente. Com efeito, era (e é) advogada, habilitada ao exercício do patrocínio forense, após conclusão do respectivo estágio de alguns anos, ao qual apenas se acede, como se sabe, com a licenciatura em direito, não sendo tolerável a sua teimosia em reiterar a invocação da prescrição, ignorando os efeitos do caso julgado antes formado, neste próprio processo.

Tratava-se, como é bom de ver, de questão de índole exclusivamente técnica que, com os seus conhecimentos jurídicos, lhe cabia naturalmente apreender e, com a margem de liberdade e autonomia profissionais caracterizadoras do exercício da advocacia, deveria ter aconselhado o seu patrocinado a acatar, de imediato, a decisão e não avançar com novo recurso a reiterar a invocação da já decidida prescrição (art.ºs 92º, n.º 2, e 95º, n.º 1, a) e b) do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 15/2005, de 26 de Janeiro).

Aliás, a saída de cena da outra advogada, nessa fase do processo, denota bem a sua divergência com o desenvolvimento subsequente da lide recursiva, esta já da exclusiva responsabilidade da Recorrente. Por outro lado, a sua juventude no exercício da advocacia (situação que se desconhece se ocorre) não a exime dessa responsabilidade, apenas deverá relevar em sede de determinação do grau de contribuição e definição da sua quota-parte, matéria da competência da Ordem dos Advogados (art.º 545º, do Cód. de Proc. Civil) e de que não cabe aqui curar.

Nesta conformidade, consideramos que bem ajuizou e decidiu a 2ª instância quando concluiu pela existência de elementos factuais comprovativos da litigância de má fé, improcedendo tudo o que, em sentido contrário, os Recorrentes argumentaram e concluíram, a esse propósito, sendo certo também que o montante da multa se contém dentro dos parâmetros definidos pelo art.º 27º, n.ºs 3 e 4, do RCP, e mostra-se equilibradamente fixada.


III – Decisão


Nos termos expostos, nega-se a revista e consequentemente confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelos Recorrentes.


*



Lisboa, 02 de Junho de 2016


António Piçarra (relator)

Fernanda Isabel Pereira

Olindo Geraldes

_________________
[1] Na versão aprovada pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, uma vez que o recurso tem por objecto decisão proferida já depois de 01 de Setembro de 2013 e o processo é posterior a 01 de Janeiro de 2008 (cfr. os seus art.ºs 5º, n.º 1, 7º, n.º 1, e 8º).

[2] Cfr. Pedro de Albuquerque, in Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, abuso de direito e responsabilidade civil em virtude de actos praticados no processo, Almedina, 2006, págs. 15 a 21, onde consta uma análise detalhada dessas figuras.
[3] Cfr, sobre as origens, características específicas das modalidades de responsabilidade processual e evolução histórica, Pedro de Albuquerque, obra citada, págs. 30 a 41, António Menezes Cordeiro, in Litigância de Má Fé, abuso do direito de acção e culpa “In Agendo”, Almedina, 2006, págs. 16 a 23, e Paula Costa e Silva, in a Litigância de Má Fé, Coimbra Editora, 2008, págs. 150 a 183.   
[4] Cfr. Pedro de Albuquerque, obra citada, pág. 53, e António Menezes Cordeiro, in Da Boa Fé no Direito Civil , I, pág. 382.