Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
98/04.2GCVRM-A.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: PEREIRA MADEIRA
Descritores: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
CÚMULO JURÍDICO
JULGAMENTO
TRIBUNAL COMPETENTE
TRÂNSITO EM JULGADO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/06/2010
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFLITO
Decisão: ATRIBUÍDA A COMPETÊNCIA AO JUIZ ESCUSANTE DE GONDOMAR
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO PENAL: ARTIGO º 472.º, N.º 2
Sumário :
I - A efectivação da operação de cúmulo jurídico traduz-se efectivamente na realização de um «novo julgamento», com todas as inerentes implicações jurídicas.
II - Quando o legislador – art. 472.º, n.º 2, do CPP – impõe a tarefa desse novo julgamento ao foro da “última condenação”, tem em mente implicar nele o tribunal que, justamente por ser o último a intervir em tempo e na cadeia das condenações, dispõe dos elementos de ponderação mais completos e actualizados, nomeadamente, quanto aos factos (e nestes não pode ser esquecido o papel que tem para a determinação da medida da pena, por exemplo, a conduta posterior – art. 71.º, n.º 2, al. e), do CP) e que, portanto, a todas as luzes, é o que está em melhor plano para colher a visão que se quer de panorâmica completa e actual do trajecto de vida do arguido, circunstância que, manifestamente, arreda qualquer interpretação restritiva daquela disposição processual.
III - O trânsito em julgado da condenação é um evento neutro para efeitos da aferição da competência do tribunal para a realização do cúmulo jurídico de penas, até porque, ao invés do julgamento e/ou condenação, é um acontecimento jurídico aleatório e imprevisível.
(Sumário revisto pelo Relator)
Decisão Texto Integral:


1. Após solicitação para o efeito de esclarecer se no seu processo comum singular n.º 232/07.0PBGDM fora efectuado supervenientemente o cúmulo jurídico da pena ali aplicada com a que fora aplicada no processo da mesma natureza com o n.º 98/04.2GCVRM, o juiz do 1. ° Juízo Criminal de Gondomar por despacho datado de 5 de Novembro de 2009 considerou não ser o competente. Para tanto, considerou que o art.° 471. °, n.º 2, do Código de Processo Penal só pode ser entendido como o tribunal da última condenação transitada.
Concluiu, assim, ser o peticionante Tribunal Judicial de Vieira do Minho o competente.
Por seu turno, o juiz deste último tribunal, também se considerou incompetente para executar a tarefa judicial em causa, tendo por competente, sim, o Tribunal Judicial de Gondomar, no âmbito do Proc. 232/07.OBGDM (1º Juízo Criminal) pois, segundo discorre:
«…nos presentes autos o arguido R… F… C… S… foi condenado por factos que remontam a 3 de Abril de 2004 num crime de furto qualificado (p. e p. pelo art. °s 203. ° n.º l e 204. ° n.º 2 al. e), ambos do Código Penal numa pena de prisão por sentença datada de 25 de Julho de 2008, transitada em julgado no dia 12 de Março de 2009) (cf. fls. 550 a 560). No âmbito dos autos 232/07.PBGDM (1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Gondomar) na pena de 20 meses de prisão pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.° 3. ° n. °s 1 e 2 do Dec. -Lei n.º 2/98, de 3/1, remontando os factos ao dia 8 de Agosto de 2007. A sentença foi proferida em 13 de Novembro de 2008, transitada em julgado no dia 9 de Dezembro de 2008. Ora, as penas aplicadas encontram-se nos termos do art.° 78. ° n.º 1 do Código Penal numa relação de concurso superveniente. O art.° 471. °, n.º 2 [dispõe] que é territorialmente competente o tribunal da última condenação para o conhecimento superveniente do concurso. Considerando o teor do CRC do arguido junto aos autos e atento o supra exposto o Tribunal da última condenação é o de Gondomar, pois, salvo o devido respeito por posição contrária, entendemos que a data do trânsito em julgado não define o tribunal da última condenação (sendo certo que, obviamente, tem de existir trânsito em julgado para a efectivação de cúmulo jurídico, cujo conhecimento seja superveniente). O art.° 471. ° n.°2 do CPP dispõe apenas que o competente é o tribunal da última condenação não exigindo que se averigúe para efeitos de competência a data do respectivo trânsito em julgado…»

Ambos os despachos transitaram em julgado, assim surgindo para resolver um conflito negativo de competência, cuja resolução vem pedida pelo Ministério Público.
Cumprido o disposto no artigo 36.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, apenas o Ministério Público junto deste Supremo Tribunal se pronunciou sobre a questão que entende dever ser decidida no sentido do reconhecimento da competência enjeitada ao Tribunal de Gondomar.

2. Cumpre decidir
Não existem divergências entre os juízes conflituantes quanto ao quadro de facto essencial acima traçado para solução do conflito. Nomeadamente, quanto à existência de uma situação jurídica de cúmulo supervenientemente conhecido, assim como as datas das respectivas decisões e trânsito em julgado.
Pois bem.
Sendo aquele o quadro de facto, importa adiantar já que o juiz de Gondomar não tem razão.
Com efeito, nos casos de conhecimento superveniente do concurso de crimes, a letra da lei é clara ao conferir a competência para julgamento e decisão ao tribunal da última condenação.
A expressão literal é suficientemente clara e inequívoca para que da sua interpretação possam sair resultados tão díspares.
Para além disso, não é lícito supor, como o faz o juiz de Gondomar, que o legislador se expressou tão deficientemente que confundisse realidades jurídicas tão distintas, como o são «última decisão» e «decisão transitada» – art.º 9.º, n.ºs 2 e 3 do Código Civil. Acaso fosse essa uma intenção sua, não deixaria de ter no texto legal a reclamada expressão verbal, ainda que imperfeita.
Finalmente, e não menos importante, importa reflectir, como o fez nomeadamente este Supremo Tribunal, também pela pena de quem ora decide, das razões de fundo que estão na base daquela opção processual de atribuição de competência ao tribunal da «última condenação», nomeadamente nos seus Acórdãos de 2 de Dezembro de 2004 e 8/11/2001, respectivamente nos recursos n.ºs 2664/01-5 3417/04-5, o último dos quais assim sumariado:
I – A efectivação da operação de cúmulo jurídico traduz-se efectivamente na realização de um «novo julgamento», com todas as inerentes implicações jurídicas.
II – Quando o legislador – art.º 472.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – impõe a tarefa desse novo julgamento ao foro da “última condenação”, tem em mente implicar nele o tribunal que, justamente por ser o último a intervir em tempo e na cadeia das condenações, dispõe dos elementos de ponderação mais completos e actualizados, nomeadamente, quanto aos factos (e nestes não pode ser esquecido o papel que tem para a determinação medida da pena, por exemplo, a conduta posterior – art.º 71.º, n.º 2, e), do Código Penal) e que, portanto, a todas as luzes, é o que está em melhor plano para colher a visão que se quer de panorâmica completa e actual do trajecto de vida do arguido, circunstância que, manifestamente, arreda qualquer interpretação restritiva daquela disposição processual.

Não há razão para abandonar o entendimento ali avançado, sendo o mesmo o quadro jurídico e idênticas as situações de facto.
Assim:
«Dispõe o artigo 471.º do Código de Processo Penal, subordinado à epígrafe “conhecimento superveniente do concurso”, que, «para efeito do disposto no artigo 78.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal é competente, conforme os casos, o tribunal colectivo ou o tribunal singular (...)»(n.º 1).
Acrescenta o n.º 2: «Sem prejuízo do disposto no número anterior, é territorialmente competente o tribunal da última condenação.»
Por seu turno, prescreve o artigo imediato que, “para o efeito do disposto no artigo 78.º, n.º 2, do Código Penal, o tribunal designa dia para a realização da audiência ordenando, oficiosamente, ou a requerimento, as diligências que se lhe afigurem necessárias para a decisão.”
Nos termos do n.º 2 deste mesmo dispositivo, «é obrigatória a presença do defensor e do Ministério Público, a quem são concedidos 15 minutos para alegações finais. O tribunal determina os casos em que o arguido deve estar presente.»
Daqui pode afoitamente concluir-se que, se o tribunal tem de designar dia para a realização da audiência, é porque efectivamente se trata de um novo julgamento.
Não teria sentido entendimento contrário. Até porque são obrigatoriamente convocados o Ministério Público e o defensor, podendo o arguido sê-lo também. E a possibilidade de existência de alegações finais desvaneceria toda a dúvida.
Mas se assim é, não se vê como sustentar a tese restritiva do juiz de … [no caso, de Gondomar, com as devidas adaptações], já que, só com algum artifício de interpretação se pode ver aqui qualquer rasto de distinção entre “condenação por factos ilícitos típicos” e “condenação... resultante de operação posterior de cúmulo de penas parcelares aplicadas”.
Primeiro, porque a lei não procede a uma tal distinção e não lhe confere na sua expressão literal qualquer ponto de apoio.
Depois, porque não há razão válida para que a ela se deva proceder. Bem pelo contrário.
Efectivamente, ao invés do que subjaz à interpretação do juiz de … [Gondomar], não é o tribunal da condenação no termo do processo correspondente ao último julgamento...a sério... que está em melhores condições para avaliar em conjunto os factos e a personalidade do arguido.
De facto – e será aqui que reside a chave da questão – quando o legislador impõe a tarefa do novo julgamento ao foro da “última condenação”, tem em mente implicar nele o tribunal que, justamente por ser o último a intervir em tempo e na cadeia das condenações, dispõe dos elementos mais completos e actualizados, nomeadamente, quanto aos factos (e nestes não pode ser esquecido o papel que tem para a determinação medida da pena, por exemplo, a conduta posterior – art.º 71.º, n.º 2, e), do Código Penal) e que, portanto, a todas as luzes, é o que está em melhor plano para colher a visão que se quer de panorâmica completa e actual do trajecto de vida do arguido, circunstância que, manifestamente, arreda aquela interpretação restritiva.»
Quer dizer: o trânsito em julgado da condenação é um evento neutro para o caso que nos importa. Até porque, ao invés do julgamento e ou condenação, é um acontecimento jurídico aleatório e imprevisível que, a ser acolhido na interpretação feita pelo juiz de Gondomar, levaria à solução claramente inversa do ponto de vista da lei e que seria a de colocar a responsabilidade do julgamento nos ombros do tribunal da primeira condenação, que no caso foi a última que transitou em julgado.
E, sendo assim, foi seguramente em Gondomar que aconteceu a “última condenação” juridicamente relevante para atribuição da competência territorial para efectivação do cúmulo jurídico enjeitado por ambos os tribunais em conflito.
É, assim, do Tribunal de Gondomar a competência territorial para conhecer do feito.

3. Termos em que decido o conflito com atribuição da enjeitada competência ao juiz escusante de Gondomar
Cumpra-se o n.º 3 do artigo 36.º citado, devendo ser efectuadas por fax a respectivas notificações, assim como ao Ministério Público e ao arguido e ao assistente se o houver.
Sem tributação.
Transitado, remeta os autos para arquivo à 1.ª instância.

Supremo Tribunal de Justiça, 6 de Janeiro de 2010
O Conselheiro Presidente da 3.ª Secção Criminal

a) António Pereira Madeira