Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A3822
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AFONSO DE MELO
Descritores: TESTAMENTO
VONTADE DO TESTADOR
MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: SJ200401130038226
Data do Acordão: 01/13/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 891/02
Data: 05/27/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : O Assento de 19/10/1954, hoje com o valor de jurisprudência uniformizada, não caducou com a revogação do C.Civil de 1867.
A intenção do testador, objecto de prova complementar nos termos do nº 2 do art 2187º do C.Civil, constitui matéria de facto.
Determinada essa intenção pelas instâncias, o STJ não pode censurá-la, limitado como está à matéria de direito.
Decisão Texto Integral: Acordam do Supremo Tribunal de Justiça

A Associação de Crianças do Hospital Maria Pia, com sede no Porto, intentou em 13/10/99, no Tribunal de Círculo de Matosinhos, acção em processo comum ordinário contra o Hospital Central Especializado de Crianças Maria Pia, com sede no Porto, e o Estado Português, pedindo:
a) A condenação dos RR. a reconhecerem a A. como única e legítima legatária de A, falecida em 26/05/1978, de acordo com o testamento desta lavrado em 11/09/1974.
b) Em consequência, a condenação dos RR. a reconhecerem a A. como única e exclusiva proprietária, por força do legado, do prédio urbano identificado no art.º 64º da petição inicial, descrito sob o nº 9397, LB - 30, fls. 133, na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos.
c) A condenação do R. Hospital a restituir-lhe o prédio com todas as suas pertenças e recheio, descritos no testamento.
d) A condenação solidária dos RR. a restituírem-lhe a verba recebida, por força do testamento, legado de 500.000$00, corrigido monetariamente, com juros desde a citação.
e) A condenação do R. Hospital a deixar de usar a expressão "Maria Pia" e o brazão de armas, ou logotipo da A, retirando-o do papel de carta, ofícios e demais correspondência, ainda que electrónica.
f) A condenação do R. Estado a ver decretada a nulidade do registo da dita propriedade a seu favor e, consequentemente, no cancelamento da respectiva inscrição e de todas que se lhe seguirem.
g) Subsidiariamente, na hipótese de decaimento do pedido principal, a condenação solidária dos RR. por injusto completamento à custa do A., numa indemnização a liquidar em execução de sentença, correspondente ao prejuízo - os 500 contos não aplicados, corrigidos monetariamente e com juros desde a citação, e o valor do imóvel a determinar, oportunamente, através de avaliação.
Alegou, depois de uma longa explicação da sua história e dos seus estatutos:
Como consta do testamento da falecida A, esta legou ao Hospital de Dona Maria o prédio e os 500 000$00 destinados a obras de conservação e adaptação.
O Hospital devia instalar no prédio uma casa de repouso, creche ou jardim infantil para crianças pobres, doentes ou convalescentes, o que nunca fez deixando degradar o prédio.
À data do testamento o Hospital Maria Pia era gerido pela A., sendo portanto a beneficiária do legado como proprietária, que ainda é, do mesmo Hospital.
Foi desapossada pelo Estado, a partir de 19/03/1975, do Hospital de Crianças Maria Pia.
O Estado registou a seu favor o prédio legado.
O 1º R. utiliza como seu o escudo de armas da A., criando confusão entre as duas entidades.
O Hospital de crianças Maria Pia, pessoa colectiva de direito público, foi criado pelo Estado.
Os RR. contestaram, alegando, além do mais, que a testadora quis beneficiar com o legado o Hospital Dona Maria e não a A. e, de qualquer modo, o prédio sempre teria sido adquirido por usucapião.
Concluíram que a acção devia ser julgada improcedente.
A A. replicou.
Na sentença final a acção foi julgada improcedente, com a absolvição dos RR. do pedido.
A Relação confirmou a decisão, sem voto de vencido.
Nesta revista a A. concluiu:
No acórdão recorrido "colidiu-se com o art.º 2187º, nº1, do C. Civil".
Seguindo tese que colidirá com direitos fundamentais da C.R.P. de 1933 - art.º 8º, nºs 12 e 5 - e da CRP de 1976 - art.º 62º - pois realiza uma autêntica desapropriação.
Não houve qualquer intervenção em 1974, não sendo exigível no contexto dos DL. 162/74 de 20/4, e 704/74, de 7/12, que se perspectivasse senão o que ocorreu - uma mera intervenção na gestão e não um acto de desapropriação do estabelecimento hospitalar, porquanto o diploma de Dezembro de 1974 veio permitir a aplicação aos Hospitais Privados (como era o Hospital Maria Pia) o regime da intervenção na gestão das comissões administrativas aplicável ao sector público hospitalar - art.º 85º do D.L. nº 473/71, de 27/09, ex vi dos art.ºs 1º a 5º do DL nº 35/73, de 6/01.
O regime especial de Dezembro de 1974 e depois o regime do DL nº 129/77, de 2/04, vieram a criar o Hospital ora recorrido, não sendo um acto expropriatório da recorrente, seu nome e insígnias, direitos de personalidade tutelados pelos art.ºs 70º, nº1, e 72º do C. Civil, e 26º da C.R.P.
Tal interpretação subjacente ao acórdão violaria o disposto nos art.ºs 46º, nºs 1 e 2, e 63º, nº5, do C.P.P., tudo apontando para uma verdadeira usurpação pelo 1º R. de nomes e insígnias tradicionais da associação recorrente.
Não se tomando em consideração a posição processual das partes ao não impugnarem especificadamente a PI e seus documentos, colidiu-se com os art.ºs 352º e 356º, nº2, do C. Civil, e 487º, 488º e 490º, nº1, do CPC, e "cometeu-se um erro de aplicação e desrespeito pela História" - art.º 722º do CPC - na fixação dos factos materiais essenciais.
O acórdão recorrido assentou num equívoco quanto à interpretação de vontade do testador.
Uma interpretação conforme à C.R.P. - art.º 20º - permitirá uma interpretação ampliativa do regime de recurso em dupla jurisdição de facto e, portanto, do seu amplo debate pela Relação, não sendo conforme à C.R.P. a interpretação da Relação, tomando apenas em conta o preâmbulo do DL nº 39/95, de 15/02 e não a reforma do CPC no seu todo e a referida Lei Fundamental.
A Associação recorrente é assim a legatária legítima do testamento da A e, como tal, deve ser reconhecida e declarada.
Os recorridos contra-alegaram sustentando a improcedência do recurso.
A Relação fixou a seguinte matéria de facto, a que este Supremo aplica o regime jurídico adequado (art.º 729º, nº1, do CPC):
"1. A autora é uma associação de direito privado com fins de solidariedade social e de saúde, inscrita no CRSS do Porto.
2. Antes de 1976, a autora estava classificada como pessoa colectiva de utilidade pública administrativa.
3. Presentemente (1999) rege-se pelos Estatutos aprovados em Assembleia-geral de 15.11.1984, rectificada em Assembleia de 07.03.1985;
4. Nos termos do art. 2.º dos Estatutos, a autora tem por fim colaborar com a Direcção do Hospital em tudo que se revele útil para o Hospital de Crianças Maria Pia, que foi fundado, sustentado e administrado pela Associação, e que, por, força do Decreto-Lei n.º 704/74, de 7.12, passou ao sector público do Estado.
5. Em 19 de Março de 1975, a autora era dirigida por uma Comissão Administrativa, e usava a Coroa Real sobre o escudo de armas.
6. A partir de 19.03.1975, o Hospital de Crianças Maria Pia passou a ser administrado por uma Comissão Instaladora nomeada pelo Estado.
7. No dia 26 de Março de 1978, faleceu no estado de viúva A, de 80 anos de idade, natural de freguesia de Cedofeita, Porto;
8. Sem ascendentes nem descendentes, e deixando o testamento exarado em 11 de Setembro de 1974, a fls. 39 verso, do Livro T-68 do 7.º Cartório Notarial do Porto,
9. Do qual consta :
"Primeiro: Lega ao Hospital de Dona Maria Pia da cidade do Porto:
a) O prédio urbano onde reside, sito à Rua Godinho de Faria, número trezentos e noventa e nove, São Mamede de Infesta, com todo o mobiliário de cozinha, respectivo trem, demais objectos e géneros que se encontrem nas despensas, máquina de lavar roupa, mesa e ferros de engomar, todos os aquecedores, quer eléctricos quer a óleo, as camas de feno e armário secador de roupa;
b) O terreno anexo ao mesmo prédio, incluindo ramadas, poços, tanques, motores, todos os utensílios de lavoura contidos nos anexos, lagares e vasilhas e os animais domésticos ali existentes;
c) A quantia de quinhentos mil escudos, destinados a obras de conservação e adaptação do prédio ao fim a seguir indicado.
O Hospital deverá ali instalar uma casa de repouso, creche ou jardim infantil para crianças pobres, doentes ou convalescentes, não podendo dar-lhe outro destino. Se o Hospital não aceitar o legado com os encargos impostos, transferir-se-à este nas mesmas condições, para a Câmara Municipal do Porto e se ainda esta entidade o não aceitar transferir-se-á para a Assistência Paroquial da Freguesia de Cedofeita, onde nasceu".
10. O referido prédio urbano encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o n.º 9397, e registado em nome do Estado em 16 de Março de 1983, com base no testamento, pela inscrição n.º 16.076. Livro G-41, fls.145-verso.
11. O réu Hospital recebeu os 500 000$00 referidos no testamento.
12. Dos amistosos contactos havidos entre as religiosas que prestam serviço no Hospital de Crianças Maria Pia desde 1924 e a testadora surgiu a ideia desta beneficiar em testamento a Congregação a que aquelas pertenciam.
13. A testadora foi aconselhada pelas religiosas a deixar o legado às crianças do Hospital Maria Pia.
14. A testadora quis beneficiar directamente o próprio Hospital como estabelecimento, organização hospitalar, e não a entidade ou instituição que o administrava."
Não pode ser objecto de revista o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova - art.º 722º, nº2, do C.P.C.
Os art.ºs 522º B e 522ºC do mesmo Código facultam a qualquer das partes requerer a gravação da audiência final, incluindo a prova oral aí produzida.
O que aqui sucedeu.
O art.º 690ºA, também do mesmo Código, permite que o recorrente impugne a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto.
O que aqui também aqui sucedeu, tendo a apelante, por considerar incorrectamente julgados, impugnado os concretos pontos de facto que indiciou - os factos relativos aos art.ºs 3º 4º e 7º da base instrutória.
Foram esses pontos concretos que a Relação apreciou nos termos do art.º 690ºA, julgando improcedente a impugnação.
Houve assim duplo grau de jurisdição em matéria de facto, com a amplitude que a recorrente requereu:
É assim manifestamente infundada a questão que ora suscita quanto ao art.º 20º da CRP.
Não é admissível revista quanto à violação da lei do processo - art.º 722º, nº1 do CPC. -, como bem sustentou o Estado nas suas contra-alegações notificadas à recorrente.
Não diz a recorrente quais os concretos factos que se devem considerar confessados nos termos dos art.ºs 352º e 356º do C. Civil.
Não basta dizer, como fez, que não foram impugnados pelos recorridos "os factos essenciais respeitantes aos estatutos da recorrente e documentos juntos, toda argumentação constante da p.i. e documentos junta."
De resto, a Relação não conheceu e nem sequer lhe foi colocada, a questão da violação daqueles artigos do C. Civil e, os recursos, destinam-se a reapreciar as questões decididas no Tribunal recorrido.
O que conheceu foi da reclamação contra a matéria de facto considerada assente e que a recorrente pretendia ampliar.
Mas, não há recurso para o Supremo do acórdão da Relação que conheceu da impugnação referida no nº3, do art.º 511º, como decidiu o assento de 14/04/1999 (BMJ 486 p.38), face ao nº 5 do art.º 511º introduzido pelo D.L. 242/85, de 9/07, com fundamentação que se mantém válida após a reforma de 1995/96.
O art.º 2187º, do C. Civil.
A recorrente invoca em primeiro lugar um parecer de Junho de 1981, junto com a petição inicial a fls. 165-185, que diz ser do falecido Prof. Mota Pinto.
Ora, nem o dito parecer está assinado nem dele constam quaisquer outros elementos que identifiquem o seu autor.
Logo, não tem qualquer valor.
Sustenta depois que o acórdão "colidiu com o art.º 2187º do C. Civil, pois a interpretação que fez do testamento é expropriativa quer do direito ao nome e aos símbolos da recorrente, quer da sua história, quer da vontade da testadora, que nem sequer sonhava em Setembro de 1994 que o seu querido Hospital Maria Pia seria directa ou indirectamente o Estado Português através da sua burocracia e do funcionalismo público".
Não faz assim sentido, adiantou", a interpretação do testamento decorrente dos depoimentos, não revelando como eventual busca do sentido da vontade da testadora, sendo que no decorrer do testamento a testadora sempre refere o Hospital Dona Maria a quem destinou os legados."
O acórdão recorrido limitou-se a dizer neste ponto:
As disposições testamentárias devem ser interpretadas segundo o que parecer mais ajustado à vontade do testador, conforme o contexto do testamento - art.º 2187º, nº1, do C. Civil.
A interpretação tem de ter no texto da disposição uma tradução ainda que imperfeita.
No caso concreto o testamento refere expressamente que a testadora lega ao Hospital de Dona Maria, não fala sequer na Associação.
Provou-se que a testadora quis beneficiar directamente o próprio Hospital como estabelecimento, organização hospitalar, e não a entidade ou instituição que o administra.
O Estado nas suas contra-alegações invocou o assento deste Supremo de 19/10/1954 (BMJ 45p 152) (1).
Esse assento, face à regra contida no art.º 1761º do C. Civil de 1867 e à questão de se saber se a intenção do testador é ou não duvidosa e qual foi essa intenção, decidiu o seguinte:
Constitui matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, determinar a intenção do testador.
O assento não caducou com a revogação do C. Civil de 1867, pois o seu objecto não foi interpretar disposições desse código mas tomar posição quanto à interpretação dos testamentos (2).
Tem assim sido seguido por este Supremo em vários acórdãos proferidos na urgência do actual Código Civil. (3)
A intenção da testadora A foi objecto de prova complementar admitida no nº2 do art.º 2187º do C. Civil (disposição paralela à do nº3 do art.º 393º, do mesmo Código).
Determinada essa intenção pelas instâncias não pode este Supremo censurá-la, limitado como está às questões de direito (art.º 26º da LOFTJ, e art.ºs 721º, nº2, 722º, nºs 1 e 2, e 729º, nºs 1 e 2, do C.P.C..
Cabia à A. ónus da prova de que, como alegou, foi intenção da testadora beneficiá-la com os legados - art.º 341º, nº1, do C. Civil.
O que não satisfez.
A solução dada pela Relação tem no contexto do testamento um mínimo de correspondência - art.º 2187º, nº2, do C. Civil (Não há nele, de resto, a mínima referência à Associação que administrava o Hospital Dona Maria Pia).
A Autora fez depender os restantes pedidos da procedência do pedido primeiro de reconhecimento de ser ela a única legatária da testadora A.
Como disse na petição inicial e repetiu na audiência preliminar de fls. 307 e nas alegações de fls. 398 - "todos os outros pedidos são consequência do pedido inicial, tendo neste a sua causa de pedir".
Assim, a improcedência do primeiro pedido leva à improcedência de todos os outros.
A Constituição de 1933 caducou.
Não tendo a testadora A legado o que quer que seja à A., não há qualquer acto de desapropriação que ofenda o art.º 62º da C.R.P.
Não se vê, nem aquela A. explica com clareza, como da decisão recorrida com base nos factos provados, resulta a violação dos art.ºs 46º, nºs 1 e 2, e 63º, nº5, da mesma CRP.
Nestes termos negam a revista.
Sem custas - art.º 2º, nº1 h) do C. Custas Judiciais.

Lisboa, 13 de Janeiro de 2004
Afonso de Melo
Fernandes Magalhães
Azevedo Ramos
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(1) Os assentos que não caducaram têm hoje o valor de jurisprudência uniformizadora - art.º 17º, nº2, do DL nº 329A/95, de 12/12 -, que este Supremo deve respeitar enquanto não for alterada por outro acórdão proferido com a intervenção do plenário nos termos do art.º 732-A do C.P.C.
(2) Galvão Teles, O Direito, 122, I p. 193 e 194, nota 2.
(3) Além dos citados por, Galvão Teles, ainda os acórdãos de 29/09/1992, 6/06/2000 e 23/01/2001, BMJ 419 p. 716, 498 p. 241 e C.J. IX, 1, p.82, este último expressamente quanto à vontade do testador captada por prova complementar.