Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
22640/18.1T8LSB-I.L1.S2
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: OFENSA DO CASO JULGADO
OBJETO DO RECURSO
INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
AÇÃO POPULAR
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
Estando o objeto do recurso limitado à apreciação da existência de uma situação de caso julgado e tendo-se apurado que essa situação não existe, deve o recurso ser julgado improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Decisão Texto Integral:

Autores: AA

BB

Interveniente principal: C...Association

Ré: Vodafone Portugal – Comunicações Pessoais, S.A.


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I - Relatório

Os Autores intentaram a presente ação popular com processo comum contra a Ré, pedindo:

a) Que a todos os clientes da R, consumidores de serviços de telecomunicações móveis, entre os quais os ora AA., seja reconhecido o direito a não pagarem por serviços que não tenham prévia e expressamente encomendado ou solicitado, ou que não constituam cumprimento de contrato válido;

b) Que a todos os clientes da R, consumidores de serviços de telecomunicações móveis, entre os quais os ora AA., seja reconhecido o direito a recusarem contratar serviços adicionais de telecomunicações;

c) Que a R. seja impedida de deduzir a partir de opções estabelecidas por defeito que o consumidor consentiu a prestação dos serviços adicionais de telecomunicações por falta de recusa expressa dos mesmos e em consequência ativar por defeito e automaticamente tais serviços extras;

d) Que a todos os clientes da R., consumidores de serviços de telecomunicações móveis, entre os quais os ora AA., seja reconhecido o direito ao reembolso do pagamento adicional por serviços dos quais não consentiu expressamente, mas que a R. o tenha deduzido a partir de opções estabelecidas por defeito que os clientes devessem recusar para evitar o pagamento adicional;

e) Em qualquer dos casos, seja a R. condenada a devolver, a cada um dos seus clientes ou ex-clientes, consumidores de serviços de telecomunicações móveis, incluindo os AA., os montantes relativos aos pagamentos adicionais efetuados por serviços dos quais o consumidor não consentiu expressamente, desde a entrada em força da diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de Outubro de 2011 e que tal pagamento seja feito automaticamente por crédito nas contas correntes dos clientes junto da Ré quando tal seja possível ou por transferência bancária para as contas a serem indicadas por cada cliente ou ex-clientes que reclamem e que assim o pretendam em alternativa ao crédito em conta corrente junto da Ré;

f) Que sejam declaradas como cláusulas contratuais proibidas e consequentemente nulas qualquer cláusula contratual que contrarie o direito peticionado no pedido a) e ou b) e ou c), nomeadamente seja considerada uma cláusula contratual proibida aquela que impõe a obrigatoriedade ou a não possibilidade de recusa da contratação de serviços adicionais extra, nos termos e para os efeitos do artigo 12º e 24º DL 446/85 de 25 de Outubro e da diretiva 93/13 CEE;

g) Caso não proceda o pedido em f) que sejam declaradas como clausulas contratuais gerais contrárias à boa fé qualquer cláusula contratual que contrarie o direito peticionado no pedido a) e ou b) e ou c) nos termos do artigo 15º do DL 446/85 de 25 de Outubro e da diretiva 93/13 CEE e que concomitantemente sejam consideradas proibidas nos termos e para os efeitos do artigo 25º do DL 446/85, de 25 de Outubro.

A Ré contestou, tendo vindo a ser proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolveu a Ré dos pedidos.

Os Autores interpuseram recurso de revista per saltum, para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo a C...Association, nessa fase, deduzido incidente de intervenção principal ao lado dos Autores.

O Supremo Tribunal de Justiça, em 02.02.2022, admitiu o incidente de intervenção principal e julgou a revista procedente nos seguintes termos:

Pelo exposto, concede-se a revista e revoga-se a decisão recorrida, condenando-se a Ré Vodafone, S.A. à restituição, aos autores populares, dos pagamentos adicionais que lhes tenham sido cobrados, em virtude da ativação automática de serviços adicionais não solicitados (…).

A Interveniente veio então deduzir incidente de liquidação daquela condenação.

Foi proferida decisão na 1.ª instância de não admissão do incidente de liquidação.

A Interveniente interpôs recurso de revista per saltum, para o Supremo Tribunal de Justiça.

No Supremo Tribunal de Justiça, o Conselheiro Relator, considerando não se encontrarem reunidos os pressupostos da interposição de recurso per saltum, determinou a baixa dos autos ao Tribunal da Relação, a fim de o recurso ser apreciado como apelação.

O Tribunal da Relação proferiu acórdão em 10.10.2023 que decidiu julgar a presente apelação procedente e revogando a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que pressuponha que a liquidação dos créditos reconhecidos no acórdão do STJ de 03-02-2022 não depende de simples cálculo aritmético, e portanto deve ter lugar em incidente de liquidação a deduzir nos próprios autos, sem prejuízo da apreciação de quaisquer outras questões de que Tribunal a quo deva conhecer em sede de despacho liminar do requerimento inicial do mesmo incidente.

A Ré interpôs recurso de revista desta decisão, nos seguintes termos:

A) Vem o presente recurso interposto do Acórdão nestes autos proferido, por não se conformar com o mesmo, nos termos e para os efeitos dos artigos 629.º, n.º 2, alínea a) e 671.º n.º 2, ambos do CPC.

B) O tribunal recorrido decidiu “julgar a presente apelação procedente e revogando a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que pressuponha que a liquidação dos créditos reconhecidos no acórdão do STJ de 03-02-2022 não depende de simples cálculo aritmético, e portanto deve ter lugar em incidente de liquidação a deduzir nos próprios autos, sem prejuízo da apreciação de quaisquer outras questões de que o Tribunal a quo deva conhecer em sede de despacho liminar do requerimento inicial do mesmo incidente.”

C) Para fundamentar a sua decisão, o tribunal recorrido considerou que: “I - A liquidação dos créditos reconhecidos em acórdão do STJ que condenou a ré “à restituição, aos autores populares, dos pagamentos adicionais que lhes tenham sido cobrados, em virtude da ativação automática de serviços adicionais não solicitados” que uma associação de defesa de consumidores pretende levar a cabo não depende de simples cálculo aritmético, mas antes pressupõe a alegação e prova de factos não contidos na segurança do título, a saber, a identificação de cada um dos clientes afetados, e a indicação dos montantes indevidamente cobrados a cada um deles, e das datas em que cada uma dessas cobranças indevidas teve lugar. II - Em tais circunstâncias, a liquidação de tais créditos não pode fazer-se no requerimento executivo (716.º, n.º 1 do CPC); mas antes no âmbito de incidente de liquidação, que corre termos nos próprios autos da ação declarativa (art. 704.º, n.º 6 e 358.º, n.º 2 do CPC).”

D) Sucede que, com o devido respeito, o Tribunal a quo não poderia ter proferido a decisão que ora se recorre, uma vez em que a mesma contraria e ofende o caso julgado do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça a 03.02.2022, transitado em julgado a 10.11.2022, no âmbito do processo n.º 22640/18.1T8LSB.L1.S1.

E) Segundo o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça a 03.02.2022, transitado em julgado a 10.11.2022, no âmbito do processo n.º 22640/18.1T8LSB.L1.S1: “Pelo exposto, concede-se a revista e revoga-se a decisão recorrida, condenando-se a Ré Vodafone, S.A., à restituição, aos autores populares, dos pagamentos adicionais que lhes tenham sido cobrados, em virtude da ativação automática de serviços adicionais não solicitados.”

F) Em conformidade com este Acórdão, o Tribunal da Comarca de Lisboa, a 25.01.2023, proferiu a seguinte decisão: “Os termos em que foi proferida a decisão final pelo Supremo Tribunal de Justiça, condenando a Ré, ora Recorrida, à restituição, aos autores populares, dos pagamentos adicionais que lhes tenham sido cobrados, em virtude da ativação automática de serviços adicionais não solicitados, não implica a dedução de incidente de liquidação em sede declarativa, uma vez que tal depende de simples cálculo aritmético e que, em todo o caso, deveria ser cada autor popular a especificar os valores que lhe foram cobrados com a ativação automática de serviços adicionais não solicitados, apresentando tal cálculo, e, sendo caso disso, executando a sentença por intermédio de um requerimento executivo.” (sublinhado e realce nosso).

G) Assim, o Supremo Tribunal de Justiça, claramente, não condenou a Vodafone no pagamento de um determinado montante “a liquidar” ao abrigo do disposto no referido artigo 609.º n.º 2 do Código de Processo Civil.

H) Sendo legalmente inaplicável e inadmissível um incidente de liquidação da referida decisão, por tal liquidação depender de simples cálculo aritmético no âmbito de requerimento executivo.

I) Com efeito, dispõe o n.º 2 do artigo 358.º do Código de Processo Civil: “2 - O incidente de liquidação pode ser deduzido depois de proferida sentença de condenação genérica, nos termos do n.º 2 do artigo 609.º, e, caso seja admitido, a instância extinta considera-se renovada.” (sublinhados nossos).

J) Ou seja, caso o incidente de liquidação seja instaurado após a prolação da decisão judicial, pressupõe que a mesma tenha sido proferida nos termos do artigo 609.º n.º 2 do Código de Processo Civil.

K) Desde logo e conforme defendido pela nossa melhor doutrina e jurisprudência, importa atender a que o incidente de liquidação pressupõe que tenha sido deduzido um pedido genérico, sendo que, nos presentes autos, dúvidas não podem existir que os agora Recorridos não deduziram qualquer pedido genérico, precisamente porque nenhum dos pedidos formulados se enquadrava nos casos taxativos expressamente previstos no artigo 556.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, e que legitimariam a formulação de um pedido dessa natureza.

L) E veja-se que, aquando da apreciação do pedido de prova pericial em primeira instância, o Tribunal considerou, ainda que indiretamente, que não existia qualquer pedido genérico, formulado ao abrigo do artigo 556.º, em particular da alínea b) do n.º 1, dado que não estava em causa qualquer pedido indemnizatório. Do referido despacho, os Autores, ora Recorridos, não apresentaram recurso, tendo a decisão em causa transitado em julgado.

M) Por seu turno, dispõe o artigo 609.º do Código de Processo Civil: “1 - A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir. 2 - Se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida. 3 - Se tiver sido requerida a manutenção em lugar da restituição da posse, ou esta em vez daquela, o juiz conhece do pedido correspondente à situação realmente verificada.” (sublinhados nossos).

N) Sucede que, o Supremo Tribunal de Justiça, dentro dos limites a que está adstrito pelo n.º 1 do artigo 609.º do CPC, reconheceu o direito dos clientes e ex-clientes e condenou a Vodafone a proceder ao reembolso, não tendo feito qualquer referência à necessidade de liquidação do julgado.

O) Ou seja, no caso sub judice e contrariamente ao que decidido pelo tribunal recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça considerou que não estamos perante uma decisão proferida ao abrigo do disposto no artigo 609.º n.º 2 do Código de Processo Civil.

P) A condenação da Vodafone não foi feita em termos genéricos, seguramente por o Supremo Tribunal de Justiça não considerar haver qualquer pedido genérico, carecido de liquidação

Q) Daqui resulta que, tal como bem entendeu o Supremo Tribunal de Justiça (e posteriormente o Tribunal da Comarca de Lisboa), é manifestamente inaplicável a interposição de incidente de liquidação, o qual extravasa claramente os limites da condenação contida no Acórdão do mesmo.

R) Por consequência não se aplica o disposto no artigo 358.º n.º 2, atendendo a que esta norma se encontra reservada para decisões proferidas ao abrigo do disposto no n.º2 do artigo 609.ºdo Código em causa.

S) Admitir o contrário, interpretando o artigo 358.º n.º 2 do CPC, no sentido de conceder aos Autores uma possibilidade que a lei não prevê, constituiria, para além de uma ilegalidade, uma violação manifesta do princípio da igualdade e do direito de acesso equitativo à justiça, previstos nos artigos 13.ºe 20.º da Constituição da República, bem como do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, subjacentes ao princípio Estado de Direito democrático, constante do artigo 2.º da Constituição da República.

T) E não se diga que, sem o incidente de liquidação em causa, os autores populares não vão receber aquilo a que têm direito, pois a decisão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.02.2022 produziu a sua autoridade própria de caso julgado relativamente a cada um dos consumidores que pretenda reclamar a devolução da quantia que lhe caiba junto da Vodafone, como alias, tem vindo a ocorrer.

U) Conforme refere a Prof.ª Doutora Rita Lynce de Faria no parecer junto aos presentes autos com a oposição da Vodafone ao incidente de liquidação sub judice “Esta será a grande mais-valia da ação popular para os autores populares, ainda que estes tenham de proceder a uma reclamação individual do valor a devolver. Assim se preserva a tutela que a ação popular visa conceder a todos os titulares de interesses individuais homogéneos.”.

V) Mais, o trânsito em julgado de uma decisão desempenha um papel fulcral na segurança jurídica.

W) No caso em apreço, não só a condenação da Vodafone pela decisão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.02.2022 se limitou à obrigação de restituição aos Autores Populares dos montantes cobrados a título de serviços adicionais não solicitados, como consequência da inserção de uma cláusula que o Supremo Tribunal de Justiça considerou ser inválida no contrato celebrado entre as partes, como, no âmbito do saneamento do processo em primeira instância, o Tribunal indeferiu o pedido de realização de prova pericial por a mesma não ter qualquer correspondência com os termos dos pedidos formulados na acção, deixando claro que os mesmos eram de condenação da Vodafone no “reembolso” de quantias e não no pagamento de uma “indemnização”.

X) Ambas as decisões em causa transitaram em julgado e produziram, consequentemente, o efeito negativo e positivo de caso julgado, impedindo, nomeadamente, que nesta fase se venham a proferir decisões que contrariem esse mesmo caso julgado.

Y) Nesse sentido, a Vodafone encontra-se obrigada a restituir aos seus clientes, abrangidos pelo efeito de caso julgado da decisão em causa, apenas os montantes que lhes cobrou em resultado da disponibilização de serviços que os mesmos não tenham solicitado.

Z) E é precisamente isso que a Vodafone tem vindo a fazer, em cumprimento da referida decisão, que já encontra na fase executiva, com a existência de variadas execuções que têm sido apresentada contra a Vodafone e também extrajudicialmente nos casos de pedidos de reembolso devidamente fundamentados.

AA) E nessa medida, a Vodafone encontra-se a avaliar e dar resposta a todos os pedidos que lhe têm sido dirigidos no sentido do cumprimento da mencionada decisão judicial, o que implica, naturalmente, a análise de cada caso concreto.

BB) No entanto, a Vodafone não pode aceitar que o Tribunal da Relação de Lisboa revogue a decisão proferida pelo Tribunal da Comarca de Lisboa, substituindo-a por outra contrária ao Acórdão do próprio Supremo Tribunal de Justiça, já transitado em julgado.

CC) Assim, qualquer execução da decisão em apreço passará pela restituição dos valores cobrados e pagos por cada cliente e ex-cliente.

DD) Sendo que sempre seria necessário o apuramento dos montantes concretos relativos aos pagamentos realizados pelos referidos clientes e ex-clientes e o reembolso dos referidos montantes dependeria de reclamação individual de cada cliente ou ex-cliente, nomeadamente no que respeita a indicação das contas bancárias pelos mesmos tituladas (o que, aliás, sempre seria necessário para todos os casos em que não existe conta corrente junto da Vodafone).

EE) Não pode, por isso, o Tribunal da Relação de Lisboa vir contrariar e ofender o caso julgado do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que considerou não existir um pedido genérico e proferiu uma decisão dentro dos limites do artigo 609.º n.º 1 do CPC, não tendo sido feita qualquer referência à necessidade de liquidação do julgado, nem tão pouco condenado a Vodafone, no pagamento de qualquer tipo de montante “a liquidar”, não sendo, por isso, uma decisão proferida ao abrigo do disposto no artigo 609.º, n.º 2 do CPC.

FF) Por tudo o exposto, resulta manifesto que o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa merece censura ao contrariar e ofender o caso julgado da decisão do Supremo Tribunal de Justiça.

GG) Nestes termos, deve o presente recurso ora interposto ser julgado integralmente procedente, com as devidas e legais consequências.

HH) Por consequência deverá ser revogada a decisão recorrida e substituída por decisão que respeite o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, já transitado em julgado, e que mantenha na íntegra a decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa a 25.01.2023.

A Interveniente respondeu, pronunciando-se pela inadmissibilidade do recurso e, subsidiariamente, pela confirmação da decisão recorrida.


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II – Da admissibilidade do recurso

A Ré interpôs recurso de um acórdão da Relação que, revogando a decisão da 1.ª instância, determinou o prosseguimento de um incidente de liquidação de decisão condenatória proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça em 03.02.2022, em recurso de revista per saltum.

O acórdão recorrido nem conheceu do mérito da causa, nem pôs termo ao processo, pelo que apenas é recorrível, nos casos previstos nas alíneas do n.º 2, do artigo 671.º, do Código de Processo Civil, designadamente quando os recursos são sempre admissíveis por se invocar a ofensa de caso julgado (artigo 629.º, n.º 2, a), do Código de Processo Civil).

Além do mais, a Ré, nas alegações de recurso invoca que o decidido pelo acórdão do Tribunal da Relação violou o caso julgado formado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça acima referido, e pelo despacho que indeferiu a realização de uma perícia à contabilidade da Ré, requerida pelos Autores, pelo que o presente recurso deve ser apreciado, mas tendo apenas por objeto a questão da alegada ofensa de caso julgado.


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III – Da ofensa de caso julgado

A Ré entende que a admissibilidade liminar do incidente de liquidação ofendeu o caso julgado formado com o trânsito do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que, em 03.02.2022, condenou a Ré Vodafone, S.A. à restituição, aos autores populares, dos pagamentos adicionais que lhes tenham sido cobrados, em virtude da ativação automática de serviços adicionais não solicitados.

Fundamenta esta sua alegação no facto desse acórdão não ter proferido uma condenação genérica, nos termos previstos no artigo 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, não mencionando que a liquidação daqueles montantes teria que ser efetuada posteriormente neste processo.

É possível a prolação de decisões condenatórias genéricas sujeitas a posterior liquidação, o que ocorre não só quando são formulados pedidos genéricos, ao abrigo da permissão constante do artigo 556.º do Código de Processo Civil, não ocorrendo a sua liquidação até à fase da sentença, mas também quando, apesar das pretensões formuladas se encontrarem quantificadas, o tribunal tendo apurado a existência do direito e da correspondente obrigação, não dispõe de elementos de facto que permitam no momento da decisão proceder à quantificação dessa obrigação.

Neste tipo de decisões que procedem a uma condenação genérica é habitual referir-se que a sua quantificação fica dependente de uma posterior liquidação, a deduzir em incidente próprio. Mas, neste caso, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que condenou a Ré a restituir aos autores populares, os pagamentos adicionais que lhes tenham sido cobrados, em virtude da ativação automática de serviços adicionais não solicitados, apesar de não ter descriminado o valor desses pagamentos, não se referiu à necessidade de posteriormente se proceder à liquidação dos mesmos em incidente próprio.

Desta omissão, assim como da fundamentação do acórdão condenatório proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, não é possível retirar minimamente qualquer entendimento sob a forma como posteriormente seriam apurados esses valores - por mera operação matemática, não necessitando a execução dessa obrigação de qualquer procedimento prévio de liquidação, ou sendo exigível esse procedimento –, pelo que não é possível concluir que sobre essa questão se tenha formado um caso julgado.

Daí que essa tenha sido uma questão que foi decidida liminarmente no próprio incidente de liquidação, assim como em alguns processos executivos daquela obrigação, como deram nota as partes, sem que essas decisões devam qualquer obediência, quando à necessidade de liquidar previamente os valores referidos na condenação, ao decidido pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.02.2023.

O Réu alega ainda que, sobre a mesma questão, se formou caso julgado quando na audiência de julgamento se indeferiu a realização de perícia à contabilidade da Ré, requerida pelos Autores, nos seguintes termos:

Relativamente ao requerimento de prova pericial, não só o mesmo se mostra intempestivo, como, de facto, não tem correspondência sequer com os termos do pedido feito. É pedido o “reembolso” de quantias e não uma “indemnização” por referência a outros termos que não aquilo que tenha sido pago a mais por, alegadamente, serviços não consentidos. Portanto, vai indeferido.

Contrariamente ao pretendido pela Recorrente, não se vê como é possível concluir que neste despacho implicitamente se decidiu que não era necessária a dedução de um incidente de liquidação para apurar o valor dos montantes a restituir aos Autores. Ele apenas se pronunciou sobre a tempestividade e a oportunidade de uma perícia à contabilidade da Ré, requerida pelos Autores, não sendo possível sequer que aí se tivesse proferido uma decisão que definisse as consequências de um acórdão que ainda não tinha sequer sido proferido.

Não formou, pois, a referida decisão, tal como não o fez o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.02.2022, qualquer caso julgado sobre a admissibilidade de um incidente de liquidação dos montantes que aquele acórdão determinou que fossem restituídos aos Autores, pelo que improcede este fundamento do recurso.


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IV – Conclusão

Estando o objeto do recurso limitado à apreciação da existência de uma situação de caso julgado e tendo-se apurado que essa situação não existe, deve o recurso ser julgado improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.


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Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pela Ré, confirmando-se a decisão recorrida.


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Custas pela Recorrente.

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Notifique.

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Lisboa, 25 de janeiro de 2024

João Cura Mariano (relator)

Maria da Graça Trigo

Afonso Henrique