Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B4567
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: NULIDADE DO CONTRATO
BOA-FÉ
Nº do Documento: SJ200701250045672
Data do Acordão: 01/25/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
1. No cumprimento das obrigações emergentes da nulidade dum contrato devem as partes também proceder de boa fé.
2. No aferimento da qual podem relevar as obrigações derivadas do contrato nulo.
3. Assim, se, em contrato de arrendamento nulo por falta de forma, as partes consignaram que não seriam pagas rendas relativamente a determinado período de tempo, não pode o senhorio vir a exigir contrapartida pela fruição do arrendado, por parte do arrendatário, durante esse mesmo período de tempo, com fundamento de que, sendo o contrato nulo, tal cláusula também o é.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – AA, intentou, na comarca de Sintra, a presente acção declarativa em processo ordinário contra:
A Policlínica BB, Lda., CC e DD.
Invocou, para tanto, o contrato-promessa de arrendamento cujos termos descreve e, bem assim, o incumprimento dele, em termos que também pormenoriza, consistentes no não pagamento, por parte dos RR, das contrapartidas relativas à ocupação do imóvel.

Pediu, em conformidade:
A condenação solidária destes a pagarem-lhe 5 190 000$00, referentes às ditas contraprestações mensais, acrescidos de indemnização de 50%, nos termos do artigo 1041º do Código Civil, ou, em alternativa a esta, juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, à taxa legal, calculando os vencidos a 31 de Dezembro de 1998 em Esc. 918 820$00.
Pede ainda sejam os RR. condenados a pagar-lhe a quantia de Esc. 43 662$00 referente a consumos de energia eléctrica.

Foi apresentada contestação na qual foi suscitada a ilegitimidade dos RR. CC e DD foi arguida a nulidade do contrato-promessa de arrendamento, já que a ora A. outorgou nele na qualidade de promitente-senhoria e de promitente-arrendatária.
Mais invocaram os RR. compromisso dos donos do prédio e da ora A., todos igualmente sócios da sociedade R., no sentido de não serem exigidas ou cobradas as contraprestações mensais referentes ao ano de 1996, tendo ainda sido aceite pela maioria dos comproprietários daquele prédio o pedido de redução da renda de Esc. 230 000$00 para Esc. 60 000$00.
Invocaram finalmente que as rendas referentes ao ano de 1997 e aos meses de Janeiro e Fevereiro de 1998 foram depositadas na Caixa Geral de Depósitos uma vez que a ora A. nunca compareceu para as receber.

Foi deduzido pedido reconvencional que não interessa ao presente recurso.
A acção prosseguiu na sua tramitação ao longo da qual foi julgada procedente a excepção de ilegitimidade suscitada e os RR. CC e DD considerados partes ilegítimas relativamente ao montante do pedido que exceda as respectivas entradas sociais.

II -Após audiência de julgamento, foi proferida sentença, cuja parte decisória é do seguinte teor:

“Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a acção e, em consequência, condeno a R. a pagar à A., o montante em Euros correspondente a Esc. 43 662$00 e, ainda a entregar à mesma a diferença entre as quantias depositadas e as contraprestações mensais devidas (de Esc. 230 000$00) referentes ao ano de 1997 e Janeiro de 1998, montantes a que acrescem juros de mora, à taxa legal, desde a data da presente sentença até integral pagamento, devendo a A. entregar ao comproprietário do prédio 65% do montante que lhe for entregue.
No mais absolve-se a R. dos pedidos formulados.
Custas na proporção do decaimento.”

III – Apelou a autora, mas o Tribunal da Relação de Lisboa julgou a apelação improcedente, mantendo a sentença recorrida.

IV – Ainda inconformada, pede revista a autora.
Conclui as alegações do seguinte modo:

1. O objecto do recurso de Apelação reporta-se apenas à parte da sentença que negou a pretensão da recorrente quanto ao pagamento da contraprestação a titulo de indemnização a pagar pela ré Policlínica pela utilização da fracção durante os meses de Fevereiro a Dezembro do ano de 1996 e a actualização das rendas de 1996, 1997 e de Janeiro de 1998 nos termos da inflação até integral pagamento.
2. De fls. 341 a 343 douta decisão consta provado que: por escritura de 6 de Julho de 1994, CC, a A. AA, EE eDD constituíram a Sociedade Ré, a qual ficou sedeada na fracção dos autos sita na Rua.... , ...s (fls. 341 dos autos).
3. Através de escrito de 1 de Fevereiro de 1996, GG, HH e AA, na qualidade de com proprietários e senhorios da fracção autónoma designada pela Letra H, correspondente ao rés-do-chão, n°. 1 do prédio sito no n.º 11 da Rua d...., em .... - ...., declararam prometer arrendar a referida fracção à Sociedade policlínica BB, Ld.ª (fls. 342 dos autos).
4. No referido escrito declararam as partes que o "contrato de arrendamento" era feito pelo prazo de dois anos, com início em 1 de Fevereiro de 1996 e terminus a 31 de Janeiro de 1998 (fls. 342 dos autos).
5. Fixou-se no mesmo que a contraprestação mensal a pagar pela Policlínica até ao dia 1 do mês anterior aquele a que disser respeito, era de 200.000$00/mês até 31 de Dezembro de 1996, "embora não haja lugar ao pagamento até 31/12/98"; sendo de 230.000$00/mês, a partir daquela data. (Fls. 342 dos autos).
6. Através da escritura de 29 de Outubro de 1996 GG e mulher, venderam a HH três décimas da fracção autónoma referida, mais declarando ceder aquele a respectiva quota parte do crédito das rendas da mesma fracção, relativamente ao ano de 1996, a liquidar pela policlínica, Ld".
7. Na sequência desta venda HH passou a deter quota de 65% daquela fracção autónoma, detendo a ora A. quota de 35% da mesma. (fls. 342 dos autos).
8. A R. Policlínica não pagou as contraprestações mensais referentes ao ano 1996 e que a ora A., aquando da assinatura do contrato promessa de arrendamento supra. (fls. 343 dos autos).
9. Resulta também da alínea a) da cláusula 4.ª do contrato de 1 de Fevereiro de 1996 que o pagamento da renda da fracção referente ao ano de 1996 tinha um prazo de pagamento moratório até 31 de Dezembro de 1996 (fls. 20 a 24 dos autos, e;
10. Que a renda da fracção respeitante ao ano de 1996 era para ser paga aos comproprietários da mesma nos termos estipulados na alínea a) da cláusula 4ª do escrito de 1 de Fevereiro de 1996 de fls. 20 a 24 dos autos e no termo do prazo moratório.
11. E isto porque, declarado nulo o contrato, a única declaração contratual válida, é a que os senhorios fazem na escritura pública (a de 29/10/96 de fls. 25 a 28 dos autos) quando os comproprietários maioritários, GG e mulher declaram ceder ao, também comproprietário, HH, a sua quota parte do crédito das rendas da fracção - relativamente ao ano de 1996 - a liquidar pela sociedade Policlínica, Lda.
12. Da prova documental, escritura pública de 29/10/96 de fls. 25 a 28 e parágrafo 6º. de fls. 342 dos autos, resulta provado que a quota-parte das rendas declarada ceder é de Esc. 540.000$00, o que corresponde a três décimos da renda de 1 de Fevereiro a 30/10/1996 a Esc. 200.000$00/mês.
13. Se a vontade dos comproprietários fosse a de não serem pagas as rendas de 1996, não podia haver, como houve, a declaração de cessão de tais rendas em documento autêntico (a escritura de 29110/96).
14. O que contraria o que o M.º Juiz escreveu a linhas 13 e 14 de fls. 344 dos autos ou seja, que "Quanto ao ano de 1996, provou-se a existência de compromisso dos donos do prédio quanto ao não pagamento das rendas fixadas" aliás, sem conceder, mesmo a existir compromisso, declarada a nulidade do contrato, nulas são também todas as suas cláusulas e quaisquer compromissos e ou acordos a ele referentes
15. O que fez, com base no depoimento das testemunhas EE e do marido desta GG, (linhas 8 a 13 de fls.334 da resposta à base instrutória) em contradição com a declaração contratual autêntica de cessão, dos mesmos GG e mulher, constante da escritura de 29/10/1996, que o M.º Juiz dá como provada no parágrafo 6°. de fls. 342 dos autos.
16. O M.º Juiz declarou inválido o contrato de arrendamento celebrado em 01/02/1996 por falta de forma nos termos do art°. 2º., alínea b) do RAU na redacção então vigente que impunha escritura pública (fls. 343 dos autos), o que arrastou consigo a nulidade de todas as suas cláusulas e compromissos e/ou acordos a eles referentes.
17. Daí a decisão que: Os montantes das rendas acordados pagar são devidos, já não a título de execução contratual, mas a título de indemnização pela fruição do prédio até à sua entrega (fls. 344 dos autos), (enriquecimento sem causa) e,
18. Que: "Quanto ao ano de 1996, provou-se a existência do compromisso dos donos do prédio quanto ao não pagamento das rendas fixadas, embora não sejam válidas as estipulações verbais acessórias anteriores ou contemporâneas de um negócio sujeito a forma quando não constam do documento legalmente exigido (fls. 344 dos autos), mas dada a declaração de nulidade do contrato arrasta consigo a nulidade de todas as suas cláusulas e compromissos e/ou acordos a ele associados como, sem conceder, é o caso do hipotético compromisso do não pagamento das rendas do ano de 1996.
19. Embora a questão de saber se as rendas do mesmo ano deviam ou não ser pagas em anos subsequentes, não tenha sido definitivamente resolvida na alínea a) da cláusula 4.ª do contrato dos autos a obrigação de pagamento das rendas no ano de 1996, tendo-o sido porém em sede de julgamento. (fls. 344 dos autos). Como se o contrato foi declarado nulo?
20. Para suporte desta conclusão remete o M.º Juiz para a anotação em rodapé a fls. 344.
21. Da resposta dada à base instrutória reclamou a A. ao abrigo do n.º 4 do art.º 653º do C.P.C. nos termos ao requerimento para a acta te fls. 335 a 337 aos autos". Contrariando assim o que se escreveu de linhas 4 a 8 e 14 e 15 de fls. 400 do Acórdão ora recorrido.
22. Resulta da escritura de 29/10/96 que é um documento autêntico, onde os outorgantes GG e mulher EE vendem ao outro comproprietário HH 30% da fracção em causa, e declaram ceder-lhe ainda a respectiva quota parte das rendas da mesma fracção, relativamente ao ano de 1996, a liquidar pela sociedade policlínica, Lda.
23. Pelo que aquela declaração de cessão não é apenas uma alusão a uma cessão de crédito como, certamente por lapso, é referido no douto Acórdão recorrido a linhas 24 de fls. 400 dos autos, mas sim uma declaração negocial de um crédito de rendas a pagar pela Ré Policlínica Lda.
24. Dado o teor das declarações contidas na escritura de 29/10/96 não restam dúvidas que quanto ao pagamento das rendas de 1996, eram para pagar, uma vez a interpretação dos comproprietários maioritários é a de que as rendas de 1996 são para pagar, até porque não pode haver cessão de créditos inexistentes.
25. Além disso os comproprietários, à excepção da ora Recorrente, não são sócios da Sociedade Policlínica, o que também resulta clarividente da matéria de facto tida como assente a fls. 341 e 342 da douta sentença recorrida.
26. Conclui-se, portanto que, mais uma vez sem conceder, mesmo a existir o hipotético acordo, face à declaração de nulidade do contrato celebrado em 01/02/1996 a sociedade Ré estava obrigada ao pagamento da contraprestação mensal agora, até só que visa colocar as artes na posição em que estariam se não tivessem celebrado o contrato (2º. Parágrafo de fls. 345 dos autos).
27. A sentença proferida em 5 de Abril de 2001 da mesma 2ª Vara Mista no Processo 47/1997, já transitada em julgado, no que respeita à decisão de não cobrar as rendas relativamente ao ano de 1996, com base no regime jurídico decorrente do artº. 1024º., n.º 2 do Código Civil, uma vez que o contrato de arrendamento comercial tem natureza comercial está sujeito a escritura pública por força do artº. 2º., alínea b) do RAU anexo ao D.Lei n.°. 321-B/90, de 15 de Outubro na redacção vigente ao tempo da celebração do contrato aplicável in casu atento o disposto no art.º 12º., nº. 2, 1ª Parte do Código Civil, conclui que: - "Não sendo o assentimento da A. na matéria sido por escritura pública, cumpre entender que inexiste assentimento válido e eficaz por parte da A. no que respeita à decisão de não cobrar as rendas relativamente ao ano de 1996." (fls. 322 dos autos). O que forma caso julgado.
28. A tudo isto, e ao que consta da sentença e alegado na Apelação e nas alíneas aq) a au) destas alegações, certamente por lapso, o douto Acórdão recorrido não fez qualquer análise critica, daí, e com o devido respeito, dizermos que, em nosso entender, está mais cuidada a sentença recorrida, que o Acórdão que a confirma mas também, tal como aquela decisão, o fez com base em prova não admissível face ao disposto nos art.ºs 393º. e 394º, do C. Civil.
29. O Mº. Juiz, mais uma vez se repete, no final de linhas 14 a 16 de fls. 344 que escreveu: "Embora não sejam válidas as estipulações verbais e acessórias anteriores ou contemporâneas de um negócio sujeito a forma quando não constam do documento legalmente exigido."
30. Não pode extrair da alínea a) da cláusula 4ª do contrato que a questão do pagamento das rendas do ano de 1996 não ficou ali definitivamente resolvido e dizer tendo-o sido em sede de julgamento (fls. 20 a 25 dos autos e linhas 24 de fls. 344, também dos autos) com fundamento na anotação em rodapé a fls. 344 atenta a interpretação feita pelos comproprietários na escritura de 29/10/1996.
31. Porque, salvo o devido respeito, não pode o M.º Juiz utilizar uma cláusula estabeleci da em contexto contratual, para eximir alguém da responsabilidade num contexto extracontratual, do reconhecimento de um direito de indemnização, ainda mais quando essa cláusula é nula., por se inserir num contexto nulo por falta de forma,
32. Tanto mais que a cláusula foi concebida num contexto contratual para nele ser aplicada.
33. Toma-se ainda mais evidente quando nos confrontamos com a declaração autêntica, feita pelos autores na escritura pública de 29/10/96, onde transmitem um crédito de rendas existente, que não foi impugnado.
34. A tese de renúncia a esse crédito confronta directamente o crédito existente na referida escritura de 29/10/1996.
35. E no caso em apreço, declarado nulo o contrato celebrado em 01/02/1996, das duas uma, ou o depoimento prestado por EE e marido GG foi falso, ou o negócio consubstanciado na escritura pública outorgada pelos mesmos em 29/10/1996 foi fictício (mas tal não foi alegado pelas partes).
36. Sendo que foram as mesmas pessoas, a EE e o marido GG a prestar o depoimento em julgamento e a fazer as declarações na escritura pública de 29/10/1996, como resulta desta mesma escritura de fls. 25 a 28 e do último parágrafo de fls. 334 todas dos autos e, por isso, ou cometeram um crime num depoimento ou noutro.
37. Se o contrato é nulo, nulas são todas as suas cláusulas e/ou quaisquer compromissos verbais (acordos) a ele referentes, pelo que não podem tais cláusulas, mesmo entendidas como acordos, virem ser usadas para validar o contrato nulo e muito menos podem ir contra documento autentico como a escritura de 29/10/1996 e a sentença, já há muito transitada, de fls. 309 a 328 dos autos, quanto ao alegado nas alíneas t) e u) destas alegações.
38. Ou servir para tentar demonstrar a existência de cláusulas acessórias que alterem, modifiquem ou contrariem conteúdo de documento escrito quer sejam anteriores à formação do documento, ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores (art.º 394º. do C. Civil).
39. Apenas seria admissível prova testemunhal para interpretar a vontade real dos declarantes num documento negocial escrito válido, o que não é o caso.
40. A prova testemunhal não pode servir para validar cláusulas desse contrato nulo - contrato de arrendamento - nem para contrariar as cláusulas de um contrato válido de cessão de créditos como o consubstanciado na escritura pública de 29/10/1996 de fls. 25 a 28 dos autos.
41. A decisão da 1ª. Instância foi tomada com base no direito de uma indemnização por fruição (enriquecimento sem causa).
42. As regras indemnizatórias não são as constantes, nem estão limitadas pelas cláusulas de contratos nulos, nem a prova testemunhal pode limitar a responsabilidade fundada no enriquecimento sem causa, se pretende provar renúncia ou redução de indemnização, principalmente o declarado pelas mesmas testemunhas EE e GG (que ao tempo eram senhorios) em documento autentico - a escritura de 29/10/1996.
43. Nos termos dos art.°s 393º, n.º 2 e n.º 1 do art.º 394º do C. Civil é inadmissível tal prova para validar aquilo que foi declarado nulo como aconteceu nos presentes autos.
Nestes termos e pelo que doutamente for suprido por V. Exas. deve dar-se provimento ao presente recurso e alterar-se a sentença, na parte em que negou a pretensão da ora Recorrente quanto ao pagamento da contra prestação, a título de indemnização a pagar pela Ré policlínica pela utilização da fracção durante os meses de Fevereiro a Dezembro do ano de 2006 e a actualização das rendas de 1996, 1997 e Janeiro de 1998 nos termos da inflação até integral pagamento, em função da prova documental produzida, quer por documento autênticos e/ou particulares, quer em prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, que não venha contra documento autêntico ou pretender tomar válido documento ou contrato declarado nulo, como se verifica na sentença e no Acórdão recorridos, sanadas que sejam as deficiências, obscuridades e contradições acima alegadas.
Caso assim não se entenda, deve ser decretada a nulidade da decisão recorrida, por violação das alíneas b), c) e d) do n.º 1 do art.º 668º do C.P. Civil e art.ºs. 221º, 289º, 290º, 393º, 394º e 1024º todos do Código Civil e art.º 2º. do RAU, anexo ao Decreto-Lei n°. 321-B/90 de 15 de Outubro na redacção vigente ao tempo da celebração do contrato com o que se fará, JUSTIÇA.

Não houve contra-alegações.
V –Ante as conclusões das alegações que, na sequência do que expressamente consta da conclusão 1.ª, delimitam o âmbito do recurso, as questões levantadas consistem em saber se:
O acórdão recorrido é nulo, por violação de qualquer das alíneas b),c) e d) do n.º1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil;
São devidas as contraprestações pela utilização da fracção autónoma durante os meses de Fevereiro a Dezembro de 1996;
Estes montantes e, bem assim, os correspondentes ao ano de 1997 e a Janeiro de 1998 devem ser actualizados de acordo com a taxa de inflação.

VI –Vem provada a seguinte matéria de facto:
- Através de escritura de 6 de Julho de 1994 CC, casada com HH, a ora A. AA, EE, casada com GG e DD, constituíram a sociedade ora R., a qual ficou sedeada na fracção dos autos, sita na Rua ....., ....;
- Através de escrito de 1 de Fevereiro de 1996, GG, HH e AA, na qualidade de comproprietários da fracção autónoma designada pela letra “H”, correspondente ao rés-do-chão, n.º 1, do prédio sito no n.º 11 da Rua d...., em ... s, declararam prometer arrendar a referida fracção à Sociedade Policlínica BB, Lda. para a prestação por esta de serviços na área da medicina curativa e preventiva;
- No referido escrito declararam as partes que o “contrato de arrendamento” era feito pelo prazo de dois anos, com início a 1 de Fevereiro de 1996 e terminus a 31 de Janeiro de 1998;
- Mais se fixou no mesmo que a contraprestação mensal a pagar pela Policlínica, até ao dia 1 do mês anterior àquele a que disser respeito, era de Esc. 200 000$00, até 31 de Dezembro de 1996, “embora não haja lugar ao pagamento até 31/12/96 ;”, sendo de Esc. 230 000$00, a partir daquela data;
- No mesmo escrito a 2ª outorgante declarou ter recebido o prédio em bom estado de conservação e funcionamento, comprometendo-se a conservá-lo e a entregá-lo no mesmo estado;
- Nos termos do referido contrato eram da responsabilidade da R. todas as despesas de água e luz;
- Através de escritura de 29 de Outubro de 1996 GG e mulher, EE, venderam a HH três décimos da fracção autónoma referida, mais declarando ceder àquele a respectiva quota parte do crédito das rendas da mesma fracção, relativamente ao ano de 1996, a liquidar pela sociedade Policlínica, Lda.;
- Na sequência desta venda HH passou a deter quota de 65% daquela fracção autónoma, detendo a ora A. quota de 35% da mesma;
- Através de escritura de 6 de Julho de 1994 CC, casada com HH, a ora A. AA, EE, casada com GG e DD, constituíram a sociedade ora R.;
- Em acta de 24 de Janeiro de 1997, elaborada na ausência da ora A., a qual havia sido convocada,HH declarou aceitar a redução da contraprestação mensal para Esc. 60 000$00;
- A R. Policlínica, Lda. não pagou as contraprestações mensais referentes ao ano de 1996 e que a ora A., aquando da assinatura do contrato promessa de arrendamento referido supra, se comprometeu a não cobrar;
- Apenas nessa base foi assinado o mesmo contrato;
- No ano de 1997 a R. efectuou o pagamento das contraprestações mensais referentes aos meses de Janeiro e Fevereiro, pagando ainda a quantia de Esc. 60 000$00 referentes aos meses de Março a Dezembro do mesmo ano e Janeiro de 1998;
- A R. deixou de ocupar as instalações em causa em Janeiro de 1998;
- Quando desocupou as instalações a R. levou algumas torneiras especiais;
- A R. não pagou a quantia de Esc. 43 662$00 referente a consumos de energia eléctrica em período anterior a 31 de Dezembro de 1998.

VII – A primeira das questões referidas em V é apresentada pela recorrente, nas alegações de recurso, como subsidiária relativamente às demais.
No plano lógico, contudo, ela antecede-as, de sorte que, por ela entendemos começar.
Desdobra-se em três, uma reportada à não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, outra à contradição entre os fundamentos e a decisão e uma terceira à omissão ou excesso de pronúncia.

Um exame, mesmo que rápido, do Acórdão da Relação leva-nos a uma clara negação da procedência destes argumentos. Tão clara que não nos vamos demorar por aqui, a não ser vertendo breves palavras.
A fundamentação de facto está lá até com a transcrição dos factos vindos da 1.ª instância e a ela segue-se a de direito, na qual os Sr.s Desembargadores disseram qual a construção que tinham como adequada às questões que lhes chegavam.

A sentença constitui um silogismo e a nulidade prevista na alínea c) do n.º1 do art.º 668.º do CPC verifica-se quando a conclusão não está em conformidade com o que resulta necessariamente das premissas. Encerra ela um erro lógico.
De fora ficam, pois, os casos de a fundamentação estar incorrecta ou de a solução escolhida, atenta a construção jurídica fundamentante, não ter sido a melhor, dentro das várias logicamente possíveis.
Este modo de entender a nulidade é o que resulta da letra da lei, sendo acolhido, quer pela doutrina (cfr-se A. Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 689, Lebre de Freitas e Outros, Código de Processo Civil II, 670), quer pela Jurisprudência (para citar só os mais recentes, vejam-se, em www.dgsi.pt, os Ac.s do STJ de 4.12.2003 e de 30.9.2004).
Daqui resulta que se trata dum vício de verificação particularmente rara, bem em dissonância com o número de vezes em que é alegado.
No caso presente, a Relação aduziu os factos, entendeu que deles resultava a confirmação da decisão de primeira instância, entendimento esse que surgiu em plena relação lógica com os fundamentos que foram aduzidos.
Não há qualquer contradição.

A Relação tinha que conhecer de questões e não de razões.
Só se verifica omissão de pronúncia se o juiz não conhece de todos os pedidos deduzidos, de todas as causas de pedir e excepções invocadas e ainda de todas as excepções de conhecimento oficioso (Cfr-se Lebre de Freitas e Outros, Código de Processo Civil Anotado, 2.º, 670).
Adquirida esta conceptualização, logo se vê que também por aqui o Acórdão recorrido não enferma de qualquer vício. Foi conhecido o que tinha que ser conhecido.
Vício que não existe também quanto a qualquer excesso de pronúncia. A Relação não foi – e isso é também manifesto – além do que tinha e devia conhecer.

Não vemos, assim, qualquer dos vícios de forma que a recorrente aponta.

VIII – Passemos, então, à segunda das questões enunciadas em V.
Esquematiza-se ela do seguinte modo.
Foi efectuado um contrato que, apesar de assim não designado pelas partes, foi considerado pelo tribunal, na parte que agora importa e, neste ponto, com trânsito em julgado, de arrendamento;
Tendo, por falta de forma – e aqui também com trânsito em julgado – sido considerado nulo.
Nele se estipulara que a contraprestação mensal a pagar pela R. (arrendatária) era, até 31 de Dezembro de 1996, de 200.000$00 e depois de 230.000$00, sempre mensais, mas que não havia lugar a pagamento até 31.12.1996.
Declarado nulo o contrato, a recorrente pretende que também é nula a cláusula que isentava a R. de pagamento até 31.12.1996 e pretende a contraprestações correspondente ao uso da fracção desde a data em que este teve início (Fevereiro de 1996) até 31.12.1996.

IX –A regra geral relativa aos efeitos da declaração de nulidade está no n.º1 do artigo 289.º do Código Civil. Tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado, ou se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
Deu-se, pois, conta o legislador de que casos há em que a restituição em espécie não é possível. Os autores costumam até exemplificar com os contratos de arrendamento em que são pagas as rendas por aquele que fruiu a coisa. Com a declaração de nulidade, pode-se operar a devolução dos montantes correspondentes às rendas, mas não se pode “devolver” a fruição já operada. (1)
Aqui podem começar as discussões, mas prevalece o entendimento de que, não sendo possível a “devolução da fruição”, havia que pagar o valor correspondente, que equivale ao das rendas, abrindo-se caminho à compensação.

X – Só que, o nosso caso vai mais longe.
As partes acordaram em que, até 31.12.1996, não seria paga qualquer contraprestação pela fruição que teria e veio a ter lugar. Cláusula que está, sem a menor dúvida, no âmbito da autonomia da vontade, apesar de algo bizarra porque fixada em seguimento da fixação do montante das rendas para esse ano. Tal cláusula seria, pois, válida, atento o n.º1 do artigo 405.º do Código Civil e só ficou inquinada pela nulidade derivada da inobservância de forma que abrangeu o contrato onde se insere.
De qualquer modo, esta nulidade feriu-a e pretende agora a recorrente que, não valendo, deve receber as contrapartidas relativas à fruição do imóvel naquele ano de 1996.

XI – Segundo A. Varela (Direito das Obrigações, 9.ª ed., I, 232) Haupt aponta como uma gama de situações em que as relações contratuais de facto justificavam que se aplicasse o regime dos contratos, precisamente o caso dos contratos ineficazes, “porquanto a ineficácia do contrato, com a consequente destruição do acordo entre as vontades dos contraentes, não impede a aplicação (por vezes intensa e duradoura, como nos contratos de prestação continuada ou periódica) das normas próprias da dos negócios bilaterais (válidos).
Mas é o próprio Professor de Coimbra que, depois de se referir às posições deste autor alemão, recusa este recurso às relações contratuais de facto para estes casos, afirmando que os conceitos valorativos ou normativos da nulidade são perfeitamente amoldáveis, não apenas pelas suas causa, mas também pelos seus efeitos, à extrema variedade das situações jurídicas a que se aplicam.
A própria figura das relações contratuais de facto está fortemente posta em causa (veja-se, Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, 501 e seguintes) e, também por isso, cremos que não é no âmbito dela que devemos situar o regime que temos como certo para esta questão.

XII –Onde o situamos é antes nos imperativos da boa fé emergentes da regra geral plasmada no artigo 762.º, n.º2 do Código Civil. Este preceito fala em cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, e poder-se ia pensar que, por efeito da nulidade, a obrigação não ia ser cumprida. Isso seria, a nosso ver, limitar a ideia de obrigação – no que aos contratos respeita - à emergente do cumprimento do próprio contrato, quanto a nulidade deste determina, ela mesma, o surgimento de outras obrigações, como a de restituição ou de pagamento do valor correspondente, em cujo cumprimento as partes ainda e sempre devem proceder de boa fé.
“A invalidade dum negócio pode não prejudicar a manutenção dos deveres de segurança, de informação e de lealdade que acompanham qualquer obrigação, por força da boa fé. Esta … manter-se-á, então, mau grado a falta do dever de prestar principal.” (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, 659). No mesmo sentido o Acórdão deste Tribunal de 30.10.1997 (BMJ 470, 565). E, ainda que sem recorrer à boa fé (apoiando-se nos efeitos legais de situações de facto que recusámos no número anterior), Mota Pinto refere que” a ausência de produção de efeitos negociais não significa que o facto negocial não seja de todo tomado em consideração pelo ordenamento jurídico.”

XIII – Chegados à boa fé, logo vemos que a pretensão da autora não pode colher. Visa ela receber o que não teria direito a receber se o contrato fosse cumprido.(2). Ou seja, com a nulidade, receberia mais do que as contraprestações que auferiria com o cumprimento. Com referência aos meses de 1996, tinha dispensado o pagamento e agora exigia-o. Tudo mais relevante ainda no domínio do princípio da boa fé porque a própria autora deu causa (ainda que com os demais outorgantes) à nulidade.
Cremos estar perante a violação daquilo a que Menezes Cordeiro chama “idoneidade valorativa”. Conforme refere este autor (ob. e vol. citados, 239) o sistema jurídico não admitiria que “alguém utilize a própria situação jurídica que tenha violado para, em função do seu ilícito, tirar partido contra outrem.”

XIV – No número V referimos ainda uma outra questão levantada pela autora. Mas aqui vêm ao de cima óbices processuais inultrapassáveis. Um reportado aos limites do pedido porquanto dele não consta o aumento dos montantes derivado da inflação e outro referente aos limites dos próprios recursos.
Além vale o artigo 661.º, n.º1 do Código de Processo Civil. Aqui o princípio de ouro de que, ressalvados casos contados e aqui arredados, os recursos visam a reapreciação de questões e não o conhecimento de questões novas (cfr-se, quanto a este último ponto, Castro Mendes, Recursos, 29).

XV –Face a todo o exposto, nega-se a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 25.1.2007

João Bernardo( Relator)
Duarte Soares
Oliveira Rocha

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(1) Cfr-se, por todos, Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, ed. da AAFDL, II, 446.
(2) Esgrime ela, a dado ponto das alegações, ainda com o teor de escritura pública de 29.10.96, que poderia funcionar como elemento interpretativo do nosso contrato, no sentido de que as partes afinal quiseram o pagamento das contraprestações pela fruição de Fevereiro a Dezembro de 1996. Tal escritura, não foi outorgada pela ora R. nem pela ora A. e, quando muito, poderia constituir mero indício da interpretação do contrato que está em causa nos presentes autos apenas por parte dos senhorios António Páscoa e Manuel Barbosa, o que é trunca, logo à partida, o valor interpretativo que se pretende.