Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B2771
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARAÚJO BARROS
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
LEGITIMIDADE
GARANTIA REAL
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: SJ200410140027717
Data do Acordão: 10/14/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 6361/03
Data: 05/27/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. A legitimidade afere-se perante a posição do demandado na relação material legalmente definida tal como é configurada pelo demandante e no momento em que a acção é proposta.
2. Na acção executiva, se o exequente, cujo crédito gozar de garantia real sobre bens de terceiro, pretender fazer valer a garantia, deve instaurar a execução contra o titular dos bens que garantem o crédito exequendo que, assim, é parte legítima, independentemente da posterior sorte daqueles bens.
3. A norma do artigo 279º, nº 1, do C.Proc.Civil, que prevê a suspensão da instância com fundamento na existência de causa prejudicial, não é aplicável às acções executivas.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Por apenso à execução hipotecária para pagamento de quantia certa com processo ordinário para pagamento da quantia de 117.195,85 Euros, instaurada em 23/06/2002, no Tribunal Judicial de Vila do Conde, pela "Caixa A, ...e..., CRL" contra B e "D, L.da" veio esta última executada, em 03/12/2002, deduzir embargos, alegando, no essencial, que:

- é verdade que a executada tem registada a propriedade do imóvel hipotecado a favor da exequente;

- porém, foi registada uma acção que corre termos sob o n° 135/00, pelo 3° Juízo do Tribunal Judicial de Vila do Conde, movida pela B, contra a aqui embargante, pedindo a declaração de nulidade, por simulação, dos contratos de compra e venda celebrados entre ambas e titulados por escrituras de 10/05/96, condenando-se a ré (aqui embargante) a restituir os imóveis aí referidos à autora, e o cancelamento dos registos dos mesmos a favor da ré;

- face ao exposto, a legitimidade passiva da ora embargante não se encontra verificada nos presentes autos, isto porque na acção de nulidade se discute precisamente a questão da propriedade do imóvel dado de garantia à exequente;

- tal questão é fundamental para se determinar a legitimidade passiva prevista no art. 56°, nº 2, do C.Proc.Civil, tratando-se de uma questão prejudicial, pelo que deve o Tribunal ordenar a suspensão da instância, nos termos do art. 279° do mesmo código.

Contestou a embargada, concluindo pela improcedência dos embargos.

Foi, depois, proferido saneador-sentença em que os embargos foram julgados improcedentes.

Inconformada, apelou a embargante, sem êxito, já que o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão de 27 de Janeiro de 2004, negando provimento ao recurso, confirmou a sentença recorrida.

Interpôs, então, a embargante recurso de revista (seria de agravo, embora por força do princípio da economia processual não haja a questão sido levantada) pretendendo a revogação do acórdão recorrido, com as consequências legais.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, corridos os vistos, cumpre decidir.

Nas alegações do presente recurso formulou a recorrente as conclusões seguintes (sendo, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar - arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil):
1. A execução provida de garantia real sobre bens de terceiro seguirá directamente contra este, se o exequente pretender fazer valer a garantia - artigo 56º, nº 2, do Código de Processo Civil.
2. E a presente execução foi proposta contra a ora recorrente "D, Limitada", que tem registada a seu favor a propriedade do imóvel hipotecado à exequente.

3. Porém, foi registada acção que corre os seus termos sob o nº 135/00 pelo 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila do Conde, movida por B contra a aqui recorrente, peticionando:

a) a declaração de nulidade, por simulação, dos contratos de compra e venda celebrados entre autora e ré e titulados por escrituras de 10/05/96, lavrada a fls. 22 do livro nº 251-B e de 02/03/98, lavrada a fls. 40 do livro nº 154-C, ambas do 2º Cartório Notarial de Vila do Conde, que incidem sobre os imóveis objecto deste registo, condenando-se a ré a restitui-los à autora;
b) o cancelamento dos registos de aquisição do mesmo imóvel a favor da ré, bem como todos os demais actos de registo posteriores às citadas vendas que incidam sobre os ditos imóveis.
4. Na acção de nulidade dirime-se precisamente a questão da propriedade do imóvel dado de garantia à exequente, questão fundamental para se determinar a legitimidade passiva prevista no artigo 56º, nº 2, do C.Proc.Civil.

5. Assim, o desfecho da referida acção 135/00, do 3º Juízo Cível do Tribunal de Vila do Conde, constitui verdadeira questão prejudicial que determinará a necessidade, ou não, da ora embargante intervir na presente execução.
6. De facto, em caso de procedência dessa acção, a firma "D, L.da" deixa de ser proprietária do prédio em causa, pelo que, a nenhum titulo poderia ser demandada como executada na presente acção.
7. Pelo que deixaria de ver o seu nome publicitado nos jornais, na qualidade de executada, facto gerador de inúmeros prejuízos no seu giro comercial, nomeadamente na obtenção de crédito junto de fornecedores e das próprias instituições bancárias.
8. Nesta conformidade, deverá este Supremo Tribunal ordenar a suspensão da instância nos presentes autos até ao trânsito em julgado da sentença no aludido Processo nº 135/00 (artigo 279º do Código de Processo Civil).

Para além dos factos referidos acima no relatório, encontram-se demonstrados os seguintes:

i) - é fundamento da execução (de que estes embargos são apenso) a concessão, por parte da exequente, de um crédito-habitação à executada B, sendo a executada "D, L.da" demandada nos termos do art° 56°, n° 2, do CPC, tendo sido celebrada escritura pública pela qual ficou constituída garantia real de hipoteca a favor da exequente sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o n° 02462/951123, Fracção "D", de Vila do Conde;

ii) - em 23/03/2000, foi intentada, no Tribunal Judicial de Vila do Conde, a acção com o n° 135/2000, em que é autora a ora executada B e ré a ora executada "D, L.da", onde se pede, para além do cancelamento de registos, se declarem nulos por simulação os contratos de compra e venda titulados pelas escrituras de 10/05/96 e de 02/03/98, a primeira tendo por objecto a casa de habitação da autora, com quintal, no lugar de Casal do Monte, em Vila do Conde, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n° 200 e inscrita na respectiva matriz sob o n° 1.117, e a segunda incidindo sobre a Fracção "B" correspondente ao 1º andar esquerdo, sobre a Fracção "C" correspondente ao 1º andar direito e sobre a Fracção "D" correspondente ao 2° andar, todas da habitação do prédio em propriedade horizontal à Rua da Alegria, ..., em Vila do Conde, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° 2462 e inscrito na respectiva matriz sob o art° 7266.

As questões suscitadas pela recorrente - e que se encontram interligadas - respeitam à sua legitimidade para ser demandada como executada nos autos de execução que embargou, que entende não se verificar, bem como à suspensão da instância executiva, que pretende dever ser ordenada pela ocorrência de causa prejudicial.

Na acção executiva, em termos de legitimidade, a regra geral decorrente do art. 55º, nº 1, do C.Proc.Civil (1) é a de que "a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor".

Constituindo desvio na determinação da legitimidade passiva, estabelece, no entanto, o art. 56º, nº 2, que "a execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro seguirá directamente contra este, se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor".

Por isso, se pode dizer que "sempre que o exequente pretenda fazer valer uma garantia real sobre bens de terceiro, a execução deve ser proposta contra este sujeito, embora isso não impeça que também possa ser demandado o próprio devedor (art. 56º, nº 2). A consequência da não propositura da acção executiva contra o terceiro que é titular do bem onerado é a impossibilidade de a penhora recair sobre esse bem (cfr. art. 821º, nº 2) e, caso este seja penhorado, a admissibilidade da defesa dos direitos do terceiro através de embargos (art. 351º, nº 1) ou da acção de reivindicação (art. 1331º, nº 1, e 1315º CC)". (2)

Ora, sendo que a legitimidade se afere perante a posição do demandado na relação material legalmente definida tal como é configurada pelo demandante (art. 26º, nº 3) e no momento em que a acção é proposta, parece óbvia a conclusão de que a recorrente é parte legítima, pelo menos ab initio, para ocupar a posição de executada.

Claro que supervenientemente a sua posição poderá sofrer alteração. Na verdade, desde que excutidos os bens que constituem a garantia, se reconheça a sua insuficiência, a execução seguirá apenas contra o devedor, já executado ou não (art. 57º, nº 3). Doutro passo, se vier a verificar-se que os bens lhe não pertencem (quer inicialmente, quer em consequência de decisão proferida noutro processo), também neste caso a execução terá que prosseguir apenas contra o devedor, se assim for ou tiver sido requerido pelo exequente. Tratar-se-á de um caso típico de ilegitimidade superveniente, de que o juiz pode conhecer, até ser ordenada a venda, nos termos do já referido art. 57º, nº 3, ou, em todo o caso, em conformidade com o art. 820º.

Em consequência, neste momento - e é só isto que está em causa - é patente a legitimidade passiva da executada.

Dir-se-á que da decisão que vier a ser proferida na acção nº 135/2000 (em que a autora - aqui co-executada Adelina Cândida peticiona contra a ré - embargante e ora recorrente "D, L.da" - que se declarem nulos por simulação os contratos de compra e venda titulados pelas escrituras de 10/05/96 e de 02/03/98, a primeira tendo por objecto a casa de habitação da autora, com quintal, no lugar de Casal do Monte, em Vila do Conde, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n° 200 e inscrita na respectiva matriz sob o n° 1.117, e a segunda incidindo sobre a Fracção "B" correspondente ao 1º andar esquerdo, sobre a Fracção "C" correspondente ao 1º andar direito e sobre a Fracção "D" correspondente ao 2° andar, todas da habitação do prédio em propriedade horizontal à Rua da Alegria, ...., em Vila do Conde, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° 2462 e inscrito na respectiva matriz sob o art° 7266, para além do cancelamento de registos) constitui causa prejudicial relativamente à execução instaurada.

E, de facto, nos termos do disposto nos arts. 276º, nº 1, al. c) e 279º, nº 1, o tribunal pode ordenar a suspensão da instância quando a decisão de uma causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta.

Mas a verdade é que - independentemente do facto já acima referido de a eventual procedência daquela acção ordinária apenas acarretar a ilegitimidade superveniente da recorrente, situação que não é verdadeiramente decisiva em termos de prejudicialidade - a jurisprudência praticamente uniforme se tem inclinado no sentido de que a norma do referido art. 279º, nº 1, não é aplicável às acções executivas. (3)

A norma do art. 279º, nº 1, vem já do Código de Processo Civil de 1939, onde aparecia a abrir o seu art° 284° com a seguinte redacção, muito semelhante à actual: "O juiz pode ordenar a suspensão (da instância) - quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta".

Na vigência do C.Proc.Civil de 1939 a jurisprudência do STJ dividiu-se quanto a saber se a execução podia ou não ser suspensa nos termos da primeira parte do seu art. 284º, supra transcrito.

A tal divergência veio pôr termo o Assento de 24/05/60, (4) que fixou jurisprudência no sentido de que "a execução propriamente dita não pode ser suspensa pelo primeiro fundamento do artigo 284º do Código de Processo Civil".

Como já se disse, a primeira parte do art. 284º do C.Proc.Civil de 1939 é idêntica à primeira parte do art. 279º, nº 1, do código vigente, conforme seguramente se alcança do confronto dos dois citados textos legais. Identidade que, aliás, se estende a toda a disciplina do instituto da suspensão da instância.

Mas, assim sendo, o mencionado Assento de 24/05/60 que, em nossa opinião, consagrou a doutrina que ainda hoje parece ser a melhor (5), embora apenas com o valor de acórdão uniformizador de jurisprudência (art. 17º, nº 2, do Dec.lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro).

Com efeito, "a doutrina dos assentos (e, acrescentamos, dos acórdãos uniformizadores) não caduca pelo simples facto de ser revogada a legislação vigente quando foram proferidos: se essa legislação foi substituída por outra que contenha textos idênticos, não havendo razões para excluir que o sentido dos novos textos seja igual ao dos antigos, a doutrina do assento será de manter e de considerar em vigor". (6)

Sempre se dirá, no entanto, e reforçando o entendimento acolhido, que "embora a lei não distinga no art. 279° entre a acção declarativa e a acção executiva, e se trate de uma norma geral sobre a suspensão da instância, a redacção da primeira parte do nº 1 torna inaplicável esse comando à execução propriamente dita. Realmente, desde que a suspensão, neste caso, resulta de estar a decisão da causa dependente do julgamento de outra já proposta, parece clara a sua inaplicabilidade ao processo de execução, em que não há que proferir decisão sobre o fundo da causa, visto o direito que se pretende efectivar já estar declarado" (7) (ou consta de título que lhe confere prova de primeira aparência).

Não tem, pois, razão a recorrente, havendo que manter o acórdão recorrido.

Termos em que se decide:

a) - julgar improcedente o recurso interposto pela embargante "D, L.da";

b) - confirmar o acórdão recorrido;

c) - condenar a recorrente nas custas do recurso.

Lisboa, 14 de Outubro de 2004
Araújo Barros
Oliveira Barros
Salvador da Costa
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(1) Diploma a que pertencem todas as disposições adiante indicadas sem outra referência.
(2) Miguel Teixeira de Sousa, "Acção Executiva Singular", Lisboa, 1998, pag. 139.
(3) Cfr. entre outros, os Acs. STJ de 10/01/80, in BMJ nº 293, pag. 227 (relator Hernâni Lencastre); de 26/04/90, no Proc. 78870 da 2ª secção (relator Solano Viana); de 01/06/93, no Proc. 83880 da 1ª secção (relator Miguel Montenegro); de 21/09/93, no Proc. 84179 da 1ª secção (relator Santos Monteiro); de 06/12/97, no Proc. 802/97 da 2ª secção (relator Costa Soares); de 08/10/98, no Proc. 585/98 da 2ª secção (relator Silva Graça); e de 08/02/2001, no Proc. 3485/00 da 1ª secção (relator Azevedo Ramos).
(4) Diário do Governo (IS) de 15 de Julho de 1960; BMJ nº 97, pag. 163.
(5) Cfr. Rodrigues Bastos, "Notas ao Código de Processo Civil", vol. II, 2ª edição, Lisboa, 1971, pag. 45.
(6) Cfr. Acs. STJ de 01/06/93 (acima já citado); e de 14/01/93, in CJSTJ Ano I, 1, pag. 59 (relator Baltazar Coelho).
(7) Vaz Serra, in RLJ Ano 96º, pag. 366. No mesmo sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª edição, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra, 1987, pag. 53.
(8) Rodrigues Bastos, obra e volume citados, pag. 44.