Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
502/16.7TXEVR-G.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO ILEGAL
ACÓRDÃO
CÚMULO JURÍDICO
RECURSO ORDINÁRIO
TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DE PENAS
CUMPRIMENTO DE PENA
Data do Acordão: 05/05/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I -   A petição de habeas corpus tem os fundamentos previstos taxativamente no art. 222.º, n.º 2, do CPP, tratando-se de um remédio para ultrapassar situações de prisão decretada a coberto de ilegalidade grosseira, que não pode ser utilizado para invocar deficiências processuais ou ilegalidades que encontrem no recurso a sede própria de apreciação.

II -  Visando o requerente rediscutir a matéria que constituiu objecto de recurso que interpôs da decisão cumulatória de primeira instância que aplicou a pena única de prisão que está a cumprir, como seja a inclusão duma pena parcelar de prisão suspensa nesse cúmulo jurídico, e resultando até da certidão que acompanha a providência que os motivos ora apresentados foram expressamente conhecidos pelo Tribunal da Relação no acórdão que decidiu o recurso em que invocara o mesmo (desatendido) fundamento, resulta evidente que a providência de habeas corpus carece de base factual e legal que a suporte.

Decisão Texto Integral:

1. Relatório

1.1. No processo n.º 502/16.7TXEVR-G, do Tribunal Execução Penas …. - Juiz …, o arguido AA veio apresentar pedido de habeas corpus por si manuscrito, fazendo-o ao abrigo do disposto no art. 222.º, n.º 2, al. b), do CPP.

 Encontra-se em cumprimento da pena única de dois anos de prisão, à ordem do processo comum singular nº 64/11……, do Juízo de Competência Genérica …. (Juiz …) do Tribunal Judicial da Comarca …, pena única que englobou as parcelares de catorze meses de prisão suspensa, aplicada no referido processo nº 64/11…, e de um ano e seis meses de prisão, aplicada no processo n.º 222/11…...

O requerente alegou:

“Eu, AA, nascido em ... .04.1959 no ……. e actualmente preso no Estabelecimento Prisional da Comarca ……, no cumprimento da pena de prisão de dois anos de prisão efectiva.

Assunto: Petição de Habeas Corpus. Artigo nº 222 Alínea b)

Exposição dos factos pelos quais me dirijo a Vossa Excelência:

1º Por sentença proferida no processo nº 222/11…. do tribunal da Comarca ……, em 29 de Janeiro de 2013, condenado numa pena de prisão efectiva de um ano e seis meses pela prática de um crime de furto qualificado.

2º Posteriormente em 16 de Setembro de 2013 no processo nº 64/11…. da Comarca …… Juízo de Competência Genérica do Tribunal …… condenado por um crime de furto simples na pena de um ano e dois meses de prisão suspensa na sua execução por igual período.

3º Em 2016 após cúmulo jurídico efectuado no tribunal de ... a pena suspensa, foi-me revogada sem que eu tivesse infringido o disposto no art.º n.º 56 n.º 1 alínea a) e b) do Código Processo Penal.”

 1.2. A informação a que se refere o art. 223.º, n.º 1 do CPP foi a seguinte:

“Fls. 2 (petição de “habeas corpus”):

Em cumprimento do disposto no art. 223º, nº 1, do Cód. de Proc. Penal, presta-se a seguinte informação, a qual é complementada com os elementos documentais a que se faz menção de seguida:

- O recluso AA, afecto ao Estabelecimento Prisional ……, cumpre à ordem do processo comum singular nº 64/11……, do Juízo de Competência Genérica …. (Juiz …) do Tribunal Judicial ……, a pena única de 2 (dois) anos de prisão;

- A referida pena única, que foi fixada em recurso pelo Venerando Tribunal da Relação de ..., resulta de cúmulo jurídico das seguintes penas parcelares:

. Pena de 14 (catorze) meses de prisão, suspensa na sua execução, aplicada no referido processo nº 64/11……;

. Pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, aplicada no processo nº 222/11……, que o recluso cumpriu integralmente, tendo tal pena sido declarada extinta pelo Tribunal de Execução de Penas …… por referência a 7 de Março de 2018;

- O recluso foi detido para cumprimento da aludida pena única de 2 (dois) anos de prisão no dia 17 de Março de 2021;

- Na liquidação da pena única, o tribunal da condenação considerou a existência dos seguintes descontos:

. 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, correspondentes ao tempo de detenção/prisão sofrido no processo nº 222/11……;

. 2 (dois) dias de detenção, por referência ao processo nº 64/11……;

- Nessa sequência, calculou o termo da referida pena única de 2 (dois) anos de prisão para 15 de Setembro de 2021.”

1.3. Foi convocada a secção criminal, notificando-se o Ministério Público e o defensor, e realizou-se a audiência na forma legal, tendo a secção reunido para deliberação.


2. Fundamentação

O habeas corpus é uma providência com assento constitucional, destinada a reagir contra o abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal, podendo ser requerida pelo próprio detido ou por qualquer outro cidadão no gozo dos seus direitos políticos, por via de uma petição a apresentar no tribunal competente (art. 31º da CRP).

A petição de habeas corpus tem os fundamentos previstos taxativamente no art. 22.º, n.º 2. do CPP, que consubstanciam “situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade ambulatória (…), a reposição da legalidade tem um carácter urgente”. O “carácter quase escandaloso” da situação de privação de liberdade “legitima a criação de um instituto com os contornos do habeas corpus” (Cláudia Cruz Santos, “Prisão preventiva – habeas corpus – recurso ordinário”, in RPCC, ano 10, n.º 2, 2000, pp. 303-312, p. 310).

Os autores convergem no sentido de que “a ilegalidade que estará na base da prevaricação legitimante de habeas corpus tem de ser manifesta, ou seja, textual, decorrente da decisão proferida. Pela própria natureza da providência, que não é nem pode ser confundida com o recurso, tem de estar em causa, por assim dizer, uma ilegalidade evidente e actual. (…) O habeas corpus nunca foi nem é um recurso; não actua sobre qualquer decisão; actua para fazer cessar «estados de ilegalidade»” (José Damião da Cunha, “Habeas corpus (e direito de petição «judicial»): uma «burla legal» ou uma «invenção Jurídica»?”, in Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva (coord. José Lobo Moutinho et al.), vol. 2, lisboa: uce, 2020, pp. 1361-1378, pp 1369 e 1370).

E constitui também jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça a excepcionalidade da providência e a sua distanciação da figura dos recursos.

Assim se decidiu designadamente no acórdão de 16-03-2015 (Rel. Santos Cabral) – “II - A providência de habeas corpus não decide sobre a regularidade de actos do processo, não constitui um recurso das decisões em que foi determinada a prisão do requerente, nem é um sucedâneo dos recursos admissíveis. III - Nesta providência há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira à situação processual do requerente, se os actos do processo produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos referidos no art. 222.º, n.º 2, do CPP. IV - Como não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, o habeas corpus não é o meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão, porquanto está reservado para os casos indiscutíveis de ilegalidade que impõem e permitem uma decisão tomada com a celeridade legalmente definida.” -

Preceitua então o art. 222.º do CPP, sob a epígrafe “Habeas corpus em virtude de prisão ilegal”, que o Supremo tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência a qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa (n.º 1).

Por força do n.º 2 da mesma norma, a ilegalidade da prisão deve (ou tem de) provir de uma das seguintes circunstâncias:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei o não permite;

c) Se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

No presente caso, o requerente invoca o requisito da al. b). Mas da leitura da providência, resulta logo que não se enquadra na alínea à luz da qual refere ser apresentada, nem em nenhuma outra.

Por um lado, do cotejo da argumentação defendida com a informação dada pelo Senhor Juiz do processo resulta até a confirmação de uma ausência total de base factual que leve a suspeitar da legalidade da prisão. Acresce que os motivos aduzidos pelo requerente respeitam mais a uma impugnação que tem um lugar próprio no recurso ordinário. E como se referiu já, no quadro legal inicialmente enunciado e de acordo com a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, a providência de habeas corpus tem uma natureza excepcional destinada a assegurar o direito à liberdade, mas não é um recurso.

Como tal, tratando-se aqui de um remédio para ultrapassar situações de prisão decretada a coberto de ilegalidade grosseira, o habeas corpus não pode ser utilizado para invocar deficiências processuais ou ilegalidades que tenham no recurso a sua sede própria de apreciação. E é o que o requerente está a pretender aqui, pois visa rediscutir a matéria que constituiu o objecto do recurso que interpôs da decisão cumulatória de primeira instância: a inclusão da pena parcelar de prisão suspensa no cúmulo jurídico cuja pena única está a cumprir.

Acresce que, da certidão que acompanha a presente providência, resulta que os motivos ora apresentados pelo requerente foram expressamente conhecidos pelo Tribunal da Relação de Évora, no acórdão que decidiu o recurso por si interposto e em que invocara o mesmo (desatendido) fundamento.

De tudo se conclui que a presente providência de habeas corpus carece manifestamente de qualquer base factual e legal que a suporte. O requerente está em cumprimento da pena de dois anos de prisão, que tem o seu termo previsto para 15 de Setembro de 2021, conforme liquidação efectuada no processo, inexistindo excesso do prazo máximo de prisão.


3. Decisão

Pelo exposto, delibera-se neste Supremo Tribunal de Justiça indeferir o pedido de habeas corpus por falta de fundamento bastante (art. 223.º, n.º 4, do CPP).

Custas pelo requerente, com 4 UC de taxa de justiça, e indo condenado na importância de 6 UC a título de sanção processual (art. 223.º, n.º 6, CPP).

                                                           

Lisboa, 05.05.2021


Ana Barata Brito (relatora)

Com voto de conformidade da Conselheira Adjunta Maria Conceição Gomes                        

Pires da Graça (Presidente da Secção)