Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JSTJ00034190 | ||
| Relator: | NORONHA DO NASCIMENTO | ||
| Descritores: | SOCIEDADE COMERCIAL SOCIEDADE IRREGULAR SOCIEDADE CIVIL PRESTAÇÃO DE CONTAS | ||
| Nº do Documento: | SJ199910070004942 | ||
| Data do Acordão: | 10/07/1999 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | T REL LISBOA | ||
| Processo no Tribunal Recurso: | 5523/98 | ||
| Data: | 12/17/1998 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA. | ||
| Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
| Área Temática: | DIR CIV - DIR CONTRAT. DIR COM - SOC COMERCIAIS. DIR PROC CIV - PROC ESP. | ||
| Legislação Nacional: | CCIV66 ARTIGO 2093 ARTIGO 980 ARTIGO 988 N2. CSC86 ARTIGO 36 N2. CPC67 ARTIGO 1161 D. | ||
| Sumário : | I - O que define a sociedade, como ente social, é a existência de uma pluralidade de associados que constituem um fundo patrimonial comum gerido e explorado para dar lucro (a dividir entre eles) através do exercício de uma actividade. II - Os associados podem acordar que o instrumento adequado para o preenchimento das participações sociais possa ser e seja um contrato-promessa. III - A irregularidade da constituição da sociedade (por vício de forma), conquanto a nulidade não tenha sido judicialmente declarada ainda não impede a prestação de contas - é a própria nulidade que faz deflagrar a obrigação de as prestar. IV - A obrigação de prestar contas não depende do termo da administração de bens ou negócios alheios - o credor pode exigí-las em qualquer momento, salvo se a lei impuser prazos ciclicamente renováveis em que elas possam ser exigíveis; na administração da herança e nas sociedades civis (as sociedades irregulares a elas estão equiparadas) as contas podem ser exigidas (devem ser prestadas) anualmente. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: A e B propuseram acção com processo especial contra os réus C. e mulher D. pedindo a condenação dos Réus a prestar contas da sua administração. Alegam, para tanto, que constituíram com o Réu - marido uma sociedade irregular tendo entrado - todos - com a respectiva participação, mas que os Réus jamais prestaram contas da gestão e administração social. Contestaram os Réus, impugnando o pedido. A final, foi proferida sentença que absolveu a ré D. do pedido, mas condenou o Réu C. à prestação de contas. Inconformado, apelou este, mas a 2ª instância confirmou o decidido. Recorre de revista o Réu C, agora concluindo as suas alegações da forma seguinte: 1º) não há qualquer sociedade irregular constituída entre Autores e Réu já que inexiste o elemento patrimonial; 2º) o que há é um contrato-promessa não cumprido pelos A.A. e a quantia de 1500 contos entregue por estes refere-se ao sinal dessa promessa e não a qualquer entrada social dos A.A.; 3º) ainda que houvesse uma sociedade irregular não foi pedida a declaração judicial da sua inexistência, motivo pelo qual a prestação de contas seria sempre inexigível; 4º) a prestação de contas visa o apuramento e aprovação de receitas obtidas e de despesas realizadas por quem administrou bens alheios; 5º) ora, o Réu jamais administrou bens alheios porque o terreno prometido vender sempre permaneceu propriedade sua, porquanto os A.A. nunca o adquiriram; 6º) os A.A. nunca pagaram os 500 contos sobrantes - ou seja, a parte do sinal em dívida - que deviam ter sido pagos há trinta anos e pretendem agora, com o pagamento desse montante (totalmente desvalorizado) comparticipar numa sociedade irregular, o que corresponde a uma profunda injustiça para o Réu; 7º) mesmo que estivéssemos perante uma sociedade irregular, não havia ainda obrigação de prestar contas; 8º) esta obrigação só existiria depois da venda da última fracção autónoma do prédio construído; ora tal venda ainda não ocorreu, o que torna inexigível essa obrigação; 9º) e não tem qualquer influência nisso, o facto de ter havido uma cláusula adicional ao contrato segundo a qual essa fracção não vendida ficava para um dos outorgantes; tal cláusula será sempre nula por não revestir a forma do próprio contrato (arts. 221 e 222, n. 1 do C. Civil) além de que a sua prova não se pode fazer testemunhalmente nos termos do art. 394, n. 1 do mesmo diploma; 10º) o acórdão recorrido violou as disposições citadas e ainda o art. 1014 do C.P.C. Pede, assim, a revogação do acórdão recorrido absolvendo-se o recorrente do pedido. Não houve contra-alegações. Dá-se por reproduzida a matéria de facto provada descrita no acórdão recorrido nos termos dos arts. 713, n. 6 e 726 do C.P.C. 1º) A primeira questão que o recorrente coloca reporta-se à existência ou não de uma sociedade irregular. As instâncias pronunciaram-se pela positiva contra a recorrente que entende que, no presente caso, o que nos surge não é senão um contrato-promessa incumprido que explica a entrega pelos A.A. dos 2000 contos que representam prosaicamente o sinal a prestar por força desse contrato-promessa. Há efectivamente uma sociedade irregular constituída por A.A. e Réu - marido e em relação à qual o contrato-promessa funcionou como meio instrumental de preenchimento de participações sociais. Existe contrato de sociedade quando duas ou mais pessoas põem em comum bens ou serviços (indústria, na expressão antiga) para a exploração lucrativa de uma certa actividade económica (cfr. art. 980 do C. Civil). O que define, assim, a sociedade, como ente social, é a existência de uma pluralidade de associados que constituem um fundo patrimonial comum gerido e explorado para dar lucro (a dividir entre eles) através do exercício de uma actividade. Foi exactamente isso o que sucedeu no caso vertente e que está bem patente no documento a fls. 7 que incorpora o acordo negocial societário. Bem expresso, vemos aí o conjunto de elementos essenciais do acordo social: o consenso entre os vários sócios, a actividade económica a explorar lucrativamente (edificação e venda de um prédio de 10 pisos mais 1, que integra um lote bem identificado), a forma de distribuição de lucros a obter (metade para o Réu C, metade para os Autores), a participação social dos três associados (os A.A. entraram com metade do valor do terreno onde o edifício ia ser construído e o Réu C. entrou com o valor da outra metade). Porque o terreno era originariamente propriedade do Réu C., as entradas dos sócios nos termos descritos estavam condicionadas pela feitura de um contrato-promessa de compra e venda que fosse o instrumento de criação posterior da compropriedade do terreno. O contrato-promessa foi outorgado; e daqui infere-se com nitidez que este contrato funcionou como o meio de preenchimento das participações sociais acordadas pelas partes intervenientes. Contrato de sociedade, embora irregular e nulo, e contrato-promessa estavam, pois, coligados entre si, já que havia um nexo funcional entre eles e por força do qual um deles (a promessa) se subordinava ao acordo hegemónico (a sociedade). Se o contrato de sociedade fosse válido, o caso presente seria por isso, um exemplo clássico de contratos coligados sendo um deles dominante e o outro (a promessa) subordinado. Através do contrato-promessa obtinha-se, instrumentalmente, um efeito essencial à consumação e constituição da sociedade. Daqui o que resulta, de imediato é a sem-razão da tese defendida pelo Réu - recorrente. Há uma sociedade - irregular embora - acordada entre os associados, com um elemento patrimonial constituído; por isso mesmo, os A.A. entraram com o sinal do contrato-promessa que era precisamente a sua participação social, e por isso mesmo se previu (no acordo documentado fls. 7) que, na hipótese de essa participação não estar totalmente preenchida à data da contabilização final dos lucros, a parte em dívida saía precípua dos lucros para a efectivação dessa participação (cfr. cláusula 6, b). "Em termos simples", o que o acordo de fls. 7 nos dá com nitidez é que a participação social dos A.A. correspondia ao valor de metade do terreno onde a construção iria ser implantada e que a participação do Réu correspondia à outra metade; nessa conformidade a distribuição dos lucros far-se-ia nos mesmos termos (50% para os A.A., 50% para o Réu C). O não cumprimento do contrato-promessa não tem, aqui, qualquer importância: prevê-se o suprimento desse incumprimento através da tal cláusula 6, b); dá-se-lhe um carácter subordinado em relação ao acordo societário a tal ponto que os A.A. podiam registar de imediato a aquisição da metade indivisa do terreno (fls. 10). Temos, pois, que concluir que o contrato-promessa foi o instrumento adequado para o preenchimento das participações sociais dos associados; o que equivale a dizer que não estamos somente perante um contrato-promessa sem mais nada (como o requerente pretende) mas perante um acordo societário em função do qual a promessa era um meio instrumental. 2º) Do exposto emergem duas conclusões a inferir de imediato: em primeiro lugar a nula importância de estar ainda em dívida a quantia de 500 contos de sinal; em segundo lugar, a de que o Réu geriu interesses e bens alheios. A injustiça que resultaria de, trinta anos depois, o Réu C. receber 500 contos que deveriam ter sido pagos em 1971/72, é aparente. Desde logo porque se previu uma solução supletiva no contrato para esse pagamento; de seguida porque a injustiça a que o recorrente alude não tem quaisquer efeitos na existência da obrigação de prestar contas mas poderá ter no montante final das contas prestadas (ou seja, no momento da prestação de contas poder-se-á pôr a questão da actualização de quantias fixadas e a prestar há décadas). De qualquer modo, é bom não esquecer também que o Réu geriu, durante décadas, dinheiro recebido dos A.A., com intuitos societários, e em relação aos quais não prestou contas até hoje. Aqui chegados, entramos já na segunda conclusão acima referida. Na verdade, desde 1971/72 até ao presente, o Réu C. geriu as participações sociais dos A.A. As quantias entregues, a título de sinal, eram simultaneamente as participações dos Autores (conforme se viu); e foi esse conjunto que o Réu administrou durante décadas. Mas essa administração excedeu mais do que isso; o conjunto de lucros obtidos pelas vendas de fracções edificadas foi sempre gerido pelo Réu C quando, afinal, esses lucros eram o corolário lógico da associação de todos eles para, em comum, construírem e venderem. É certo que a sociedade projectada não foi regularmente constituída, e por isso estamos perante uma sociedade irregular; mas isso não interfere nem contende com o facto de os bens geridos pelo Réu serem alheios. 3º) A prestação de contas não está dependente da declaração judicial de nulidade da sociedade irregular. Esta sociedade é nula por vício de forma já que se não constituiu por escritura pública; mas - tal como as instâncias sublinharam - a própria nulidade do ente social faz deflagrar a obrigação de prestar contas sem ter que haver a chancela prévia da declaração judicial daquela nulidade. Mas não fica resolvida - ainda assim - toda a problemática deste recurso até porque o recorrente arguiu a inexigibilidade da obrigação de prestar contas mesmo pressupondo a existência da obrigação de as prestar. O Réu - recorrente raciocina desta forma: a última fracção construída ainda não foi vendida; daí que o escopo social não esteja integralmente satisfeito pelo que não tem que prestar contas neste momento mas tão-só quando for vendida a última fracção; as instâncias deram como provado que essa fracção foi adjudicada a si, Réu, por acordo verbal com os outros sócios; esse acordo é nulo por integrar cláusula acessória não escrita e esta não pode ser provada por testemunhas por proibição do art. 394 do C. Civil. Daqui o recorrente infere a inexigibilidade actual da obrigação de prestação de contas que as instâncias basearam numa cláusula contratual adicional nula e que foi provada irregularmente com violação de norma imperativa de direito probatório material. Há um manifesto equívoco em toda esta argumentação do Réu. A obrigação de prestar contas nunca está dependente do termo da administração de bens ou negócios alheios sob pena de o credor poder ficar à mercê de quem a deve; a obrigação de prestar contas é exigível durante o período em que a gestão de negócios de outrem é feita. Neste particular, o sistema legal é claro: o credor pode exigir em qualquer momento a prestação de contas, a menos que a lei imponha prazos ciclicamente renováveis em que elas possam ser exigidas. Na administração da herança as contas podem ser exigidas (devem ser prestadas) anualmente (art. 2093) independentemente da partilha daquela, sistema que é perfeitamente lógico; se a partilha ocorrer vinte anos depois, não faz sentido que o cabeça-de-casal fique indefinidamente desonerado de uma obrigação que, à data da partilha, poderá originar problemas sérios de cumprimento. Igual sistema, nos parece nas sociedades civis (art. 988, n. 2 do C. Civil), facto que desmonta pela base a tese do recorrente, tanto mais que de há muito existe a corrente doutrinária e jurisprudencial que equipara as sociedades irregulares a sociedades civis nos seus efeitos em relação a terceiros (o art. 36, n. 2 do C. Soc. Com. consagrou esta tese; no caso vertente não estamos no plano dos efeitos em relação a terceiros, mas a similitude de situações é enorme). Se a lei não fixar, contudo, prazo renovável para a prestação de contas, ela pode ser exigida em qualquer momento; é aliás, o que se passa no contrato de mandato (art. 1161 d) do C. Civil). Do sistema exposto, infere-se a inocuidade das conclusões das alegações do recorrente neste particular. As partes não fixaram, no acordo contratual, qualquer prazo para esse efeito, e nem sequer a sua cláusula 6ª pode ser vista como impondo a prestação de contas somente depois da venda de todas as fracções. Assim sendo, pouco importa que tenha havido ou não uma estipulação adicional fixando o destino da fracção ainda não vendida. Na verdade, existindo ou não tal estipulação, sendo ela válida ou nula, tendo-se provado a sua existência com meio probatório permitido ou proibido, tudo isso, toda essa problemática passa à margem da exigibilidade da obrigação de prestar contas pelo Réu. Este deve-as prestar logo que os A.A. as exijam ou - quando muito - devia prestá-las anualmente por aplicação analógica do art. 988 do C. Civil. Improcedem, por conseguinte, todas as conclusões das alegações do recorrente. Termos em que se nega a revista, confirmando-se o acórdão recorrido. Custas pelo recorrente. Lisboa, 7 de Outubro de 1999. Noronha do Nascimento, Ferreira de Almeida, Moura cruz. |