Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | SALVADOR DA COSTA | ||
| Descritores: | EXECUÇÃO INEPTIDÃO INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL TÍTULO EXECUTIVO CAUSA DE PEDIR RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE LIVRANÇA INDEFERIMENTO LIMINAR | ||
| Nº do Documento: | SJ200305150032512 | ||
| Data do Acordão: | 05/15/2003 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | T REL LISBOA | ||
| Processo no Tribunal Recurso: | 2646/02 | ||
| Data: | 04/18/2002 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | AGRAVO. | ||
| Sumário : | 1. A causa de pedir na acção executiva, como seu fundamento substantivo, é a obrigação exequenda, sendo o título executivo o instrumento documental privilegiado da sua demonstração. 2. Independentemente de valor ou não como título cambiário, a livrança consubstancia-se em documento particular previsto como título executivo no artigo 46º, alínea c), do Código de Processo Civil. 3. Como a acção executiva não visa a definição do direito violado, mas a sua reparação efectiva, sendo o título executivo a sua condição suficiente e base legal de demonstração bastante do direito a uma prestação, cede, na espécie, o regime de ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir a que se reporta o artigo 193º, n.ºs 1 e 2, alínea a), perante o que prescreve o artigo 811º-A, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil. 4. Não é inepto o requerimento executivo por falta de indicação da causa de pedir se nele se expressar ser a exequente dona e portadora de uma livrança de determinado montante, emitida a seu favor e subscrita pela executada em certa data, vencida em determinado momento, ser junta e dada por inteiramente reproduzida e na qual consta a expressão para regularização da n/ conta, ser a dívida exigível e constituir título executivo, citando os artigo 46º, alínea c), do Código de Processo Civil. 5. Por conter a declaração para regularização da n/ conta, prescrita a obrigação cartular, releva a referida livrança como título executivo, nos termos da alínea c) do artigo 46º do Código de Processo Civil. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I A "A", em Liquidação, intentou, no dia 19 de Janeiro de 1999, acção executiva para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, contra B, a fim de haver desta 292 210 273$, com base em livrança. A executada deduziu embargos, invocando a prescrição da obrigação cartular exequenda e dos juros envolventes, e a exequente, em contestação, negou a verificação da prescrição. Na fase de condensação dos embargos foi proferida sentença que declarou a sua procedência, com fundamento na prescrição da obrigação exequenda, e absolveu a embargante do pedido. Apelou a embargada da referida sentença, invocando que a execução em causa não é cambiária, mas baseada em documento com reconhecimento de dívida, e a embargante respondeu no sentido da manutenção do decidido ou que fossem declarados prescritos os juros vencidos para além dos cinco anos anteriores à instauração da execução. O Tribunal da Relação revogou a sentença, salvo quanto à prescrição dos juros vencidos nos cinco anos que precederam a propositura da acção executiva, dando relevo de título executivo ao documento particular livrança e à relação jurídica subjacente. Interpôs a embargante recurso de revista daquele acórdão, pedindo a sua revogação - recebido na espécie de agravo -, afirmando, em síntese de conclusão, o seguinte: - a recorrida indicou expressamente como causa de pedir a livrança como título executivo, e podia invocar a obrigação causal; - não indicando o exequente a causa de pedir no requerimento executivo, sem o acordo do executado não o poderá fazer no processo após a verificação da prescrição cartular, por isso implicar a alteração da causa de pedir; - a vaga e genérica remissão para o título executivo não supre a falta de alegação da causa de pedir, porque os documentos servem para demonstrar os factos e não para suprir as insuficiências de alegação; - no que respeita à individualização e determinação do título executivo e da causa de pedir da execução, o tribunal só pode servir-se dos factos articulados pelas partes; - um título executivo relativo a uma obrigação causal exige a indicação do respectivo facto constitutivo, porque sem ele a obrigação não fica individualizada, sendo o requerimento executivo inepto se não a indicar; - ao entender que o documento dado à execução é um título executivo e que vale enquanto tal apesar de não ser livrança e que a causa de pedir não é a obrigação cartular, a Relação violou os artigos 264º, 267º e 664º do Código de Processo Civil; - ao entender que a exequente, ao remeter para o documento junto designado expressamente de livrança, alegou a obrigação causal, a Relação violou os artigos 193º, n.º 2, alínea a), 264º, 267º e 664º do Código de Processo Civil, pelo que o acórdão deve ser revogado. Respondeu a embargante, em síntese de conclusão de alegação: - a execução em causa não é cambiária porque a exequente não é portadora mediata de um título e da obrigação cambiária e do título dado à execução consta a razão da obrigação de pagamento; - ainda que se admita que enquanto livrança aquele documento incorpora obrigação já extinta por prescrição, a obrigação causal subjacente mantém-se confessada no documento; - ao indicar a sua razão e causa concreta, aquela declaração de reconhecimento de dívida e promessa de pagamento tem o mesmo valor jurídico-processual que outro qualquer documento particular de confissão de dívida assinado pelo devedor; - os princípios da verdade material, da justiça e da tutela efectiva do direito de crédito da exequente postulados pelo n.º 5 do artigo 20º da Constituição determina a plena relevância, nos termos da alínea c) do artigo 46º do Código de Processo Civil, do reconhecimento, confissão de dívida e promessa de pagamento para regularização da conta bancária da executada na instituição da credora exequente. II É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido: 1. A "A", em Liquidação, intentou a execução, no dia 19 de Janeiro de 1999, com base em documento com data de emissão de 15 de Novembro de 1989 e vencimento no dia 15 de Março de 1990, onde se insere a expressão "no seu vencimento pagarei/emos por esta única via de livrança à A, ou à sua ordem, 135 000 000$. 2. A face do documento mencionado sob 1, em que consta a expressão "regularização da n/conta", está subscrita com uma assinatura encimada pelo carimbo da empresa B e, no local respeitante ao subscritor, encontra-se a identificação da mesma sociedade. 3. O referido documento já serviu de título à execução n.º 7575, que correu termos na 3ª Secção do 14º Juízo Cível de Lisboa, instaurada no dia 10 de Julho de 1990, autuada no dia 13 de Julho de 1990, no âmbito da qual a executada foi citada no dia 1 de Outubro de 1990. 4. No dia 9 de Janeiro de 1992, no âmbito do processo mencionado sob 6, foi proferido despacho ordenativo de os autos aguardarem nos termos do n.º 2 do artigo 122º, n.º 2, do Código das Custas Judiciais. 5. No dia 21 de Maio de 1992, foi o mencionado processo remetido à conta, sem que a exequente neles tenha voltado a requerer qualquer acto de que dependia o seu andamento. 6. Por requerimento de 12 de Setembro de 1997, a embargada, alegando pretender intentar nova execução contra a devedora, face à dos autos estar extinta por deserção, requereu o desentranhamento do original da livrança em causa. 7.No requerimento executivo expressou a exequente sob o n.º 2º: "a exequente é dona e legítima portadora de uma livrança de 135 000 000$00, emitida a seu favor e subscrita pela executada em 15 de Novembro de 1989 e vencida em 15 de Março de 1990, que se junta e aqui se dá por inteiramente reproduzida (doc.2)". 8. Sob 6º do requerimento executivo expressou a exequente "A dívida é exigível, constituindo título executivo (artºs 46º, al. c) e 55º n.º 1 do Cód. Proc. Civil)". 9. A executada foi citada para os termos da execução no dia 22 de Fevereiro de 1999. III Considerando o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação formuladas pela agravante, são as seguintes as questões essenciais decidendas:- relação entre o direito de crédito cambiário consubstanciado em livrança e o respectivo negócio causal; - é ou não inepto o requerimento executivo por omissão de expressa articulação dos factos integrantes da obrigação causal exequenda? Vejamos, de per se, depois de uma breve referência ao âmbito do recurso, cada uma das referidas questões. 1. Está assente por via da sentença proferida na 1ª instância e do acórdão proferido pela Relação, porque dessa parte não houve recurso, por um lado, que o direito de crédito cambiário incorporado na livrança em que a recorrente fundou a execução está extinto por prescrição. E, por outro, também estar prescrito o direito de crédito de juros relativos ao capital constante da livrança em causa e ao período temporal que decorreu até 19 de Janeiro de 1994. Além disso, não constitui objecto do recurso, porque a recorrente excluiu a sua inclusão, a questão de saber se, prescrito o direito de crédito incorporado no título cambiário livrança, pode o respectivo documento valer como título executivo envolvente da relação jurídica subjacente (artigos 684º, n.ºs 3 e 4, 690º, n.º 1, do Código de Processo Civil). 2. A livrança é um título de crédito à ordem cujo conteúdo envolve a expressão livrança, a promessa pura e simples de pagar determinada quantia, a data e o lugar do pagamento, o nome da pessoa a quem ou à ordem de quem deve ser paga e a assinatura de quem a passa (artigo 75º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças - LULL). O beneficiário daquela promessa de pagamento assume a posição de tomador, e de portador enquanto não transmitir a livrança, designadamente por endosso. No quadro da conveniência da fácil circulação dos títulos de crédito, as relações jurídicas cambiárias decorrentes da subscrição de livranças assumem características que a distinguem da generalidade dos negócios jurídicos. Nesse quadro de diferença, ressalta do regime das livranças, no confronto entre as relações jurídicas cambiárias e as relações jurídicas subjacentes, além do mais, os princípios da incorporação e da abstracção. O princípio da incorporação traduz-se na unidade entre a relação jurídica cambiária e a relação jurídica subjacente, e o princípio da abstracção significa que a primeira vale independentemente da causa que lhe deu origem (artigos 1º, nº 2, 14, 16º, 17º, 20º, 21º, 38º, 39º, 1ª e 3ª parte, 40º, 3ª parte, 50º, 51º e 77º da LULL). No caso vertente estamos perante uma livrança que foi dada à execução como título executivo. Como foi a própria recorrida quem accionou a recorrente com base naquela livrança, em que a primeira figura como beneficiária e a última como subscritora, estamos no domínio das chamadas relações imediatas, porque estabelecidas entre os sujeitos cambiários, isto é, sem intermediação de outros intervenientes cambiários. Tudo se passa, neste caso, em princípio, como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta, passando a relevar o conteúdo da convenção extra-cartular, em relação à qual a primeira funcionou como dação em função do cumprimento. Constituem títulos executivos, nos termos do artigo 46º, alínea c), do Código de Processo Civil, os documentos particulares assinados pelo devedor que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético. Independentemente de valer ou não como título cambiário, a livrança consubstancia-se em documento particular previsto na alínea c) do artigo 46º do Código de Processo Civil. Não valendo como tal, por exemplo se o direito de crédito cambiário estiver extinto por prescrição, valerá como título executivo se dele resultar o reconhecimento pelo respectivo signatário de uma obrigação de pecuniária de montante determinado ou determinável. Valendo como título cambiário, é título executivo por ser assinado pelo devedor e se traduzir no reconhecimento de uma obrigação pecuniária de montante determinado (artigo 46º, alínea c), do Código de Processo Civil). 3.Entende a recorrente que o requerimento executivo é inepto por virtude de a recorrida não haver articulado no requerimento executivo os factos integrantes da relação jurídica fundamental que esteve na origem da emissão da livrança dada à execução. Parte da distinção entre título executivo e causa de pedir relativa à execução e afirma que o primeiro é mero meio de prova da última. A lei processual actual expressa dever o juiz indeferir liminarmente o requerimento executivo fundado em título negocial quando seja manifesto, face aos elementos constantes dos autos, a inexistência de factos constitutivos da obrigação exequenda de que lhe seja lícito conhecer (artigo 811º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil). Ao impor o indeferimento do requerimento executivo no caso de não constarem dos autos os factos constitutivos da obrigação exequenda, a lei implícita a distinção entre o título executivo e a causa de pedir relativa à acção executiva. Assim, a conclusão é no sentido de que o fundamento substantivo da acção executiva é a própria obrigação exequenda e não o próprio título executivo e de que este é o seu instrumento documental legal de demonstração. Mas a acção executiva não visa a definição do direito violado, porque se destina providenciar quanto à sua reparação efectiva, surgindo o título executivo como sua condição suficiente (artigo 4º, n.º 3 e 45º, n.º 1, do Código de Processo Civil). É certo que os factos integrantes da causa de pedir e os documentos que visam demonstrá-la são realidades diversas. Mas como o título executivo assume a particularidade de demonstração legal bastante do direito a uma prestação, segue-se a dispensa na acção executiva de qualquer indagação prévia sobre a existência ou subsistência do direito substantivo a que se reporta. A lei expressa ser nulo o processo quando for inepta a petição inicial, por exemplo em razão de falta de causa de pedir (artigos 193º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do Código de Processo Civil). O referido normativo, pensado naturalmente para os procedimentos de índole declarativa, não pode ser aplicado sem restrições à acção executiva, por esta não visar a indagação prévia sobre a existência ou subsistência do direito violado. É isso que se infere do disposto na lei que prevê o indeferimento liminar do requerimento executivo, quando expressa que ele deve ter lugar nos casos de manifesta falta de título executivo, de excepções dilatórias de conhecimento oficioso ou, fundando-se a execução em título negocial, seja manifesto, face aos elementos constantes dos autos, a inexistência de factos constitutivos ou a existência de factos impeditivos ou extintivos da obrigação exequenda que ao juiz seja lícito conhecer (artigo 811º-A, n.º 1, do Código de Processo Civil). A título de causa de pedir e da sua demonstração, a recorrida expressou no requerimento executivo ser dona e legítima portadora de uma livrança de 135 000 000$00, emitida a seu favor e subscrita pela executada no dia 15 de Novembro de 1989 e vencida no 15 de Março de 1990, que a juntava como documento n.º 2 e a dava por inteiramente reproduzida, que a dívida era exigível e constituía título executivo, e indicou os artigos 46º, alínea c), e 55º, n.º 1, do Código de Processo Civil. A circunstância de a recorrida se referir no requerimento executivo a livrança e não a simples documento particular, não assume relevo jurídico no sentido pretendido pela recorrente, porque se trata de uma mera designação, que não é de excluir por virtude de extinção do direito de crédito cambiário que incorporava, porque em qualquer caso documento particular previsto na alínea c) do artigo 46º do Código de Processo Civil. A relação jurídica subjacente em causa, obrigação de pagamento de 135 000000$ derivada da regularização de conta bancária, isto é, a obrigação exequenda, consta do mencionado documento particular. Ao declarar-se no requerimento executivo reproduzido o referido documento, naturalmente quanto ao seu conteúdo declarativo, afirmaram-se os factos integrantes da obrigação exequenda dele constantes, a cambiária e a causal. A extinção da obrigação cambiária por prescrição não afectou a obrigação de suprir o débito em conta constante do documento dado à execução como título executivo. A extinção da obrigação cambiária e a subsistência da obrigação causal como fundamento da acção executiva não envolve qualquer alteração da causa de pedir, porque os factos constitutivos da obrigação causal já constavam do título executivo em causa. O tribunal é livre de operar a qualificação dos factos invocados pela recorrida no requerimento executivo, ainda que indirectamente, por remissão para o conteúdo do título executivo, em conformidade com o disposto nos artigos 466º, n.º 1 e 664º do Código de Processo Civil. Considerando o fim e a estrutura da acção executiva propriamente dita, isto é, não contando com os procedimentos de natureza declarativa que nela são susceptíveis de se inserir, bem como a particularidade e função do título executivo a que acima se fez referência, a exigência de menção da causa de pedir basta-se com a remissão para ele, nos termos em que o fez a recorrida. A conclusão não pode, por isso, deixar de ser no sentido de que o requerimento executivo em causa não está afectado de ineptidão e, consequentemente, não há fundamento legal para o procedimento dos embargos e declaração de extinção da acção executiva. Em consequência, ao invés do que a recorrente alegou, o acórdão recorrido não infringiu qualquer das normas que indicou. Improcede, por isso, o recurso. Vencida é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil). IV Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, mantém-se o acórdão recorrido e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas. Lisboa, 15 de Maio de 2003. Salvador da Costa Ferreira de Sousa Armindo Luís |