Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1011/16.0T8STB.E1.S2
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA TCHING
Descritores: USUCAPIÃO
FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
FRACIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
UNIDADE DE CULTURA
AQUISIÇÃO DE DIREITOS
DIREITO DE PROPRIEDADE
INTERESSE PÚBLICO
PUBLICIDADE
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
TITULARIDADE
REQUISITOS
POSSE
ANULABILIDADE
NULIDADE
RETROACTIVIDADE DA LEI
RETROATIVIDADE DA LEI
TERRENO
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
PRESCRIÇÃO AQUISITIVA
LOTEAMENTO CLANDESTINO
Data do Acordão: 03/01/2018
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – LEIS, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO / VIGÊNCIA, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DAS LEIS – DIREITO DAS COISAS / POSSE / CARACTERES DA POSSE / USUCAPIÃO / USUCAPIÃO DE IMÓVEIS / DIREITO DE PROPRIEDADE / AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE / PROPRIEDADE DE IMÓVEIS / FRACCIONAMENTO E EMPARCELAMENTO DE PRÉDIOS RÚSTICOS.
Doutrina:
-Abílio Vassalo Abreu, Titularidade Registral do Direito de Propriedade Imobiliária vs Usucapião, Coimbra, p. 19;
-Castro Mendes, Teoria Geral, 1979, Volume II, p. 235;
-Durval Ferreira Posse e Usucapião, Almedina, 3.ª Edição, p. 494;
-J. Baptista Machado, Sobre Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, p. 71;
-Manuel de Andrade Teoria Geral da Relação Jurídica, Volume II, p. 418;
-Mota Pinto,Teoria Geral do Direito Civil, p. 470;
-Oliveira Ascensão, Direito Civil - Reais, 5.ª Edição, p. 300;
-Pires de Lima e Antunes Varela,Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª Edição, p. 269.
Legislação Nacional:

CÓDIGO CIVIL (CC):- ARTIGOS 12.º, 1251.º, 1259.º, 1260.º, 1261.º, 1262.º, 1287.º, 1288.º, 1294.º, 1317.º, ALÍNEA C), 1376.º, N.º 1 E 1379º, N.º 1.
ALTERAÇÃO DAS ÁREAS DA CULTURA, PORTARIA Nº 219/2016, DE 9 DE AGOSTO.
REGIME JURÍDICO DA ESTRUTURAÇÃO FUNDIÁRIA, APROVADO PELA LEI N.º 111/2015, DE 27 DE AGOSTO.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 21-10-1993, IN CJ STJ, ANO I, TOMO III, P. 84 ;
- DE 12-01-1995, IN CJ STJ, ANO III, TOMO I, P. 19, WWW.DGSI.PT;
- DE 19-04-2004, PROCESSO N.º 2988/04;
- DE 27-06-2006, PROCESSO N.º 06A1471;
- DE 27-06-2006, PROCESSO N.º 1471/06, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 12-01-2012, PROCESSO N.º 136/05.1TBFUN.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 04-02-2014, PROCESSO N.º 314/2000.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 30-04-2015, PROCESSO N.º 10495/08.9TMSNT.L1.S1;
- DE 26-01-2016;
- DE 06-04-2017, PROCESSO N.º 1578/11.9TBVNG.P1.S1,IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. Considerando que, à data em que foi realizado o ato de fracionamento do prédio rústico em violação do disposto no art. 1376º, nº1 do Código Civil, ainda não estava em vigor a Lei nº 111/2015, de 27 de agosto, nem a Portaria nº 219/2016, de 9 de agosto, à invalidade daquele ato é aplicável o regime da anulabilidade previsto no artigo 1379º, nº 1, na redação anterior à introduzida pela citada lei, uma vez que, nos termos artigo 12º do Código Civil, a lei nova só visa os factos novos quanto às condições de validade dos atos.

II. A expressão «disposição em contrário» ressalvada pelo art. 1287º do C. Civil, não abarca a situação prevista no art. 1376º do mesmo código, na medida em que inexiste qualquer norma excecional que estabeleça, taxativamente, que a posse mantida sobre parcela de terreno com área inferior à unidade de cultura não conduz à usucapião.

III. A usucapião assenta na existência da posse, definida, nos termos do art. 1251º do C. Civil, como o poder de facto (corpus) que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (corpus), mantido, de forma ininterrupta, pacífica e pública ( arts. 1261º e 1262º, do C. Civil), durante um certo lapso de tempo, que varia em função da natureza do bem ( móvel ou imóvel) sobre que incide e de acordo com os caracteres da mesma posse ( titulada ou não titulada e de boa fé  ou de má fé – arts. 1259º , 1260º e 1294º, todos do C. Civil).

IV. Invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (art. 1288º do C. Civil), adquirindo-se o direito de propriedade no momento em que se iniciou a posse (art. 1317º, al. c), do C. Civil).

V. A usucapião é uma forma de aquisição originária do direito de propriedade, que surge ex novo na esfera jurídica do sujeito, irrelevando, por isso, quaisquer irregularidades precedentes e eventualmente atinentes à alienação ou transferência da coisa para o novo titular, sejam vícios de natureza formal ou substancial.

VI. Operada a divisão material de um prédio rústico em duas parcelas de terreno com área inferir à unidade de cultura fixada na Portaria n.º 202/70, de 21/04 e verificados os requisitos da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre cada uma destas parcelas, esta aquisição prevalece sobre a proibição contida no art. 1376º, nº1 do C. Civil, não operando a anulabilidade do ato de fracionamento previsto no nº1 do art. 1379º do C. Civil (na redação anterior à introduzida pela Lei nº 111/2015, de 27.08). 

VII. A usucapião visa satisfazer o interesse público de assegurar, no tráfego das coisas, quer a certeza da existência dos direitos reais de gozo sobre elas e de quem é o seu titular, quer a proteção do valor da publicidade/confiança que nesse tráfego lhe é aduzido pela posse.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça



I – Relatório

1. O Ministério Público instaurou a presente ação de processo comum contra AA e mulher, BB, e CC e marido, DD, pedindo a declaração de nulidade das escrituras de justificação notarial, datadas de 2/1/2015 e através as quais os 1os RR. e os 2os RR. obtiveram, respetivamente, o reconhecimento de posse prolongada sobre cada uma das duas parcelas de terreno destacadas de prédio rústico, com áreas inferiores à unidade de cultura fixada na Portaria nº 202/70, de 21/4, em violação do disposto no artº 1376º, nº 1, do C. Civil.

2. Citados, contestaram os réus, alegando que os dois prédios em causa foram adquiridos por usucapião, face a posses, de uns e de outros, respetivamente, que se prolongam desde pelo menos 1988, irrelevando, por isso, a proibição constante do art. 1376º, nº 1 do C. Civil.

Concluíram pela improcedência da ação.

3. Após o saneamento do processo, foi proferido despacho de identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova.

4. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou improcedente a ação.


5. Inconformado com esta decisão, dela apelou o autor para o Tribunal da Relação de …, que, por acórdão proferido em 08.06.2017, julgou improcedente o presente recurso, confirmando a sentença recorrida.

6. Inconformado com esta decisão, veio o autor deduzir revista excepcional, invocando para o efeito, a existência dos pressupostos da mesma referidos nas alíneas a), b) e c) do nº 1 do artigo 672º do CPC, tendo o Coletivo da Formação a que alude o nº 3 deste mesmo artigo, decidido admitir excecionalmente a revista interposta.


7. O autor terminou as suas alegações do recurso de revista excecional interposto para o Supremo Tribunal de Justiça com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«I - O acórdão ora recorrido encontra-se em contradição com o douto acórdão do STJ proferido em 30/4/2015, no Proc. n° 10495/08.9TMSNT.L1.S1, debatendo ambos a mesma questão fundamental de direito e tendo sido proferidos no domínio da mesma legislação, uma vez que, embora tenha sido entretanto publicada a Lei n° 111/2015, de 27/8, que procedeu à alteração do disposto no art° 1379° n° 1 do Código Civil, tal alteração não constituiu fundamento para a decisão proferida no acórdão recorrido.

II - Todavia, mesmo que porventura possa entender-se não estarem reunidos os pressupostos previstos na referida al. c) do n° 1 do art° 672° do NCPC, mostram-se inteiramente preenchidos os pressupostos previstos nas als. a) e b) da mesma norma, dado que, atenta a matéria em causa - a prevalência ou não da usucapião sobre as regras impeditivas do fracionamento - estamos perante "interesses de particular relevância social" e se tratar de questão com relevância jurídica manifesta, face às correntes jurisprudenciais contraditórias, que necessita de ser apreciada "para uma melhor aplicação do direito".

III - Mostram-se, pois, reunidos os pressupostos da revista excepcional previstos no art° 672° n° 1 als. a), b) e c) do NCPC, sendo, por isso, a mesma admissível.

IV - O art° 1287° do C. Civil, exclui a possibilidade de se verificar a usucapião quando haja " disposição em contrário", e tal disposição em contrário é a constante do art 1376° n° 1 do CC, que impede o fracionamento de parcelas inferiores à unidade de cultura, não sendo exigível que tal norma afirme expressamente a exclusão da usucapião.

V - Os interesses que a norma do art° 1376° n°1 do CC visa salvaguardar são manifestamente de interesse público, tendo em vista a estruturação fundiária nacional e o ordenamento territorial em termos socialmente adequados, sendo os actos cometidos em violação da mesma geradores de nulidade, nos termos do art° 294° do CC.

VI - Ao alterar a redacção do disposto no art° 1379° n° 1 do CC, passando a impor a sanção de nulidade para os actos de fracionamento violadores da unidade de cultura, a Lei n° 111/2015, de 27/08, reafirmou o carácter imperativo dessa norma e confirmou, sem qualquer dúvida, a não prevalência da usucapião sobre as regras legais de proibição de fracionamento.

VII - O legislador demonstrou claramente, na exposição de motivos da Lei n° 111/2015, que pretendeu intervir "através da possibilidade de impedimento dos atos jurídicos que contrariem esses limites, com o objetivo de se garantir a sustentabilidade das estruturas fundiárias."

VIII - Assim, é de acolher, no caso dos autos, a posição jurisprudencial que decorre do douto acórdão fundamento, a qual foi já igualmente sufragada pelo Ac. do STJ de 26/1/2016 e pelo Ac. da Relação de … de 25/5/2017, decidindo no sentido de que a usucapião não prevalece sobre as regras de proibição do fracionamento rural.

IX - Uma vez que, na presente acção, cada uma das parcelas fracionadas tem uma área de 0,3787 ha, inferior à unidade de cultura - quer à prevista na Porta n° 202/70 (0,5 ha), quer à prevista na Porta n° 219/2016 (2,5 ha) - não pode a usucapião ser reconhecida como eficaz, dado que não prevalece sobre a norma imperativa de proibição de fracionamento contida no art° 1376° n° 1 do C, Civil.

X - Não tendo assim decidido violou o douto acórdão recorrido o disposto nos art°s 294°, 1287°, 1376° e 1379° do Código Civil, devendo ter interpretado os mesmos com o sentido que decorre das conclusões que antecedem».


Termos em que requer seja revogado o acórdão recorrido e a sua substituição por outro que julgue procedente a ação.

  

8. Os réus responderam, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido. 

   

9. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.



***



III. Delimitação do objecto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].


Assim, a esta luz, a única questão a decidir traduz-se em saber se a verificação dos pressupostos da usucapião relativamente a uma parcela de prédio rústico com área inferior à unidade de cultura, resultante de mera divisão material, conduz ao reconhecimento do direito de propriedade sobre a dita parcela de terreno com base na usucapião.



***



III. Fundamentação


3.1. Fundamentação de facto


As instâncias deram como provados os seguintes factos:

«1. Os 1.º e 2.º Réus outorgaram escritura de justificação no Cartório Notarial de … de EE, no dia 02.01.2015, exarada de fls. 82 a fls. 87 do Livro de escrituras diversas n.º 11-A, na qualidade de justificantes.

2. Na escritura id. em 1., os 1.º e 2.º Réus declararam:

2.1 Que são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do: prédio rústico, com a área total de três mil setecentos e oitenta e sete metros quadrados, composto por parcela de terreno com horta e árvores de fruto, sito em Sesmaria …, freguesia e concelho de Palmela, que confronta a norte com FF, a sul com GG, a nascente com caminho público e poente com CC, ao qual atribuem o valor de € 250,00.

2.2 Que o indicado prédio rústico está ao presente inscrito na matriz cadastral da União de Freguesias do Poceirão e Marateca sob parte do artigo 253, da secção 1L5, que proveio do artigo 125 e este do 40 da secção L5 da freguesia de Palmela, sendo na matriz seus titulares para efeitos fiscais, o justificante marido e sua irmã CC.

2.3 Que o mencionado prédio rústico, na Conservatória competente é parte do ora descrito sob o número treze mil cento e cinquenta e dois de treze de Outubro de dois mil e dez da referida freguesia de Palmela, extratação do descrito sob o número dez mil setecentos e noventa e seis do Livro B-34, com inscrição de aquisição, em comum e partes iguais a favor de:

a) AA e mulher, BB, e;

b) CC e marido, DD, casados sob o regime de comunhão geral de bens, residentes em Cajados, Palmela, pela inscrição requisitada pela apresentação noventa e um de vinte e um de Fevereiro de dois mil, extratação da inscrição número trinta e quatro mil e cinquenta e oito a folhas cento e onze, do Livro G-81.

2.4 Que o referido HH que também usou II, faleceu no dia vinte e dois de Outubro de mil novecentos e oitenta e quatro, no estado de casado com JJ no regime de comunhão geral de bens, tendo-lhe sucedido como herdeiros a então cônjuge sobreviva, presentemente falecida, sucedendo-lhes os filhos de ambos, AA e CC.

2.5 Que por morte do mencionado HH, se procedeu a inventário que correu seus termos no Tribunal de Círculo e Comarca de …, com o número sessenta e dois barra oitenta do então quarto juízo, segunda secção, e nele o prédio rústico, ora a usucapir constituía verba número sete e nesse título foi adjudicado em comum e partes iguais, aos dois filhos do “de cujus”, AA e CC, esta então menor, por sentença transitada em julgado a treze de Outubro de mil novecentos e oitenta e sete, e finda a partilha, no caso judicial, cada um dos dois referidos herdeiros, foi considerado, desde a abertura da herança, titular do direito a ele adjudicado no inventário.

2.6 Que, assim os dois referidos herdeiros, AA e CC, são titulares do prédio a eles adjudicado em comum e partes iguais, desde vinte e dois de Outubro de mil novecentos e oitenta e quatro.

2.7 Que no primeiro trimestre de mil, novecentos e oitenta e oito, os ora primeiros outorgantes e a outra comproprietária CC, intervindo nesse acordo a sua representante legal, sua mãe, acordaram as partes verbalmente não continuar na situação de compropriedade resultante do inventário e, assim, por acordo, também verbal, dividiram o prédio de que eram co-proprietários, em dois novos prédios, sendo um deles o prédio no início identificado, que foi adjudicado a estes, ora usucapientes.

2.8 Que logo nessa data, ela primeira outorgante e posteriormente ela e seu marido o demarcaram, limparam, trataram e podaram as árvores neles existentes, plantando batatas e semeando outros produtos hortícolas, substituíram cepas velhas por novas, colheram as uvas e frutos.

2.9 Que desde a data do apossamento referida, eles primeiros outorgantes, entraram na posse efectiva e material do referido prédio rústico, usando de todas as utilidades por ele proporcionadas com o ânimo de quem exerce um direito próprio, sendo reconhecidos como donos por toda a gente, fazendo de boa fé por ignorarem lesar direito alheio, de uma forma pacífica, ininterrupta e sem violência, à vista e com o conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém.

2.10 Que a referida CC quando atingiu a maioridade, por acto unilateral, confirmou a divisão verbal antes acordada, sanado assim o vício inicial de anulabilidade, dado tal acordo lhe ser conveniente.

2.11 Que a posse por eles usucapientes manifestada nos actos possessórios mencionados retrotrai os seus efeitos à data do apossamento atrás mencionado, ou seja, ao primeiro trimestre de mil novecentos e oitenta e oito.

2.12 Que a usucapião invocada, faculdade que cabe a eles justificantes por exercerem uma posse de boa fé pública e pacífica, é uma forma originária de aquisição de um direito real novo, ora invocado, distinto do anterior que se extinguiu, e rompe com todas as limitações legais que tenham a coisa possuída por objecto, como seja a proibição de divisão de um prédio. (…)

2.13 Que os efeitos da usucapião ora invocada retrotraem à data do início do apossamento, (…).

2.14 Que assim, e em face do disposto nos artigos 1251, 1255, 1260, 1261, 1262, 1263 alínea a), 1287, 1288 e 1296, todos do Código Civil, AA e mulher BB adquiriram por usucapião, com efeitos retrotraídos à data do primeiro trimestre de mil novecentos e oitenta e oito, o direito de propriedade sobre o prédio que é objecto da presente escritura e nela está devidamente identificado.

3. Na escritura id. em 1., KK, LL e MM declararam que por serem verdadeiras, confirmam as declarações que antecedem.

4. Os 3.º e 4.º Réus outorgaram escritura de justificação no Cartório Notarial de … de EE, no dia 02.01.2015, exarada de fls. 76 a fls. 81 do Livro de escrituras diversas n.º 11-A, na qualidade de justificantes.

5. Na escritura id. em 4., os 3.º e 4.º Réus declararam:

5.1 Que são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do: prédio rústico, com a área total de três mil setecentos e oitenta e sete metros quadrados, composto por parcela de terreno com horta e árvores de fruto, sito em Sesmaria …, freguesia e concelho de Palmela, que confronta a norte com FF, a sul com GG, a nascente com AA e a poente com caminho público, ao qual atribuem o valor de € 250,00.

5.2 Que o indicado prédio rústico está ao presente inscrito na matriz cadastral da União de Freguesias do Poceirão e Marateca sob parte do artigo 253, da secção 1L5, que proveio do artigo 125 e este do 40 da secção L5 da freguesia de Palmela, sendo na matriz seus titulares para efeitos fiscais, a justificante mulher e seu irmão AA.

5.3 Que o mencionado prédio rústico, na Conservatória competente é parte do ora descrito sob o número treze mil cento e cinquenta e dois de treze de Outubro de dois mil e dez da referida freguesia de Palmela, extratação do descrito sob o número dez mil setecentos e noventa e seis do Livro B-34, com inscrição de aquisição, em comum e partes iguais a favor de:

c) AA e mulher, BB, e;

d) CC e marido, DD, casados sob o regime de comunhão geral de bens, residentes em …, Palmela, pela inscrição requisitada pela apresentação noventa e um de vinte e um de Fevereiro de dois mil, extratação da inscrição número trinta e quatro mil e cinquenta e oito a folhas cento e onze, do Livro G-81.

5.4 Que o referido HH que também usou II, faleceu no dia vinte e dois de Outubro de mil novecentos e oitenta e quatro, no estado de casado com JJ no regime de comunhão geral de bens, tendo-lhe sucedido como herdeiros a então cônjuge sobreviva, presentemente falecida, sucedendo-lhes os filhos de ambos, AA e CC.

5.5 Que por morte do mencionado HH, se procedeu a inventário que correu seus termos no Tribunal de Círculo e Comarca de …, com o número sessenta e dois barra oitenta do então quarto juízo, segunda secção, e nele o prédio rústico, ora a usucapir constituía verba número sete e nesse título foi adjudicado em comum e partes iguais, aos dois filhos do “de cujus”, AA e CC, esta então menor, por sentença transitada em julgado a treze de Outubro de mil novecentos e oitenta e sete, e finda a partilha, no caso judicial, cada um dos dois referidos herdeiros, foi considerado, desde a abertura da herança, titular do direito a ele adjudicado no inventário.

5.6 Que, assim os dois referidos herdeiros, AA e CC, são titulares do prédio a eles adjudicado em comum e partes iguais, desde vinte e dois de Outubro de mil novecentos e oitenta e quatro.

5.7 Que no primeiro trimestre de mil, novecentos e oitenta e oito, os ora primeiros outorgantes e a outra comproprietária CC, intervindo nesse acordo a sua representante legal, sua mãe, acordaram as partes verbalmente não continuar na situação de compropriedade resultante do inventário e, assim, por acordo, também verbal, dividiram o prédio de que eram co-proprietários, em dois novos prédios, sendo um deles o prédio no início identificado, que foi adjudicado a eles, ora usucapientes.

5.8 Que logo nessa data, ela primeira outorgante e posteriormente ela e seu marido o demarcaram, limparam, trataram e podaram as árvores neles existentes, plantando batatas e semeando outros produtos hortícolas, substituíram cepas velhas por novas, colheram as uvas e frutos.

5.9 Que desde a data do apossamento referida, eles primeiros outorgantes, entraram na posse efectiva e material do referido prédio rústico, usando de todas as utilidades por ele proporcionadas com o ânimo de quem exerce um direito próprio, sendo reconhecidos como donos por toda a gente, fazendo de boa fé por ignorarem lesar direito alheio, de uma forma pacífica, ininterrupta e sem violência, à vista e com o conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém.

5.10 Que a referida CC quando atingiu a maioridade, por acto unilateral, confirmou a divisão verbal antes acordada, sanado assim o vício inicial de anulabilidade, dado tal acordo lhe ser conveniente.

5.11 Que a posse por eles usucapientes manifestada nos actos possessórios mencionados retrotrai os seus efeitos à data do apossamento atrás mencionado, ou seja, ao primeiro trimestre de mil novecentos e oitenta e oito.

5.12 Que a usucapião invocada, faculdade que cabe a eles justificantes por exercerem uma posse de boa fé pública e pacífica, é uma forma originária de aquisição de um direito real novo, ora invocado, distinto do anterior que se extinguiu, e rompe com todas as limitações legais que tenham a coisa possuída por objecto, como seja a proibição de divisão de um prédio. (…)

5.13 Que os efeitos da usucapião ora invocada retrotaem à data do início do apossamento, (…).

5.14 Que assim, e em face do disposto nos artigos 1251, 1255, 1260, 1261, 1262, 1263 alínea a), 1287, 1288 e 1296, todos do Código Civil, CC e DD adquiriram por usucapião, com efeitos retrotraídos à data do primeiro trimestre de mil novecentos e oitenta e oito, o direito de propriedade sobre o prédio que é objecto da presente escritura e nela está devidamente identificado.

6. Na escritura id. em 4., KK, LL e MM declararam que por serem verdadeiras, confirmam as declarações que antecedem.

7. As áreas dos prédios destacados são de 3787,00 m2 cada um.

8. Nos autos do processo inventário supra referido o prédio rústico mãe, foi adjudicado aos interessados AA e mulher, e CC, ora Réus, “na proporção de metade para cada um“, em 1985.

9. Mas, já em 1980, o Réu AA agia como se proprietário fosse da sua parcela ao requerer um licenciamento camarário (E- 5…/80) de uma moradia a implantar/construir no prédio rústico.

10. Em meados do primeiro trimestre de 1988, a mãe dos Réus voltou a evidenciar a divisão verbal, só que nunca foi reduzida a escrito.

11. Nesta data, a mãe dos RR., JJ, por acordo verbal com os filhos, procederam à divisão verbal e fáctica do prédio, ao ter medido, demarcado, vedado e separado fisicamente o prédio rústico em duas parcelas distintas e autónomas, os atuais dois prédios, conforme já tinha sido acordado já em 1980 “na proporção de metade”.

12. A partir de Março 1988, os RR. mediram e vedaram as parcelas e passaram a fruir/possuir a parcela de terreno a eles adjudicada como se fosse sua, sem qualquer oposição, pacificamente, à vista de toda a gente, de boa fé, cultivando construindo, edificando, limpando o terreno, plantando arvores de fruto e horta, colhendo os respectivos produtos.

13. Sempre assim o fizeram sem qualquer interrupção, continuamente durante mais de 30 anos, sendo conhecidos por todas as gentes da terra».



***



3.2. Fundamentação de direito


3.2.1. Enquadramento preliminar


Conforme já se deixou dito a questão objecto do presente recurso consiste em decidir se a usucapião, como forma originária de adquirir, deve prevalecer sobre as normas que regem o  fracionamento de prédios rústicos.



*



O conjunto de dispositivos que integram a seção VII do capítulo III, título II, livro III, do Código Civil sob a epígrafe "Fracionamento e emparcelamento de prédios rústicos" tem o seu antecedente histórico na Lei n.º 2116, de 14 de Agosto, que regulou igualmente a matéria do fracionamento e emparcelamento de prédios rústicos.

Visa este complexo normativo a finalidade económica e social de reordenamento da propriedade fundiária, com o objectivo de os terrenos aptos para cultura terem (ou não deixarem de ter) uma dimensão mínima (unidade de cultura) adequada a uma exploração economicamente viável.

Assim, do mesmo passo que se proíbe o fracionamento dos terrenos em parcelas de área inferior à unidade de cultura fixada para cada zona do País (artigo 1376.º), permite-se o emparcelamento com vista a abolir os factos consumados que não respeitem a unidade de cultura (artigo 1382.º).

Todavia, no que respeita ao princípio de proibição de fracionamento –  único que agora interessa analisar – contempla o Código as exceções previstas no artº. 1377.º, excluindo desta proibição os terrenos que se destinem a algum fim que não seja o da cultura [al. a)]; os casos em que o adquirente da parcela resultante do fracionamento seja proprietário de terreno contíguo ao adquirido, desde que a área da parte sobrante do terreno fracionado corresponda, pelo menos, a uma unidade de cultura [al. b)] e se o fracionamento tiver por fim a desintegração de terrenos para construção ou retificação de estremas [al. c)].

Tratam-se de exceções que, na lógica do sistema, encontram justificação no facto de, nestas situações, deixar de relevar o interesse da exploração agrícola.

Por sua vez, prescreve o art. 1379.º do C. Civil[2] que:

« 1 – São anuláveis os actos de fraccionamento ou troca contrários ao disposto no artigo 1376.º (…).

2 – Têm legitimidade para a acção de anulação o Ministério Público (…).

3 – A acção de anulação caduca no fim de três anos a contar da celebração do acto (…)».

Assim, de acordo com o nº 1 da base I e nº 2 da base XXXIII da citada Lei nº 2116, o art. 1º da Portaria n.º 202/70, de 21/04, fixou a área de unidade de cultura, em hectares (ha), para as diversas Regiões de Portugal continental, com referência aos tipos de cultura agrícola dos terrenos, classificando-os, para tal efeito, em terrenos de sequeiro e terrenos de regadio, subdividindo estes em terrenos de cultura arvense e terrenos de cultura hortícolas.

Segundo o quadro constante daquela Portaria, as unidades de cultura fixadas para a região de Setúbal, onde se integram os prédios em causa, são:

i) - para os terrenos de regadio arvenses – 2,50 ha;

ii) – para os terrenos de regadio hortícolas – 0,50 ha;

iii) – para os terrenos de sequeiro – 7,50 ha.

Posteriormente, reconhecendo-se que o regime jurídico do emparcelamento e do fracionamento da propriedade rústica definido pela Lei nº 2116, de 14 de agosto de 1962, não lograra obter os resultados visados, o Dec.-Lei n.º 384/88, de 25-10[3], revogou esta lei, e, com o objectivo de tornar a agricultura mais competitiva e tornar o nível de vida dos que trabalham no sector rural mais próximo dos padrões dos que desenvolvem a sua actividade noutros sectores, veio, nesta matéria, «aperfeiçoar e ampliar os mecanismos reguladores do fraccionamento de prédios rústicos e de explorações agrícolas», estabelecendo:

No seu art. 19.º, nº 1 que «Ao fraccionamento e à troca de terrenos com aptidão agrícola ou florestal aplicam-se, além das regras dos artigos 1376.º e 1379.º do Código Civil, as disposições da presente lei»;


No seu art. 20.º, nº1 que «A divisão em substância de prédio rústico ou conjunto de prédios rústicos que formem uma exploração agrícola e economicamente viável só poderá realizar-se:

a) – Para efeitos de redimensionamento de outras explorações, operada nos termos da presente lei;

b) – Para reconversão da própria exploração ou se a sua viabilidade técnico-económica não for gravemente afectada;

c) – Se da divisão resultarem explorações com viabilidade técnico-económica;

d) – Se do fraccionamento não resultar grave prejuízo para a estabilidade ecológica»;


E, no seu art. 21.º, nº 1, que «Os limites mínimos de superfície dos prédios rústicos, designados por unidades de cultura, e os limites mínimos das explorações agrícolas serão fixados para as diferentes regiões do País e, dentro destas, para as zonas em que se verifiquem particulares condições económico-agrárias e sociais mediante decreto regulamentar, a publicar no prazo de um ano a contar da entrada em vigor do presente decreto-lei».

Complementarmente, o Dec.-Lei n.º 103/90, de 22/03, veio estatuir:

No seu art. 45º, que «1 – A divisão a que se refere o artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 384/88, de 25 de Outubro, só se pode realizar sob parecer favorável da respectiva direcção regional de agricultura, emitido a requerimento do interessado.

2 – Decorridos 30 dias sem que o parecer a que se refere o número anterior seja emitido, considera-se para todos os efeitos a existência de parecer favorável.

3 – Verificada a situação prevista no número anterior, a direcção regional de agricultura respectiva deve, a pedido dos interessados, passar de imediato certidão comprovativa de tal facto.»;


No seu art.º 47.º que «1 – São anuláveis os actos de fraccionamento ou troca de terrenos com aptidão agrícola ou florestal que contrariem o disposto no artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 384/88, de 25 de Outubro.

2 – Têm legitimidade para a acção de anulação o Ministério Público, a DGHEA ou qualquer particular que goze de direito de preferência no âmbito da legislação sobre o emparcelamento ou fraccionamento.

3 – O direito de acção de anulação caduca decorridos três anos sobre a celebração dos actos referidos no n.º 1.

4 – A DGHEA tem igualmente legitimidade para a acção de anulação a que se refere o artigo 1379.º do Código Civil»;


E, no seu art. 53.º, que «Enquanto não foram fixadas as unidades de cultura nos termos do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 384/88, de 25 de Outubro, mantém-se em vigor a Portaria n.º 202/70, de 21 de Abril».


Quer isto dizer que, à luz deste regime jurídico, a sanção civil para a violação da proibição contida no art. 1376º do C. Civil, não só é a mera anulabilidade (cfr. nº1 do citado art. 1379º), como os negócios que as infrinjam só são impugnáveis dentro de um prazo bastante curto (cfr. nº 3 do art. 1379º e nº 3 do art. 47º, do Dec.-Lei n.º 384/88), pelo que decorrido o prazo de 3 anos a contar da celebração do ato, a violação da lei deixa de relevar seja para que efeito for.

Todavia, em 27 de agosto de 2015, entrou em vigor a Lei nº 111/2015 de 27 de agosto[4] (cfr. art. 65) que, tendo como objetivo criar melhores condições para o desenvolvimento das atividades agrícolas e florestais, de modo compatível com a sua gestão sustentável nos domínios económico, social e ambiental, através da intervenção na configuração, dimensão, qualificação e utilização produtiva das parcelas e prédios rústicos, veio definir o regime jurídico da Estruturação Fundiária, revogando os Decretos -Leis n.ºs 384/88, de 25 de outubro e 103/90, de 22 de março.

E, no que diz respeito aos limites ao fracionamento dos prédios rústicos, veio também reforçar o impedimento dos atos jurídicos que contrariem os limites da unidade de cultura, estabelecendo:

No seu art. 48.º que «

1 - Ao fracionamento e à troca de parcelas aplicam-se, além das regras dos artigos 1376.º a 1381.º do Código Civil, as disposições da presente lei.

2 - Quando todos os interessados estiverem de acordo, as situações de indivisão podem ser alteradas no âmbito do emparcelamento rural ou da valorização fundiária, pela junção da área correspondente de alguma ou de todas as partes alíquotas, a prédios rústicos que sejam propriedade de um ou de alguns comproprietários.

3 - Da aplicação do disposto nos números anteriores não podem resultar prédios com menos de 20 m de largura, prédios onerados com servidão ou prédios com estremas mais irregulares do que as do prédio original».


No seu art. 49.º que:

«1 - A unidade de cultura é fixada por portaria do membro do Governo responsável pela área do desenvolvimento rural e deve ser atualizada com um intervalo máximo de 10 anos.

2 - As transmissões e a transferência de direitos que se verifiquem no âmbito da execução dos projetos de emparcelamento integral efetivam-se independentemente dos limites da unidade de cultura».


E, no seu art. 59.º, veio alterar disposto no art. 1379º do C. Civil, dando-lhe a seguinte redação:


«1 - São nulos os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º.

2 - São anuláveis os atos de fracionamento efetuado ao abrigo da alínea c) do artigo 1377.º se a construção não for iniciada no prazo de três anos.

3 - Tem legitimidade para a ação de anulação o Ministério Público ou qualquer proprietário que goze do direito de preferência nos termos do artigo seguinte.

4 - A ação de anulação caduca no fim de três anos, a contar do termo do prazo referido no n.º 2».


Por sua vez, a Portaria n.º 219/2016, de 9 de agosto, publicada ao abrigo do disposto no art.º 4.º, n.º 3 e art.º 49.º da mencionada Lei n.º 111/2015, veio fixar a unidade de cultura a que se refere o art.º 1376.º do Código Civil, estabelecendo (para a mesma zona do País) para os terrenos de regadio 2,5 (hectares) e para o terreno de sequeiro 48 (hectares).

É, pois, perante este quadro jurídico, que importa analisar o presente litígio.



*


3.2.2. No caso dos autos estamos no âmbito de uma ação proposta pelo Ministério Público, em 08.02.2016, ao abrigo do disposto no art. 1379º do C. Civil, que tem por finalidade a declaração de nulidade de duas escrituras de justificação notarial celebradas no dia 02.01.2015, através das quais  os primeiros e os segundos réus obtiveram, respetivamente, o reconhecimento do direito de propriedade, com base na usucapião, sobre cada uma das duas parcelas de terreno resultantes da divisão material de um prédio rústico em violação da norma que proíbe o fracionamento de prédios rústicos contida no art. 1376.º, n.º 1 do C. Civil, com referência  às unidades de cultura fixadas por lei, e por não concorrer  nenhuma das exceções admitidas  no art.º 1377.º mesmo diploma legal.

Por outro lado, resulta da factualidade provada (e supra descrita sob os n.ºs 1 a 5.14) resulta que estamos perante uma divisão em duas parcelas, por acordo verbal, do prédio rústico, composto por parcela de terreno com horta e árvores de fruto, sito em Sesmaria de …, freguesia e concelho de Palmela, inscrito na matriz cadastral da União de Freguesias do Poceirão e Marateca sob parte do artigo 253, da secção 1L5, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o nº 13…2, levada a cabo no primeiro trimestre do ano de 1988, data a partir da qual cada uma das referidas parcelas, com a área de três mil setecentos e oitenta e sete metros quadrados, então demarcada, passou a ser usada e cultivada, de forma exclusiva e ininterrupta, por cada um dos seus comproprietários, os réus AA e CC, com o ânimo de quem exerce um direito próprio, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.

Mais resulta que, através de duas escrituras de justificação notarial, datadas de 2 de janeiro de 2015, os 1ºs réus AA e mulher, BB, e os 2ºs réus, CC e marido, DD, obtiveram, respetivamente, o reconhecimento da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre cada um das parcelas resultantes da referida divisão do identificado prédio rústico. 

Perante este quadro factual, o acórdão recorrido confirmou a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância que julgou improcedente a ação proposta pelo Ministério Público, defendendo que as regras relativas ao fracionamento rural, designadamente do art. 1376º, nº 1 do C. Civil, não condicionam a validade da constituição do direito de propriedade por usucapião.

E justificou a adesão a esta orientação por considerar decisivo o argumento fundado na aquisição originária da propriedade como decorrência da usucapião, devendo, por isso, entender-se que as normas que fixam a área mínima da unidade de cultura (art. 21º do DL nº 384/88, de 25.10, art. 53.º do DL nº 103/90, de 22.03 e Portaria n.º 202/70, de 21.04), atento até o seu cariz essencialmente económico, não prevalecem sobre as normas relativas à usucapião, como é, aliás, praticamente pacífico o entendimento da jurisprudência.


Diferentemente, persiste o recorrente na defesa da tese de que o art. 1376º, nº 1 do C. Civil não permite a divisão da propriedade de terrenos aptos para cultura em unidades, parcelas ou lotes de área inferior à unidade de cultura, não podendo, por isso, o instituto da usucapião prevalecer sobre esta proibição, tal como decorre da posição jurisprudencial acolhida no Acórdão do STJ, de 30.04.2015 (proc. n.º 10495/08.9TMSNT.L1.S1) e sufragada pelo Acórdão do STJ de 26/1/2016 e pelo Acórdão da Relação de … de 25/5/2017.

Desde logo, porque o art° 1287° do C. Civil, exclui a possibilidade de se verificar a usucapião quando haja " disposição em contrário", e tal disposição em contrário é a constante do art 1376° n° 1 do CC, que impede o fracionamento de parcelas inferiores à unidade de cultura, não sendo exigível que tal norma afirme expressamente a exclusão da usucapião.

Porque os interesses que a norma do art° 1376° n°1 do C. Civil visa salvaguardar são manifestamente de interesse público, tendo em vista a estruturação fundiária nacional e o ordenamento territorial em termos socialmente adequados, sendo os atos cometidos em violação da mesma geradores de nulidade, nos termos do art° 294° do C. Civil.

Porque ao alterar a redação do disposto no art° 1379° n° 1 do C. Cvil, passando a impor a sanção de nulidade para os atos de fracionamento violadores da unidade de cultura, a Lei n° 111/2015, de 27/08, reafirmou o caráter imperativo dessa norma e confirmou, sem qualquer dúvida, a não prevalência da usucapião sobre as regras legais de proibição de tal fracionamento.

E porque o legislador demonstrou claramente, na exposição de motivos da Lei n° 111/2015, que pretendeu intervir "através da possibilidade de impedimento dos atos jurídicos que contrariem esses limites, com o objetivo de se garantir a sustentabilidade das estruturas fundiárias."


*

Que dizer ?

Desde logo que, constatando-se que, à data da celebração das ditas escrituras de justificação notarial - 02.01.2015 - , o art. 1379º, n.º 1 do C. Civil (na redação anterior à introduzida pela Lei nº 111/2015 de 27 de agosto) sancionava com a anulabilidade os atos de fracionamento contrários ao disposto no citado art. 1376º, mas que, à data da propositura da ação – 08.02.2016 – , já se encontrava em vigor a nova redação dada ao citado art. 1379º do C. Civil, dada pela Lei nº 111/2015 de 27 de agosto, que comina a violação dos mesmos atos com a nulidade, importa decidir qual o regime aplicável ao caso concreto.

E a este respeito, diremos que, nos termos do art. 12º do C. Civil, o regime jurídico aplicável não poderá deixar de ser aquele que se encontrava em vigor à data da celebração das referidas escrituras, pois que, como refere J. Baptista Machado, a lei nova só visa os factos novos quanto às condições de validade dos actos[5].        

Daí que, contrariamente ao pugnado pelo recorrente, o presente litígio terá sempre que ser analisado e dirimido na lógica da anulabilidade e não da nulidade.

Por outro lado e enfrentando, agora, a questão nuclear objecto do presente recurso de saber se a usucapião pode, ou não, incidir sobre parcela de terreno inferior à unidade de cultura fixada por lei (art. 21º do DL nº 384/88, de 25.10, art. 53.º do DL nº 103/90, de 22.03 e Portaria n.º 202/70, de 21.04), impõe-se referir que, também contrariamente ao afirmado pelo recorrente, temos por certo que a «disposição em contrário» ressalvada pelo art. 1287º do C. Civil, não abarca a situação prevista no art. 1376º do mesmo código, na medida em que inexiste qualquer norma excecional que estabeleça, taxativamente, que a posse mantida sobre as parcelas de terreno com área inferior à unidade de cultura não conduz à usucapião, ou seja, que as mesmas não podem ser adquiridas por usucapião.

De realçar, como é consabido e resulta do citado art. 1287º, que o instituto da usucapião assenta na existência da posse, definida, nos termos do art. 1251º do C. Civil, como o poder de facto (corpus) que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (corpus), mantido, de forma ininterrupta pacífica e pública ( arts. 1261º e 1262º, do C. Civil), durante um certo lapso de tempo, que varia em função da natureza do bem ( móvel ou imóvel) sobre que incide e de acordo com os caracteres da mesma posse ( titulada ou não titulada e de boa fé  ou de má fé – cfr. arts. 1259º , 1260º e 1294º, todos do C. Civil).

Invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (cfr. art. 1288º do C. Civil), adquirindo-se o direito de propriedade no momento em que se iniciou a posse (cfr. art. 1317º, al. c), do C. Civil).

A usucapião é, assim, uma forma de aquisição originária do direito de propriedade, que no dizer do Acórdão do STJ, de 27.06.2006 (proc. nº 06ª1471)[6], «se funda direta e imediatamente na posse, cujo conteúdo define o do direito adquirido, com absoluta independência relativamente aos direitos que antes dessa aquisição tenham incidido sobre a coisa».

Dito de outro modo e nas palavras de Oliveira Ascenção, «o novo titular recebe o seu direito independentemente do direito do titular antigo. Em consequência, não lhe podem ser opostas as excepções de que seria passível o direito daquele titular»[7].

No mesmo sentido, afirma Abílio Vassalo Abreu, que «o direito adquirido por usucapião surge ex novo na esfera jurídica do sujeito, pois não depende geneticamente de um direito anterior, depende tão só, do facto aquisitivo em que o processo de usucapião se analisa» [8].

E daí concluir-se, no citado Acórdão do STJ, de 27.06.2006, que «irrelevam quaisquer irregularidades precedentes e eventualmente atinentes à alienação ou transferência da coisa para o novo titular, sejam vícios de natureza formal ou substancial. O que passa a relevar e a obter tutela jurídica é a realidade substancial sobre a qual incide a situação de posse. Concorrendo, aferidas pelas características desta, os requisitos da usucapião, os vícios anteriores não afectam o novo direito, que decorre apenas dessa posse, em cujo início de exercício corta todos os laços com eventuais direitos e vícios, incluindo de transmissão, anteriormente existentes».

Neste mesmo sentido, já decidiram os Acórdãos do STJ, de 19.04.2004 (proc. nº 2988/04); 27.06.2006 (proc. nº 1471/06); de 12.01.2012 (proc. nº 136/05.1TBFUN.L1.S1); de 04.02.2014 (proc. nº 314/2000.P1.S1) e de 06.04.2017 (proc. nº 1578/11.9TBVNG.P1.S1)[9].

Significa tudo isto, no caso dos autos e face aos factos assentes e supra descritos sobre os nºs 1 a 13, que, à data da celebração das duas escrituras de justificação notarial (02.01.2015), já haviam decorrido, mais de quinze anos, quer desde a data da divisão do prédio rústico, da criação de cada uma das referidas parcelas de terreno com a área de três mil setecentos e oitenta e sete metros quadrados e da consequente adjudicação aos réus AA e CC, quer desde o início da posse dos réus sobre cada uma delas, o que tudo ocorreu em março de 1988.

E porque a partir desta data, os réus passaram a usar e fruir as respetivas parcelas, como prédios autónomos, como se fossem coisa sua, sem oposição de quem quer que seja e à vista de toda a gente, dúvidas não restam que tal posse, embora não titulada, porque mantida por mais de 15 anos, de boa fé, pacífica, pública confere aos réus a aquisição do direito de propriedade sobre tais parcelas de terreno por usucapião (cfr. arts. 1259º,1260º, 1261º, 1262º, 1296º e 1287º, todos do C. Civil), carecendo, por isso, a ilegalidade do fracionamento do prédio rústico em causa de potencialidade ou idoneidade para interferir na operância desta forma de aquisição.

De realçar ser esta também a posição de Castro Mendes que sempre defendeu não obstar à aquisição por usucapião de parte de prédio, dividido verbalmente pelos anteriores comproprietários, o facto de a sua superfície ser inferior a meio hectare, tendo em conta o valor da unidade de cultura fixado pela Portaria n.º 202/70, de 21/04[10].

E esta é também a orientação seguida por Pires de Lima e Antunes Varela, que referem que «se, através de um negócio jurídico nulo (v.g., por falta de forma) se realizar um fracionamento ou uma troca contrários ao disposto nos art.ºs 1376.º e 1378.º, e se, na sequência disso, se constituírem as situações possessórias correspondentes, aqueles preceitos não obstam a que estas situações se consolidem por usucapião, logo que se verifiquem todos os requisitos legais. Embora as regras sobre fracionamento e troca de terrenos aptos para cultura sejam determinadas por razões de interesse público, os negócios que as infrinjam só são impugnáveis dentro de um prazo bastante curto (o prazo indicado no n.º 3). Decorrido este prazo, a violação da lei deixa de relevar seja para que efeito for, não podendo, por conseguinte, impedir a aquisição de direitos por usucapião)»[11]

Daí poder concluir-se, na esteira de tudo o que acima se deixou dito, que a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre parcela de terreno inferior à unidade de cultura fixada na Portaria n.º 202/70, de 21/04, prevalece sobre a proibição contida no art. 1376º, nº 1 do C. Civil, não operando a anulabilidade do ato de fracionamento previsto no nº 1 do art. 1379º do C. Civil (na redação anterior à introduzida pela Lei nº 111/2015, de 27.08).  

E nem se argumente, como o faz o recorrente, que o interesse público que a norma do art° 1376° n°1 do CC visa salvaguardar – estruturação fundiária nacional e o ordenamento territorial em termos socialmente adequados – deve prevalecer sobre os interesses subjacentes à usucapião.

É que também as regras da usucapião são determinadas por razões de interesse público.

Com efeito, como refere Durval Ferreira, a usucapião não visa satisfazer um interesse individual do possuidor, mas, antes, o interesse público de «assegurar, no tráfego das coisas, quer a certeza da existência dos direitos reais de gozo sobre elas e de quem é o seu titular, quer em proteger o valor da publicidade/confiança que nesse tráfego lhe é aduzido pela posse, quer em fornecer, através do usucapião, um meio de prova seguro, de fácil utilização e consentâneo com a confiança, quanto à existência do direito e á sua titularidade».[12]

Do mesmo modo não colhe o argumento avançado pelo recorrente no sentido de que a sanção de nulidade, agora, imposta pelo art. 1379º, n.º 1 do C. Civil, na redação dada pela Lei nº 111/2015, para os actos de fracionamento violadores da unidade de cultura, é bem elucidativa da vontade do legislador reafirmar o caráter imperativo dessa norma e confirmar a não prevalência da usucapião sobre as regras legais de proibição de fracionamento, tanto mais, que ficando sujeita ao regime estatuído nos art.ºs 294º e 286º, ambos do C. Civil, pode ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado e pode até ser declarada oficiosamente pelo tribunal.

Desde logo, porque, como já ensinava Manuel de Andrade, «o princípio de que a nulidade absoluta pode, por via de acção, ser invocada a todo o empo, não prevalece sobre a doutrina da prescrição aquisitiva»[13].

No mesmo sentido, afirma Mota Pinto que a possibilidade da invocação perpétua da nulidade, pode ser precludida pela verificação da prescrição aquisitiva (usucapião)[14].

Assim, na consideração de que, no caso dos autos, a usucapião opera de pleno, improcedem as conclusões do recorrente.



***



III – Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso de revista interposto pelo Ministério Público, confirmando-se o acórdão recorrido.

 

 Sem custas, por delas estar isento o MºPº, enquanto A. apelante (artos 527º do NCPC e 4º, nº 1, al. a), do RCP)


***

Supremo Tribunal de Justiça, 1 de março de 2018

(Texto elaborado e revisto pela Juíza relatora).

Maria Rosa Oliveira Tching (Relatora)

Rosa Maria Ribeiro Coelho

João Luís Marques Bernardo

_____________


[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[2] Na redação anterior à introduzida pela Lei nº 111/2015, de 27.08, entrada em vigor em 2015.09.27. 
[3] Que, entretanto, foi  revogado  pela citada Lei nº 111/2015, de 27.08.
[4] Cfr. art. 65º.
[5] In, “ Sobre  Aplicação no Tempo do Novo Código Civil”, pág. 71. 
[6] In www dgsi.pt e in CJ/STJ, ano 2006, tomo II, pág. 133.
[7] In, “ Direito Civil- Reais”, 5ª ed., pág. 300. 
[8] In, “ Titularidade Registral do Direito de Propriedade Imobiliária vs Usucapião”, Coimbra, pág. 19.
[9] Todos publicados in www.dgsi.pt.
[10] In, “Teoria Geral”, 1979, Vol. II, pág. 235.
[11] In, “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2.ª edição, pág. 269
[12] In, “ Posse e Usucapião”, Almedina, 3ª ed., pág. 494.
[13] In “ Teoria Geral da Relação Jurídica”, Vol. II, pág. 418.
[14] In, “Teoria Geral do Direito Civil”, pág. 470