Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
357/1999.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: PAULO SÁ
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
CAPITAL SOCIAL
AUMENTO DE CAPITAL
EMPRÉSTIMO
SUPRIMENTOS
CESSÃO DE CRÉDITOS
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
FIANÇA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 10/26/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADAS AS REVISTAS
Área Temática: DIREITO COMERCIAL - DIREITO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS
Doutrina: – ABÍLIO NETO, in Código das Sociedades Comerciais, 2.ª edição, Ediforum, Lisboa, nota 4 ao art.º 244.º.
- ALEXANDRE MOTA PINTO, Do Contrato de Suprimento, p. 286, cit. in Ac. RL. de 13.9.07 CJ, tomo IV, p. 87.
- ALMEIDA COSTA, anotação ao Acórdão do STJ, de 11 de Dezembro de 1984, na Rev. de Leg. e de Jur., Ano 119.º, pp. 137 e segs..
- ANTUNES VARELA, in Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª, págs. 425, 482 e 483.
- BRÁS TEIXEIRA, Notas sobre Imposto de Capitais, in Ciência e Técnica Fiscal, 1969 125º/136, cit. in ABÍLIO NETO, Código das Sociedades Comerciais, 2.ª edição p. 464.
- CALVÃO DA SILVA, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2.ª edição, pp. 337-338.
- GIOVANNI PERSICO, L’ eccezione di inadempimento, págs. 141.
- GONÇALVES DA SILVA E ESTEVES PEREIRA, Contabilidade das Sociedades, 1987, p. 105, cit. in ABÍLIO NETO, op. cit., p. 464.
- JOSÉ JOÃO ABRANTES, A Excepção de Não Cumprimento do Contrato no Direito Civil Português, Almedina, Coimbra, 1986, pp. 39 e ss. e 99, 110, 111 e 118.
- MANUEL ANDRADE, in Teoria Geral da Relação Jurídica, vol II, pág. 133
- MENESES CORDEIRO, in Direito das Obrigações, vol. 2.º, pp. 509 a 522.
- MENEZES CORDEIRO, in SA: Assembleia Geral e Deliberações Sociais, Almedina, Coimbra, 2007, p. 201.
- MOTA PINTO, in Teoria Geral do Direito Civil 3.ª ed., pág. 425.
- PEDRO ROMANO MARTINEZ, Cumprimento defeituoso em especial na compra e venda e na empreitada, Colecção Teses, Almedina Coimbra, p. 324.
- PAULO OLAVO CUNHA, Direito das Sociedades Comerciais, Almedina, Coimbra, 3.ª edição, p. 440 e 436.
- PINTO FURTADO, Código Comercial, Das Sociedades em Especial, Almedina, Coimbra, vol. II, tomo II, pp. 758 e 759.
- PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, p. 406:
- P. MOTA PINTO, Declaração Tácita, Almedina, Coimbra, p. 206, 211 e 212.
- RAÚL VENTURA, Sociedade por quotas, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, vol. I, Coimbra, Almedina, 4.ª reimpressão, pp. 213 a 215.
- RAUL VENTURA, Sociedades por Quotas, Almedina, Coimbra, II/139 e 140.
- RAÚL VENTURA, RDES, 25, p. 270.
- VAZ SERRA, in RLJ, Ano 105.º, p. 238.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 217.º, N.º1, 227.º, 236.º, N.º 1, 428.º, N.ºS 1E 2, 577.º, 583.º, N.º1, 588.º, 627.º, N.º1, 628.º, N.ºS1 E 3, 631.º, 632.º, N.ºS 1 E 2, 651.º, 707.º, N.º2, 762.º, N.º 2, 804.ºE SS., 808.º.
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 209.º, 210.º, N.ºS 1, 3, AL. A) E 4, 211.º, N.º 1, 243.º, 243.º, 244.º, 245.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC) : - ARTIGO 664.º, 676.º, 680.º, N.º1, , 684.º, N.º3. 690.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA, DE 9.11.99, CJ, TOMO V, P. 20.
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES, DE 9.4.03, CJ, T. II, P. 281.
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA, DE 31/01/78, CJ. T. L, P. 64.
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO, DE 16.08.2008, IN PROC. 0832552, IN WWW.DGSI.PT .
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
- DE 18.5.62, NO BMJ N.º 117, P. 429;
- DE 22.02.84, BMJ. 334, P. 502;
- DE 6.1.92 BMJ. 413/561 A 565;
- DE 10.11.93, CJSTJ, T. 3, P. 122;
- DE 2.6.98, BMJ 478, P. 268;
- DE 3.10.02, CJSTJ, T. III, P. 83.
Sumário : I - As prestações suplementares – que são sempre em dinheiro e não vencem juros –, justificam-se pelo facto de nem sempre haver possibilidade de prever qual o capital necessário para o desenvolvimento dos negócios sociais e, também, pelo facto de, não constituindo aumento de capital, serem a ele equivalentes, dispensando o cumprimento de formalidades legais e despesas.
II - Os suprimentos, em contrapartida, são considerados verdadeiros empréstimos ou mútuos feitos à sociedade, ou são, pelo menos, negócios jurídicos a eles equiparáveis, a que são aplicáveis as regras respectivas, não estando sujeitos ao regime mais apertado das prestações suplementares, constituindo desde 1986 um contrato regulado na lei (arts. 243.º a 245.º do CSC).
III - As prestações suplementares de capital, reguladas nos arts. 210.º a 213.º do CSC, implicam a verificação de diversos requisitos imperativos, devendo, desde logo, estar prevista no contrato social a eventualidade de as prestações virem a ser exigidas, mediante deliberação dos sócios e estabelecido o seu montante máximo (arts. 210.º, n.ºs 1, 3, al. a), e 4, e 211.º, n.º 1, do CSC).
IV - Da análise do art. 244.º do CSC extrai-se que a obrigação de suprimentos pode decorrer de qualquer situação nele contemplada, ou por deliberação dos sócios, ou por derivar do contrato social, sendo, neste caso, vinculativa desde que neste contrato estejam determinados os elementos essenciais dessa obrigação – sua obrigação, momentos do seu cumprimento, etc. – e, bem assim, o carácter oneroso ou gratuito desse empréstimo.
V - Se não for estipulado prazo para o reembolso dos suprimentos, não havendo acordo entre a sociedade e o sócio, haverá que proceder à respectiva fixação judicial (arts. 245.º do CSC e 707.º, n.º 2, do CC) em processo de jurisdição voluntária, devendo o tribunal atender às consequências que o reembolso acarretará para a sociedade.
VI - À cessão de créditos resultantes de um contrato de suprimento, aplica-se-lhe o regime jurídico previsto nos arts. 577.º a 588.º do CC: em função do art. 577.º, n.º 1, salvaguardados os casos em que a cessão de créditos seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligada à pessoa do credor, este pode ceder a terceiros uma parte ou a totalidade do crédito, sem o consentimento do devedor, mas a cessão só produz efeito, relativamente ao devedor, desde que lhe seja notificada, mesmo que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite (art. 583.º, n.º 1), de onde decorre que a notificação da cessão de créditos ao devedor ou a sua aceitação pelo último não é requisito de validade da cessão de créditos, mas apenas requisito de oponibilidade da cessão ao devedor.
VII - Nos contratos sinalagmáticos, a lei permite a qualquer dos contraentes recusar a realização da sua prestação, enquanto não ocorrer a prévia realização da prestação da contraparte ou a oferta do seu cumprimento simultâneo – exceptio non adimpleti contractus. É, assim, lícita, neste caso, a recusa do cumprimento, o que impede a aplicação do regime da mora (art. 804.º e segs. do CC) e, naturalmente, o do incumprimento definitivo (art. 808.º do CC), mesmo que tenha havido interpelação da outra parte. Se as duas obrigações forem puras, a excepção do não cumprimento é sempre invocável, nem sequer podendo ser afastada mediante a prestação de garantias (art. 428.º, n.º 2, do CC).
VIII - A justificação dada para o direito de não cumprimento do contrato é a manutenção do equilíbrio contratual, deste modo se pondo em evidência as regras da boa fé que, sempre e desde o início, deve acompanhar as várias facetas da sua concretização, traduzindo a exceptio non adimpleti contractus a concretização de um elementar princípio de justiça, que se exprime em ninguém dever ser compelido a cumprir deveres contratuais, enquanto o outro não cumprir os seus já vencidos.
IX - Tem-se maioritariamente entendido que a fiança apenas pode ser constituída por contrato, porquanto apenas uma convenção bilateral, pode, em regra, criar um vínculo obrigacional e não existir nenhuma norma legal que preveja que alguém possa assumir a posição do fiador e as obrigações daí decorrentes através de uma declaração unilateral sua contra a vontade do credor da obrigação afiançada. Por outro lado, o fiador terá de declarar expressamente a vontade de prestar fiança, mas nada impede que a declaração de aceitação, daquela obrigação, seja prestada tacitamente.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I – No 2.º Juízo da Comarca de Amarante AA-S... – Sociedade de Construções de F..., L.da intentou acção declarativa, sob forma de processo ordinário, contra BB-Fábrica de Calçado N..., L.da, CC, DD e EE, pedindo que os RR. sejam condenados, solidariamente, a pagar, à Autora, a quantia de Esc. 100.729.863$00, acrescida de juros, calculados à taxa de 10%, sobre o montante de Esc. 88.000.000$00, até efectivo e integral pagamento.

Para tanto alegou, em síntese:

A 1.ª Ré é uma sociedade comercial por quotas de que são sócios a Autora e os 2.º, 3.º e 4.º RR. e gerentes os 2.º, 3.º e 4.º RR.
Tal estrutura societária e de gerência adveio de um contrato em que os que os RR. aceitavam que os anteriores sócios da 1.ª Ré FF, GG e HH eram titulares de prestações de capital, na 1.ª Ré, de Esc. 96.000.000$00, valor que os ditos anteriores sócios cediam à Autora, na sua totalidade.
Os 2.º a 4.º RR. obrigaram-se a promover A.G. da Ré, onde deliberassem o pagamento das ditas prestações suplementares, em 24 prestações iguais, mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira em 30/4/96. Os 2.º a 4.º RR. obrigavam-se como fiadores e principais pagadores.
Todo o dito clausulado foi, mais tarde, transposto para um contrato de cessão de prestações suplementares de capital, celebrado em 11/1/96.
As duas primeiras prestações de Esc. 4.000.000$00 foram pagas à Autora, não já as demais.
Computam o peticionado no montante em dívida e respectivos juros, à taxa legal aplicável.

Citados regularmente, os RR. vieram contestar, tendo os RR. CC, DD e EE deduzido nas contestações respectivas o incidente de intervenção provocada dos seus ex-sócios FF , II e GG.

Também a Ré BB- N... contestou, tendo formulado pedido reconvencional, no qual peticionou a condenação da Reconvinda a pagar à Reconvinte a importância de Esc. 36.896.445$00, acrescida de juros, à taxa legal, desde a notificação.

É a seguinte a tese dos RR:

Posteriormente ao acordo dos autos, os Réus tomaram conhecimento de que as faladas prestações suplementares não tinham existido e encontravam-se falsamente registadas na contabilidade da 1.ª Ré, o que resulta na nulidade ou na anulabilidade do contratado.
A Assembleia-Geral que deveria ter deliberado a devolução das prestações suplementares nunca foi realizada.
Nos termos do art.º 213.º C.S.Com, a situação líquida da sociedade não deveria ficar inferior à soma do capital e da reserva legal, o que, a verificar--se a citada devolução, aconteceria. Por esta via, o contrato é igualmente nulo.
Os cedentes FF, GG e II, por si ou através da Autora, obrigavam-se a adquirir todos os passivos da BB- N..., existentes até 31/12/95; tais passivos, que totalizavam Esc. 36.896.445$00, não foram assumidos ou pagos pelos responsáveis, pelo que os Réus invocam a excepção de não cumprimento do contrato, bem como a compensação de créditos.
A nulidade da restituição das prestações suplementares de capital também decorre do facto de não serem efectuadas a sócios, como decorre da lei e sob pena de violação do princípio da intangibilidade do capital social.
Como decorre da lei, as prestações suplementares de capital não vencem juros.
Enquanto fiador, o Réu CC invoca a nulidade da fiança por si prestada.
Nos termos do contrato, os cedentes (sócios também da Autora) FF, GG e II são co-fiadores das obrigações reclamadas, pelo que se requer a respectiva intervenção provocada.

Por sua vez os intervenientes principais vieram contestar, alegando em síntese, que não se assumiram como fiadores no contrato ajuizado, nem tal se pode extrair do dito contrato celebrado que é válido, nas suas diversas vertentes.

Foi proferido despacho saneador e fixada a matéria assente e a base instrutória.

Entretanto a Ré BB- N... é declarada falida.

Oportunamente foi proferida a seguinte sentença onde, a acção foi julgada parcialmente procedente por provada e, em consequência:

I – condenados solidariamente os Réus CC, DD e EE, bem como os intervenientes FF, GG e II a pagar à Autora “AA-S... – Sociedade de Construções de F..., L.da” a quantia de 317.137,33 (trezentos e dezassete mil cento e trinta e sete euros e trinta e três cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, desde a data da prolação da presente sentença até efectivo e integral pagamento, absolvendo-os do restante pedido;
II – reconhecido o direito de regresso dos Réus CC, DD e EE, que lhes venha a assistir em função do cumprimento sobre os intervenientes FF , GG e II.

Inconformados, interpuseram os RR. CC e os intervenientes, recursos de apelação, que foram admitidos.

Porém, a Relação do Porto veio a proferir acórdão, no qual confirmou a sentença recorrida.

De tal acórdão vieram novamente o R. CC e o interveniente II interpor recursos de revista, recursos que foram admitidos.

O recorrente II apresentou as suas alegações, formulando, em síntese, as seguintes conclusões:

1 – Ressalta dos autos que para além do que consta do documento de fls. 18 a 23 – resposta aos pontos 24º e 25º da base instrutória – nada mais se apurou no decurso da audiência de discussão e julgamento.

2 – Ficamos, pois, circunscritos ao conteúdo do aludido documento para se apurar se o Recorrente II se deverá considerar ou não fiador nos termos da cláusula 5ª do ajuizado contrato.

3 – Entendeu o Tribunal recorrido que a doutrina da impressão do destinatário, temperada por critérios de objectividade interpretativa, que a nossa lei segue, confirma a identificação de alguém como outorgante e obrigado no contrato se, apesar de não estar identificado pelo nome, a possibilidade da respectiva identificação é muito fácil e resulta dos demais termos contratuais e da composição social da Autora“, ou seja, confirmou a decisão de primeira instância que conclui pela assumpção da obrigação de fiador do Recorrente, utilizando, entre outras, as seguintes expressões: “qualidade esta que vem implicitamente por eles assumidas”, “forçoso é concluir” “vem implicitamente expressa (sublinhado nosso) no teor das referidas clausulas 6ª, n.ºs 1 e 6 do contrato de fls. 17 a 23”.

4 – A lei exige que a vontade de prestar fiança seja expressa, ou seja, tem de resultar directamente da declaração do fiador e não de deduções, presunções ou inferências.

5 – O Recorrente não expressou vontade alguma de prestar fiança, uma vez que apenas subscreveu o contrato de fls. 17 a 23 dos autos na qualidade de gerente da Autora.

6 – Os intervenientes FF e GG subscreveram aquele contrato em nome pessoal, e também este último, em representação da Autora, ao contrário do aqui Recorrente que apenas o subscreveu na qualidade de gerente da Autora.

7 – Se tivesse havido vontade de responsabilizar pessoalmente o Recorrente pelo cumprimento do contrato tê-lo-ia este subscrito em nome pessoal, como o fizeram os intervenientes FF e GG.

8 – Um critério objectivo de interpretação sempre levaria a concluir que algo de diferente quiseram as partes ao decidirem obrigar-se outorgando o contrato, FF e GG em seu nome pessoal e este último também em representação da Autora e o aqui Recorrente em representação apenas da Autora.

9 – Pelas supra invocadas razões, a decisão recorrida errou ao considerar que o Recorrente II se obrigou como fiador no contrato de fls. 17 a 23 dos autos.

10 – Violou a douta sentença recorrida os artigos 217º e 628º nº 1 do Código Civil.

E o R. CC remata as suas alegações, com as seguintes conclusões:

1. À conclusão sobre se a prestação a que a A. se arroga o direito tem a natureza de suprimentos ou de prestações suplementares de capital, pode chegar-se pela interpretação do negócio celebrado pelas partes ou pela matéria fáctica apurada no julgamento.

2. Interpretado o conteúdo do contrato dos autos, nada no seu texto ou no seu espírito permite concluir que, afinal, não se trata de prestações suplementares de capital mas sim de suprimentos. Ou seja, a interpretação do negócio não permite concluir ter ocorrido um “error in nomine negotii”.

3. “In casu”, o Tribunal da Relação concluiu pela existência de suprimentos em detrimento das prestações suplementares de capital, não porque interpretou o contrato e o seu conteúdo lhe forneceu todos os elementos factuais nesse sentido, mas sim porque, no seu entendimento, a matéria fáctica apurada em julgamento, revela que, afinal, existiam suprimentos e não prestações suplementares de capital.

4. Não podia o Acórdão recorrido fundamentar tal diferente qualificação com base na resposta dada em primeira instância ao quesito 5º da Base Instrutória, já que, a conclusão da existência de prestações suplementares de capital não tem a sua fonte nessa matéria.

5. O Tribunal de Primeira Instância vem a reconhecer a existência de prestações suplementares de capital, independentemente daquela matéria provada e não provada, porque as mesmas se acham inscritas na escrituração comercial da sociedade, nomeadamente, nos seus Balanços, nos Relatórios de Gestão e na certificação legal de contas.

6. Ora, na esteira da alegação vertida na contestação do aqui recorrente e da fundamentação constante da resposta a tal matéria fáctica, o Tribunal da Relação não podia, sem mais, abalá-la na exacta medida em que, não só desvirtua essa mesma fundamentação, como desvia-se do próprio objecto do processo em que todos os intervenientes (partes e Juiz) centraram a respectiva discussão – as prestações suplementares de capital.

7. O Tribunal da Relação não está obrigado a aceitar a qualificação jurídica e pode considerar suprimentos aquilo que as partes e Juiz consideraram prestações suplementares de capital, desde que contrarie a fundamentação factual que conduziu à conclusão da existência das ditas prestações suplementares de capital.

8. A diferente qualificação jurídica de factos só pode operar-se pelos diferentes elementos do conceito das figuras jurídicas em causa – suprimentos ou prestações suplementares de capital – e não pelo seu regime.

9. Está, assim, vedado ao julgador qualificar juridicamente de forma diferente uma relação jurídica, fundamentando-se, para tanto, na inverificação de pressupostos de forma de uma delas, ou seja, não podia o Acórdão recorrido concluir pela existência de suprimentos, já que o pacto não prevê a realização de prestações suplementares de capital e não houve deliberação nesse sentido.

10. O artigo 211º do CSC regula tão só a exigibilidade aos sócios das prestações de capital, de onde resulta que, estando de acordo os sócios em realizá-las, nada na lei o impede.

11. O Acórdão recorrido não podia concluir que o pacto social da sociedade em causa não contém qualquer cláusula que permita exigir aos sócios a realização de prestações suplementares de capital, quer porque esse pacto não consta dos autos, quer porque a certidão da matrícula da sociedade na Conservatória do Registo Comercial, não espelha todas as cláusulas do pacto social – artigos 8º, 9º e 10º da Portaria nº 657-N2006 de 29/06 – Regulamento do Registo Comercial.

12. A omissão da deliberação para a realização de prestações suplementares de capital – artigo 213º do CSC – não permite a conclusão extraída pelo Acórdão recorrido ao concluir pela existência de suprimentos.

13. O processo não contêm todos os elementos factuais necessários para que a Relação pudesse concluir por uma diferente qualificação, mais a mais quando a conclusão da existência de prestações suplementares de capital não se mostra abalada pelo Acórdão recorrido.

Para a hipótese da existência de prestações suplementares de capital

14. As prestações suplementares de capital são entradas realizáveis em dinheiro pelos sócios de sociedades comerciais por quotas, para reforço do património desta, além do montante de capital social, não vencendo juros e podendo ser-lhes eventualmente restituídas.

15. A realização de prestações suplementares de capital não confere ao sócio que as realizou um direito de crédito sobre a sociedade mas um direito a uma eventual restituição

16. Pela sua própria natureza, a obrigação de realização de prestações suplementares de capital (e consequentemente a sua restituição) está intrinsecamente ligada à qualidade de sócio.

17. Nos termos do disposto no artº 577º (última parte) do Código Civil não é permitida a cessão de créditos quando estes, pela própria natureza da prestação, estejam ligados à pessoa do credor.

18. O contrato de cessão de prestações suplementares de capital dos autos foi celebrado entre sócios (cedentes) por um lado e um terceiro, a autora (cessionária), por outro, pelo que o mesmo é nulo.

19. Seja como for, o contrato que postule a cessão de obrigações de prestações suplementares, seja antes da efectivação (212º/4 do CSC), seja depois (577º/1, do Código Civil), é nulo, por impossibilidade jurídica.

20. O Tribunal não deu como provado que os anteriores sócios hajam, efectivamente, entregue à sociedade determinadas quantias a título de prestações suplementares de capital.

21. Não incumbia aos RR. fazer a prova de que as quantias não foram entregues à sociedade mas sim à Autora sobre quem recaía, pois, o ónus de provar que foram entregues essas mesmas quantias.

22. Tal como o suprimento, a realização de prestações suplementares de capital são obrigações “quod constitutionem” pelo que, além dos requisitos comuns a todos os contratos, acresce outro que consiste na transferência da posse, na entrega da coisa, de tal forma que sem esta entrega (datio rei) a convenção não produz efeitos, ou seja, a entrega não é execução do acordo, é seu elemento integrante.

23. Assim, para o sócio invocar a titularidade de prestações suplementares de capital, não basta a invocação da sua previsão no pacto social e a deliberação correspondente e nem mesmo a chamada da sociedade para a sua realização. É ainda necessário que o sócio efectivamente entregue à sociedade tal quantia a título de prestação suplementar de capital.

24. Tratando-se de um elemento integrador do direito, atenta a natureza “quod constitutionem”, cabe a quem o invoca (a autora) provar todos os seus elementos, entre eles, que entregou tal quantia à sociedade – Isso mesmo é o que resulta do disposto no artigo 342º nº 1 do Código Civil.

25. Na medida em que a Autora não provou a entrega das quantias a título de prestações suplementares, a pretensão tinha que decair por falecer um elemento constitutivo do direito invocado à restituição das mesmas.

26. O artigo 213º do CSC prescreve que a restituição aos sócios de prestações suplementares de capital só é possível se existir uma deliberação nesse sentido, a situação líquida não ficar inferior à soma do capital e da reserva legal, o sócio que pretende a restituição tenha liberado a sua quota e a sociedade não tenha sido declarada insolvente.

27. A sentença recorrida dá como provado que ocorreu uma reunião de assembleia-geral com o objectivo de deliberar a restituição das prestações suplementares de capital e, como tal, erradamente, deu por verificado o requisito exigido pelo artigo 213º do CSC.

28. O facto assim apurado, ou seja, de que se realizou uma assembleia-geral para...é manifestamente insuficiente e, por isso, irrelevante, para o direito aplicado já que não se apurou que dessa reunião tivesse surgido a deliberação de restituição de prestações suplementares de capital, pelo que nessa parte confundiu-se o “procedimento deliberativo” com a “deliberação” propriamente dita.

29. Mas o Tribunal dá como provado tal facto, fundando-se no teor do documento de fls. 232 – a acta nº 18 –, conjugado com os depoimentos prestados por JJ e LL que confirmaram a realização da assembleia geral da BB- N... a que se reporta aquela acta.

30. O documento junto aos autos a fls. 232 é uma mera fotocópia, não de uma acta mas de uma minuta de acta, à qual sempre faltaria o elemento essencial da assinatura dos intervenientes, nos termos do disposto no artigo no artº 248º nº 6 do C.S.C.

31. Por outro lado, nos termos do disposto no artigo o artº 63º nº 1 do C.S.C. as deliberações dos sócios só podem ser provadas pelas actas das assembleias;

32. Nos termos do disposto no artigo 213º nº 1 do CSC, a restituição de prestações suplementares de capital só é possível, desde que a situação líquida não fique inferior à soma do capital e da reserva legal e o respectivo sócio haja liberado a sua quota.

33. A referida norma tem a sua ratio na protecção dos credores sociais, impede-se a descapitalização da sociedade pelos sócios em ordem a garantir a intangibilidade do capital social, protegendo, assim, os credores.

34. Os pressupostos legais de que depende a restituição das prestações suplementares de capital – a) A qualidade de sócio; b) A efectiva entrega à sociedade da quantia a esse título; c) A existência de uma deliberação de restituição; d) Não ficar a situação líquida da sociedade inferior à soma do capital e da reserva legal; e) O sócio ter liberado a sua quota – são os elementos constitutivos do direito em análise e neles radica a sua causa.

35. Assim, nos termos do disposto no artigo 342º do Código Civil, incumbia à autora a alegação e prova dos referidos elementos constitutivos ou integradores do seu direito. Não alegando, nem provando tais factos, a pretensão tinha de cair.

Para a hipótese da existência de suprimentos:

36. Aderindo à tese do Acórdão recorrido de negação das prestações suplementares de capital, considerando as entregas efectuadas verdadeiros suprimentos, o que não se concebe nem concede e só se admite como mera hipótese académica, ainda assim a acção devia improceder.

37. A fonte da condenação do aqui recorrente CC é a fiança por este prestada num contrato complexo de promessa de cessão de quotas e de cedência a terceiros de prestações suplementares de capital, cujo conteúdo (cláusula 5ª), se refere à existência de prestações suplementares de capital e não de suprimentos. O aqui CC prestou uma fiança, garantindo a restituição de prestações suplementares de capital.

38. Sendo a fiança um negócio de risco, determina a necessidade de a declaração tendente à prestação da fiança dever ser interpretada de forma estrita. Na dúvida sobre o sentido da declaração, não será directamente relevante o critério do artigo 237º do Código Civil mas, antes, o critério do carácter menos gravoso para o declarante.

39. Uma vez firmado que a garantia em causa é uma fiança, as dúvidas (internas) que poderão surgir na interpretação da declaração deverão, de acordo com o mesmo critério, ser resolvidas pelo princípio: “in dubio pro fideiussore”.

40. Atento tal critério interpretativo não é legítimo afirmar ou concluir que é idêntica a posição do aqui recorrente, na sua qualidade de fiador, quer haja prestado uma fiança em garantia da restituição de prestações suplementares, quer em garantia do pagamento de suprimentos.

41. São diferentes as posições, na medida em que o risco assumido pela constituição de uma fiança em garantia do pagamento de suprimentos é largamente superior ao da fiança em garantia da restituição de prestações suplementares de capital.

Exceptio de non adimpleti contractus

42. Nada a opor ao douto entendimento vertido na sentença recorrida quanto à ocorrência, in casu, da exceptio de non adimpleti contractus – artigo 428º do Código Civil – solução que é plenamente aplicável aos contratos complexos, como o dos autos.

43. Depois de reconhecer aos RR a excepção do não cumprimento do contrato não podia a sentença proceder à compensação dos respectivos créditos já que a frustração de algum dos aspectos em presença no contrato, só por si, desequilibra o todo.

44. A proporcionalidade no exercício da excepção do não cumprimento não é meramente quantitativa ou matemática, havendo que interpretar a relação jurídica em causa para aferir se a excepção do não cumprimento do contrato pode ser aposta de forma integral.

45. Sendo o contrato dos autos complexo, do mesmo resulta a essencialidade para as partes do cumprimento das diversas obrigações contratuais aí assumidas.

46. A complexidade do negócio deriva ainda do facto de o incumprimento de uma obrigação de valor reduzido poder inquinar o cumprimento da obrigação de grande valor da contraparte, ou seja, o não pagamento do passivo da BB- N... (por muito reduzido que pudesse ser) tem a potência de impossibilitar o normal desenvolvimento dos negócios sociais e, consequentemente, impedir a formação de riqueza ou liquidez que possibilite a restituição de prestações suplementares de capital.

47. O contrato dos autos “é unitário, pelo que o incumprimento de alguma das obrigações nele assumidas determina o incumprimento das restantes” – cláusula 12ª, nº 2.

Da Fiança

48. O disposto no artigo 428.º nº 1 do Código Civil tem em vista regular uma situação de crise contratual conferindo a uma parte a faculdade de não cumprir a sua obrigação enquanto a outra não cumprir a sua, pelo que tal normativo não tem natureza imperativa, nada impedindo que as partes regulamentem, por via contratual, as consequências do seu incumprimento.

49.º Tendo o recorrente sido demandado na qualidade de fiador, a sua obrigação é acessória, pelo que a fiança não é válida se o não for a obrigação principal (632º/1); a fiança segue a forma de obrigação principal (628º/1); o âmbito da fiança é limitado pelo da obrigação principal (631º/1); a natureza comercial ou civil da fiança depende da natureza da obrigação principal; a fiança extingue-se com o termo da obrigação principal (651º);

50. Assim, não pode ser exigida qualquer prestação aos fiadores enquanto não surgir a obrigação principal e, além disso, a garantia pressuposta pela fiança não pode ir além nem da estrutura básica da prestação principal, nem do seu âmbito.

Sem prescindir: Do quantum condenatório

51. Por último e sempre sem prescindir, mesmo falecendo toda a argumentação supra e no seguimento do Acórdão recorrido, sempre a sentença de primeira instância teria de ser revogada parcialmente.

52. Se correcto for que, como diz o acórdão recorrido, “o quantum encontrado na decisão resulta da resposta ao quesito 5°, segundo o qual “em 17 de Setembro de 1993, os então sócios da BB- N... FF, GG e MM emprestaram à BB- N... a importância global de 78.287.634$00”, então, deduzido que seja o pagamento de 8.000.000$00 e o contra-crédito de 78.287.634$00, a condenação do aqui Recorrente não pode ultrapassar 228.788,39 euros.

53. A douta sentença e o Acórdão recorrido violaram, entre outras, as normas dos artigos 63º, 210º, 211º, 213º, 248º nº 6 do Código das Sociedades Comerciais, artigos 342º, 428º e 577º do Código Civil.


Houve contralegações apresentadas pelo interveniente recorrente.

Colhidos os vistos cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A) De Facto

A. Em 31/12/1995, eram sócios da AA- S... – Sociedade de Construções F..., L.da FF , GG e II, respectivamente titulares de quotas de Esc. 120.000.000$00, Esc. 120.000.000$00 e Esc. 260.000.000$00 (cfr. doc. 1, junto com a contestação de fls. 87).
B. Por seu turno, em 31/12/1995, eram únicos sócios da BB- Fábrica de Calçado N... FF , GG e HH, sendo titulares de três quotas, ada uma no valor de Esc. 20.000.000$00.
C. Em 31/12/1995, FF (1.º outorgante), GG (2.º outorgante), HH (3.º outorgante), AA- S... – Sociedade de Construções F... (4.º outorgante), CC (5.º outorgante), EE (6.º outorgante) e DD (7.º outorgante), celebraram o acordo que constitui doc. 2, junto com a p.i..
D. Na cláusula 2.ª, 1.º do referido acordo, convencionou-se que, pelo referido contrato, os referidos FF , GG e HH obrigaram-se a ceder as seguintes fracções do capital da BB- N...:
– à AA-S... – Sociedade de Construções de F..., L.da, uma quota no valor de Esc. 18.000.000$00;
– a CC, uma quota no valor de Esc. 18.000.000$00;
– a EE, uma quota no valor de Esc. 12.000.000$00;
– a DD, uma quota no valor de Esc. 12.000.000$00;
D. Na cláusula 5ª, 1º do referido acordo, consignou-se que AA-S... – Sociedade de Construções, F..., CC, EE e DD, na qualidade de 4.º, 5.º, 6.º e 7.º outorgantes, tinham conhecimento e aceitavam que os referidos FF , GG e HH (1º, 2º e 3º outorgantes) eram titulares de prestações suplementares do capital da BB- N..., no montante de Esc. 96.000.000$00.
E. No ponto 2º, da mesma clausula 5ª, consignou-se que os mesmos 4.º, 5.º, 6.º e 7.º outorgantes tinham conhecimento e aceitavam que os 1.º, 2.º e 3.º outorgantes cedam à AA-S... – Sociedade de Construções, L.da, as referidas prestações suplementares de capital na sua totalidade.
F. Mais se convencionou que os 4.º, 5.º, 6.º e 7.º outorgantes se obrigavam a reunir e deliberar em assembleia-geral da BB- N... o reembolso das prestações suplementares de capital, no montante de Esc. 96.000.000$00, em 24 prestações mensais iguais e sucessivas de Esc. 4.000.000$00 cada uma, vencendo-se a primeira no dia 30 de Abril de 1996 e as restantes no último dia de cada um dos meses subsequentes – ponto 3.º, cláusula 5.ª do acordo que constituiu doc. 2, junto com a p.i.
G. Convencionou-se ainda que os referidos CC, EE e DD, na qualidade de 5.º, 6.º e 7.º outorgantes e os sócios da sociedade AA-S..., individualmente considerados, garantem pessoal e solidariamente como fiadores e principais pagadores o pagamento à AA-S... das prestações suplementares do capital da BB- N..., renunciando ao benefício da excussão prévia – ponto 4.º, cláusula 5.ª do acordo que constitui doc. 2, junto com a p.i.
H. No mesmo acordo, convencionou-se, ainda que FF, GG e II, por si ou através da AA-S..., serão os únicos responsáveis por todo e qualquer passivo da BB- N..., seja de natureza comercial ou fiscal, desde que contraído até 31/12/95, inclusive – ponto 6.º, cláusula 6.ª.
I. Ainda no mesmo acordo, CC, EE e DD, na qualidade de 5.º, 6.º e 7.º outorgantes, conjuntamente com a AA-S... (4.º outorgantes), na qualidade de futuros sócios da BB- N... obrigam-se a transmitir à AA-S... a posição contratual da BB- N... no contrato de locação financeira imobiliária celebrado com a NN-L... – Companhia Financeira Imobiliária, celebrada por escritura pública de ... de Junho de 19..., outorgada no ....º Cartório Notarial do P... J. Finalmente, no mesmo acordo, consignou-se que a gerência da BB- Fábrica de Calçado N..., L.da, competiria aos sócios CC, EE, DD e II e que para obrigar a sociedade em todos os actos e contratos é necessária a assinatura composta de dois gerentes, uma das quais terá obrigatoriamente de ser a do gerente II ou do gerente CC – cfr. cláusula 3.ª do mencionado acordo que constitui doc. 1, junto com a p.i.
K. Em 11 de Janeiro de 1996, os referidos FF , GG e HH, AA-S... – Sociedade de Construções de F..., L.da e BB- Fábrica de Calçado N..., L.da, celebraram o acordo que denominaram de «contrato de cessão de prestações suplementares de capital», que constitui doc. 3 junto com a p.i., cujo conteúdo aqui se dá por inteiramente reproduzido.
L. A Ré BB- Fábrica de Calçado N..., L.da pagou à Autora as duas primeiras prestações de Esc. 4.000.000$00 cada uma, correspondente ao reembolso das citadas prestações suplementares de capital, vencidas em Abril e Maio de 1996.
M. A AA-S... e os referidos FF, GG e II, apesar de interpelados, não pagaram férias e subsídio de férias do pessoal da BB- N... referentes ao trabalho prestado no ano de 1995, no montante de 15.990.290$00 – resposta ao ponto 1.º da base instrutória.
N. A AA-S... e os referidos FF, GG e II não pagaram:
– IRC, relativo ao ano de 1990 e custas do processo de execução instaurado contra a BB- N... para cobrança coerciva deste imposto, no valor global de 3.692.072$00;
– IVA, relativo ao ano de 1990 e custas do processo instaurado contra a BB- N... para cobrança coerciva deste imposto, no valor global de 822.149$00; e
– IVA, relativo ao ano de 1991 e juros compensatórios referente ao capital deste imposto, no valor global de 3.915.161$00 – resposta ao ponto 1.º da base instrutória.
O. Em 17 de Setembro de 1993, os então sócios da BB- N... FF, GG e MM emprestaram à BB- N... a importância global de 78.287.634$00 – resposta ao ponto 5.º da base instrutória.
P. Tais empréstimos mostram-se documentados através de um talão de depósito daquele valor na conta n.º ---.---, de que a BB- N... era titular, no Banco Totta & Açores de F..., do qual constava um cheque do valor acima referido – resposta ao ponto 6.º da base instrutória.
Q. No dia 17 de Setembro de 1993, a BB- N... emitiu sete cheques daquela mesma conta, a favor dos bancos B.T.A, B.E.S.C.L, B.P.A, B.N.U. e B.C.P, cujos valores somados ascendem àquela mesma quantia a fim dos mesmos serem depositados na conta da AA-S... aberta junto daquelas instituições bancárias, tendo tais cheques sido depositados efectivamente nessas contas – resposta ao ponto 7.º da base instrutória.
R. À data de 17 de Setembro de 1993, a BB- N... não devia tais valores aos bancos a favor de quem foram emitidos os aludidos cheques – resposta ao ponto 9.º da base instrutória.
S. No dia 12 de Janeiro de 1996, foi realizada assembleia-geral da BB- N... para deliberar sobre a restituição das prestações suplementares – resposta ao ponto 21.º da base instrutória.
T. O que consta do documento junto aos autos a fls. 18 a 23 – resposta aos pontos 24.º e 25.º da base instrutória.

B) De Direito

1. Os recorrentes suscitam as seguintes questões:

a) – saber se o tribunal recorrido podia ter entendido que as prestações suplementares constantes dos acordos devem ser entendidas como suprimentos;
b) – saber se a aplicação ao caso da “exceptio non adimpleti contractus”, como efectuado na sentença recorrida, impedia o recurso simultâneo à compensação de créditos;
c) – saber se os recorrentes se vincularam a prestar fiança e obrigações dela decorrentes, no caso afirmativo;
d) – do quantum indemnizatório

2. É pelas conclusões que os recorrentes formulam no seu recurso, que se delimita o objecto do mesmo, art.os 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

De qualquer modo não se poderá perder de vista que o recurso não se destina a apreciar questões novas, mas antes a impugnar decisões proferidas anteriormente, como é jurisprudência uniforme deste tribunal e, resulta, de resto, dos artigos 676.º, 680.º, n.º 1, e 690.º do Código de Processo Civil.

3. Quanto à primeira questão, acompanhamos a posição da Relação.

O acórdão manteve o decidido pela 1.ª instância que condenou os RR. à restituição de uma determinada quantia à sociedade A, correspondente ao montante constante da resposta ao quesito 5.º, segundo a qual “em 17 de Setembro de 1993, os então sócios da BB- N... FF, GG e MM emprestaram à BB- N... a importância global de 78.287.634$00”, deduzido de um contra-crédito de que a Ré BB- N... seria titular em relação àquela de Esc. 24.419.672$00.

O quesito em questão afirma que, factualmente, os sócios da BB- N... emprestaram a esta a referida quantia, o que no instrumento escrito que funda a pretensão da Autora, foi referido como “prestações suplementares de capital”.

Tem sido discutida a natureza jurídica das prestações suplementares.

E aceita-se geralmente que elas não se confundem com o que na prática se chama de suprimentos, pois que o regime jurídico, destes é diferente do das prestações suplementares.

Estas são, no dizer de PINTO FURTADO, um implemento do património social, ou, mais propriamente, elas são suprimentos com regime especial (Código Comercial, Das Sociedades em Especial, Almedina, Coimbra, vol. II, tomo II, pp. 758 e 759).

As prestações suplementares de capital constituem “uma figura híbrida que, apesar de apresentar elementos análogos aos que integram o aumento de capital ou os suprimentos, contudo, não se identificam com qualquer deles. Assim, as prestações suplementares, embora façam parte do património da sociedade não se integram no seu capital, pelo que não constituem conceito daquele” (BRÁS TEIXEIRA, “Notas sobre Imposto de Capitais”, in Ciência e Técnica Fiscal, 1969 125º/136, cit. in ABÍLIO NETO, Código das Sociedades Comerciais, 2.ª edição p. 464.

Justificam-se pelas razões concorrentes de nem sempre haver possibilidade de prever qual o capital necessário para o desenvolvimento dos negócios sociais e também pelo facto de, não constituindo aumento de capital, serem a ele equivalentes, dispensando o cumprimento de formalidades legais e despesas (GONÇALVES DA SILVA E ESTEVES PEREIRA, Contabilidade das Sociedades, 1987, p. 105, cit. in ABÍLIO NETO, op. cit., p. 464).

As prestações suplementares são sempre em dinheiro e não vencem juros. Por essa razão e pelo respectivo regime designam-se habitualmente como “quase capital” (PAULO OLAVO CUNHA, Direito das Sociedades Comerciais, Almedina, Coimbra, 3.ª edição, p. 440).

Os suprimentos "tout court" são, em contrapartida, considerados uniformemente pela jurisprudência como verdadeiros empréstimos ou mútuos feitos à sociedade, ou são, pelo menos, negócios jurídicos a eles equiparáveis, a que são aplicáveis as regras respectivas.

De maneira geral, pode dizer-se, até, que quase todos os contratos da sociedade permitem que os sócios façam suprimentos, que são normalmente as importâncias complementares que eles fornecem quando o capital é insuficiente para as despesas da exploração – v. acórdão deste Supremo de 18 de Maio de 1962, no BMJ n.º 117, p. 429.

Os suprimentos propriamente ditos, a que são aplicáveis as regras do mútuo, não estão sujeitos ao regime mais apertado das prestações suplementares.

As prestações suplementares de capital, tal como se encontram reguladas nos artigos 210.º a 213.º do Código das Sociedades Comerciais (doravante, CSC), implicam a verificação de diversos requisitos imperativos, que se entendeu não reunidos na situação em análise.

Assim, desde logo deve estar previsto no contrato social a eventualidade de as prestações virem a ser exigidas, mediante deliberação dos sócios e estabelecido o seu montante máximo – art.os 210.º, n.os 1, 3, al. a) e 4 e 211.º, n.º 1, CSC.

Ora, o contrato de sociedade da BB- N..., tal como consta dos autos, basicamente da respectiva transcrição no registo comercial, não prevê a fixação futura de prestações suplementares de capital e nenhuma prova foi feita de sentido contrário.

Também não se mostra demonstrado nos autos ter havido qualquer deliberação a obrigar os sócios a efectivarem prestações suplementares, a qual não foi alegada pelas partes, nem resulta dos factos provados.

Seja, porém, como for, a verdade é que as partes gozavam, quando constituíram a sociedade e celebraram o respectivo pacto social, de inteira liberdade de iniciativa.

Eles podiam, a tal respeito, estabelecer o que bem entendessem quanto às prestações suplementares e aos suprimentos a efectuar, eventualmente, pelos sócios.

Desta forma, aquilo a que as partes chamaram “prestações suplementares de capital”, quer no processo, quer nos negócios jurídicos que as vincularam, deve antes ser interpretado apertis verbis como “empréstimos” dos sócios à sociedade BB- N..., como decorre da resposta ao quesito 5.º.

Esta interpretação decorre da alegação das partes e é assim abertamente possibilitada ao tribunal, nos termos do artigo 664.º do C.P.Civ.

Encontramo-nos pois perante um contrato de suprimento, na acepção do art.º 243.º, n.os 1 e 3, do CSC – considera-se contrato de suprimento o contrato pelo qual o sócio empresta dinheiro à sociedade, ou outra coisa fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade (…).

A tal contrato se aplica o disposto nos artigos 244.º e 209.º do mesmo código que, de seguida se transcrevem, nas partes relevantes.

Dispõe o artigo 244.º, que tem como epígrafe “Obrigação e permissão de suprimentos”:

“1. À obrigação de efectuar suprimentos estipulada no contrato de sociedade aplica-se o disposto no artigo 209.º quanto a obrigações acessórias.

2. A referida obrigação pode também ser constituída por deliberação dos sócios votada por aqueles que a assumam.

3. A celebração de contratos de suprimentos não depende de prévia deliberação dos sócios, salvo disposição contratual em contrário.”

E o artigo 209.º estabelece, além do mais, no seu n.º 1, que “[o] contrato de sociedade pode impor a todos ou a alguns sócios a obrigação de efectuarem prestações além das entradas, desde que fixe os elementos essenciais desta obrigação e especifique se as prestações devem ser efectuadas onerosa ou gratuitamente.”

Da análise do artigo 244.º citado se extrai que a obrigação de suprimentos pode decorrer de qualquer situação nele contemplada, ou por deliberação dos sócios, ou por derivar do contrato social, sendo, neste caso, vinculativa desde que neste contrato estejam determinados os elementos essenciais dessa obrigação – sua duração, momento do seu cumprimento, etc. – e bem assim o carácter oneroso ou gratuito desse empréstimo.

“Quer porque o contrato de suprimento pode ser livremente estabelecido entre o sócio e a sociedade, representada pela gerência (art. 243º, n.º 1 do CSC), quer porque a correspondente obrigação pode resultar de deliberação dos sócios, a qual apenas vincula aqueles que a hajam assumido (n.º 2 deste art. 244º), será pouco relevante prever no contrato de sociedade a obrigação de efectuar suprimentos, salvo se, se pretender torná-la extensiva a todos os sócios, independentemente de flutuações futuras da vontade dos mesmos.

Todavia, prevista essa obrigação no contrato de sociedade deverá ficar consignado quem é que fica obrigado, serem fixados os elementos essenciais da obrigação e especificar-se ainda se os suprimentos são onerosos ou gratuitos (n.º 1 do art. 244º)” – ABÍLIO NETO, in Código das Sociedades Comerciais, 2.ª edição, Ediforum, Lisboa, nota 4 ao art.º 244.º.

“Não seria válida, para olhar o caso extremo, a cláusula do contrato de sociedade pela qual os sócios se obrigassem a “efectuar prestações acessórias (...)“ (vide comentário ao artigo 209.º, RAÚL VENTURA, Sociedade por quotas, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, vol. I, Coimbra, Almedina, 4.ª reimpressão, pp. 213 a 215).

Com efeito, como diz o mesmo autor “é indispensável que o sócio conheça (...) o objecto da sua obrigação nos aspectos essenciais da espécie, qualidade e quantidade”, pelo que “as cláusulas que não fixem o conteúdo da obrigação acessória com a certeza exigível são nulas por violação de preceito legal imperativo”.

Distinguindo os vícios de que padecem as deliberações, refere MENEZES CORDEIRO que “a nulidade das deliberações sociais ocorre sempre que elas defrontem normas jurídicas injuntivas (...) haverá anulabilidade quando as normas atingidas sejam dispositivas ou supletivas” (SA: Assembleia Geral e Deliberações Sociais, Almedina, Coimbra, 2007, p. 201)

Atendendo ao acabado de expor, não há elementos para afastar, no caso, a validade da obrigação de prestação de suprimentos.

De todo o modo, mesmo que se não esteja perante verdadeiros suprimentos, impõe-se que se passe a raciocinar, relativamente à pretensão dos recorrentes segundo os pressupostos do contrato de suprimento, tendo em conta a cessão do crédito convencionada (a forma por que o foi) e a posição de fiadores dos RR.


4. Como já se disse anteriormente, os suprimentos tout court são considerados uniformemente pela doutrina verdadeiros empréstimos ou mútuos feitos à sociedade, ou negócios jurídicos a eles equiparáveis, regendo-se por semelhantes normas jurídicas – vide Ac. STJ de 6.1.92, BMJ 413/565 – mas constituem desde 1986 um contrato regulado na lei – artigos 243.º a 245.º do CSC (cabe dizer que também parte significativa da doutrina se afasta do entendimento de que o suprimento é um contrato real quoad constitutionem).
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Não há dúvida de que existiu esse empréstimo, dado o que consta das respostas aos quesitos 5.º a 7.º e que tal empréstimo foi efectuado pelos sócios ao tempo.

Resulta dos nos n.os 1, 2 e 3 do art.º 243.º do CSC. o carácter de permanência que os suprimentos devem ter e que não podem determinar o seu reembolso em quaisquer circunstâncias.

Se não for estipulado prazo para o reembolso e, não havendo acordo entre a sociedade e o sócio haverá que proceder à respectiva fixação judicial – artigos 245.º do CSC e 707.º n.º 2 do CC – em processo de jurisdição voluntária, devendo o tribunal ter em conta as consequências que o reembolso acarretará para a sociedade (PAULO OLAVO CUNHA, ob. cit, p. 436)

Do que se deixa dito já decorre (cf. RAUL VENTURA, Sociedades por Quotas, Almedina, Coimbra, II/139 e 140), que o disposto no art.º 777.º, n.º 1, não se aplica neste caso, ou seja, não pode o sócio, a todo o tempo, exigir a restituição imediata do suprimento.

A sociedade pode, porém, a todo o tempo, aceder ao pedido de reembolso que os sócios formulem, aparentemente sem necessidade de deliberação destes, não existindo quanto aos suprimentos uma disposição similar à do art.º 246.º n.º1 do CSC, para a restituição de prestações suplementares.

Ponto é que na restituição dos suprimentos não se desacautele o interesse social e a igualdade do tratamento dos accionistas.

Desta forma, aplicando-se ao contrato de suprimento as regras do mútuo, de forma alguma entendemos que o respectivo regime e execução se encontrem sujeitos a um regime idêntico ou mais exigente, que o previsto para as prestações suplementares (veja-se mutatis mutandis o Ac. STJ de 6.1.92 BMJ. 413/561 a 565).

De resto, é a própria lei que prevê que a celebração de contratos de suprimento, em todo o seu regime, caia no âmbito dos poderes de gerência – art.º 244.º, n.º 3, CSC.

Quanto à cessão dos créditos resultantes de um contrato de suprimento, aplica-se-lhe o regime jurídico previsto nos artigos 577.º a 588.º do CC.

Em função do n.º 1 do art.º 577, salvaguardados os casos em que a cessão de créditos seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligada à pessoa do credor (o que não ocorre no caso vertente), o credor pode ceder a terceiros uma parte ou a totalidade do crédito, sem o consentimento do devedor, mas a cessão só produz efeito, relativamente ao devedor desde que lhe seja notificada, mesmo que extrajudicialmente ou desde que ele a aceite (n.º 1 do art.º 583.º), de onde decorre que a notificação da cessão de créditos ao devedor ou a sua aceitação pelo último não é requisito de validade da cessão de créditos mas apenas requisito de oponibilidade da cessão ao devedor – Vide RAÚL VENTURA, RDES, 25, 270.

Assim ALEXANDRE MOTA PINTO, Do Contrato de Suprimento, p. 286, cit. in Ac. RL. de 13.9.07 CJ, tomo IV, p. 87 afirma: “o crédito de suprimento é cindível da participação social, pelo que se pode transmitir o crédito sem transmitir a quota, ou as acções, e vice-versa…A cessão do crédito a um terceiro poderá constituir uma forma de o sócio realizar o seu valor económico sem ter de esperar pelo reembolso… Esta cessão de crédito de suprimento não carece do consentimento da sociedade devedora…Parece-nos que o crédito cedido – em relação ao qual se verifica uma sucessão –, deve continuar sujeito ao regime legal de suprimento, antes de mais porque se mantém o interesse fundamental da sociedade, tutelado por aquela figura…Se o cessionário pudesse exigir o imediato reembolso dos suprimentos, a sociedade poderia deparar-se com sérias dificuldades”.

Logo, também nada a apontar à cessão efectuada.

5. Quanto à eventual contradição entre a verificação da exceptio non adimpleti contractus e a compensação declarada em 1.ª instância.

Os Réus invocam as excepções do não cumprimento e da compensação.

A excepção de não cumprimento do contrato encontra-se regulada no art. 428.º, n.º 1, do Cód. Civil, onde se estatui que “se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo”.

O normativo em causa consagra uma faculdade atribuída a qualquer das partes, denominada excepção de não cumprimento do contrato, que se traduz num dos traços fundamentais do regime dos contratos bilaterais e constitui um simples corolário do sinalagma funcional.

Nos contratos sinalagmáticos, a lei permite a qualquer dos contraentes recusar a realização da sua prestação, enquanto não ocorrer a prévia realização da prestação da contraparte, ou a oferta do seu cumprimento simultâneo. É assim, lícita, neste caso, a recusa de cumprimento, o que impede a aplicação do regime da mora (artigo 804.º e ss.) e, naturalmente, o do incumprimento definitivo (artigo 808.º), mesmo que tenha havido interpelação da outra parte. Se as duas obrigações forem puras, a excepção do não cumprimento é, assim, sempre invocável, nem sequer podendo ser afastada mediante a prestação de garantias (artigo 428.º, n.º 2).

A exceptio non adimpleti contractus constitui uma excepção dilatória de direito material, cujo objectivo e funcionamento se ligam ao equilíbrio das prestações contratuais, valendo, como se disse, no contexto de contratos bilaterais, quer haja incumprimento, ou cumprimento defeituoso.

“São pressupostos da excepção de não cumprimento do contrato: existência de um contrato bilateral, não cumprimento ou não oferecimento do cumprimento simultâneo da contraprestação; não contrariedade à boa-fé” – cf. JOSÉ JOÃO ABRANTES, A Excepção de Não Cumprimento do Contrato no Direito Civil Português, Almedina, Coimbra, 1986, pp. 39 e ss.

Aparentemente, a exceptio só funcionaria quando ambas as partes fossem obrigadas a cumprir, simultaneamente, as obrigações emergentes do sinalagma contratual.
******
Contudo não é esse o entendimento mais correcto do regime do art.º 428.º, n.º 1, do Código Civil, na perspectiva de VAZ SERRA, in RLJ, Ano 105.º, p. 238 (...):

“A fórmula legal não é inteiramente rigorosa, pois o que a excepção supõe é que um dos contraentes não esteja obrigado, pela lei ou pelo contrato, a cumprir a sua obrigação antes do outro; se não o estiver pode ele, sendo-lhe exigida a prestação, recusá-la, enquanto não for efectuada a contraprestação... Por conseguinte, a excepção pode ser oposta ainda que haja vencimentos diferentes...apenas não podendo ser oposta pelo contraente que devia cumprir primeiro...(nota 2)”.

Na estipulação de prazos diferentes de cumprimento é, pois, o contraente obrigado a cumprir em segundo lugar quem pode opor a excepção.

O art. 429.º do Código Civil faz, no entanto, excepção a esta regra, estatuindo:

“Ainda que esteja obrigado a cumprir em primeiro lugar, tem o contraente a faculdade de recusar a respectiva prestação enquanto o outro não cumprir ou não der garantias de cumprimento, se, posteriormente ao contrato, se verificar alguma das circunstâncias que importam a perda do beneficio do prazo.”

Como ensinam PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, p. 406:

“A exceptio não funciona como uma sanção, mas apenas como um processo lógico de assegurar, mediante o cumprimento simultâneo, o equilíbrio em que assenta o esquema do contrato bilateral. Por isso ela vigora, não só quando a outra parte não efectua a sua prestação porque não quer, mas também quando ela a não realiza ou a não oferece porque não pode (cf., quanto ao caso de falência de um dos contraentes, o disposto no art. 1196.º do Cód. Proc. Civil).

E vale tanto para o caso de falta integral do cumprimento, como para o de cumprimento parcial ou defeituoso, desde que a sua invocação não contrarie o princípio geral da boa fé consagrado nos artigos 227.º e 762.º, n.º 2, (vide, a este respeito, na Rev. de Leg. e de Jur., Ano 119.º, pp. 137 e segs., o Acórdão do STJ, de 11 de Dezembro de 1984, com anotação de ALMEIDA COSTA).”

Este instituto opera, mesmo no caso de incumprimento parcial ou de cumprimento defeituoso, sem se perder de vista, no entanto, o princípio da boa fé (artigo 762.º, n.º 2, do C.Civil). Daí resulta a exigência de uma apreciação da gravidade da falta, que não pode mostrar-se insignificante, bem como se impõe a regra da adequação ou proporcionalidade entre a ofensa do direito do excipiente e o exercício da excepção.

A justificação dada para o direito de não cumprimento do contrato é a manutenção do equilíbrio do contrato, deste modo se pondo em evidência as regras da boa fé que, sempre e desde o início, deve acompanhar as várias facetas da sua concretização.

Por conseguinte, a exceptio non adimpleti contractus traduz a concretização de um elementar princípio de justiça que se exprime em que ninguém deve ser compelido a cumprir deveres contratuais, enquanto o outro não cumprir os seus já vencidos.

Consequência da interdependência e reciprocidade das obrigações emergentes de contratos sinalagmáticos, a exceptio non adimpleti contractus desempenha, assim a dupla função de meio de garantia e de meio de pressão – função cumulativa, embora consoante as circunstâncias, possa haver preponderância de uma, a coercitiva, se o devedor inadimplente é claramente solvente, ou da outra, a de garantia, se o devedor é insolvente (CALVÃO DA SILVA, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2.ª edição, pp. 337-338).

“Aplicando estes princípios ao exercício e actuação da excepção de inadimplência, considera GIOVANNI PERSICO (“L’ eccezione di inadempimento”, págs. 141), em formulação que JOSÉ JOÃO ABRANTES considera correcta e adequada ao sistema jurídico português, que, para que tal “exceptio” não seja julgada contrária à boa fé, deverá haver uma tripla relação entre o incumprimento do outro contraente e a recusa de cumprir por parte do excipiente: relação de sucessão, de causalidade e de proporcionalidade entre uma e outra.

Por força da aludida relação de sucessão, não pode recusar a sua prestação, invocando a “exceptio”, o contraente que foi o primeiro a cair numa situação de incumprimento: a recusa de cumprir do excipiente deve ser posterior à inexecução da obrigação da contraparte, deve seguir-se-lhe e não precedê-la.

E, segundo a referida relação de causalidade, deverá haver um nexo de causalidade ou de interdependência causal entre o incumprimento da outra parte e a suspensão da prestação do excipiente: esta deve ter unicamente por causa tal incumprimento, deve surgir como sua consequência imediata.

Ou seja, a “exceptio” deve ser alegada, tendo em vista compelir à execução da obrigação do outro contraente: se o comportamento objectivamente manifestado pelo excipiente indicia não ser esse efectivamente o motivo da sua recusa em prestar, então a excepção é ilegítima.

Finalmente (nesta perspectiva), pelo princípio da equivalência ou proporcionalidade das inexecuções, a recusa do excipiente deve ser equivalente ou proporcionada à inexecução da contraparte que reclama o cumprimento, de modo que, se a falta desta for de leve importância, o recurso à excepção pode até ser ilegítimo.

Mas, apesar da excepção em apreço ser aplicável a todos os contratos bilaterais, independentemente da estrutura particular assumida pelo nexo sinalagmático em alguns tipos desses contratos, desde que a prestação que se pretende recusar e aquela cujo incumprimento se invoca sejam as obrigações fundamentais do contrato, a respectiva invocação e procedência não tem o condão de extinguir o direito de crédito de que é titular o outro contraente, antes e apenas o paralisando temporariamente. Dito de outro modo: constituindo aquela excepção um meio de defesa que tende para a execução plena do contrato e não para a sua destruição (o que ocorre com a resolução contratual – arts. 433.º, 434.º e 289.º, n.º 1, todos do CC), o efeito principal que da mesma deriva consiste em conferir ao excipiente o direito à suspensão da exigibilidade da sua obrigação, direito que se manterá actuante enquanto se verificar o estado de recusa de cumprimento da parte contrária. Assim funcionando, pois, como meio de pressão contra o credor que reclama o seu crédito sem cumprir ele próprio e como garantia contra as consequências de uma inexecução que pode vir a tornar-se definitiva”.

Tal excepção que vigora para os contratos bilaterais, isto é, para aqueles do qual emergem obrigações para ambos os contraentes, intercedendo entre as obrigações contratuais decorrentes para cada uma das partes um nexo sinalagmático, de correspectividade, de interdependência ou de reciprocidade, implica que o cumprimento das obrigações por uma das partes tenha como contrapartida o cumprimento das obrigações assumidas pela outra.

Quanto à excepção do não cumprimento a 1.ª instância analisou as diversas obrigações para concluir que, no único caso relativamente ao qual se poderia falar de incumprimento por parte da A e dos referidos FF, GG e II (não pagamento do IRC, relativo ao ano de 1990 e custas do processo de execução instaurado contra a BB- N... para cobrança coerciva daquele imposto, no valor global de 3.692.072$00; IVA relativo ao ano de 1990 e custas do processo instaurado contra a BB- N... para cobrança coerciva deste imposto, no valor global de 822.149$00, e IVA relativo ao ano de 1991 e juros compensatórios referente ao capital em dívida referente a este imposto, no valor global de 3.915.161$00), não se provou que a BB- N... e os aqui Réus, tenham interpelado aqueles para procederem a esse pagamento, o que obsta à procedência da excepção do não cumprimento do contrato quanto a estes débitos, não podendo, por conseguinte, os Réus invocar como fundamento para a recusa do cumprimento da sua obrigação a liquidar o crédito emergente de prestações suplementares à Autora o não pagamento pelos referidos FF, GG e II de tais débitos.

Apesar desta justificação constante da decisão de 1.ª instância a que a Relação não deu relevo, concordamos com o acórdão recorrido quando se defende que não existe a aludida contradição, em termos práticos.

Conforme é doutrina assente, na exegese do art.º 428.º, n.º1, C.Civ, e como sublinha JOSÉ JOÃO ABRANTES, obra citada, pp. 110, 111 e 118, no caso de cumprimento parcial ou defeituoso, o alcance da “exceptio” deve ser proporcionada à gravidade da prestação parcial ou defeituosa, pelo que da “inexecução parcial ou à execução defeituosa de uma das partes de um contrato bilateral só poderá normalmente ser oposta uma recusa de prestar também em termos meramente parciais. Se o primeiro dos contraentes oferecer uma prestação parcial ou defeituosa, a contraparte pode opor-se e recusar a sua prestação até que aquela seja oferecida por inteiro ou até que sejam eliminados os defeitos ou substituída a prestação. Pode, todavia, também aceitar o pagamento parcial e, nesse caso, apenas poderá recusar a sua contraprestação em parte, na medida proporcional ao que falta ser prestado pelo outro contraente. Relativamente á execução defeituosa, a recusa da contraparte poderá igualmente ser justificada apenas em parte” – em síntese, em regra o devedor apenas poderá recusar a sua contraprestação na parte proporcional ao incumprimento do outro contraente.

Como a jurisprudência tem salientado, a exceptio não pode ser invocada com sacrifício do princípio da boa fé no cumprimento das obrigações – art.º 762.º, n.º 2, do C.Civ.

Assim, o Ac. da RC de 9.11.99 CJ, Tomo V, p. 20 (Ferreira de Barros): “a boa fé constitui, na verdade, um limite à alegação da exceptio face ao cumprimento inexacto ou parcial do contrato, podendo levar inclusivamente à sua negação ou, pelo menos, à sua redução em determinadas circunstâncias. A excepção deve ser proporcionada à gravidade da inexecução, recusando o excipiente apenas a parte proporcional à parte ainda não executada pelo contraente faltoso. Só assim se mantém e garante o equilíbrio sinalagmático. Mas será de afastar tal meio de defesa perante uma falta pouco significativa ou inexecução de pequeno montante da contraparte, como uma forma de legitimar o incumprimento do excipiente” (cf. a este respeito, JOSÉ JOÃO ABRANTES, obra citada, pp. 99 e ss. e PEDRO ROMANO MARTINEZ, Cumprimento defeituoso em especial na compra e venda e na empreitada, Colecção Teses, Almedina Coimbra, p. 324.

No mesmo sentido, veja-se o Ac. STJ de 3.10.02, CJSTJ, t. III, p. 83 ou Ac. RG de 9.4.03, CJ, t. II, p. 281.

Seguindo pari passu esta doutrina, não há dúvida que as consequências da verificação, in casu, da excepção dilatória material de não cumprimento do contrato são idênticas às consequências da invocação da excepção de compensação, como excepção peremptória, uma vez que não se questiona a existência dos pressupostos desta.

Daí que não exista, na sentença recorrida, a contradição apontada nas alegações de recurso do Réu.

Também nenhuma consequência se pode extrair do carácter unitário do acordo, uma vez que para funcionar a cláusula 12 seria necessário que se considerasse extinto o contrato, quando é a contrária a consequência que se quer extrair, isto é que cada parte cumpra aquilo a que se obrigou.

De resto, esta questão do carácter unitário do contrato é só agora neste recurso suscitada, pelo que, sendo nova, exorbita do objecto da revista.

6. Passemos à questão da fiança que é o vínculo jurídico pelo qual um terceiro – o fiador – se obriga pessoalmente perante o credor, garantindo com o seu património a satisfação do direito de crédito deste sobre o devedor – art. 627º, n.º 1 do Código Civil.

Não obstante exista quem defenda que a fiança pode resultar de negócio jurídico unilateral – cfr. Ac. STJ. de 22/02/84, BMJ. 334, p. 502 –, tem-se maioritariamente entendido que a fiança apenas pode ser constituída por contrato, porquanto apenas uma convenção bilateral, pode, em regra, criar um vínculo obrigacional e não existir nenhuma norma legal que preveja que alguém possa assumir a posição de fiador e as obrigações daí decorrentes através de uma declaração unilateral sua contra a vontade do credor da obrigação afiançada.

O contrato de fiança é celebrado estritamente entre o fiador e o credor, podendo, inclusivamente, dar-se o caso que aquela seja prestada sem o conhecimento do devedor ou contra a vontade deste – cfr. n.º 2 do art. 628.º do Código Civil.

A vontade de prestar fiança deve ser expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação principal – cfr. n.º 1 do citado art. 628.º.

No contrato de fiança, o fiador terá de declarar expressamente a vontade de prestar fiança, mas nada impede que a declaração de aceitação daquela obrigação seja prestada tacitamente.

Na verdade, conforme se pondera no Ac. da R.P. de 16.08.2008, in Proc. 0832552, in www.dgsi.pt “nada impede que a aceitação da prestação da fiança por parte do credor, como declaração negocial que é, possa ser tácita, se traduzida de factos que com toda a probabilidade a revelem” – no mesmo sentido vide Ac. STJ. de 10.11.93, CJSTJ, t. 3, p. 122.

A obrigação do fiador, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 627.º do Cód. Civil, é acessória da que recai sobre o devedor, de onde decorre que a fiança não será válida se o não for a obrigação principal (cfr. art. 632.º, n.º 1, no entanto, aqui há que se tomar em consideração a excepção aberta pelo n.º 2, em função do qual se a obrigação principal for anulada por incapacidade ou por falta ou vício de vontade do devedor, nem por isso a fiança deixa de ser válida, se o fiador conhecia a causa da anulabilidade ao tempo em que a fiança foi prestada); a fiança deverá seguir, como supra já se disse, a forma da obrigação principal; o âmbito da fiança é limitado pelo âmbito da obrigação principal, pelo que aquela não poderá exceder a dívida principal, sequer pode ser contraída em condições mais onerosas, podendo, porém, ser contraída por quantidade menor ou em condições menos onerosas que a obrigação principal (art. 631.º); a natureza comercial ou civil da fiança depende da natureza da obrigação principal e a fiança extingue-se com a extinção da obrigação principal (art. 651.º) – cfr. MENESES CORDEIRO, in Direito das Obrigações, vol. 2.º, pp. 509 a 522.

Atento o que atrás se disse sobre a validade da obrigação principal apenas há que reafirmar que “válida a obrigação principal, válida a fiança”, nos termos dos art.os 627.º, n.º 1, 628.º, n.º 1 e 632.º, n.º 1, do C.Civ. – cf. Ac. STJ de 2.6.98, BMJ 478, p. 268.

Nada a objectar, assim, quanto à responsabilidade dos RR. condenados, por via da fiança assumida.

7. Nos termos da cláusula 5.ª do contrato a que nos temos vindo a referir existe uma garantia para o cumprimento, por parte da Ré BB- N..., das prestações a favor da Autora AA-S....

Aí se escreveu: “Os 5.º, 6.º, 7.º e os sócios da sociedade AA-S... – Sociedade de Construções de F..., Ldª, individualmente considerados, garantem pessoal e solidariamente, como fiadores e principais pagadores o pagamento à AA-S... – Sociedade de Construções de F..., Ldª, das prestações suplementares de capital, pela BB- N..., renunciando ao benefício da excussão prévia”.

Questiona-se se os recorrentes declararam expressamente a sua vontade de prestar fiança (art.º 628.º, n.º 1, do C.Civ.), e se se limitaram a subscrever o contrato na qualidade de pessoas singulares, sem menção da respectiva qualidade de sócios, expressa ou tacitamente; questiona-se ainda a falta a respectiva identificação desses sócios da Autora, condição da validade da fiança.

Os recorrentes, além de terem intervindo no contrato em representação da Autora/AA-S..., eram, à data, sócios da dita Autora.

No contrato não se distingue a qualidade em que intervêm.

Nos termos do disposto no art. 628.º, n.º 3, do Cód. Civil, a vontade de prestar fiança deve ser expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação principal, enquanto a declaração de aceitação pode ser feita tacitamente.

O que não quer dizer, obviamente, que a declaração de prestar fiança não possa ser interpretada, como o pode qualquer declaração negocial.

Como se diz na sentença:

«Esta divergência de regimes para a proposta e a aceitação resulta da diversidade de consequências decorrentes do contrato de fiança para as partes nele outorgantes. É que respondendo o fiador pessoalmente e com a totalidade do seu património por um débito de terceiro, a lei rodeia a sua declaração de vontade – a proposta de prestar fiança – de especiais cautelas, forçando-o a tomar posição definida quanto à obrigação que assume, designadamente, quanto aos seus contornos e limites, visando com esta exigência propiciar a reflexão e a ponderação por parte daquele por forma a obstar a atitudes irreflectidas e imponderadas. Tais cautelas não se verificam em relação ao credor, uma vez que do contrato de fiança para ele apenas decorrem vantagens.
Entendendo-se por declaração expressa, dentro da concepção subjectiva de que é tributário o art. 217.º, n.º 1, do Cód. Civil, aquela que é feita por palavras, escrito ou quaisquer outros meios directos, frontais, imediatos de expressar a vontade – cfr. Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil 3.ª ed., pág. 425 –, ao estatuir que a vontade de prestar fiança deve ser expressamente declarada, quer-se significar que a mesma “tem que resultar directamente da declaração do fiador, e não através de deduções, inferências ou presunções, embora para esses efeitos não haja fórmulas precisas e sacramentais”, não bastando “assim que a pessoa informe alguém (credor) sobre a honestidade do amigo, nem garanta a terceiro que o devedor vai cumprir pela certa, nem peça a terceiro que faça o empréstimo solicitado a alguém. Essencial é que a pessoa (o fiador) chame a si a obrigação de realizar a prestação (a que o devedor se encontra adstrito), se este não cumprir – declarando, v. gr., que «eu respondo pelo devedor» – cfr. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 7.ª, págs. 482 e 483.
No entanto, conforme ponderam Antunes Varela, in ob. cit., pág. 425, bem como Manuel Andrade, in “Teoria Geral da Relação Jurídica “, vol II, pág. 133, a circunstância de uma declaração ser expressa não dispensa uma actividade interpretativa, a qual tem de ser sempre realizada, como sucede com todo o texto legal, uma vez que a declaração expressa não supõe que os meios directos de manifestação de vontade tenham de ser também inequívocos e que, por conseguinte, não exista a necessidade de se recorrer à interpretação a fim de se extrair qual o sentido a dar àqueles meios directos de declaração expressa de vontade.»

Nessa tarefa interpretativa há que fazer apelo ao art.º 236.º, n.º 1, do C.Civ. que dispõe: “A declaração negocial vale com um sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”.

A doutrina da impressão do destinatário, recondutível ao âmbito do princípio da protecção da confiança, impõe ao declarante um ónus de clareza na manifestação do seu pensamento, desta forma se concedendo primazia ao ponto de vista do destinatário da declaração, a partir de quem tal declaração deve ser focada (P. MOTA PINTO, Declaração Tácita, Almedina, Coimbra, p. 206).

Todavia, a lei não se basta com o sentido compreendido realmente pelo declaratário, significando o entendimento subjectivo deste, mas apenas concede relevância ao sentido que apreenderia o declaratário normal, colocado na posição do real declaratário – a pessoa com capacidade, razoabilidade, conhecimento e diligência medianos (ut P. MOTA PINTO, op. cit., pp.211-212); não se impõe ao declaratário uma investigação sobre o que o declarante pretendeu significar com esse comportamento, mas antes a apreensão do sentido objectivo que resulta da declaração, independentemente da cognoscibilidade da verdadeira intenção do declarante.

E na busca da interpretação correcta o tribunal não está impedido de recorrer aos vários meios de prova legalmente admissíveis, incluindo à prova testemunhal, mas, tal como se sustenta no Ac. RL. de 31/01/78, CJ. t. l, p. 64, “se um título de fiança for ambíguo acerca da intenção da mulher de um dos fiadores ser ou não também fiadora, ela não deve ser havida como tal, desde que o recurso a outros meios de prova não tenham demonstrado a sua vontade de prestar fiança”.

Seguiremos agora de perto, quase textualmente o que se diz sobre este ponto na decisão de primeira instância, uma vez que aí se faz uma análise profunda do entendimento que merece ser adoptado:

No caso em análise está em discussão se, além do réu recorrente, também o interveniente II se constituíram fiadores, pelo débito da BB- N... à AA-S..., estando em discussão a cláusula 5.ª, n.º 4, do contrato de fls. 17 a 23, onde se lê:

«Os 5.º 6.º, 7.º e os sócios da sociedade AA-S... – Sociedade de Construções de F..., L. da, individualmente considerados, garantem pessoal e solidariamente como fiadores e principais pagadores o pagamento à AA-S... – Sociedade de Construções de F..., L. da das prestações suplementares do capital pela BB- N..., renunciando ao benefício da excussão prévia».

Com vista a indagar-se do alcance desta cláusula levou-se matéria à base instrutória, mas tal como flui das respostas dadas aos pontos 24.º e 25.º, nada de útil se logrou indagar quanto à mesma, sobrando apenas o teor do contrato de fls. 17 a 23.

O teor daquela cláusula é claro, expresso e inequívoco de que “os sócios da sociedade AA-S... – Sociedade de Construções de F..., L.da, individualmente considerados, garantem pessoal e solidariamente como fiadores e principais devedores ....

A questão que se coloca é a de saber quem são estes sócios da AA-S... a que se reporta aquela cláusula, já que, por um lado, na mesma nada vem referido a tal respeito e quanto aos intervenientes FF, GG, a que acresce um tal HH, os três assumem-se nas cláusulas 1.ª e 2.ª como sócios da BB- N... (não da AA-S...), vindo os mesmos, ao longo de todo o teor daquele acordo, identificados a título pessoal, como 1.º, 2.º e 3.º outorgantes, encontrando-se, a final, o mesmo contrato assinado por aqueles enquanto 1.º, 2.º e 3.º outorgantes, ou seja, a título pessoal.

Por outro lado, o interveniente II (ao contrário do que sucede com os referidos FF e GG) não figura no intróito do contrato em análise como outorgante a título pessoal.

Como 4.º outorgante figura nesse contrato AA-S... – Sociedade Construções de F..., e o dito II apôs a sua assinatura enquanto 4.º outorgante, ou seja, enquanto legal representante da AA-S....

Assim, à primeira vista, seríamos levados a concluir que os intervenientes FF e GG intervieram naquela contrato a título pessoal, não enquanto sócios e/ou gerentes da AA-S..., enquanto II outorgou naquele apenas como gerente da AA-S....

No entanto, compulsada a clausula 6.ª, n.º 1, lê-se na mesma:

“Reportados a 31 de Dezembro de mil novecentos e noventa e cinco FF , GG e II. por si ou através da AA-S... – Sociedade de Construções de F..., L.da, nas proporções de 24%, 24% e 52% respectivamente para cada um deles, obrigam-se a adquirir os seguintes passivos da BB- N..., a seguir discriminados:
A) Passivos: Todos os existentes até 31/12/95.
B) Activos: discriminar quais são“.

E o n.º 6 da referida cláusula tem o seguinte teor:

“Independentemente da relação do passivo referido em A), FF , GG e II, por si ou através da AA-S... – Sociedade de Construções de F..., L.da serão os únicos responsáveis por todo e qualquer passivo da BB- N..., seja de natureza comercial ou fiscal, desde que contraído até 31/12/95, inclusive”.

A única ilação que se impõe extrair é que, pese embora no intróito do contrato o interveniente II não figure no elenco dos outorgantes como “outorgantes a título pessoal” e, pese embora a sua assinatura vir aposta sob a expressão “4.º outorgante”, ou seja, enquanto representante da AA-S..., o mesmo outorgou, efectivamente, neste acordo a título pessoal, nele tendo assumido as respectivas responsabilidades, pelo que quando nele apôs a sua assinatura fê-lo na dupla qualidade: a título pessoal e na qualidade de legal representante da AA-S....

Na verdade, é o próprio II quem, nas referidas cláusulas, declara expressamente (por duas vezes) que “por si ou através da AA-S...“ obriga-se, juntamente, com os intervenientes FF e GG, a adquirir o passivo e o activo da BB- N... que ali vem discriminado e “por si ou através da AA-S...” será, juntamente com os mesmos FF e GG, o único responsável pelo pagamento de todo e qualquer passivo da BB- N... contraído até 31/12/95, inclusive.

Por outro lado, pese embora aqueles três intervenientes terem outorgado naquele contrato a título pessoal (sendo que, como se viu, o interveniente António Meireles também nele outorgou e o assinou na qualidade de gerente da AA-S...) e de no texto do mesmo não vir referida, de modo expresso, a sua qualidade de sócios da AA-S..., o certo é que os referidos FF, GG e II eram, efectivamente, sócios desta sociedade – cfr. doc. de fls. 97 a 104, ap. 07/271095, em que se vê que esta sociedade tinha então um capital de 500.000.000$00, dividido pelos seguintes sócios:
1.º FF , com uma quota de 120.000.000$00;
2.º GG, com uma quota de Esc. 120.000.000$00; e
3.º II, com uma quota de Esc. 260.000.000$00, pertencendo a gerência a todos os sócios, bem como a II.

Outrossim, a qualidade de sócios da AA-S... daqueles FF, GG e II vem implicitamente expressa no teor da referida cláusula 6.ª, n.os 1 e 6 do contrato de fls. 17 a 23.

Na verdade, a não serem aqueles FF, GG e II sócios da AA-S..., como é que os mesmos podiam pretender vincular-se “por si ou através da AA-S... a adquirir o passivo e o activo da BB- N..., bem como declarar-se, por si ou através da AA-S... responsáveis pelo pagamento de todo o passivo da BB- N... contraído até 31/12/95, inclusive”?

A assunção de tais obrigações, no que à AA-S... diz respeito, impõe a conclusão de que os referidos FF, GG e II tivessem a qualidade de sócios da AA-S..., pelo que, só assim, os mesmos podiam assumir “por si ou através da AA-S... “as apontadas responsabilidades.

Assim, pese embora, no texto do contrato em análise nunca se afirmar, de modo expresso, que aqueles são sócios desta sociedade, tal qualidade está implicitamente assumida, pelos mesmos, no texto do contrato citado.

No mesmo sentido releva o facto de a proporção de 24%, 24% e 52% constante da cláusula 6.ª, n.º 1, que os referidos FF, GG e II, assumem na repartição da obrigação dela constante, serem o reflexo do valor das respectivas quotas no capital social da AA-S....

Assim, quando na cláusula 5.ª, n.º 4, se escreve “Os 5º, 6º e 7º e sócios da sociedade AA-S... – Sociedade de Construções de F..., L.da, individualmente considerados, garantem pessoal e solidariamente, como fiadores e principais pagadores”, a única interpretação possível do teor desta cláusula, quando conjugado com o restante texto do mesmo contrato, no qual se destaca a letra da respectiva cláusula 6.ª, n.os 1 e 6 é que os sócios da AA-S... a que nele se alude são os aqui intervenientes FF, GG e II, os quais, como se viu, assinaram o contrato em apreço a título pessoal, fazendo-o também, o último, na qualidade de gerente da AA-S....

Ora, tendo os sócios da AA-S... declarado, expressamente, individualmente considerados, que garantem pessoal e solidariamente como fiadores e principais pagadores... e sendo estes FF, GG e II, efectivamente, então sócios da AA-S..., qualidade esta que vem implicitamente por eles assumidas no teor daquele contrato, forçoso é concluir que os mesmos declaram, expressamente, na referida cláusula 5.ª, n.º 4, constituírem-se, com os 5.º, 6.º e 7.º ali outorgantes fiadores pelo pagamento à AA-S... do crédito emergente das prestações suplementares devidas àquela pela BB- N..., improcedendo, por conseguinte, toda a argumentação a tal propósito aduzida pelos intervenientes, incluindo o de que, a terem-se constituído fiadores da “AA-S...”, sendo eles os únicos sócios desta sociedade, tal representaria, em substância, uma fiança a si próprios, posto que tal revela apenas uma confusão dos intervenientes entre o seu património pessoal e o da sociedade AA-S..., confusão esta que não tem a mínima sustentação legal.

Os Réus CC, DD e EE, bem como os intervenientes FF, GG e II declararam--se solidariamente responsáveis pelo cumprimento da fiança – cfr. cláusula 5.ª, n.º 4 –, pelo que, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 641.º e 512.º, n.º 1, do Cód. Civil, impõe-se condenar todos solidariamente no pagamento da quantia devida à aqui Autora, bem como reconhecer o direito de regresso do fiador que venha a satisfazer as obrigações afiançadas sobre os demais fiadores quanto à parte em que exceda a sua quota parte de responsabilidade.

De tudo quanto dito ficou, haverá que concluir que, sendo o contrato expresso em vincular os sócios da AA-S..., enquanto fiadores da dívida da BB- N..., tanto como os Réus, não faz sentido utilizar argumentos tais como “os sócios não estão identificados na cláusula”.

Não estão de facto identificados, mas a possibilidade da respectiva identificação é muito fácil e resulta, não apenas de terem todos eles intervindo no contrato, sem especificação da qualidade em que o faziam, como também de uma simples informação sobre a composição social da Autora, à data do contrato.

Por isso, a citada doutrina da impressão do destinatário, temperada por critérios de objectividade interpretativa, que a nossa lei civil segue, de forma alguma isenta da responsabilidade da fiança os recorrentes.

Não têm, pois, razão os Recorrentes neste particular, como também o não teriam no argumento de que estariam a prestar uma fiança a si próprios, pela simples razão de que a pessoa colectiva Autora e os respectivos sócios, enquanto pessoas singulares, possuem esferas jurídicas diferenciadas e possibilidade de imputação de obrigações igualmente diferenciada.

É claro que nos reportamos a suprimentos da ex-Ré BB- N..., efectuados pelos próprios intervenientes, antigos sócios da BB- N....

Mas é necessário salientar que o credor da cessão de suprimentos não são os Intervenientes mas a sociedade Autora.

E aqui reside a nota mais relevante para que se refute a tese que os recorrentes sustentam quanto à fiança.

8. Falta abordar a questão do quantum indemnizatório. Trata-se de uma questão nova não suscitada no recurso para a Relação e que por isso exorbita do âmbito do presente recurso.

Sempre se dirá, contudo, que as contas elaboradas na decisão de primeira instância não sofrem de qualquer erro material.

Improcedem, assim, de pleno as conclusões de ambos os recursos.

III Termos em que se acorda em negar as revistas.

Custas pelos recorrentes.

Supremo Tribunal de Lisboa,

Lisboa, 26 de Outubro de 2010.

Paulo Sá (Relator)
Mário Cruz
Garcia Calejo