Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
812/06.1TBAMT.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: RETIFICAÇÃO DE ERROS MATERIAIS
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
AMBIGUIDADE
OBSCURIDADE
EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
DOCUMENTO PARTICULAR
PROVA PLENA
CONFISSÃO
PROVA PERICIAL
INTERVENÇÃO ACESSÓRIA
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
CULPA DO LESADO
Data do Acordão: 03/31/2022
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. O Interveniente Acessório tem legitimidade para interpor recurso autónomo da decisão condenatória do Réu.
II. Ocorre erro material no acórdão, sentença ou despacho, rectificável nos termos do artº 614º do CPC, quando, por qualquer circunstância, do seu contexto se evidencia que a vontade aí declarada, não corresponde à vontade real do juiz. Será o que ocorre se o juiz, não obstante ter omitido no dispositivo a condenação nos juros moratórios, na fundamentação aprecia expressamente a questão reconhecendo serem devidos juros moratórios.
III. Só a falta absoluta de fundamentação releva como nulidade da sentença. Se na apreciação da impugnação da matéria de facto a Relação confirma o juízo probatório impugnado e concomitantemente afirma, ainda que lapidarmente, a consequência jurídica a extrair desse facto, não ocorre falta de fundamentação.
IV. Não é qualquer ambiguidade ou obscuridade que provoca a nulidade da sentença, mas apenas aquela que torna a decisão ininteligível.
V. A ininteligibilidade relevante para efeito do art.º 615º do CPC é a da decisão da causa e não a mera ininteligibilidade de um argumento utilizado no percurso decisório.
VI. A exigência de exame crítico das provas determinada no art.º 607º, nº 4 do CPC não impõe uma referência individualizada a todo e qualquer elemento probatório constante dos autos e, muito menos, que essa referência seja isenta de imperfeições ou vícios, de erros de julgamento; devendo ser entendida, antes, como impondo que a decisão relativa à fixação do elenco factual seja suportada por critérios de racionalidade, especificados em função e por referência à prova produzida.
VII. Está fora dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça apreciar a conduta da Relação que analisando a impugnação da matéria de facto omitiu referenciar prova documental constante dos autos.
VIII. Mas já compete ao Supremo Tribunal de Justiça verificar se daquela prova resultam plenamente provados factos relevantes.
IX. Os documentos particulares emitidos pela Autora, cuja autoria e conteúdo não foram por esta impugnados, fazem prova plena da emissão das declarações neles contidas, mas as mesmas só têm eficácia confessória quanto àqueles a quem tais declarações são dirigidas.
X. A prova pericial é de livre apreciação pelo tribunal, não gozando de força probatória plena.
XI. Contudo a margem de livre apreciação do juiz estará tanto mais limitada quanto o resultado da perícia se sustente em conhecimentos de natureza científica, comummente aceites, de todo estranhos ao seu conhecimento e que não suscitem quaisquer dúvidas; mas, pelo contrário, estará tanto mais ampliada quanto o resultado da perícia se sustente em parâmetros a não rondar a certeza absoluta, mas que se baseiam eles próprios em previsões e apreciações subjectivas.
XII. Aí cabe ao juiz proceder a uma análise crítica do relatório pericial, em que relevam múltiplos elementos, designadamente a idoneidade dos peritos, a inteligibilidade, coerência e congruência do relatório pericial, a aferição dos métodos, técnicas e dados utilizados, em função dela, aceitando, modificando ou rejeitando a conclusão pericial, extraindo a sua própria conclusão.
XIII. Sendo que, de acordo com os limitados poderes do Supremo Tribunal de Justiça relativamente à apreciação da matéria de facto estabelecidos no art.º 674º, nº3, a divergência das instâncias relativamente ao laudo pericial só é susceptível de censura nos casos de manifesta desadequação ou ilogicidade da sua fundamentação.
XIV. Compete ao demandado a prova da culpa do lesado na verificação do dano.
XV. Na aferição da diligência exigida ao lesado na prevenção/mitigação do dano haverá de ter em conta o padrão comportamental do ‘bom pai de família’ perante as concretas circunstâncias do caso, designadamente a necessidade de um tempo de reacção quando está em causa o comportamento de entidades orgânicas complexas como é o caso de uma empresa de produção e comercialização.
XVI. O lucro cessante pela perda de um cliente consiste, de um ponto de vista estritamente económico, na diferença entre o montante das vendas e o que é directamente necessário para a produção do bem ou serviço (custos variáveis), pelo tempo de duração expectável da relação comercial.
XVII. Mas em determinadas circunstâncias esse dano pode revestir igualmente uma componente financeira em virtude de ganhos que se poderiam obter em função desse cliente e que se repercutiam em toda a actividade da empresa.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



NO RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NOS AUTOS DE ACÇÃO DECLARATIVA

ENTRE

AA – Á..., Ldª

(aqui patrocinada por BB, advogado)

Autora / Apelada (1) / Apelante 3 / Recorrente 1 / Recorrida (2/3)

CONTRA

EMBALAPLAS, SL – Sociedad Unipersonal

[sociedade de direito espanhol]

(aqui patrocinada por CC, adv.)

Ré / Apelante 1 / Apelada (2/3) / Recorrente 3 / Recorrida (1/2)

EM QUE INTERVÊM

TRANSPORTES AZKAR, SA

[sociedade de direito espanhol]

(aqui patrocinada por DD, adv.)

Interveniente Acessória 1 / Apelante 2 / Apelada (1/3) / Recorrente 2 / Recorrida (1/3)

TRANSPORTES AZKAR (PORTUGAL) – SOCIEDADE UNIPESSOAL, Ldª

(aqui patrocinada por DD, adv.)

Interveniente Acessória 2

ACE INSURANCE, SA – SV, SUCURSAL EN ESPAÑA

[sociedade de direito espanhol]

(aqui patrocinada por EE, adv.)

Interveniente Acessória 3

GROUPAMA PLUS ULTRA, SA

[sociedade de direito espanhol]

(aqui patrocinada por FF, adv.)

Interveniente Acessória 4

I – Relatório

  Autora intentou a presente acção pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 5.884.556,00 € a título de indemnização pelos danos (danos emergentes, lucros cessantes e degradação da imagem comercial) sofridos em consequência do fornecimento pela Ré de cápsulas desconformes, porquanto libertavam odor a creolina, que contaminou a água embalada pela Autora nas garrafas em que aplicou aquelas cápsulas.

  A Ré contestou alegando, designadamente, que o defeito invocado, a verificar-se na mercadoria fornecida à Autora, teve origem no derrame de um líquido desinfectante (Zotal) ocorrido durante o transporte dessa mercadoria, sendo que só por manifesta negligência da Autora no controlo de qualidade da mesma, quer no momento da entrega quer no momento da sua introdução no processo produtivo, as cápsulas foram efectivamente utilizadas; desconhece os alegados danos que, de qualquer forma se encontram quantificados em valores excessivos. Porque a responsabilidade da referida contaminação é imputável ao transportador e seu agente, pede a intervenção acessória dos mesmos.

        A requerida intervenção acessória foi admitida.

 As Intervenientes Acessórias 1 e 2 requereram, por seu turno, a intervenção acessória das seguradoras. Quanto à matéria da causa, aceitando que no transporte ocorreu um derrame de Zotal, afirmam que a tal é alheia a actividade da Interveniente Acessória 2 e impugnam que o mesmo tenha afectado a mercadoria destinada à Autora; impugnam, ainda, os termos do contrato de transporte invocados pela Autora e os invocados danos; bem como invocam a presunção de entrega da carga sem deficiência por falta de atempada reclamação, a caducidade da acção, a limitação de responsabilidade e a prescrição, decorrentes das disposições legais e convencionais quanto ao contrato de transporte rodoviário de mercadorias.

   A requerida intervenção acessória foi, também, deferida.

  A Interveniente Acessória 3 contestou invocando, além do mais, a não cobertura do seguro de danos nas mercadorias transportada e por actos ocorridos fora do território espanhol, a caducidade da acção, a prescrição e os limites legais da indemnização, bem como a franquia e os limites do capital seguro.

  A interveniente Acessória 4 contestou invocando a caducidade do direito de acção e do direito de reclamação contra a seguradora, não ter celebrado qualquer seguro com a Interveniente Acessória 2, não estrem seguros danos das mercadorias transportadas, danos causados por estas após o transporte ou danos indirectos, haver limites ao capital seguro, bem como a caducidade do direito de acção e de reclamação e limites legais de responsabilidade.

A final foi proferida sentença que, considerando:

- estar-se perante uma compra e venda mercantil internacional;

- regida pelo direito nacional;

- nesse tipo contratual ser a denúncia do vício ou defeito facto constitutivo do direito adveniente do cumprimento defeituoso;

- competindo ao comprador a prova dessa denúncia e ao vendedor a prova da extemporaneidade da denúncia ou da subsequente acção;

 - que o prazo para a denúncia começa a contar da efectiva constatação do vício ou defeito ou do momento em que, segundo uma conduta diligente, podia ter sido descoberto;

 - que no caso não se evidencia negligência da Autora na verificação da mercadoria nem que o vício fosse aparente, tendo-se a denúncia por oportuna;

 - sendo de concluir pela ocorrência de facto gerador de responsabilidade da Ré (não sendo a mesma de excluir em função da intervenção de auxiliares na execução do contrato);

- presumindo-se a culpa da mesma;

 - de outra forma sempre essa responsabilidade surgiria do incumprimento do dever acessório de alertar/prevenir/avisar a Autora relativamente ao incidente de contaminação ocorrido no transporte;

 - ser o facto gerador de responsabilidade causal dos danos verificados;

 - os quais foram os emergentes da necessidade de devolução, substituição e subsequente destruição das garrafas produzidas com aplicação de cápsulas fornecidas pela Ré, de higienização das instalações da Autora, bem como os advenientes da perda de clientela;

 - sendo de excluir desses danos, por não demonstrada a sua verificação, as despesas decorrentes da alteração da política de investimento e a afectação de imagem /reputação comercial para além do círculo dos clientes ‘perdidos’;

 - sem que para esse efeito se tenha verificado qualquer contribuição causal por banda da Autora, salvo quanto ao fim do relacionamento comercial com a Gestiretalho;

- sendo de quantificar:

 » no peticionado (45.051,85 €) relativamente à substituição das garrafas produzidas;

 » equitativamente, em 2.000 € as despesas de transporte com aquela substituição;

 » equitativamente, em 326.084,24 € o correspondente a parte do saldo devedor, não pago, da conta corrente do cliente Gestiretalho;

» equitativamente, e, 1.300.000 €, o correspondente ao lucro cessante da perda de clientela;

julgou a acção parcialmente procedente condenando a Ré a pagar à Autora a quantia de 1.673.136,09 €.

 Inconformada apelou a Ré concluindo, em síntese, por erro na decisão de facto, por não ocorrência de violação do dever de informação e inadequação do juízo equitativo.

Também a Interveniente Acessória 1 deduziu recurso de apelação concluindo, em síntese, pela nulidade da sentença, por erro na decisão de facto, por ocorrência de culpa do lesado, subsidiariamente concorrência de culpas, e por inadequação do juízo equitativo, originando uma excessiva da quantificação do dano. E na contra-alegação ao recurso da Ré ampliou o objecto do recurso quanto à matéria de facto.

Por seu turno a Autora deduziu recurso subordinado concluindo, em síntese, por erro na decisão de facto, não haver lugar a recurso à equidade por demonstrado o quantitativo do dano, subsidiariamente pela inadequação do juízo equitativo, e haver lugar a indemnização pelo dano não patrimonial da afectação da sua imagem/reputação comercial.

Foi pedida a rectificação da sentença no sentido de ser incluído no seu dispositivo a condenação no pagamento de juros de mora; que foi deferido, sendo ordenada a rectificação do dispositivo da sentença acrescentando-se-lhe a condenação da Ré no pagamento à Autora de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

A Ré opôs-se a tal rectificação, nos termos do art.º 614º, nº 2, do CPC.

A Relação:

- não admitiu a ampliação do objecto do recurso quanto à matéria de facto deduzida pela Interveniente Acessória 1;

- considerou improcedente a oposição à rectificação da sentença, bem como as arguições de nulidade;

- relativamente às impugnações da matéria de facto:

   » não admitiu a impugnação da Ré e da Interveniente Acessória 1 quanto a alguns factos porque, sendo essenciais, não haviam sido oportunamente alegados;

   » e quanto aos demais factos, considerou improcedente a impugnação da Ré e parcialmente procedentes as impugnações da Autora e da Interveniente Acessória 1, procedendo às correspondentes alterações da matéria de facto;

» procedeu, oficiosamente, a aditamentos ao elenco factual;

- relativamente à apreciação jurídica da causa:

» considerou não ocorrer comportamento negligente da Autora susceptível de fundar uma concorrência de culpas na produção do dano causado pelas cápsulas fornecidas pela Ré;

 » considerou transitada, porque indiscutida, a condenação da Ré a pagar à Autora o montante indemnizatório de 47.051,85 €, correspondente aos encargos decorrentes da devolução/substituição de garrafas;

» considerou haver fundamento para recurso à equidade na quantificação dos demais danos indemnizáveis;

» considerou que serem tais danos apenas os decorrentes da ruptura da relação de fornecimento que mantinha com a Gestiretalho (custos que teve de suportar com a resolução do contrato e lucros cessantes), uma vez que quedou indemonstrado o alegado lucro cessante relativamente a outros clientes;

» considerou haver relativamente àquela ruptura uma situação de causalidade cumulativa, sendo de imputar à Ré uma proporção de 60%;

» considerou como factores atendíveis uma duração do contrato, a média mensal de vendas do maior período temporal conhecido e não apenas do último ano;

» quantificando a indemnização devidas em 752.177,94 € pelos lucros cessantes e 263.755,75 pelo saldo da conta corrente não pago; pelo que julgou improcedente o recurso subordinado da Autora e parcialmente procedentes as apelações da Ré e Interveniente Acessória 1, e, consequentemente, condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de 1.062.898, 54 €, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento.

Inconformada a Autora interpôs recurso de revista, concluindo, em síntese, pela nulidade do acórdão, pela violação do direito probatório material e por erro de julgamento, em particular quanto ao recurso à equidade e, subsidiariamente, quanto ao cálculo da indemnização.

Igualmente inconformada veio a Interveniente Acessória 1 interpor recurso de revista concluindo, em síntese, pela nulidade do acórdão, pela violação das leis de processo e do direito probatório material e por erro de julgamento, em particular quanto á culpa da Autora e quanto ao cálculo dos lucros cessantes.

Houve contra-alegação aos recursos interpostos (da Autora, da Interveniente Acessória 1 e da Ré), tendo sido arguida a inadmissibilidade do recurso da Interveniente Acessória 1.

A Ré, por seu turno, veio interpor recurso de revista subordinado concluindo, em síntese, pela nulidade do acórdão, violação da lei processual ao admitir a rectificação da sentença e erro de julgamento na determinação equitativa do montante indemnizatório.


II – Da admissibilidade e objecto do recurso

A situação tributária mostra-se regularizada.

Os requerimentos de interposição dos recursos mostram-se tempestivos (artigos 638º e 139º do CPC) e foram apresentados por quem e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC).

É manifesta a legitimidade da Autora e Ré para o recurso (art.º 631º, nº 1, do CPC).

Vem arguida a falta de legitimidade da Interveniente Acessória 1 para interpor autonomamente recurso de revista.

Segundo o nº 1 do art.º 631º do CPC os recursos só podem ser interpostos por quem na causa seja parte principal e tenha ficado vencido; o nº 2 da mesma disposição legal, no entanto, confere legitimidade para a interposição de recurso a terceiros ou partes acessórias que sejam ‘directa e efetivamente prejudicados pela decisão’.

A propósito de qual o sentido e alcance a dar a tal enunciado escrevia ALBERTO DOS REIS (CPC Anotado, V, 272): “Em primeiro lugar é fora de dúvida que a expressão legal exclui o prejuízo indirecto ou reflexo; em segundo lugar deve ter-se como certo que o prejuízo há-de ser actual e positivo: não é suficiente o prejuízo eventual, incerto ou longínquo».

De qualquer forma tem havido divergência interpretativa relativamente à possibilidade de recurso autónomo por parte dos intervenientes acessórios.

Segundo uns (cf. acórdãos do STJ de 25MAR2010, proc. 428/1999.P1.S1, e 24OUT2019, proc. 1152/15.0T8VFR.P1.S1), sendo o interveniente acessório um mero auxiliar na defesa da parte principal, com a sua intervenção circunscrita à discussão das questões com repercussão na acção de regresso (art.º 321º do CPC), beneficia do estatuto de assistente (art.º 322º do CPC), no qual não cabe recorrer pelo assistido (art.º 328º do CPC); apenas lhe caberá apresentar alegação complementar à alegação da parte principal a que está associado.

Ademais a sujeição do interveniente acessório ao caso julgado formado na acção (art.º 323º, nº 4, do CPC) não se pode configurar como um prejuízo directo e efectivo, mas antes como reflexo e indirecto, pois que só relevará no âmbito da eventual e futura acção de regresso. Além de que o caso julgado está limitado nos seus efeitos, nos termos prescritos no art.º 332º do CPC, de forma que sempre fica salvaguardado ao interveniente acessório o exercício do contraditório.

Segundo outros (cf. acórdãos do STJ de 13NOV2007, proc. 3582/07, e 17ABR2008, proc. 1109/08), o interveniente acessório, ainda que auxiliar da parte principal, não deixa de, nas questões com repercussão na acção de regresso, se defender a si próprio. E ficando vinculado pelo caso julgado o direito de defesa não pode deixar de ser válido para toda a marcha do processo, incluindo a fase dos recursos.

Entendemos ser de seguir esta segunda posição.

Por um lado, porquanto a posição do interveniente acessório, em função da sua sujeição ao caso julgado, não pode ser apenas configurada como um mero auxílio, uma actuação em prole de interesses alheios, mas antes como uma defesa de um interesse próprio; mais concretamente tal defesa não visa apenas discutir se e em que montante a parte pode ser responsabilizada, mas também se e em que medida o próprio interveniente pode ser responsabilizado. Nessa perspectiva o ser directa e efectivamente prejudicado pela decisão resulta de ser abrangido pelo caso julgado de uma decisão que lhe seja desfavorável por afectar os seus direitos ou interesses (cf. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, 1997, 506-507); por ficar definido com força de caso julgado a existência de obrigação de indemnizar e o seu quantitativo.

Por outro lado, as excepções à sujeição ao caso julgado previstas no art.º 332º do CPC não abrangem todas as situações em que tenha sido precludida a intervenção da parte acessória, designadamente não abrange a situação de não ter tido a possibilidade de invocar erro de julgamento.

Sujeitar o interveniente acessório ao caso julgado formado na acção sem se lhe possibilitar, nos termos gerais, a reapreciação da decisão proferida por um tribunal superior, imputando-lhe erro de julgamento, consubstanciaria uma situação de indefesa cuja proibição decorre do princípio da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no art.º 20º da Constituição (cf. acórdão 52/2007 do Tribunal Constitucional).

Conclui-se, assim, pela legitimidade da Interveniente Acessória 1.

Mas ainda que assim não fosse, sempre haveria de se ter em consideração o conteúdo do seu recurso, enquanto alegação complementar ao recurso subordinado interposto pela Ré.

Os requerimentos de interposição dos recursos estão devidamente instruídos com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC)

O acórdão impugnado é, pela sua natureza, pelo seu conteúdo, pelo valor da causa e da respectiva sucumbência, recorrível (artigos 629º e 671º do CPC).

Mostra-se, em função do disposto nos artigos 675º e 676º do CPC, correctamente fixado os seus modos de subida (nos próprios autos) e os seus efeitos (meramente devolutivo).

  Destarte, os recursos merecem conhecimento.

  Vejamos se merecem provimento.

           


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Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões por que entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.

Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:

- da ilícita rectificação da sentença (revista da Ré);         

- da nulidade do acórdão por omissão de pronúncia quanto aos danos não patrimoniais (revista da Autora);

- da nulidade do acórdão por ininteligibilidade da fórmula do cálculo do lucro cessante (revistas da Interveniente Acessória 1 e da Ré),

- da nulidade do acórdão por ininteligibilidade e omissão de pronúncia na apreciação da matéria de facto (revista da Interveniente Acessória 1);

- da violação de lei de processo pela Relação ao não conhecer / incluir certos factos (revista da Interveniente Acessória 1);

- da violação da lei de processo pela Relação ao considerar confessado o limite da dano emergente (Revista da Autora);

- da violação da lei de processo pela Relação ao desconsiderar os laudos periciais (revista da Autora);

- da culpa exclusiva do lesado ou da concorrência de culpas (revistas da Interveniente Acessória 1, da Autora e da Ré);

- do erro no cálculo do lucro cessante (revistas da Interveniente Acessória 1, da Autora e da Ré).

O que significa que fica indiscutida, e consequentemente transitada, a condenação da Ré a pagar à Autora a quantia de 47.055,85 € (12.534,85 € referentes a notas de crédito, 22.521,00 € referentes à substituição de garrafas, 10.000,00 € referentes à destruição dos produtos contaminados e 2.000,00 € referentes a transportes).


III – Os factos

Das instâncias vêm fixada a seguinte factualidade:

           

Factos provados

A) A autora é uma sociedade comercial que se dedica à actividade de exploração, engarrafamento e comercialização de água de mesa.

B) A ré é uma sociedade comercial que se dedica ao fabrico e comercialização de cápsulas invioláveis para todo o tipo de garrafas e outras embalagens, que pertence ao denominado “Grupo Novembal”.

C) No exercício da actividade de ambas, a autora começou a adquirir cápsulas à ré, para as suas garrafas de água de 0,33, 0,50 e 1 litros, no ano de 2001.

D) Ainda no exercício da actividade de ambas, a autora encomendou, no início de Setembro de 2003, 410.400 cápsulas à ré, pelo valor de € 2.244,89.

E) Dessas 410.400 cápsulas, 311.600 eram da referência “...” e 98.800 da referência “...”.

F) A ré, em cumprimento do acordado, procedeu à entrega dessas 410.400 cápsulas na fábrica da autora, sita em ..., ..., ..., em 09 de Setembro de 2003.

G) A entrega foi efectuada por uma empresa transportadora contratada pela ré, denominada “Transportes Azkar (Portugal), S.U, Lda”, que recebeu a carga proveniente de ... e transportada por “Transportes Azkar, S.A”.

H) No dia 19.09.03, a autora enviou à ré o fax, cuja cópia se encontra a fls. 26 e 27.

I) A autora explora e comercializa a denominada “Á...”.

J) A autora, nos seus laboratórios, faz o controlo bacteriológico e físico-químico da água.

[Inexiste alínea K) no acórdão]

L) Utiliza tecnologia adequada e tem os máximos cuidados de higiene em todo o processo de captação e engarrafamento; utiliza uma embalagem tipo PET, sendo a garrafa produzida e esterilizada no local.

M) Toda a metodologia garante a máxima qualidade de um produto natural e extremamente delicado como é a água.

N) A autora no ano de 2000 obteve o “certificado de conformidade”, norma NP ENISO 9002 (1995), emitida pela SGS e implementou o sistema HACCP (Auto controlo de riscos e pontos críticos).

O) Houve negociações entre autora e ré com vista a fixar uma indemnização pelos prejuízos sofridos.

[Inexiste alíena P) no acórdão recorrido]

Q) As caixas com as cápsulas foram carregadas nas instalações da ré no dia 5 de Setembro de 2003, tendo sido emitida a respectiva guia de transporte.

R) Juntamente com as cápsulas destinadas à autora, foram igualmente transportadas cápsulas produzidas pela ré e destinadas às empresas “S...” e “D...”.

S) O primeiro destes dois destinatários recebeu as duas paletes com cápsulas sob condição devido ao facto de “... terem sido transportadas com materiais com cheiro nauseabundo podendo ter contaminado o produto em causa ...” .

T) A “D...”, por seu turno, apresentou uma reclamação por escrito invocando ter sido detectado “..intenso cheiro a criolina ou algo semelhante ”.

U) As duas referidas empresas procederam à devolução das cápsulas que haviam recebido nas suas instalações.

V) Na sequência das reclamações apresentadas por aquelas duas clientes, a ré enviou um fax à “Azkar” dando conta do ocorrido e solicitando informações sobre   o assunto.

X) Em resposta, foi a ré informada da ocorrência de um “... acidente no transporte de uma mercadoria proveniente de ... ...”.

Z) Mais tarde, a “Azkar” informou a ré que no dia 05.09.2003 ocorreu um acidente na rota ... – ... e que, em consequência desse acidente, as mercadorias (cápsulas) da ré foram afectadas pelo derrame de um produto químico denominado Zotal.

W) No dia 10.10.2003 a ré confirmou a sua reclamação junto da “Azkar”, através do fax de fls. 98, que aqui se dá por reproduzido.

Y) Em resposta, a “Azkar” aceitou as reclamações apresentadas pelas referidas clientes da ré (“S...” e “D...”) e manifestou disponibilidade para chegar a acordo quanto às indemnizações a pagar. Mais informou a ré que não aceitava a reclamação apresentada pela ora autora com fundamento no facto de a mercadoria ter-lhe sido entregue corretamente.

[manteve-se a ordem alfabética das alíneas W) e Y) constante do acórdão recorrido]

AA) A ré reconhece ser responsável pela qualidade dos produtos que comercializa e pela entrega dos mesmos em boas condições.

AB) O transporte em causa foi efectuado nos termos das condições que haviam sido acordadas entre a ré e a empresa espanhola “Transportes Azkar, SA”.

AC) A autora recebeu da “Transportes Azkar Portugal, Lda.”, a carga sem colocar qualquer reserva na guia de transporte.

AD) No transporte da mercadoria destinada à Autora e antes da chegada a ... uma embalagem transportada juntamente com a que se destinava à autora verteu um produto denominado ZOTAL.

AE) A interveniente “Transportes Azkar, S.A.” celebrou com a interveniente “ACE INSURANCE, S.A. – S.V. SUCURSAL EN ESPAÑA” o contrato de seguro de responsabilidade civil junto a fls. 214 a 234.

AF) A interveniente “Transportes Azkar, S.A.” celebrou com a interveniente

“GROUPAMA PLUS ULTRA, S.A.” o contrato de seguro de responsabilidade civil, com o n.º ...15, junto a fls. 202 a 213 e 327 a 336.

AG) Ao transporte das cápsulas destinadas e entregues à Autora correspondeu a guia de remessa n.º 2030933.

AH) Entre o dia 10 e o dia 18 (Data corrigida) de Setembro de 2003, as cápsulas vendidas pela ré entraram no normal processo de produção e foram aplicadas nas embalagens de água, as quais foram distribuídas pelos diversos clientes da autora.

AI) A autora utilizou as cápsulas no normal processo de enchimento das embalagens de água.

AJ). Ao menos parte das cápsulas fornecidas à Autora sofreram uma contaminação, nos termos do incidente assente em AD).

AL). As cápsulas atingidas libertavam um odor a creolina, o qual era claramente percetível aquando da abertura da cápsula da garrafa, tornando a água nelas contida imprópria para venda ao público consumidor.

AM) A autora só tomou conhecimento no dia 18 de Setembro de 2003 da anomalia verificada nas cápsulas.

AN). Nesse mesmo dia – 18.09.03 – a autora deixou de utilizar as cápsulas ainda não aplicadas.

AO) A autora já tinha utilizado 351.432 cápsulas.

AP) A ré averiguou o sucedido e acabou por concluir e comunicar que, de facto, as cápsulas (ao menos parte delas) que havia vendido à autora estavam contaminadas com um produto químico líquido (Zotal) que causava odores anormais.

AQ) Naquela data de 18-09 (Data corrigida face ao que consta do facto AM), alguns clientes da autora, a quem foram distribuídos os lotes que continham as referidas cápsulas, começaram a apresentar diversas reclamações de não conformidade do produto.

AR) Em consequência das cápsulas contaminadas, aplicadas nas garrafas entretanto fornecidas e distribuídas no mercado, seja-o quanto aos fornecimentos de garrafas em que as cápsulas haviam sofrido contaminação, seja-o quanto àquelas em que foram usadas cápsulas com aquelas outras fornecidas/entregues/armazenadas e/ou garrafas com aquelas outras transportadas e/ou armazenadas, a autora emitiu notas de crédito a favor dos seus clientes, no montante de € 12.534,85, ou seja:

a) Nota de crédito n.º 125, emitida em 29.09.03, a favor de “F...”, no montante de € 961,80;

b) Nota de crédito n.º 126, emitida em 29.09.03, a favor de “L...”, no montante de € 1.998,71;

c) Nota de crédito n.º 127, emitida em 29.09.03, a favor de “A. S...”, no montante de € 728,66;

d) Nota de crédito n.º 140, emitida em 30.09.03, a favor de “Gestiretalho”, no montante de € 1.294,35;

e) Nota de crédito n.º 143, emitida em 30.09.03, a favor de “Gestiretalho”, no montante de € 406,53;

f) Nota de crédito n.º 144, emitida em 30.09.03, a favor de “Gestiretalho”, no montante de € 179,28;

g) Nota de crédito n.º 145, emitida em 13.10.03, a favor de “Gestiretalho”, no montante de € 992,74;

h) Nota de crédito n.º 148, emitida em 15.10.03, a favor de “Gestiretalho”, no montante de € 3,98;

i) Nota de crédito n.º 175, emitida em 19.12.03, a favor de “L...”, no montante de € 3.071,72;

j) Nota de crédito n.º 176, emitida em 19.12.03, a favor de “E...”, no montante de € 2.854,08.

AS) Noutros casos, a autora procedeu à substituição (troca directa) das garrafas fornecidas a clientes em que as cápsulas haviam sofrido contaminação, como daquelas       em que foram usadas cápsulas com  aquelas outras fornecidas/entregues/armazenadas e/ou garrafas com aquelas outras transportadas e/ou armazenadas, importando o valor/preço das águas assim substituídas/trocadas em € 22.521,00.

AT) A autora procedeu ao transporte do produto devolvido pelos clientes e ao seu armazenamento, o que implicou custos, cujo montante exacto não se apurou.

AU) A A. suportou custos com a destruição do produto contaminado e daquele que foi recolhido/devolvido por respeitar às garrafas em que foram incorporadas cápsulas/rolhas fornecidas no mesmo transporte e/ou de outras em contacto com aquelas.

AV) Para esse efeito contratou uma empresa, cujos serviços importaram na quantia de € 10.000 (sem IVA).

AX) Devido ao incidente originado pelas cápsulas contaminadas, a autora perdeu clientes, cuja identificação e valor das aquisições médias anteriores se não apurou e, pelos menos parcialmente, devido ao incidente originado pelas cápsulas contaminadas, a autora deixou de fornecer água aos seguintes clientes: Gestiretalho,S.A. e Escola Secundária S...; Escola M... – S...; Escola Secundária C... e Escola D....

Facto aditado: Se não fosse o incidente originado pelas cápsulas contaminadas, a “Gestiretalho” continuaria a comprar água à Autora por tempo indeterminado, mas não superior a 2 anos.

Facto aditado: A perda do cliente Gestiretalho, SA pela A. em razão, pelo menos parcial, do incidente originado pela contaminação das cápsulas traduziu-se num prejuízo económico indeterminado, mas não superior a € 2.000.000,00.

AZ) O principal cliente da autora era a sociedade “Gestiretalho – Gestão e Consultadoria para a Distribuição a Retalho, S.A.”.

AAA) A autora fornecia a água marca ...” e marca própria (P... e F...) a distribuidora do grupo J..., desde 01.09.1996, sendo-o na ocasião à Gestiretalho.

AAA) A presença de odores anormais que se verificaram nas embalagens onde foram utilizadas as cápsulas vendidas pela ré, foi, entre outros factos/incidentes, invocada/convocada pela “Gestiretalho” para resolver o contrato de fornecimento com a Autora.

[A repetição da alínea AAA) consta do acórdão recorrido]

AAB) A conta corrente da “Gestiretalho”, depois de resolvido o contrato de fornecimento, apresentava um saldo devedor de € 489.120,36 EUR, inexistindo evidência contabilística do respectivo pagamento.

AAC) A “Gestiretalho” convocou (também na acção que correu termos em ... e versou sobre a cessação do relacionamento entre as partes) a inexistência da obrigação de pagar/satisfazer o saldo devedor entre as partes, alegando a compensação com contracrédito sobre a Autora, sendo um dos fundamentos deste o dano sofrido por via do incidente em causa nestes autos.

AAD) Desde que resolveu, o contrato em Setembro de 2003, a “Gestiretalho” não voltou a celebrar qualquer outro contrato de fornecimento com a autora, nem voltou, consequentemente, a comprar-lhe água.

AAE) A “Gestiretalho” tinha adquirido água à autora no montante (sem IVA) de € 955.164,00 em 2000, € 837.166 em 2001; € 920.609,00 em 2002 , e entre Janeiro e Setembro de 2003 231.829,58 euros, a qual se refere a 6 meses de fornecimento.

AAF) A A. após a data do incidente em causa criou uma estrutura própria de distribuição no A..., sendo que em 2004 e 2005 ali operaram dois vendedores, tendo sido adquirido equipamento de apoio logístico (computador/tablet e programa de facturação).

AAG) A empresa da autora tinha no mercado, à data do acidente, uma boa imagem.

AAH) No caso em apreço foi transportado juntamente com as mercadorias (cápsulas) da ré um produto denominado “Zotal”.

AAI) O Zotal é um poderoso desinfectante, composto por fenilfenol, com um cheiro muito intenso e que é muito utilizado no campo e, em especial, em quintas, estábulos e currais.

AAJ) O transportador sabia que, ao transportar as cápsulas produzidas pela ré, juntamente com o “Zotal”, verificando-se uma fuga, aquele produto poderia contaminar essas cápsulas.

AAL) Os controles de qualidade, aprovados pela entidade certificadora, foram efectuados, pela autora.

AAM) A autora estava obrigada, de acordo com plano interno de controlo de qualidade aprovado por entidade certificadora, a estabelecer e manter actividades de inspecção para assegurar que os produtos comprados e recepcionados, no caso concreto cápsulas para as garrafas, estavam em bom estado e em condições de poderem ser utilizados.

AAN) As cápsulas foram recebidas pela autora aparentemente em boas condições (i.é., sem evidências de contaminação).

AAO) Do plano de controlo em vigor à data não constava qualquer tipo de controlo do cheiro das cápsulas, mas apenas quanto à “cor, deformadas ou queimadas, existência de outras cápsulas, poeiras ou insectos”.

AAP) O controlo era efectuado através do plano de amostragem, ou seja, das 108 caixas de cápsulas foram controladas 03 caixas de cápsulas.

AAQ) As cápsulas vinham acondicionadas em embalagens de plástico transparente, hermeticamente fechadas por vácuo que, por sua vez, vinham dentro de caixas.

AAR) O controlo visual era efectuado sem a abertura do plástico.

AAS) O Verão é a época de maior produção na fábrica da autora.

AAT) O stock de cápsulas da autora, em 9 de Setembro de 2003, encontrava-se praticamente esgotado.

AAU) A autora recebeu, em 1993, o Prémio Internacional de qualidade atribuído pelo “...”.

AAV) O sector em que se insere a actividade da autora – captação e comercialização de água para beber – é sensível a problemas de qualidade.

AAX) As cápsulas, quando foram transportadas do armazém para a zona de enchimento, ainda iam dentro das embalagens de plástico.

AAZ) Na zona de enchimento o ar é constantemente renovado, para evitar a contaminação da água com odores e cheiros.

AAAA) Quando chegaram à zona de enchimento, as cápsulas foram introduzidas num tambor em aço inox.

AAAB) O manuseamento das cápsulas na Autora foi feito através do uso de luvas e máscaras.

AAAC) A intervenção da interveniente “Transportes Azkar (Portugal), Lda.” no transporte iniciou-se em ..., quando a viatura proveniente de ... lhe entregou a carga para distribuição, com destino a ....

AAAD) A carga destinada à autora não foi entregue à “Transportes Azkar (Portugal), Lda.” conjuntamente com outra carga expedida pela “Embalaplás”.

AAAE) O produto que contaminou as cápsulas foi entregue em ....

AAAF) O transporte de Zotal fez-se em embalagem apropriada.

AAAG) Ao menos parte das mercadorias destinadas à autora ficaram contaminadas por terem estado em contacto com o Zotal.

AAAH) A “Transportes Azkar S.A.” comunicou o sinistro à “Groupama Plus Ultra, S.A.”, na pessoa da correctora/mediadora de seguros identificada na alínea seguinte, por carta datada de 4 de Dezembro de 2003, recebida em 15 de Dezembro do mesmo ano, nos termos de fls. 338 dos autos.

AAAI) Carta recebida pelos serviços mesmos/próprios da Groupama, através de outra missiva datada de 20.07.2004, subscrita pela mediadora de seguros “Llerandi Y Viciana S.A.”, conforme doc. de fls. 337/338.

AAAJ) A “Groupama” respondeu à referida carta da “Llerandi Y Viciana, S.A.” por carta de 28 de Julho de 2004, rejeitando a reclamação, conforme fls. 339 dos autos.

Mais se considera provado com base na prova pericial que a demonstração de resultados da autora é a que consta do anexo I, fls. 1207 do relatório pericial, a margem bruta foi de 65,4% em 2001: 60,09 em 2002; 78, 4% em 2003; de 75,4% em 2004 e 73,6% em 2005;

Mais se considera provado por certidão que:

i. A AA intentou a acção 490/04.... cuja certidão dos articulados, sentença e acórdão de recurso, se encontram juntos a fls., 908 a 1008 e cujo restante teor se dá por reproduzido.

ii. No art. 18 a 22º da petição a AA alega que o seu cliente suspendeu as encomendas de águas durante Janeiro, Fevereiro e Março de 2003,

iii. Que tal seria um estratagema para a forçar a aceitar uma redução substancial dos preços em vigor ou para provocar o termo das relações contratuais

1. Nos factos provados dessa acção consta que:

Facto 27 - “Em 6.12.2002, foi detectado um odor e sabor a mofo em garrafas pertencentes aos lotes ... (com validade até Abril de 2004) e ... (com validade até Maio de 2004). (resposta ao quesito 7°)”

Facto 28 - “Esta anomalia poderá ter sido causada pela utilização de paletes molhadas. (resposta ao quesito 8°)”

Facto 29-“Em 6.1.2003, foi detectado um cheiro anómalo por um cliente de uma das lojas P... de ..., em garrafa de 0,33 1, pertencente ao lote ..., (com validade até Outubro de 2004). (resposta ao quesito 9°)”

Facto 30 - “Esta anomalia foi causada por contaminação por hidrocarbonetos, tendo a própria Autora aventado a hipótese da contaminação ter tido origem num determinado solvente por ela utilizado para limpeza de colas das máquinas rotuladoras. (resposta ao quesito 10°)”

 Facto 31 - “Este solvente é composto por hidrocarbonetos, é volátil, miscível em água, tóxico e nocivo para o homem, não sendo aconselhada a sua utilização na indústria alimentar. (resposta ao quesito 1O-Aº)”

Facto 32 - “Em 31.1.2003, foi detectada uma coloração amarelo-esverdeada e sedimentos brancos, por um cliente de uma das lojas P..., numa garrafa de 5 1, pertencente ao lote ... (com validade até Junho de 2004). (resposta ao quesito 11°)”

Facto 33 -“Esta anomalia foi causada pela existência de sedimentos areníticos. (resposta ao quesito 12°)”

Facto 34 -“Em 18.7.2003, foi detectado um sabor a gasóleo, por um cliente de uma das lojas P... de ... em garrafa de 51, pertencente ao lote ... (com validade até Janeiro de 2005), tendo o cliente manifestado muita apreensão pelo facto da sua mulher ter ingerido a água e se encontrar grávida. (resposta ao quesito 13°)”

Facto 35 -“Esta anomalia foi causada por contaminação por hidrocarbonetos. (resposta ao quesito 14°)”

Facto 36 -“Em 4.8.2003, foi detectado um resíduo semelhante a musgo, pelo gerente de uma das lojas P... de ..., em garrafa de 0,33 1, pertencente ao lote ... (com validade até Julho de 2005). (resposta ao quesito 15°)”

Facto 37 -“Esta anomalia foi causada pela existência de filamentos de PET provenientes da préforma. (resposta ao quesito 16°)”

Facto 38 -“ Em Setembro de 2003, foram detectados odores anómalos em garrafas de 1 1 pertencentes ao Lote ... (com validade até Setembro de 2005). (alínea AA da especificação)”

Facto 39 -“Esta anomalia foi causada por contaminação por creolina. (alínea AB da especificação)”      

Facto 40 - “Em Setembro de 2003, foram detectados odores anómalos em garrafas  pertencentes ao lote ... (alínea AC da especificação)”.

Facto 41 - “Esta anomalia foi causada por contaminação por creolina. (alínea AD da especificação)”

Facto 42 - “Esta anomalia foi detectada por três clientes, um da loja P... do ... (...), outro da loja P... e outro de uma das lojas P.... (resposta ao quesito 17°)”

[Eliminou-se a repetição dos factos 31 a 40 constante do acórdão recorrido]

Factos não provados

1. O conhecimento da situação pela A. foi-o apenas em 19.09.2003;

2. Na ocasião em que foi verificada a situação a Autora tinha já consumido 353.400 cápsulas;

3. A contaminação foi-o também da água contida nas garrafas em que foram aplicadas as cápsulas/rolhas, tornando-a biologicamente imprópria para consumo humano;

4. Os lotes em que foram utilizadas as cápsulas respeitantes à guia de remessa n.º 2030933 foram todos atingidos;

5. Os odores e humidades acabaram por contaminar outras embalagens que estavam armazenadas ou foram transportadas conjuntamente;

6. O custo para a A. de distribuição - transporte e recolha - resultante do levantamento de todo o produto colocado no mercado importou em mais de € 18.000,00;

7. A autora teve ainda de proceder à higienização, para eliminação dos maus cheiros, de toda a unidade fabril;

8. [retirado em função da alteração pela Relação da alínea AX dos factos provados]          

 9. [retirado em função do segundo aditamento pela Relação à alínea AX dos factos provados]

10. Apenas e só como consequência dos odores anormais que se verificaram nas embalagens onde foram utilizadas as cápsulas vendidas pela ré, a “Gestiretalho”, resolveu, com efeitos imediatos, o contrato de fornecimento da água marca ...” e marca própria;

11. Se não fosse o incidente originado pelas cápsulas contaminadas, a “Gestiretalho” continuaria a comprar água à autora;

12. De qualquer modo (mesmo sem o incidente) a Gestiretalho deixaria de comprar água à Autora;

13. Para compensar a perda de clientes, por causa do incidente em apreço nos autos, é que a autora realizou um reforço da frota de distribuição;

14. … e viu aumentados os seus custos com transportes;

15. A mais do provado sob AAF), a A. após a data do incidente em causa nos autos teve necessidade de criar uma estrutura própria de venda, o que obrigou a investimentos em novos armazéns, viaturas, pessoal e equipamento de facturação;

16. A criação desta estrutura própria de distribuição resultou também da necessidade de assegurar directamente ao consumidor, por pessoal da própria autora, a continuidade da qualidade da água e esclarecer que o incidente verificado resultou não da falta de qualidade desta mas antes da contaminação da cápsula;

17. Por causa do incidente a A. implementou um armazém em ..., com 25 vendedores e apoio logístico, para desenvolver as vendas directas em toda a região Norte;

18. Implementou um armazém em ..., com 10 vendedores e apoio logístico, para desenvolver as vendas na região Centro;

19. O armazém de ... foi implementado mediante a colocação de 8 vendedores;

 20. A aquisição de novos equipamentos, nomeadamente viaturas de transporte e venda directa foi consequência directa e imediata do evento em causa nestes autos;

21. Os investimentos realizados para se adaptar às novas exigências de mercado ascenderam a € 4.500.000,00;

22. O incidente ocorrido com as cápsulas contaminadas acabou por ser comentado e divulgado e a imagem da autora saiu seriamente afectada e, até hoje, ainda não foi recuperada;

23. As condições contratuais acordadas entre a ré e a empresa transportadora, a interveniente “Transportes Azkar, S.A.” foram as constantes do documento nº 13, junto a fls. 100 a 106, nos termos do qual a interveniente “Transportes Azkar, S.A.” estava obrigada a:

- “…. Não juntar as nossas paletes com produtos ou substâncias perigosas para o contacto alimentar;

- a garantir que as nossas mercadorias não serão transportadas junto a produtos tóxicos, nem em veículos que os hajam transportado sem uma limpeza prévia;

- ….toda anomalia ocorrida durante o serviço, deverá ser-nos comunicada por escrito no prazo máximo de 24H;

24. O transporte em que se verificou a contaminação das cápsulas por derrame de Zotal foi, por sua vez, materialmente efectuado pela “Transportes Azkar Portugal, Lda.”;

25. A contaminação das cápsulas fornecidas à autora com o “Zotal” ocorreu em todas as cápsulas;

26. A contaminação das cápsulas fornecidas à autora com o “Zotal” ocorreu apenas em parte das mesmas;

27. A autora não procedeu à verificação das cápsulas, nem no momento da sua recepção, nem posteriormente antes de iniciar a colocação das mesmas nas garrafas de água;

28. A factura emitida em nome da firma “F...” no dia 29.09.2003, foi-o no dia de saída da mercadoria das instalações da autora;

29. A factura emitida à firma “L...” com o nº ... no dia 29.09.2003, foi-o no dia de saída da mercadoria das instalações da autora;

30. A factura nº ... emitida no dia 23.09.2003 em nome da firma “A..., Lda.”, foi-o no dia de saída da mercadoria das instalações da autora;

31. O transportador descarregou as cápsulas à entrada do armazém da autora e foi por causa do vento que se fazia sentir que o cheiro não foi detectado;

32. A mais do provado sob AAAF), o transporte de Zotal fez-se de acordo com todas as regras de transporte e segurança para este tipo de mercadorias;

33. O derrame de Zotal ocorreu no troço após ...;

34. O derrame de Zotal ocorrido foi-o em razão de um problema na embalagem de Zotal, que derramou o referido produto.

35. Já após o conhecimento da contaminação respectiva pela A. foi expedida mercadoria, mormente para o cliente P.../Gestiretalho.

[Do acórdão recorrido não consta qualquer elenco dos factos não provados, mas na apreciação da impugnação da matéria de facto apenas se encontra determinada a alteração do elenco constante da sentença de 1ª instância quantos aos pontos 8 e 9; encontrando-se diversas outras situações em que expressamente se confirma o juízo probatório de ‘não provado’]


IV – O direito

1 - da ilícita rectificação da sentença

Acerca da rectificação da sentença, por referência aos artigos 666º e 667º do CPC de 1961 (substancialmente idênticos às disposições dos artigos 613º e 614º do vigente CPC) o Prof. ALBERTO DOS REIS (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Reimpressão, 1984, pgs. 130, 131 e 134) ensina:


(…) O princípio da intangibilidade da decisão judicial, formulado no art.º 666º, pressupõe que a sentença ou despacho reproduz fielmente a vontade do juiz; se houve erro material na expressão dessa vontade, e, se por qualquer circunstância, a vontade declarada na sentença ou despacho, não corresponde à vontade real do juiz, a regra da intangibilidade não funciona. Não faz sentido que subsista vontade diversa da que o juiz teve em mente incorporar na sentença ou despacho.
    Deve, pois, ser lícito ao juiz ajustar, mediante rectificação, a vontade declarada à vontade real. Eis o sentido e a razão de ser do art.º 667º; em harmonia com eles se deve interpretar e aplicar a sua disposição.
    Do qui fica exposto é legítimo tirar duas conclusões:
   1ª             O artigo não tem aplicação quando houve erro de julgamento, e não erro material na declaração da vontade do juiz;
  2ª           O artigo é de aplicar, qualquer que seja a causa ou a forma do erro material.
      Expliquemos.
      Importa distinguir cuidadosamente o erro material do erro de julgamento. O erro material dá-se quando o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da sentença ou despacho não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real. O juiz queria escrever «absolvo» e por lapso, inconsideração, distracção, escreveu precisamente o contrário: «condeno».
      O erro de julgamento é espécie completamente diferente. O juiz disse o que queria dizer; mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra os factos apurados. Está errado o julgamento. Ainda que o juiz, logo a seguir, se convença de que errou, não pode socorrer-se do art.º 667º para emendar o erro.
(…)
      É necessário que as circunstâncias sejam de molde a fazer admitir, sem sombra de dúvida, que o juiz foi vítima de erro material: quis escrever uma coisa e escreveu outra. Há-de ser o próprio contexto da sentença que há-de fornecer a demonstração clara do erro material. Suponhamos que todas as considerações e todos os dizeres da sentença ou despacho inculcam nitidamente que a acção vai ser julgada procedente; o juiz afirma claramente que o autor tem razão e que é infundada a defesa do réu; mas, ao chegar á decisão, escreve «Julga a acção improcedente», em vez de «Julgo a acção procedente». O lapso é manifesto; o art.º 667º autoriza-o a corrigir o erro, declarando a acção procedente.
      Nesta hipótese estamos perante um erro de escrita, e não perante a nulidade do nº 3 do art.º 668º (oposição entre os fundamentos e a decisão). Esta nulidade pressupõe um vício lógico, e não um erro de escrita.
(…)
      O art.º 667º também fala de erro de cálculo. Este erro há-de também evidenciar-se através do despacho ou sentença ou das peças que o precederam. No caso de erro de cálculo o juiz escreveu o que quis escrever; mas devia ter escrito coisa diversa. Errou as operações do cálculo; e porque as errou, chegou a resultado diferente do que chegaria, se as operações estivessem certas. Aqui o erro material ainda será, na maior parte dos casos, mais palpável do que na hipótese de simples erro de escrita.
      Dissemos que o artigo é de aplicar, qualquer que seja a causa ou a forma do erro material. A fórmula «ou quaisquer inexactidões materiais devidas a omissão ou lapso manifesto» é significativa. Uma vez que se esteja perante uma inexactidão material, qualquer que seja a causa dela, e qualquer que seja a forma que revista, é legítimo o funcionamento do artigo.

 A Autora pediu a condenação no pagamento de uma quantia indemnizatória acrescida de juros legais desde a citação. Na sentença o tribunal apreciou a pretensão indemnizatória, considerando-a parcialmente fundada, quantificando-a em valor inferior ao peticionado. E no desenvolvimento da sua fundamentação passou a apreciar o pedido de juros remuneratórios nela inserindo: «Às quantias arbitradas acrescerão juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal desde a citação e até efectivo e integral pagamento - cfr. art. 805º n.º 2, al. b), 806º, n.º 1 e 2 e 566º n.º 1, todos do Código Civil».

  No dispositivo da sentença, porém, exarou-se:

«... julgo a acção parcialmente procedente, por provada e, em consequência, condeno a Ré a satisfazer à Autora a quantia de 1.673.136,09 (um milhão, seiscentos e setenta e três mil, cento e trinta e seis euros e nove cêntimos).

Absolvo-a do mais peticionado.»

Resulta manifesto do teor da fundamentação da sentença que o juiz apreciou a pretensão de juros moratórios, considerando-a fundada, ocorrendo um manifesto lapso na omissão de qualquer referência aos mesmos na parte dispositiva da sentença (o juiz declarou menos do que aquilo que realmente tencionava declarar); sendo que a absolvição ‘no mais’, aí constante se refere apenas à parte da pretensão indemnizatória que não foi reconhecida (o excedente do pedido de indemnização), e não a tudo o mais peticionado (o excedente do pedido de indemnização e o pedido de juros moratórios).

Assim, e em face do ensinamento acima referido, não se nos oferece dúvidas que nos encontramos perante um erro material cuja rectificação foi lícita, não ocorrendo ofensa aos artigos 613º e 614º do CPC.

Improcede nesta questão o recurso.

2 – da nulidade do acórdão por omissão de pronúncia quanto aos danos não patrimoniais

A Autora deduziu recurso de apelação subordinado delimitando como questões a apreciar no recurso: o erro na decisão de facto, não haver lugar a recurso à equidade por demonstrado o quantitativo do dano, subsidiariamente pela inadequação do juízo equitativo, e haver lugar a indemnização pelo dano não patrimonial da afectação da sua imagem/reputação comercial.

A Relação, por seu turno, julgou improcedente o recurso subordinado da Autora.

Ora, consistindo a omissão de pronúncia na violação do dever de se pronunciar sobre as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, é patente que a Relação, ao julgar totalmente improcedente o recurso subordinado da Autora se pronunciou sobre todos os fundamentos do recurso. Não havendo, por isso, omissão de pronúncia.

Essa circunstância não impede, porém, que essa pronúncia não esteja fundamentada; ou seja, que não sejam indicadas as razões que determinaram o sentido daquela pronúncia.

E é nesse campo da falta de fundamentação, por não se encontrar no acórdão recorrido qualquer consideração a propósito dos danos não patrimoniais, que entendemos (de acordo com o princípio ‘jura novita curia’ – artº 5º, nº 3, do CPC)  ser de apreciar a invocada nulidade.

 Nesse conspecto, se é certo que na ‘fundamentação de direito’ do acórdão recorrido nenhuma consideração se encontra a propósito do dano não patrimonial, não é menos certo que a Relação apreciou essa questão aquando da análise da impugnação da matéria de facto.

 A Autora na sua apelação impugnou a matéria de facto impetrando se desse como provado que «o incidente ocorrido com as cápsulas contaminadas acabou por ser comentado e divulgado e a imagem da autora saiu seriamente afectada e, até hoje, ainda não foi recuperada».

 A Relação, considerando (pg. 28 do acórdão recorrido) que «… é provável que esse problema tenha sido comentado, tanto mais que deu origem à não aquisição de águas por alguns clientes, mas não existem meios de prova que permitam concluir que “a imagem da AA foi por causa disso seriamente afectada”, entendeu ser de manter o juízo probatório negativo quanto a tal facto. E concomitantemente extraiu a consequência jurídica desse juízo probatório relativamente ao invocado dano não patrimonial ao afirmar: «Deste modo, nesta matéria a AA não logrou demonstrar com segurança a própria eclosão do dano não apenas a sua dimensão».

 Temos assim que, ainda que de forma muito sucinta e incompleta, a Relação justificou a improcedência do recurso quanto ao dano patrimonial.

 E sendo entendimento consolidado que só releva como nulidade da sentença a falta absoluta de fundamentação, teremos de concluir que tal vício não ocorre no caso.

  Improcede nesta questão o recurso.

3 – da nulidade do acórdão por ininteligibilidade da fórmula do cálculo do lucro cessante

 O acórdão recorrido, ao fixar equitativamente a indemnização pelo lucro cessante, erigiu como instrumento de cálculo a fórmula

Média mensal de vendas x duração do contrato x lucro médio x concausalidade

e na sua concretização utilizou o valor de 70.113,53 € como valor da média mensal de vendas com base no facto provado AAE e o valor de 74,5% como lucro médio, referido como resultando da dedução ao valor das vendas dos ‘custos das vendas (excepto pessoal e investimento)’.

Insurgem-se a Interveniente Acessória 1 e a Ré contra tal concretização do cálculo porquanto o acórdão não determina como alcançou os apontados valores daqueles factores, dessa forma tornando ininteligível a decisão.

 Conforme o prescrito na al. c) do nº 1 do art.º 615º do CPC, a sentença é nula quando «ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível».

  Segundo o ensinamento de ALBERTO DOS REIS (op. cit., pg. 151): «A sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos».

 A ambiguidade ou obscuridade relevante não é apenas aquela que possa afectar a decisão (o dispositivo), podendo encontrar-se nos respectivos fundamentos. No entanto, e conforme resulta da construção verbal da disposição legal, não é qualquer ambiguidade ou obscuridade que provoca a nulidade da sentença, mas apenas aquela que torna a decisão ininteligível. Ou seja, quando a decisão e o raciocínio que lhe está subjacente (o silogismo judiciário) não se logra entender, por surgir como enigmático, impenetrável, inacessível.

 Tal situação não se verifica relativamente ao acórdão recorrido uma vez que ela deixa bem definida a formulação que utilizou no cálculo da indemnização pelo lucro cessante. E se, porventura, a quantificação de algum dos factores que utilizou não apresenta uma justificação de como se alcançou tal valor isso não implica que tenha a virtualidade de tornar aquela formulação ininteligível, por enigmática, impenetrável, inacessível.

 Pelo contrário, o acervo probatório carreado nos autos e o elenco factual fixado pelas instâncias aliados à fundamentação expendida no acórdão recorrido, delimitam com precisão um território cognitivo que permite exercer adequadamente a apreciação crítica da correcção da escolha/quantificação dos factores em causa (média mensal das vendas e lucro médio).

 A menor ou inexistente justificação dos valores utilizados, nesse contexto, não os tornam enigmáticos, impenetráveis ou inacessíveis.

 Isso mesmo é reconhecido pelos Recorrentes na medida em que não sentem qualquer dificuldade em indicar e justificar os valores que consideram correctos/adequados.

 Não é correcto que, como afirmam, tais valores sejam insindicáveis.

    Improcede nessa questão o recurso.

4 - da nulidade do acórdão por ininteligibilidade e omissão de pronúncia na apreciação da matéria de facto

Segundo a Interveniente Acessória 1 o tribunal elaborou a sua decisão sem considerar e referir determinados documentos constantes dos autos, não só omitindo a análise crítica dos mesmos e a pronúncia sobre as questões relacionadas, em violação do disposto no art.º 607º, nº 4 do CPC, como tornando a decisão sobre essas questões ininteligíveis.

            Labora, no entanto, em manifesto erro.

Desde logo porquanto a ininteligibilidade relevante para efeito do art.º 615º do CPC é a da decisão da causa e não a mera ininteligibilidade de um argumento utilizado no percurso decisório.

 Mas também porquanto essa situação não se verifica quanto à afirmação de que se não provou que a mercadoria foi distribuída depois das 18 horas; essa afirmação não só é por si só assertiva como vem acompanhada da explicitação dos elementos probatórios em que se baseou essa apreciação. Não há aí qualquer ininteligibilidade; pelo contrário, o recorrente entendeu muito bem o raciocínio do tribunal de forma que pode identificar e arguir o erro de julgamento de que entende padecer tal consideração factual.

Já quanto à violação do disposto no art.º 607º, nº 4 do CPC se dirá que a exigência de exame crítico das provas aí determinada se deve entender como exigindo que a decisão relativa à fixação do elenco factual seja suportada por critérios de racionalidade, e não arbitrários, especificados em função e por referência à prova produzida. Ele não exige uma referência individualizada a todo e qualquer elemento probatório constante dos autos e muito menos, que essa referência seja isenta de imperfeições ou vícios. É que nessa situação já não estamos no domínio da falta de exame crítico da prova (invocável como omissão de pronúncia), mas de erro nesse exame (invocável como erro de julgamento da matéria de facto).

 E o que manifesta resulta da argumentação do recorrente é que pretende imputar ao tribunal recorrido, como mais adiante no seu recurso imputa, erro de julgamento na apreciação das circunstâncias factuais a que se reporta.

   Improcede nessa questão o recurso.

5 - da violação de lei de processo pela Relação ao não conhecer / incluir certos factos

A Interveniente Acessória 1 começa por imputar ao acórdão recorrido a violação a lei de processo ao não conhecer de parte da sua impugnação da matéria de facto com fundamento em que se tratava de factos não alegados; mas acaba por restringir o âmbito dessa alegação (art.º 635º, nº 4, do CPC) à apreciação de dois factos – o conteúdo da demonstração de resultados da Autora e a expedição de mercadoria depois da detecção do defeito – que entende estarem demonstrados por documento com força probatória plena.

       Vejamos se assim é.

 Como é sabido são muito limitados os poderes do Supremo Tribunal de Justiça relativamente à fixação da matéria de facto. Basicamente estes cingem-se aos casos em que ocorre violação do direito probatório material, nos termos dos artigos 674º, nº 3, 607º, nº 4, 663º, nº 2, e 679º do CPC).

Invoca a Interveniente Acessória 1 que o quadro da demonstração de resultados anexo ao relatório pericial deve ser considerado na sua totalidade e não apenas quanto à quantificação da margem bruta, e isso porquanto está provado por documento com força probatória plena.

 Por outro lado, entende, também, que ao contrário do constante do acórdão se encontra provado por documento com força probatória plena a expedição de mercadoria após o conhecimento do defeito.

 O acórdão recorrido aditou ao elenco dos factos provados que «com base na prova pericial que a demonstração de resultados da autora é a que consta do anexo I, fls. 1207 do relatório pericial, a margem bruta foi de 65,4% em 2001: 60,09 em 2002; 78, 4% em 2003; de 75,4% em 2004 e 73,6% em 2005».

 Sendo a prova pericial de livre apreciação pelo tribunal (art.º 391º do CCiv) não tem fundamento a invocação de força probatória plena para esse tipo de prova. E, por outro lado, de tal facto aditado não resultam apenas provados os quantitativos indicados da margem bruta; esta referência específica mais não é do que um mero realçar de uma das circunstâncias constantes da demonstração de resultados que o tribunal considerava mais relevante (e que vislumbrava vir a usar como factor de cálculo da indemnização) mas não restringe o âmbito factual afirmado: a demonstração dos resultados é a que consta de fls. 1207 dos autos em papel; toda ela (e em particular a margem bruta).

 Não há fundamento para alteração dessa factualidade por parte deste Tribunal.

Vinha da 1ª instância considerado como não provado que «já após o conhecimento da contaminação respectiva pela A. foi expedida mercadoria, mormente para o cliente P.../Gestiretalho», sendo que a Relação não procedeu a qualquer alteração da matéria de facto susceptível de alterar esse facto. E na fundamentação jurídica do acórdão recorrido, ao apreciar-se a questão da imputação de culpa à Autora, conclui-se não ser possível tal imputação porquanto não ficou demonstrado que as mercadorias tenham sido expedidas depois (em manifesto lapso escreveu-se ‘antes’) da detecção da contaminação que ocorreu no dia 18SET cerca das 18 horas (fls. 56 do acórdão).

  Contra tal se insurge a Interveniente Principal 1 invocando que aquele facto resulta provado por confissão (constante da réplica na acção 490/04.... referida no elenco factual) e documento com força probatória plena.

   Está fora dos poderes cognitivos deste Tribunal apreciar a conduta da Relação em só ter referenciado aquela acção 490/... na parte constante da certidão de fls. 909 a 1008 (petição inicial sem os 326 documentos com ela apresentados, contestação sem os documentos com ela apresentados, sentença e acórdão da Relação) e não já também na parte constante da certidão de fls. 1634-1750 e 1758 (tréplica e documentos com ela apresentados) por tal situação não se enquadrar em nenhuma das situações previstas no art.º 674º, nº 3, do CPC; designadamente por a mesma não constituir em si mesma violação do direito probatório material.

   Mas já compete ao Supremo Tribunal de Justiça verificar se em face do conteúdo daquela certidão constante dos autos resulta a demonstração, com força probatória plena, do indicado facto.

  Foi junta aos autos certidão da réplica apresentada pela aqui Autora na referida acção 490/... e documentos que a acompanhavam (fls. 1364-1750 e 1758, nos autos em papel– refª ..., ... e ..., de 22 e 27JUN2017, na árvore do processo viewer; refª ..., ... e ... nos formulários dos requerimentos, na versão electrónica do processo – sendo que nunca conseguimos obter explicação cabal para esta ‘esquizofrenia’ do sistema informático de atribuir duas referências distintas para o mesmo documento).

  Dessa réplica constava, e no que para a questão em apreciação releva, a afirmação pela Autora de que as garrafas de águas contaminadas fornecidas ao P.../Gestiretalho pertenciam ao lote ... e haviam sido entregues em 19JUL2003; mais se afirmava que com essas garrafas e destinadas à mesma entidade haviam sido expedidas outras, pertencentes ao lote ..., mas nas quais não haviam sido utilizadas as cápsulas contaminadas com Zotal (artigos 100 a 103 dessa peça processual).

  E com ela foram apresentadas as guias de remessa 464 e 465 emitidas pela Autora relativas à expedição em 18SET2003 de água ‘P...’ para o armazém na ... da Gestiretalho e as correspondentes ‘Guias de Saída do Produto’ (fls. 1748v, 1749, 1749v e 1758 dos autos em papel).

A Autora não impugnou nenhum desses documentos, limitando-se, naquilo em que os comenta, a afirmar que deles não se extrai o pretendido pelo apresentante dos mesmos (fls. 1742 dos autos em papel).

  Ao aferir da força probatória de tais documentos importa começar por referir que a certidão do processo 490/..., enquanto documento autêntico, só tem força probatória plena, em conformidade com o disposto no art.º 371º do CCiv, naquilo que é realizado e percepcionado pelo funcionário que a emitiu; ou seja, e no caso, que é uma cópia fidedigna da réplica e documentos com ela juntos na acção de que foi extraída. Não tem for efeito, atribuir a natureza de documento autêntico à quelas réplica e documentos. Eles continuam a ter ‘a força probatória dos originais’ (usando a expressão utilizada nos artigos 383º e 386º do CCiv).

  Em segundo lugar, haverá de afastar a relevância probatória das afirmações constantes da réplica oferecida na acção 490/..., por força do disposto no art.º 355º, nº 3, do CCiv: «A confissão feita num processo só vale como judicial nesse processo».

   Resta por aferir o valor probatório das guias de remessa e das guias de saída do produto relativamente aos factos em apreço: expedição após as 18 horas de 18JUL2003 e entrega ao destinatário no dia 19JUL2003.

   Resulta dos factos assentes nos autos (factos provados AH, AM e 2º aditamento da Relação, ponto 38-41) que as mercadorias afectadas fornecidas ao P.../Gestiretalho correspondiam aos lotes ... e .... Facto que, aliás, se mostra indiscutido.

Está também indiscutido que as mercadorias em causa são as expedidas em 18SET2003.

   As guias de remessa 464 e 465, datadas de 18SET2003, não referem a que lote pertenciam as águas aí referidas. No entanto elas estão associadas a guias de saída do produto que indicam a mercadoria expedida por referência ao respectivo lote.

   A guia de saída do produto referente à guia de remessa 464 indica que a mercadoria expedida provinha dos lotes ..., ..., ... e ..., nela não se encontrando qualquer referência ao lote .... Por seu turno a guia de saída do produto referente à guia de remessa 465 indica que a mercadoria expedida provinha dos lotes ..., ... e ...; igualmente não fazendo qualquer referência ao lote ....

Daí que apenas se possa concluir que desses documentos resulta afirmado que em 18SET2003 foram expedidas para o P.../Gestiretalho águas provenientes do lote ....

Desses documentos extrai-se, ainda que essa expedição foi efectuada em dois veículos distintos – P-...5 a da guia 464 e P-...3/..-..-FC a da guia 465.

Quanto à hora dessa expedição ocorre discrepância entre os dois tipos de documentos: enquanto as guias de remessa indicam como hora da carga as 17:30 e 17:40 as guias de saída do produto indicam como hora do carregamento 18:00 e 20:11.

Considerando que as guias de remessa são documentos elaborados nos serviços administrativos previamente à efectiva expedição da mercadoria e através de formulários informáticos, de tal forma que contêm indicações que só posteriormente à sua impressão vêm a ser incorporadas, manuscritas, no documento (designadamente a matrícula da viatura em que a mercadoria é expedida e o número de paletes em que vai acondicionada), temos que a indicação da hora de carga que nelas é inscrita é meramente indicativa, mais consentânea com a indicação automatizada da hora da elaboração da guia de remessa do que com o efectivo carregamento da mercadoria. A guia de saída do produto, porque necessariamente elaborada depois da guia de remessa porquanto tem a indicação do respectivo número, e consequentemente mais contemporânea do facto, e porque elaborada manualmente, e consequente com efectiva verificação e não de forma automatizada, afigura-se como mais fidedigna relativamente à indicação da hora do carregamento.

Em face do que se pode concluir conterem os referidos documentos a declaração de que as águas fornecidas ao P.../Gestiretalho em 18SET2003, provenientes do lote ..., foram carregadas nos respectivos veículos que as levariam ao destino pelas 18:00 e pelas 20:11 horas desse mesmo dia.

Os documentos em causa são documentos particulares emitidos pela Autora, cuja autoria e conteúdo não foram por esta impugnados, pelo que, em conformidade com o disposto no art.º 376º do CCiv, fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor; mas não mais do que isso.

A esse propósito escreveu VAZ SERRA (BMJ, 112, pg. 69):
«A eficácia probatória dos documentos diz respeito somente à materialidade das declarações neles feitas ou dos factos neles referidos, não aos efeitos jurídicos que essas declarações ou factos possam produzir. Ora dispor que os factos se consideram exactos na medida em que forem contrários aos interesses do autor do documento (…), não é estatuir acerca da força probatória do documento, mas acerca da eficácia dos factos nele mencionados.
Se as declarações vinculam o seu autor na medida em que foram contrárias ao seu interesse, não é porque o documento prova que o vinculam, mas por outra ordem de considerações: o documento prova apenas que as declarações foram feitas.
Outro problema é o de saber se, provado terem elas sido feitas, devem ou não vincular quem as fez (…).»

E desenvolvendo o seu raciocínio especificamente quanto aos documentos particulares (na nota 800-a):
«(…) a força probatória plena dos documentos particulares resulta do reconhecimento da parte ou das partes, isto é, de se verificar que as declarações constantes destes documentos emanam do seu autor. Assim, o seu valor probatório baseia-se nas mesma razões em que se funda o da confissão: a experiência ensina que ninguém confessa contra o seu interesse um facto que não é verdadeiro e, portanto, se está averiguado que o documento provém de certa pessoa, a declaração nele contida representa uma confissão dessa pessoa, de sorte que os documentos particulares têm valor probatório pleno nos mesmos termos em que se justifica para a confissão, quer dizer, quando os factos nele declarados sejam contrários ao interesse do declarante

Provada a autoria de um documento particular não autenticado fica plenamente provada a materialidade da emissão das declarações (de ciência ou de vontade) nele contidas; mas quanto às consequências jurídicas dessas declarações elas serão as do regime que couber à natureza das mesmas.
«Assim se compreenderem factos desfavoráveis ao declarante, sendo então declarações confessórias, o seu valor probatório é o que consta do nº 2 do artigo 358º e do artigo 360º (indivisibilidade da confissão). Ficam plenamente provados os factos desfavoráveis, se a declaração for dirigida à parte contrária ou a quem a represente; não perante terceiros» (MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA, Comentário ao Código Civil, Universidade Católica Editora, 2014, pgs. 858-859).

Sendo certo que a expedição da mercadoria depois das 18 horas constituirá, na economia da acção, um facto desfavorável à Autora, não é menos certo que a declaração da ocorrência desse facto constante dos documentos em análise não foi dirigida à parte contrária, mas antes a terceiro – a Gestiretalho.

Consequentemente, e de acordo com o disposto no art.º 358º, nº 2, do CCiv, tal declaração confessória não goza de força probatória plena quanto ao facto declarado, ficando antes sujeita à livre apreciação do tribunal, e excluída dos poderes de cognição deste Supremo Tribunal.

Mas ainda que assim que se tivesse por demonstrada a expedição depois das 18 horas, tal facto não tinha a virtualidade de infirmar, como é pretensão da Interveniente Acessória 1, o facto não provado 35: «Já após o conhecimento da contaminação respectiva pela A. foi expedida mercadoria, mormente para o cliente P.../Gestiretalho».

Se é certo que que a sentença da 1ª instância refere que a Autora teve conhecimento da contaminação da água pelo Zotal «na tarde daquele mesmo dia» 18SET2003 (fls. 1875 dos autos em papel) e no acórdão recorrido se refere ter esse conhecimento ocorrido cerca das 18:00 horas (fls. 2284v e 2296v dos autos em papel; pgs. 32 e 56 do acórdão), não é menos certo que não levaram essa circunstância ao elenco dos factos provados, donde apenas consta: «AM) A autora só tomou conhecimento no dia 18 de Setembro de 2003 da anomalia verificada nas cápsulas».

Não tendo ficado estabelecida a hora a que ocorreu o conhecimento da anomalia no dia 18SET2003 não se pode afirmar que o carregamento ocorrido às 18:00 e 20:11 desse mesmo dia tivesse sido posterior àquele conhecimento e, consequentemente, não se impõe qualquer alteração do facto não provado 35.

Nem se justifica determinar a baixa do processo para apurar a hora desse conhecimento (Art.º 682º, nº 3, do CPC), porquanto, como se explicará, tal circunstância não tem influência no desfecho da causa.

            Improcede nesta questão o recurso.

6 - da violação da lei de processo pela Relação ao considerar confessado o limite da dano emergente

A Relação, considerando que o documento constante de fls. 1173 dos autos constituía uma confissão extrajudicial relevante, aditou ao elenco factual: «A perda do cliente Gestiretalho, SA pela A. em razão, pelo menos parcial, do incidente originado pela contaminação das cápsulas traduziu-se num prejuízo económico indeterminado, mas não superior a € 2.000.000,00»; ou seja, considerou ter a Autora confessado que o lucro cessante não havia excedido 2.000.000,00 de euros.

 Contra isso se insurge a Autora, invocando que tal documento não configura uma confissão judicial, não se podendo dele extrair, como fez a Relação violando a lei, aquela limitação na quantificação do lucro cessante.

 A confissão, enquanto reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (art.º 352º do CCiv), pode ser feita em juízo ou fora dele (art.º 355º do CCiv), sendo que a declaração confessória, podendo revestir qualquer forma, tem, no entanto, de se mostrar inequívoca (art.º 357º do CCiv).

 O invocado documento de fls. 1173 (do V volume do processo em papel; existe, pelo menos, uma outra fl. 1173 no volume VII em virtude de erros de paginação ocorridos nesse volume) vem integrado no anexo 4 do primeiro relatório pericial (pode encontra-se esse anexo 4 na versão electrónica do processo nas páginas 28 a 36 e 1 a 45 dos ficheiros juntos em 13SET2013 sob as referências, no processo viewer, 3505257 e 3505228) é um fax em que se envia à Ré, a 17NOV2003, uma cópia de um ‘mail’ que a Autora afirma não ter conseguido enviar. O teor desse escrito encontra-se reproduzido logo de seguida, em qualquer das versões do processo, em carta enviada à Ré, datada de 18NOV2003 e assinada pelo gerente da Autora, expedida em 19NOV2003, registada com aviso de recepção, tendo o dito aviso sido, depois de assinado, sido devolvido com carimbo postal da estação de destino aposto em 25NOV2003.

  Nessa comunicação faz-se a indicação dos valores que a Autora peticionava a título de indemnização pelos danos causados pelo incumprimento contratual da Ré no fornecimento das cápsulas, aí se quantificando em 2.000.000,00 de euro o dano respeitante «à perda definitiva do n/ cliente Gestiretalho SA».

  Essa comunicação insere-se, como resulta do conjunto de documentos que constituem o referido Anexo 4, no âmbito do processo de reclamação apresentado à Ré e na fase de negociação da regularização da situação. Estamos no âmbito de um desenrolar de uma negociação tendente à obtenção de uma resolução consensual do litígio, sujeita não só a circunstâncias de estratégia negocial, como também de cedências e ajustamentos, dentro de uma lógica de ser preferível uma solução negociada imediatamente aplicável do que enfrentar os custos e dilações de uma resolução judicial.

  Nesse conspecto não se nos afigura que a quantificação, nos termos prefigurados no referido documento, do prejuízo resultante da perda do cliente Gestiretalho possa ser tida como uma declaração inequívoca (manifesta, clara, nítida, precisa, incontestável) do montante a que, na realidade, se traduziu esse dano, ao ponto de se constituir em declaração confessória. Antes temos que aquela declaração é apenas a indicação, dentro do processo negocial em curso, do valor que se entende ser aceitável para fechar um acordo imediato de resolução do conflito.

  Dessa forma concluímos ter a Relação violado o disposto nos artigos 357º e 358º do CCiv ao atribuir valor de confissão ao referido documento e, consequentemente, haver lugar a eliminar do acima indicado facto aditado a expressão «mas não superior a € 2.000.000,00».

      Procede nessa questão o recurso.

7 - da violação da lei de processo pela Relação ao desconsiderar os laudos periciais

 A Autora insurge-se, ainda, contra o facto de a Relação ter desconsiderado os laudos periciais relativamente à quantificação do prejuízo resultante da perda do cliente Gestiretalho; seis peritos unanimemente fixaram tal prejuízo em valor idêntico – 3.414.247 € e 3591774 €).

Não obstante ter por finalidade a percepção ou apreciação de factos para as quais sejam necessários conhecimentos especiais que o juiz não possui (art.º 388º do CCiv), o valor probatório da prova pericial é livremente fixado pelo tribunal (artigos 396º do CCiv e 489º do CPC).

O que leva a que se venha discutindo até que ponto é legítimo ao juiz, na livre apreciação da prova pericial, pôr em causa as conclusões extraídas pelos peritos com base em conhecimento que o juiz não domina.

A esse propósito ensinava ALBERTO DOS REIS (Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, 1985, pg. 185-186):
   «(…) O que com a regra da prova livre se quer exprimir é este ditame: o juiz não está adstrito, na apreciação da prova, a critérios ou normas jurídicas predeterminadas; avalia e pesa as provas com inteira liberdade, segundo a sua consciência ou o seu próprio juízo, sem ter de obedecer a comandos abstractos, formulados pela lei.
  É dever do magistrado tomar em consideração as provas produzidas; o que sucede é que, em vez de atribuir a cada uma das provas o valor que lhe cabe segundo tabela legal preestabelecida, goza do poder de lhe atribuir o valor que em seu próprio critério racional entender que a prova merece.
  Aplicando ao caso: É dever do juiz tomar em consideração o laudo dos peritos; mas é poder do juiz apreciar livremente esse laudo e portanto atribuir-lhe o valor que entenda dever dar-lhe, em atenção à análise crítica dele e à coordenação com as restantes provas produzidas
(…)
«nunca se pode, porém, afirmar que o magistrado fique escravizado ao parecer dos peritos ou inibido de exercer censura sobre ele».
(…)
Sendo que não quer com isso dizer-se que o juiz tenha «a faculdade de desprezar, arbitrária e caprichosamente, as conclusões dos peritos, como não pode reconhecer-se-lhe o poder de, por capricho ou arbítrio, saltar por cima da prova testemunhal; mas o princípio da prova livre não tem tal significação; nunca se entendeu no sentido de que seja lícito ao juiz decidir contra as provas produzidas».


  Temos que, partindo da compreensão que se é verdade que o julgador não pode funcionar como perito, não deve igualmente o perito funcionar como julgador, reservando-se sempre ao juiz o dever de apreciar criticamente o valor probatório da perícia (ac. da Relação de Évora de 6JUL93; BMJ, 299, 910). Daí resulta a margem de livre apreciação do juiz estará tanto mais limitada quanto o resultado da perícia se sustente em conhecimentos de natureza científica de todo estranhos ao conhecimento do juiz e que não suscitem quaisquer dúvidas (e.g., exames genéticos), podendo, no limite, gerar-se uma necessidade de ‘obediência’ estrita ao laudo pericial; mas, pelo contrário, estará tanto mais ampliada quanto o resultado da perícia se sustente em parâmetros a não rondar a certeza absoluta, mas que se baseiam eles próprios em previsões e apreciações subjectivas. Aí cabe ao juiz proceder a uma análise crítica do relatório pericial, em que relevam múltiplos elementos, designadamente a idoneidade dos peritos, a inteligibilidade, coerência e congruência do relatório pericial, a aferição dos métodos, técnicas e dados utilizados, em função dela, aceitando, modificando ou rejeitando a conclusão pericial, extrair a sua própria conclusão.

   Sendo que, de acordo com os limitados poderes do Supremo Tribunal de justiça relativamente à apreciação da matéria de facto estabelecidos no art.º 674º, nº3, a divergência das instâncias relativamente ao laudo pericial só é relevante nos casos de manifesta desadequação ou ilogicidade da sua fundamentação.

         O que não ocorre no caso.

Com efeito a não aceitação dos valores em que foi quantificado pelas perícias o prejuízo resultante da perda do cliente Gestiretalho encontra-se adequadamente fundamentado nas respectivas decisões, nos seguintes termos:

- na sentença


«De todo o modo e afrontando-se directa e imediatamente (o que se constituiu como “a parte de leão” da prova produzida, justificou a realização de duas caríssimas perícias e prolongou no tempo a realização do julgamento, com o que impondo-se algum detalhe e a afirmação clara do juízo formulado) a adequação ou prestabilidade ao objectivo [de avaliar a perda patrimonial implicada pela perda dos clientes alegados e, muito em especial, do cliente Gestiretalho], o método de cálculo do dano ou prejuízo usado em ambos os relatórios periciais não se afigura tê-lo sido o mais objectivável e afinado à averiguação pretendida… Desde logo, curiosa (por aparentemente incoerente com a opção seguida) se afirma a resposta dos Srs. Peritos da 2ª perícia, a fls. 17, quanto ao cálculo do dano da perda de clientes, nos termos da qual “do ponto de vista estritamente económico, o dano da perda de um cliente corresponde à perda da receita desse cliente, deduzida dos custos necessários à sua obtenção”…, no confronto já com a análise/cálculo/elaboração técnica constante do anexo I àquele relatório pericial, em “resposta” ao quesito 10º da perícia… De todo o modo, como bem se alcança da introdução naquele anexo inserta, o que está em causa é a opção por uma avaliação não estritamente económica, mas do impacto financeiro, sob a perspectiva dos saldos líquidos dos fluxos financeiros anuais perdidos… Ora, a mais das limitações anotadas no relatório mesmo (a falta de confirmação da qualidade histórica das contas da autora, a incerteza do cenário estimado ou a falta de possibilidade de confirmação dos pressupostos de projecção daquele) e daquelas objecções pertinentemente emergentes dos pedidos de esclarecimentos aos Srs. Peritos, por escrito e em audiência, nos termos documentados e registados, é, decisivamente, a questão (técnica ou, hoc sensu, teórica) da referência da quantificação do dano emergente da perda de clientes (e, como melhor se percebeu em sede de esclarecimentos, da perda do cliente Gestiretalho, sem mais) ao valor de um negócio ou duma empresa (a partir dos fluxos financeiros gerados no futuro) que se afigura imprestável a ter o dano assim calculado como o verificado. Com efeito, como se percebeu em sede de esclarecimentos em audiência, mas é desde logo afirmado pelos Srs. Peritos sob o ponto 6. daquele anexo I, uma variação mínima dos valores dos pressupostos (cuja consideração concreta e respectiva foi oportuna e pertinentemente objectada [Assim, a título exemplificativo, a consideração da perpetuidade, da manutenção da quota de mercado da A. e do peso relativo das vendas a um cliente com a expressão do P.../Gestiretalho, como do preço por litro da água, em sede de cenário estimado…] em sede de esclarecimentos e alegações em audiência) da fórmula de cálculo e o resultado alcançado varia em milhares de euros…
Sempre inviável a aquisição probatória [a depender, admita-se de uma hercúlea e por isso impossível, em meios e custos, análise da evolução da globalidade das empresas do sector e da comparação uma a uma com a Autora e ainda pela análise das características e evolução do mercado de águas na grande distribuição ao público (hipermercados)] da manutenção dos principais pressupostos das demonstrações do cenário estimado: preço por litro da água com o cliente P..., quota de mercado da A. nas águas de nascente e significado ou peso relativo do cliente mais significativo: P.../Gestiretalho…
Sem que se esqueça a insuficiência da análise quanto à orientação estratégica da Autora e da qualidade da gestão do negócio (como o reconhecem os peritos na página 11 do anexo sob consideração), muito dependente já/agora do conhecimento (inexistente) da evolução do mercado, agora do lado da grande distribuição ao consumidor. Na verdade, reconheça-se a insuficiência comparativa do cenário real, mesmo que apenas o da demostração de resultados da A., a partir dos balancetes de contabilidade da empresa, (que não, como era mister, a partir da consideração concreta da concorrência, mas, sobretudo, dos clientes da grande distribuição), ausente outrossim a consideração no cenário real após o incidente da verificação ou interposição de outros factores de diminuição das vendas e/ou da produção… E como não obstar também àquela avaliação matemática: a tendência (verificada a partir dos boletins juntos aos autos), não levada ao cenário estimado, de diminuição da quota de mercado da Autora, da diminuição sensível do preço da água por litro (uma realidade reconhecida em sede de esclarecimentos), dois dos três pressupostos principais do cálculo do cenário estimado… E como integrar a desconsideração do imprescindível aumento dos custos de produção no cenário estimado, a partir dos imprescindíveis investimentos na actualidade/qualidade e rentabilidade do equipamento e processo produtivo, cuja não realização no “cenário real” foi convocada pelo administrador/gerente, em sede de depoimento de parte, como a razão primeira para a descontinuidade da produção (?).»

- no acórdão

«Já referimos que esses relatórios (em especial o último no seu anexo I) fazem várias ressalvas e partindo de vários pressupostos, nomeadamente os seguintes pressupostos:
A) O preço do litro de água seria de 0,11 cêntimos. No decurso dos seus esclarecimentos os peritos reconhecem que esse preço desceu (era de metade da data do julgamento) e que o grosso das vendas ao P... (90%) era em garrafões de 5 litros, precisamente o que menos lucro dava à empresa;
b) depois, a margem de exploração é distinta consoante os diferentes clientes da autora, (o preço litro nos outros mercados começava em 0,15 e ia até 0,30 cêntimos).
c) o custo de transporte era até inferior quanto ao cliente “P...”.
A testemunha GG, ao contrário do afirma a RR confirma que as escolas da sua zona, ..., souberam e deixaram de comprar (+/- minuto 18).
d) o seu cálculo pressupunha a manutenção do contrato com esse cliente pelo período de 5 anos, reconhecendo que não sabem se este se ia manter (veja-se a ressalva no anexo I do 2º relatório):
Logo, teremos de concluir que, bem andou o tribunal a quo em divergir das conclusões periciais, pois, mesmo esses peritos admitem que com alterações das premissas o seu valor de avaliação é distinto do que consta no seu relatório. E, da restante prova não existe comprovação segura da possível duração do contrato com o P....
Note-se que o valor da peritagem tem necessariamente de ser substancialmente reduzido por 3 motivos simples.
Em primeiro lugar não está comprovado que o contrato com o P... fosse durar 5 anos. Bem pelo contrário, face aos elementos dos autos não seria expectável que durasse 1 a 2 anos tal como considerou a sentença dos autos. Veja-se que é a própria AA a admitir na sua petição junta a fls. 912 que em 2003 e devido em várias anomalias anteriores esse contrato esteve sem fornecimento durante 3 meses e que se pretendia “reduzir o preço da água ou provocar o termo das relações contratuais com a A” /art 22 da petição).
Depois, como referimos o valor de venda da água desceu substancialmente o que afecta o lucro da AA e por isso o valor do dano.
E, por fim, porque a peritagem adaptou uma perspetiva, salvo o devido respeito, errada. Ao invés de avaliar o valor da empresa AA deveria pura e simplesmente apurar o lucro concreto das vendas ao cliente “P...” e depois extrapolar o mesmo para um determinado período. Assim saberíamos quanto ganhou em 2002 e 2003 e quanto poderia ganhar em 2004, etc.
Pelo exposto não é necessário debater sequer o método utilizado pelos Srs. Peritos. Diga-se ao contrário, das considerações do tribunal a quo que, essa foi a mais adequada opção da perícia, pois, o mesmo é usado em larga medida no tráfego económico, mas para determinar o valor das empresas. Ora, neste caso o que importa é o valor concreto de um cliente, pelo que seria simples apurar o mesmo através do volume de vendas x margem líquida, o que não aconteceu.
Pelo exposto, o tribunal sabe que ocorreu um determinado prejuízo que este nunca pode ser superior ao apontado na perícia; mas que esta está largamente hiperbolizada. Pelo que, como limite superior indeterminado, mas máximo parece adequado utilizar o que foi exigido pela AA num documento escrito.»

  Resulta assim terem sido duas as linhas de argumentação das instâncias para desconsiderar o valor indicado nas perícias:

- a desadequação do critério utilizado para obter tal valor (método comummente aceite e usado para calcular o valor do negócio/empresa) uma vez que, ainda que se entenda que o dano da perda de cliente não se limite apenas ao dano económico (receitas perdidas deduzidas do lucro líquido) mas possa ter uma impacto financeiro (saldos líquidos dos fluxos financeiros perdidos), ele não corresponderá ao valor do negócio/empresa;

- a desadequação, porquanto do circunstancialismo de facto apurado nada indica que eles se viessem a verificar, mas antes que seriam diferentes, das previsões das perícias quanto à quantificação dos factores de cálculo considerados (preço da água, período de manutenção do contrato, preço do transporte).

  Tais linhas argumentativas mostram-se coerentes e congruentes para justificar a divergência do tribunal relativamente ao laudo pericial, não ocorrendo qualquer (e muito menos manifesta) desadequação ou ilogicidade que autorize a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça.

   Improcede nesta questão o recurso.

8 - da culpa exclusiva do lesado ou da concorrência de culpas

As instâncias consideraram não haver por banda da Autora qualquer contribuição causal/culpa relativamente à eclosão das consequências da contaminação das cápsulas fornecidas pela Ré; mas que essa contribuição causal/culpa, ocorrera relativamente à cessação do relacionamento comercial com a Gestiretalho, em função dos anteriores incidentes, a qual foi fixada em 40%.

     Contra esse entendimento se insurgem:

- a Interveniente Principal 1, imputando contribuição causal/culpa à Autora ao não ter controlo de odores quer na recepção das cápsulas quer no seu manuseamento no processo produtivo, bem como ao não evitar, depois de ter conhecimento da contaminação, a distribuição da água. Mais, a cessação do contrato com a Gestiretalho só se ficou a dever à anterior existência de incidentes. Daí que só possa ser responsabilizada pelo valor da mercadoria perdida e não já pela perda do cliente; no limite, e subsidiariamente, só deverá ser responsabilizada na proporção de 50%. Por outro lado, imputa de excessiva a margem da contribuição causal do incidente a que deu causa, no confronto com anteriores incidentes, para a cessação do relacionamento comercial com a Gestiretalho.

- a Autora, afirmando a menor relevância causal dos anteriores incidentes na cessação da relação comercial com a Gestiretalho, porquanto foram incidentes isolados e sem escala para levar à resolução do contrato, pelo que a sua quota parte de responsabilidade deveria ter sido fixada em 20%.

- a Ré, imputando de excessiva a atribuição de responsabilidade na perda cliente numa quota de 60%.

  Relembremos a factualidade relevante:

A autora vinha fornecendo, desde SET1996, água, sob a sua marca ... – e sob as marcas P... e F..., à distribuidora do grupo J..., à data dos factos em causa a Gestiretalho (AAA).

A água para consumo humano é um produto natural extremamente delicado e a actividade de fornecimento de água para consumo humano é sensível a problemas de qualidade (M e AAV).

Em 06DEZ2002 foram detectados odor e sabor a mofo em garrafas de dois lotes devido a utilização de paletes molhadas (27 e 28 do 2º ‘mais se considera provado’).

  Em 06JAN2003 foi detectado cheiro anómalo numa garrafa de 0,33l devido a contaminação por hidrocarbonetos utilizados no processo de limpeza das máquinas rotuladores (29 e 30 do 2º ‘mais se considera provado’).

Em 31JAN2003 foi detectada coloração amarelo-esverdeado num garrafão de 5l causado por sedimentos areníticos (32 e 33 do 2º ‘mais se considera provado’).

De JAN a MAR2003 a Gestiretalho suspendeu as encomendas à Autora (ii do 2º ‘mais se considera provado’).

Em 18JUL2003 foi detectado sabor a gasóleo num garrafão de 5l devido a contaminação por hidrocarbonetos (34 e 35 do 2º ‘mais se considera provado’).

  Em 04AGO2003 foi detectado um resíduo semelhante a musgo numa garrafa de 0,33l causado pela existência de filamentos de PET (36 e 37 do 2º ‘mais se considera provado’).

  Em SET2003 foram detectados, em lojas de ..., ... e ..., garrafas com cheiro a creolina (38 a 42 do 2º ‘mais se considera provado’, AL, AQ).

A Gestiretalho invocou todos esses incidentes, e não apenas o de SET2003, como fundamento da resolução do contrato de fornecimento que mantinha com a Autora, sendo que não ficou demonstrado que nenhum dos incidentes individualmente considerados tenha sido o determinante para essa resolução  (AAA bis e 10 , 11 e 12 não provados).

  É patente que numa actividade tão sensível a problemas de qualidade como é o abastecimento público de água a ocorrência de incidentes do jaez dos descritos põe seriamente em causa qualquer relação de fornecimento desse bem essencial e a idoneidade do respectivo fornecedor; tanto mais quanto esses incidentes são recorrentes e em curtos espaços de tempo (três incidentes entre DEZ-JAN e três incidentes entre JUL-SET). E que esse circunstancialismo se configura para a generalidade das pessoas como causa justificativa da cessação da relação de fornecimento de tal produto.

  Mas para além da consideração do que se afigura como a normalidade comportamental em função do critério do ‘bom pai de família’ (artigos 799º, nº 2, e 487º do CCiv) o elenco factual estabelecido nos autos demonstra o infundado da pretensão da Autora no sentido de que os incidentes anteriores ao de SET2003 foram considerados esporádicos e sem qualquer relevância para a decisão de resolução do contrato. Com efeito o que resulta dos autos é que não foi nenhum dos referidos incidentes individualmente considerados que determinou a resolução do contrato, mas a conjugação de todos eles, enquanto conjunto muito significativo de incidentes, que impôs a necessidade de pôr termo ao contrato de fornecimento.

  E não ocorre qualquer contradição entre essa apreciação e o facto aditado (‘Se não fosse o incidente originado pelas cápsulas contaminadas, a ‘Gestiretalho’ continuaria a comprar água à Autora por tempo indeterminado, mas não superior a dois anos’) na medida em que a eventualidade de continuidade do contrato na ausência do último incidente não inviabiliza a contribuição dos anteriores incidentes para a dinâmica contratual, designadamente para uma diminuição da confiança na qualidade dos produtos e consequentes ausência ou diminuição das quantidades encomendadas e na ponderação de substituição do fornecedor. Mais do que afirmar a irrelevância dos anteriores incidentes o que se pretendeu significar com tal facto, conforme resulta da fundamentação de fls. 27 do acórdão recorrido, é que, independentemente do incidente de SET2003, a relação contratual já se encontrava de tal modo degradada que não se vislumbra que pudesse perdurar por mais de dois anos.

  E nessa medida o que emerge dos autos é que o incidente provocado pelas cápsulas contaminadas foi ‘a gota de água’ que determinou a decisão de resolução, mas que ele só teve esse efeito dada a existência dos anteriores eventos; ou seja, que o incidente dos autos e os anteriores incidentes se encontram numa relação de interdependência causal da decisão de resolução, em pé de igualdade. O facto de o incidente dos autos se revestir de maior visibilidade dada a sua extensão e de ser o mais impressivo por ter sido o mais recente, que despoletou a resolução contratual, não elimina o facto da existência de anteriores incidentes, e que foram estes que ‘alanvacaram’ o desvalor do último (utilizando terminologia militar, o detonador/espoleta só faz explodir a bomba se esta tiver explosivo).

Nesse contexto temos que ambas as situações (os anteriores incidentes e o incidente dos autos) contribuíram de igual forma para o desfecho da resolução contratual, atribuindo a cada uma das situações uma quota de 50% na causalidade/culpa do dano da perda do cliente Gestiretalho.

Improcede, nesta questão, a revista da Autora. Mas procedem parcialmente as revistas da Interveniente Acessória 1 e da Ré.

  Discute-se, ainda, a contribuição da Autora para a eclosão do dano decorrente da contaminação da água pelas cápsulas fornecidas pela Ré, decorrentes da ausência de controlo na recepção das cápsulas e na sua introdução no processo produtivo e no facto de ter expedido águas depois de ter tido conhecimento da expedição.

       Relembremos o elenco factual relevante.

A Autora implementou um controlo de qualidade certificado que lhe impunha a inspecção aquando da recepção das cápsulas segundo o método de amostragem e que executou. Do plano de controlo não constava qualquer tipo de controlo de cheiro; segundo o plano deveria ser feito controlo visual quanto à cor, forma, queimaduras, existência de outras cápsulas, insectos ou poeiras. As cápsulas vinham acondicionadas em embalagens de plástico transparente, hermeticamente fechadas por vácuo que, por sua vez, vinham dentro de caixas que, por sua vez, vinham acondicionadas em paletes. As paletes contendo 108 caixas foram recebidas sem evidências de contaminação, aparentemente em boas condições, e examinadas três dessas caixas nada foi detectado; sendo que nem todas as cápsulas haviam sido contaminadas. Na zona de enchimento há uma constante renovação de ar e o pessoal usa luvas e máscaras; as cápsulas foram transportadas para a zona de enchimento ainda dentro das embalagens de plástico e aí foram introduzidas num tambor de aço inox (N, S, AM, NA, AAL a AAR, AAX a AAAB e AAAG).

           

Relativamente à alegada falta de controlo na recepção das cápsulas as instâncias pronunciaram-se:


«No caso, demonstradamente realizada a verificação/exame/controle do material entregue/recepcionado, de acordo com os procedimentos de controlo de qualidade existentes e até certificados externamente, sendo que nada se apurou quanto à possibilidade de detecção da situação pela Autora.
Sequer o facto de dois outros clientes de cápsulas terem detectado a contaminação se constitui como demonstrativo de que também a Autora se pudesse ter apercebido, se tivesse agido com a diligência exigível… Na verdade, prova absolutamente nenhuma de que os produtos/embalagens entregues à D... e S... (cfr. alíneas R) e ss. dos factos assentes) se encontrassem no mesmo estado daquele outro entregue à Autora, tanto mais quando se atente na volatilidade do composto contaminante…
Donde, provou a Autora a existência do vício e o momento da sua detecção e não provaram as Rés que o vício fosse perceptível/apreensível, mediante o uso de normais regras de comportamento e zelo, na ocasião da entrega da mercadoria…»


«(…) poder-se-ia mesmo assim defender que o controlo realizado (por amostragem de 3% do produto e apenas visual) não era adequado a cumprir o dever de cuidado e prevenção da AA. Mas, sempre com o devido respeito por melhor opinião, parece que esse dever, a existir nesta fase, teria de ser proporcionado à natureza objectiva e subjectiva da prestação. Ou seja à natureza, forma e embalagem do produto e à qualidade do fornecedor.
O produto vinha embalado em plástico em vácuo. Por isso, a sua contaminação por um composto químico durante o fabrico e transporte não seria previsível e expectável.
Depois, subjetivamente a Ré é uma empresa especialista (no decurso do julgamento foi afirmado que fornece as tampas de 80% do mercado de água nacional), por isso parece que a autora poderia confiar que ela e a sua transportadora evitariam a contaminação com creolina de uma tampa que iria ser incorporada em garrafas de águas.»

Relativamente à alegada falta de controlo na introdução das cápsulas no processo produtivo as instâncias pronunciaram-se:


«Sem a incorporação nas garrafas não existiram mercadorias contaminadas e queixas de clientes. Por isso, existe uma situação de concausalidade.
Mas, com o respeito por diferente opinião já não existe culpa civil da AA na não deteção dessa anomalia.
Por um  lado,  porque  o  grau  de  diligência  terá  de  ser  adequado  às  circunstâncias o caso.
Entre nós, em regra, o devedor obriga-se a cumprir de acordo com a diligência que lhe é exigível, densificada nos termos do critério do bonus pater familias, previsto no art. 487.º, n.º 2, e aplicável também à culpa contratual por via do art. 799.º, n.º 2, do CC.
Se o devedor, para cumprir, tivesse que desenvolver esforços superiores aos que lhe são exigíveis segundo aquele critério do bom pai de família (cf arts. 487.º, n.º 2 e 799.º, n.º 2), a falta de cumprimento não poderá ser culposa). Acresce que, no seu projecto alternativo o Prof. Vaz Serra defendia que «o tipo do bom pai de família é um tipo adaptável às várias situações, devendo ter-se em conta a relação em causa, a categoria do devedor, o seu estado ocasional e as demais circunstâncias».
Ora, dos factos provados resulta que não pode ser apontada à AA qualquer violação da normal diligência, pois, a mercadoria estava num armazém onde havia apenas um cheiro não intenso, sem anomalias nas caixas. E, o processo produtivo conforme factos provados que a interveniente bem tentou alterar sem o conseguir; era efectuado em ambiente fechado com os funcionários com mascaras e viseiras e por isso em conseguirem detectar a anomalia durante 8 dias de produção. Diga-se que esta situação por certo estranha, compreende-se porque a embalagem de plástico exterior que protegia as tampas não estava violada e foi através dos poros da mesma que a creolina contaminou as tampas. Logo, na conjugação destas circunstâncias concretas não existe qualquer violação do dever de cuidado da AA..»

Relativamente à alegada expedição após o conhecimento da contaminação as instâncias pronunciaram-se:


«Parece-nos, pois evidente que deveria a AA ter tomado precauções imediatas por forma a evitar a distribuição de água contaminada sob pena de ser responsabilizada por esses danos.
Mas, note-se que a única situação que lhe pode ser imputada é a entrega à sua cliente Gestiretalho dos dois lotes que deram origem a três reclamações de clientes no P..., P... e P... (Cfr, factos assentes acção 490/...). Ora, as lesantes não demonstraram que esse lote tenha saído das instalações antes da detecção da contaminação que ocorreu no dia 18.9 cerca das 18 horas da tarde. Logo, é evidente que não podemos imputar à AA a violação de qualquer dever de contenção do dano, pois, não se demonstrou que essa distribuição tenha ocorrido antes do seu conhecimento desse dano.»

A fundamentação expendida pelas instâncias quanto à apreciação da culpa do lesado, no caso a Autora, na eclosão do dano decorrente da contaminação da água pelas cápsulas fornecidas pela Ré, relativamente à alegada falta de controlo na recepção das cápsulas introdução das mesmas no processo produtivo afigura-se-nos fundada e respeitadora dos critérios legais; e porque originária de quem teve contacto com a globalidade da actividade probatória desenvolvida no processo, e por isso mais apto a avaliar os comportamentos dos intervenientes em função da concreta realidade envolvente, temos que deve ser por este Tribunal respaldada.

Já quanto à alegada expedição após o conhecimento da contaminação, e para além da determinação do exacto momento desse conhecimento, sempre haverá de chamar à colação a consideração de que a diligência devida é a que decorre das circunstâncias do caso e do que é exigível em função do padrão do bom pai de família. E daí decorre que que entre o momento em que chega uma notícia a determinado ponto de uma organização produtiva e o momento em que se determina o comportamento a seguir decorre necessariamente um hiato temporal, um tempo de reacção. Nessa conformidade o que era exigível à Autora era que, decorrido um período adequado (e por isso breve, mas não necessariamente imediato) ao referido tempo de reacção, tivesse agido no sentido de evitar a disponibilização da mercadoria aos consumidores; em particular, e tendo já ocorrido a sua expedição, tivesse emitido aviso ao destinatário dessa mercadoria da possibilidade de a mesma estar afectada pela referida contaminação. Mas quanto a isso nada foi apurado. Sendo que competia à Ré a demonstração de que tal não ocorreu.

Havendo de referir, a propósito, que o facto de a contaminação das águas expedidas só ter sido detectada pelos clientes das lojas de ..., ... e ... (42 do 2º ‘mais se considera provado’), ou seja, quando as mesmas haviam sido deslocadas do local da entrega para as lojas, encontrando-se já à disposição do público, não é suficiente, desde logo pela não localização temporal de tais eventos, para se poder presumir que não foi emitido pela Autora qualquer atempado aviso. Tornando-se desnecessário afrontar a polémica sobre a possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça fazer uso de presunções.

  Conclui-se, pois, que a Ré não logrou, como lhe competia (art.º 572º do CCiv) a demonstração de que a Autora omitiu atempado aviso da contaminação das águas expedidas para a Gestiretalho, resultando inverificada a culpa do lesado na eclosão do dano decorrente da contaminação da água pelas cápsulas fornecidas pela Ré.

Também, nessa questão, improcede a revista da Interveniente Acessória 1.

9 - do erro no cálculo do lucro cessante

O acórdão recorrido, identificando como o dano a indemnizar o decorrente da ruptura do contrato com a Gestiretalho, substanciou-o em dois prejuízos distintos: as despesas que a Autora teve de suportar com a ruptura do contrato (439.592,92 €) e o lucro cessante decorrente da perda desse cliente.

 Relativamente ao primeiro limitou-se, ao quantificá-lo, em aplicar ao montante das despesas a quota parte de responsabilidade da Ré.

  Já quanto ao lucro cessante, fazendo apelo à equidade, assumiu a quantificação desse lucro devia partir do valor das vendas deduzido do “custo das vendas (excepto pessoal e investimentos)”, pelo tempo expectável do contrato. E na quantificação desses factores atendeu à média de vendas e do lucro bruto do maior número de anos conhecidos, bem como fixou em dois anos a duração expectável do contrato; ao resultado encontrado aplicou, depois, a quota parte de responsabilidade atribuída à Ré.

  Contra isso se insurgem:

- a Interveniente Acessória 1, invocando erro no cálculo do valor das vendas e do custo das mesmas;

 - a Autora, invocando não haver lugar ao recurso à equidade, a errónea repartição de responsabilidades e que a duração expectável do contrato era de quatro anos;

 - a Ré, invocando a errónea repartição de responsabilidades e erro no cálculo do valor das vendas e do custo das mesmas.

 A falta de fundamento para recorrer à equidade, invocada pela Autora, tinha como pressuposto a alteração da matéria de facto no sentido de considerar provado, em função da prova pericial, o exacto montante do prejuízo decorrente da perda do cliente Gestiretalho; pressuposto esse cuja verificação foi afastada em função da acima decidido quanto ao valor da prova pericial, pelo que é manifesta a improcedência dessa questão.

  Também a questão da repartição da responsabilidade por tal dano se encontra já resolvida no ponto antecedente.

  No que toca à parte da indemnização correspondente aos custos incorridos, e uma vez resolvida a questão da repartição da responsabilidade, nada há neste momento a resolver.

   Resta a questão da quantificação do lucro cessante pela perda do cliente.

  De um ponto de vista estritamente económico esse lucro cessante consiste na diferença entre o montante das vendas e os respectivo custos (o que é directamente necessário para a produção do bem ou serviço e, por isso, varia em função da produção, designadamente matérias-primas – custos variáveis), pelo tempo de duração expectável da relação comercial.

  Mas em determinadas circunstâncias, em particular quando o cliente perdido é um cliente importante (como era o caso – AZ), esse dano pode revestir igualmente uma componente financeira em virtude de ganhos que se poderiam obter em função desse cliente e que se repercutiam em toda a actividade da empresa. Exemplificando: a possibilidade de, em função da maior quantidade, obter melhores preços na aquisição de bens e serviços, melhores condições de crédito bancário, e até maior atracção de outra clientela junto do mercado.

  A Relação para a quantificação do lucro cessante considerou apenas a vertente económica, não considerando a apontada vertente financeira; mas o certo é que nenhum dos recorrentes põe em causa esse critério, não podendo o Tribunal ir para além do que lhe é pedido.

   Além disso, não existe na matéria de facto apurada nenhum elemento com relevância para se poder aferir da existência de alguma vertente financeira relativamente à perda do cliente Gestiretalho.

  No que concerne ao volume das vendas está provado que ela ascendeu nos anos de 2000 a 2003 (este em apenas 6 meses) a (955.164,00 + 837.166,00 + 920.609,00 + 231.829,58) 2.944.768,58 €, do que resulta uma média mensal de 70.113,54 €.

  Mas dos autos resulta que em face dos incidentes ocorridos em DEZ2002 e JAN2003 a Gestiretalho não fez qualquer encomenda à Autora durante três meses; e que após esse período retomou as aquisições, mas um nível inferior ao anteriormente praticado e apenas até à resolução do contrato ocorrida em SET2003, na sequência do incidente dos autos; ao que corresponde uma média mensal de compras de (231.829,58 / 6) 38.638,26 €.

  Nesse contexto dir-se-ia, que se deveria atentar apenas á situação que vigorava no momento da resolução do contrato: uma redução substancial das vendas em função da crise contratual decorrente de prévios incidentes a que o incidente dos autos é alheio e que, nesse sentido, se deveria atender apenas à média de vendas referente ao ano de 2003.

  Cremos, no entanto, que a contribuição dos anteriores incidentes para a redução do volume de vendas está já integrada no cálculo da repartição de culpas; e que considerar apenas o volume de vendas de 2003 redundaria numa dupla consideração daquela circunstância.

  Temos, pelo exposto, por adequado como média mensal de vendas o referido valor de 70.113,54 €.

  A esse valor haverá de reduzir os respectivos custos variáveis (grosso modo o custo dos fornecimentos necessários à produção). Os custos fixos (e.g., os salários, investimentos, fornecimentos de serviços externos) não são dedutíveis uma vez que, apesar da perda do cliente, se mantêm inalterados.

  Não temos nos autos qualquer referência aos custos variáveis dos fornecimentos à Gestiretalho; mas encontramos no quadro da demonstração dos resultados constante da perícia efectuada (fls. 1207) a indicação dos custos variáveis (custo das vendas) globais da empresa. Não se afigurando que a estrutura de custos da mercadoria fornecida à Gestiretalho seja diferenciada da restante operação da Autora entendemos que se devem considerar os valores constantes desse quadro como atendíveis.

  Mas consideramos, também, que apenas nos devemos ater aos valores dos anos de 2001 e 2002, e não já aos de 2003. Este apresenta uma variação significativa (mais de 13 pontos percentuais) relativamente aos anos anteriores, indicadores da ocorrência de alguma circunstância especial – que consideramos ter sido a ausência e redução do volume de compras da Gestiretalho e a posterior cessação dessa relação comercial – susceptível de desvirtuar a exactidão de tal indicador (mais do que significar que a operação com a Gestiretalho tinha um elevado custo, cujo desaparecimento provocou um alívio dos custos de produção com o consequente aumento da margem bruta – como defende a Recorrente – afigura-se-nos que essa diminuição de custos resultará do aproveitamento de aprovisionamentos anteriormente efectuados considerando a existência da relação com a Gestiretalho e que determinaram a diminuição de custos e um aumento da margem bruta). Assim, dada a sua atipicidade, o ano de 2003 não se tem por considerável.

  Fazendo a média do custo das vendas de 2001 e 2002 obtemos uma margem bruta (lucro líquido) de (65,4% + 60,9% / 2) 63,15%.

 A duração expectável da duração da relação comercial era de dois anos, conforme consta do elenco factual fixado (‘Facto aditado’).

 Estamos, agora, em condições de utilizar os apontados factores no cálculo da indemnização pela perda do cliente Gestiretalho em função de equação formulada:


70.113,54 € (média mensal das vendas) x 63,15% (margem bruta) x 24 (meses de duração espectável do contrato) x 50% (imputação do dano) = 531.320,41 €.

 A esse montante acrescerá o correspondente à indemnização pelos custos incorridos (439.592,92 € x 50% de imputação do dano) – 219.796,46 €.

   O que perfaz o total de 751.116,87 €.

 Improcede, nessa questão, o recurso da Autora e procedem parcialmente os recursos da Interveniente Acessória 1 e da Ré.

Quanto ao valor dos recursos e custas

O valor da causa foi oportunamente fixado em 5.884.556,00 €.

O valor dos recursos para efeito de custas é, segundo o disposto no nº 2 do art.º 12º do RCP, por regra, o correspondente ao valor da acção; só assim não será se a sucumbência for determinável e o recorrente indicar o respectivo valor no requerimento de interposição do recurso, em que o valor será o da sucumbência.

No requerimento de interposição do recurso da Interveniente Acessória 1 não foi feita qualquer indicação do valor a atribuir ao recurso pelo que o valor do mesmo será o da acção.

No requerimento de interposição do recurso da Autora foi indicado como valor do mesmo 1.500.000 €. Mas tal valor não tem qualquer relação com a sua sucumbência, Com efeito peticionando uma indemnização de 3.414.247,00 € e obtendo uma condenação de 1.062.898,54 € a sua sucumbência é de 2.351.384,46 € (ou 2.304.292,61 € descontando a quantia correspondente à parte já transitada do acórdão recorrido). Mostrando-se a efectuada indicação da sucumbência inidónea vigorará a regra geral acima indicada, sendo o valor do recurso o da acção.

  No requerimento de interposição do recurso da Ré foi indicado como valor do mesmo 588.448,18 €. Tendo sido condenada a pagar 1.062.898,54 quando fixava o montante da sua responsabilidade em 474.541,36 € a sua sucumbência é de 588.357,18 €. Atenta a identidade de ordem de grandeza entre os valores referidos, tem-se por idónea a indicação do valor da sucumbência e fixa-se o valor do respectivo recurso em 588.357, 18 €.

  Por outro lado, tendo-se alterado o sentido da decisão importa alterar igualmente a condenação em custas (de parte e encargos) nas diversas instâncias, de acordo com o desfecho agora dado à acção: pedia-se a condenação a pagar 5.884.556,00 € e obteve-se uma condenação de 798.172,72 €. No que concerne aos recursos a imputação da responsabilidade por custas far-se-á tendo em conta o resultado na decisão, sendo irrelevante alguma procedência em questões laterais (e.g., matéria de facto) que não se repercutiram na decisão final.

  Por último haverá de proceder ao juízo de proporcionalidade do montante da taxa de justiça resultante da aplicação das tabelas e, em consequência, aferir da justificação para dispensar total ou parcialmente do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

  O remanescente da taxa de justiça (o que excede o já pago pelas partes em função do valor até 275.000 €) ascende, por cada impulso, na acção a (5.884.556,00 € - 275.000 € / 25.000 € = 224,38; 225 x 3UC’s x 102 €) 68.850 €; em cada recurso (com o valor da acção) a (225 x 1,5 UC’s x 102 €) 34.435 €; no recurso com o valor de 588.357, 18 € a (588.357, 18 € - 275.000 € / 25.000 € = 12,53; 13 x 1,5 x 102 €) 1.989 €.

  Tais valores, salvo quanto ao recurso de revista da Ré, afiguram-se-nos excessivos tendo em conta os factores delimitadores da fixação dos montantes das taxas (pagamento de bem/serviço/utilidade, racionalização de acesso e repartição de encargos), a justificar uma dispensa parcial do pagamento desse remanescente.

  Dispensa essa que será menor relativamente à acção que deu causa a uma grande alocação de recursos por parte do tribunal, se revestia de alguma complexidade, quer pela matéria, quer pelos meios de prova a apreciar (perícias), quer pelo número e extensão dos articulados e demais requerimentos. Já quanto aos recursos essa dispensa será maior dado que apesar de variados os recursos diziam respeito, em parte, a idênticas questões.

 Na fixação do quantitativo dessa dispensa atender-se-á, também, à conduta processual das partes e à capacidade contributiva evidenciada.           


V – Decisão

Termos em que, na parcial procedência dos recursos da Autora, da Interveniente Acessória 1 e da Ré, e sem prejuízo da parte já transitada do acórdão recorrido, se decide:

- eliminar do elenco factual a expressão “mas não superior a € 2.000.000”;

- condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de 751.116,87 € (setecentos e cinquenta e um mil cento e dezasseis euros e oitenta e sete cêntimos), acrescida de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento.

Custas:

- da acção, na proporção de 85% para a Autora e 15% para a Ré;

- da apelação da Ré, na proporção de 50% para a Ré e 50% para a Autora;

- da apelação da Interveniente Acessória 1 na proporção de 50% para a Interveniente Acessória 1 e 50% para a Autora;

- da apelação da Autora, pela Autora ;

- da revista da Autora, pela Autora;

- da revista da Interveniente Acessória 1 na proporção de 50% para a Interveniente Acessória 1 e 50% para a Autora;

- da revista da Ré na proporção de 50% para a Ré e 50% para a Autora.

Dispensa-se- o pagamento do remanescente da taxa de justiça na proporção de:

- na acção, 50%;

- nos recursos (com excepção do recurso de revista da Ré, em que não há lugar a qualquer redução), 75%.

                                              

Lisboa, 31MAR2022

Rijo Ferreira (relator)

Cura Mariano

Fernando Baptista