Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06P4806
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PEREIRA MADEIRA
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
ENUMERAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS
Nº do Documento: SJ200701180048065
Data do Acordão: 01/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ANULADO O ACÓRDÃO RECORRIDO
Sumário :
É nulo por violação dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, a), do Código de Processo Penal, o acórdão de Relação que confirmou a condenação do arguido na pena única de 25 anos de prisão por autoria de dois crimes consumados e um tentado de homicídio doloso qualificado, se o dolo repousa, afinal, numa hipótese condicional e, não, como devia, num facto provado «no momento da prática dos factos, estaria, para estes em concreto, capaz de se avaliar e de se determinar de acordo com a sua própria avaliação».
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. Nos autos de processo comum colectivo n.º.../05.4PBAMD da 9ª Vara Criminal de Lisboa, o Ministério Público, a fls. 636 e segs., requereu o julgamento do arguido AA, devidamente identificado, a quem imputa a prática de um crime de homicídio tentado previsto e punido nos arts. 22, 23, 73, 111 e 132, n.º1 e 2. als. f),g), i) e j) do Código Penal, e de dois crimes de homicídio qualificado previstos e punidos nas disposições conjugadas dos arts. 131 e 132, n.ºs 1 e 2 alíneas f), g) , i) e j) do Código Penal.
O Ministério Público deduziu ainda contra o referido arguido pedido de indemnização a favor do Estado no valor de 19.192,96 € com juros de mora legais.
Deduziram igualmente contra aquele arguido pedido de indemnização a fls.744 e segs, BB e mulher CC no montante de 148.000 € com juros de mora legais e em montante ilíquido a assistente DD a fls. 728 e segs.
Por acórdão de 5 de Maio de 2005, a fls. 1923 e segs, foi o arguido AA condenado por aqueles crimes na pena única de 25 anos de prisão e em indemnização à família das vítimas.
Enquanto prosseguia o julgamento, o arguido requereu a realização de segunda perícia médico-legal que lhe foi indeferida. Recorreu desse despacho
Suscitou incidente de recusa dos juízes, que, não obstante, invocando urgência do acto, prosseguiram com o julgamento. Interpôs também o arguido recurso desta decisão mandar prosseguir o julgamento.
A final a Relação de Lisboa, chamada a pronunciar-se sobre o caso decidiu negar provimento a todos os recursos do arguido.

Ainda inconformado, recorre o arguido ora ao Supremo Tribunal de Justiça assim delimitando o objecto do recurso [transcrição]:

1. O arguido, não concordando com o teor do relatório pericial psiquiátrico elaborado pelo INML Delegação de Lisboa, requereu, ao abrigo do disposto no art.° 158° nº 1 ala b) do CPP, segundas perícias
2. Para o mesmo pedido, também muito contribuíram os esclarecimentos prestados pelo médico perito, Dr. F... V..., em audiência de julgamento;
3. Tais esclarecimentos, de natureza técnica/científica, não estão de acordo com os critérios internacionais;
4. Para dar melhor sustentabilidade a tal requerimento, foi junto aos autos um relatório médico, subscrito pelo médico particular do arguido, Dr. V... R..., médico psiquiatra;
5. Também contribui para o pedido de realização de segundas perícias, o facto do relatório pericial, elaborado por dois médicos, conter algumas divergências entre si, particularmente no tocante à personalidade do arguido, ao tipo de doença, ao modo de poder ser tratável e outros;
6. Tribunal “a quo “ indeferiu a realização de segundas perícias, atendo-se ao relatório pericial;
7. Tribunal “a quo “, desvirtuou o exacto sentido e alcance desse normativo — art.° 158° nº 1 al. b) do CPP, fazendo uma apreciação algo arbitrária do próprio art.° 127° do CPP;
8. Com vista a dissipar quaisquer dúvidas sobre as condições psíquicas do arguido, mas sobretudo tendo em vista obter mais certezas do que aquelas que foram transmitidas pelo relatório pericial, impunha-se a realização de segundas perícias;
9. E tanto assim é, porque estão em causa conhecimentos técnicos, científicos, em que a margem de subjectivismos deve ficar limitada ao mínimo possível;
10. O entendimento que o Tribunal “a quo” fez sobre o pedido de segundas perícias, é não só contrário aos normativos indicados, o que gera uma nulidade insanável, como também viola o art.° 32° da CRP, inconstitucionalidade que expressamente se argui;
11. Por outro lado as perícias feitas, estão feridas de nulidade, uma vez que foram presenciadas totalmente pelos srs. Guardas prisionais, e não uma mera guarda á vista;
12. Os srs. Guardas prisionais ouviram todas as perguntas e respostas, inibiram o arguido de responder às perguntas colocadas, impediram-no de exercer os seus legítimos direitos, violando-se o disposto no art.° [?]
13. Apesar de ter sido deduzido o incidente de recusa de juiz, a Mma Juiz Presidente, entendeu continuar com os trabalhos da audiência de julgamento;
14. Fundamento esse seu despacho no facto do arguido estar preso, e essa situação se compaginar na figura de actos urgentes;
15. Com efeito o art.° 42° n°3 do CPP, atribui a esse recurso um efeito suspensivo, salvo no tocante aos actos indispensáveis e tidos por urgentes;
16. Não estava em causa qualquer acto indispensável, e muito menos urgente;
17. Os actos urgentes são aqueles indispensáveis ao bom andamento do processo, e nada — mais;
18. Não havia testemunhos com risco de serem perdidos ou qualquer outro tipo de provas;
19. Não se estava sequer minimamente perto do prazo máximo de prisão preventiva;
20. Dizer-se como nos dizem os acórdãos recorridos que havia perigo para a conservação da prova, é quase um eufemismo;
21. O recurso podia ter sido decidido antes de se expirar o prazo máximo dos 3o dias;
22. A urgência prevista no art.° 103° n°2 ala a) do CPP, deve ser entendida no sentido de que os actos referidos nesse preceito, também poderem ser praticados em qualquer momento, sem limitações de horas/dia, e apenas isso;
23. Foram aqui violadas, no nosso entender, as normas dos art.°s 42° n°3 e 103° n°2 ala a) do CPP, o que consubstanciam nulidades que expressamente aqui são arguidas;
24. Na determinação concreta da pena, o Tribunal a quo o Tribunal da Relação de Lisboa, não consideraram várias atenuantes que militam a favor do arguido, nomeadamente, o ser casado, ter uma filha menor, ser uma pessoa doente com problemas do foro psiquiátrico desde a infância, de tomar há larguíssimos anos, anti-depressivos, de no dia dos factos e no anterior, por não ter receita médica, não pôde tomar o anti-depressivo (Seroxat), de lhe ser reconhecida clinicamente uma impulsividade anormal, agravada em situações de stress ou confronto, o que foi o caso, o ter sido assaltado e baleado no Brasil, e outros;
25. O próprio relatório pericial, da personalidade, assim o considera;
26. As qualificativas consideras provadas face ao comportamento do arguido, concretamente as alíneas f) i) e j) do art.° 132° do CP, em bom rigor não se verificaram;
27. O arguido antes de ter sido detido não andava” fugido”;
28. O arguido viveu vários anos na Suíça, onde casou e teve uma filha actualmente menor, tendo vindo para Portugal por razões exclusivamente clínicas;
29. Em Portugal, viveu na Póvoa do Varzim, foi administrador do condomínio, sócio de dois clubes, controlado por algumas vezes pelas autoridades policiais em operações stop;
30. Teve contas bancárias, era público e notório o seu modo de vida;
31. O andar armado teve a ver com um assalto que sofreu no Brasil, onde foi baleado, e que veio a provocar uma verdadeira atracção por armas, e daí passar a andar armado;
32. Todas as suas armas foram adquiridas legalmente na Suíça;
33. Foi declarado contumaz num processo na Póvoa do Varzim, onde veio a ser absolvido, sendo um processo considerado de pouca importância;
34. Não houve premeditação por parte do arguido ao disparar contra os agentes da PSP que infelizmente vieram a falecer;
35. Deu-se a circunstância de serem agentes da PSP, porque se tivessem sido outros cidadãos, a fazerem exactamente o mesmo que fizeram esses agentes, o desfecho teria sido o mesmo;
36. É um facto que os agentes da PSP se encontravam fardados, e que o arguido sabia de quem se tratava, mas não foi por serem agentes da PSP que o arguido os baleou;
37. Fê-lo é certo, mas determinado em primeira linha pela sua doença, pelos impulsos que essa doença lhe transmitiu, chegando mesmo a sra perita a afirmar que a possibilidade de repetição de actos desta natureza é uma realidade...;
38. E esta explicação serve igualmente para “tentar “esclarecer a tal frieza de comportamento do arguido, ao disparar vários tiros para as vítimas;
39. Se o arguido naquela noite tivesse sido interpelado por outras pessoas que não agentes policiais, actuando esses do mesmo modo que o fizeram os falecidos agentes, isto é, ainda que no exercício das suas funções, os mecanismos de impulsividade e agressividade do arguido teriam sido exactamente os mesmos;
40. Não foi o facto das vítimas serem agentes da PSP que determinaram o comportamento do arguido, mas sim causas patológicas ligadas à sua doença;
41. Entendemos não se ter verificado um homicídio qualificado, uma vez que as qualificativas consideradas não tiveram na devida conta a situação clínica do arguido, os seus problemas patológicos, amplamente provados em vários documentos juntos aos autos;
42. Ainda que tal não seja o entendimento desse Supremo Tribunal, considerar-se adequada a pena de 23 anos de prisão para cada um dos dois homicídio e 14 anos para um homicídio na forma tentada, é, pelo menos para nós, um exagero;
43. A medida da pena do art.° 132° do CP, 12 a 25 anos, tem uma amplitude tal que não se compreende como é que, mesmo com várias atenuantes, com as vicissitudes das perícias, se aplica quase o máximo legal possível, para cada um dos homicídios, e catorze anos para o homicídio na forma tentada;
44. Submeter o arguido ao cumprimento de 25 anos de prisão, sem exigências de tratamento médico adequado, e com um período de tempo tão longo, é contribuir para que os tais níveis de impulsividade e agressividade que reconhecidamente existem na personalidade do arguido, não só se mantenham, como aumentem significativamente, desconhecendo-se naturalmente os futuros resultados de tão gravosa medida, tanto mais que os médicos peritos, não hesitaram em reconhecer a possibilidade de repetição de actos semelhantes;
45. Entendemos que menos bem andaram o Tribunal “ a quo “ e o Tribunal da Relação de Lisboa, o primeiro por aplicar uma pena tão gravosa, a mais gravosa existente na Ordem Jurídica Portuguesa, e o segundo em manter ao arguido a pena de vinte e cinco anos de prisão;
46. Ao não terem sido deferidas a segundas perícias requeridas pelo arguido, ao terem sido continuados os trabalhos da audiência de julgamento, quando se impunha a suspensão dos mesmos, ao aplicar-se ao arguido a pena de 25 anos de prisão, sem se atenderem em várias circunstâncias atenuantes, ao não se atender nos seus reais problemas de saúde, os doutos Tribunais de 1.ª instância e da Relação de Lisboa, violaram os preceitos constantes dos art.°s. 42° nº 3, 43° n°1, 61° no 2, 103° n°2 ala a), 127°, 158° nº 1, al. b), todos do CPP, art.°s 71° n°s 1 e 2,72° e 132° alas. f)i) e j) do CP, e art° 32° da CRP.

«Tendo em consideração o exposto: sem prescindir do douto suprimento de Vexas., deve o presente recurso ser apreciado em conformidade, reformando-se, ainda que parcialmente o douto Arresto recorrido.»

Respondeu o Ministério Público junto do tribunal recorrido em defesa do julgado, não sem antes se haver pronunciado pela irrecorribilidade das deliberações sobre os recursos interlocutórios interpostos para a Relação, versando designadamente sobre o pedido de nova perícia médico-legal e sobre o prosseguimento da audiência, mesmo após a apresentação do pedido de recusa dos juízes.

Subidos os autos, foi promovida a realização de julgamento.

As questões a decidir:

1. Questão prévia de irrecorribilidade das faladas deliberações interlocutórias.
2. A questão prévia da nulidade do acórdão recorrido suscitada pelo relator no despacho preliminar.
3. Medida concreta da pena aplicada ao arguido.

2. Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre decidir.

Matéria de facto provada
1. Na madrugada do dia 20 de Março de 2005, pelas 01.00 horas, os ofendidos EE, FF e GG, agentes policiais do efectivo da Polícia de Segurança Pública da Amadora, devidamente uniformizados, compunham a tripulação do carro patrulha adstrito à área da esquadra e tinham como missão patrulhar aquela área e acorrer às chamadas para que fossem solicitados.
2. Faziam-se deslocar na viatura da Polícia de Segurança Pública de marca Mitsubishi, matrícula ..., caracterizada, conduzida pelo ofendido GG, no banco do passageiro o ofendido FF, por se tratar do chefe de equipa, e o ofendido EE seguia no banco de trás.
3. Pelas 02.15 horas, circulavam na Avenida General Humberto Delgado e quando passaram em frente ao parque de estacionamento, junto ao estabelecimento denominado “C... Bar”, o ofendido GG, ao avistar o arguido AA e a viatura em que se fazia transportar, identificou-o como interveniente numa situação anterior, como suspeito da posse de arma de fogo, pelo que decidiram abordá-lo.
4. Depois de ponderar a situação que se lhes deparava, decidiram abordar o arguido a fim de o identificarem e revistarem.
5. Com esse fito, o ofendido GG conduziu a viatura dando uma volta ao quarteirão, a fim de novamente se dirigirem ao acesso de tal parque de estacionamento.
6. Quando pararam a viatura policial na estrada, em frente à entrada desse parque de estacionamento, o arguido, estava fora do carro a conversar com J... M... R... M..., encontrando-se a sua viatura, um veículo ligeiro de passageiros, de marca Opel, modelo Corsa, de cor cinzenta, e matrícula ..., parada no meio do parque com a frente voltada para a estrada.
7. Os três ofendidos saíram da viatura policial e os agentes GG e EE dirigiram-se imediatamente para junto do arguido, enquanto o ofendido FF num primeiro momento trocou breves palavras com N...E..., que também se encontrava no referido parque de estacionamento, referindo a este indivíduo que o assunto a tratar não lhe dizia respeito.
8. Simultaneamente, os ofendidos GG e EE abordaram o arguido, sendo que enquanto trocavam algumas palavras o arguido foi recuando e colocou-se entre duas viaturas automóveis ali parqueados.
9. No âmbito da sua missão, os agentes tentaram também proceder à sua revista, o que o arguido logrou impedir, esbracejando e recuando em pequenos passos.
10. A certa altura o arguido retirou o seu Bilhete de Identidade – apreendido nos autos – e fez menção de o entregar ao ofendido GG, todavia, tal documento, por motivos concretamente não apurados, caiu ao solo.
11. Acto contínuo, encontrando-se o arguido entre os agentes GG e EE, empunha uma pistola da marca Glock, modelo 19, calibre 9 mm Parabellum, de funcionamento semi-automático de movimento simples, com cano estriado de 102 mm de comprimento, em boas condições de funcionamento, com alimentação automática após primeiro disparo, com carregador para 15 munições, a qual detinha num coldre especial denominado SOB (small off the back) para transporte da arma na horizontal, colocado nas costas e, a uma distância de cerca de dois metros, apontando alternadamente ao corpo dos ofendidos GG e EE, efectuou uma série de disparos, atingindo-os em diversas partes do corpo.
12. A rapidez e eficácia da acção do arguido impediram que qualquer destas vítimas tivesse possibilidade de reagir à agressão.
13. Nesse instante, o ofendido FF procurou abrigo por detrás da viatura policial, tendo o arguido efectuado diversos disparos na sua direcção, não o logrando atingir
14. Enquanto o arguido continuava com a série de disparos na direcção do ofendido FF este, entretanto, conseguiu atravessar a estrada para se abrigar num declive de terreno existente do outro lado, logo depois do lancil, junto aos semáforos
15. Instantes depois, o arguido, ao volante do identificado veículo automóvel, toma a Avenida Alberto Henrique Lourenço, em direcção a Queluz/Sintra, alcançando a Rua Elias Garcia, que dista cerca de 415 metros e, ali chegando, retoma tal artéria em direcção à cena dos acontecimentos.
16. Chegado à cena do crime, junto aos semáforos, sai da sua viatura e, de novo empunhando a mesma pistola Glock, efectua uma nova série de disparos, num mínimo de cinco, na direcção do corpo do ofendido FF que, entretanto, se encontrava a prestar socorro junto ao corpo caído no solo do ofendido GG.
17. Procurando alguma protecção e de modo a repelir o ataque, o ofendido FF, empunhando a arma de serviço, uma pistola HK, de calibre 9 mm, efectua uma série de cinco disparos na direcção do agressor.
18. Perante tal reacção, o arguido coloca-se de novo ao volante da sua viatura e inicia a sua marcha, efectuando simultaneamente novos disparos na direcção do ofendido FF, num total de quatro.
19. Alguns dos projécteis disparados contra a vítima EE atingiram-no no hemitorax esquerdo, hemitorax direito, face lateral, no dorso, à direita da linha média, no braço direito, no dorso, à direita da linha média, e junto à crise da asa ilíaca esquerda.
20. Com efeito, a vítima EE foi atingido com três projécteis pela frente e dois por detrás, acrescido de um projéctil que não atingiu o corpo mas apenas a roupa, e a vítima GG foi atingido com sete projécteis.
21. A viatura policial foi atingida com oito disparos perpetrados pelo arguido.
22. Na realidade, a vítima EE apresentava hemotorax bilateral, com cerca de 600 c.c. na cavidade pleural esquerda e 125 c.c. de sangue líquido e 125 c.c. de coágulos sanguíneos na cavidade pleural direita, infiltração sanguínea no mediastino posterior, ferida perfuro-contundente, transfixiva do 7º espaço intercostal lateral esquerdo, duas feridas perfuro-contundentes, transfixivas da hemicula diafragmática esquerda, uma no quadrante antero-externo e outra no quadrante postero externo, laceração do baço, ferida perfuro-contundente, transfixiva do 9º espaço intercostal esquerdo posterior, com fractura do bordo superior da 10ª costela, ferida perfuro-contundente, transfixiva do 4º espaço intercostal direito posterior, ferida perfuro-contundente, transfixiva do lobo superior do pulmão direito, ferida perfuro-contundente, transfixiva da traqueia, mais ou menos ao nível do 6º/7º anel da traqueia; infiltração sanguínea no lobo tiroideu esquerdo, ferida perfuro-contundente, transfixiva, dos múculos subjacentes ao orifício do hemitorax esquerdo, ferida perfuro-contundente, transfixiva do 6º espaço intercostal direito, com fractura da 5ª costela direita, arco lateral, que foram causa directa e necessária da sua morte.
23. Os projécteis atingiram a vítima GG no tronco, pelo abdómen, no couro cabeludo, a nível da região frontal, no ombro esquerdo pela face anterior, no cotovelo direito pela face posterior, na face dorsal da região proximal do polegar direito e a nível do bordo externo da articulação interdigital do 3º dedo, num total de sete projécteis.
24. Com efeito,
a) Um projéctil de arma de fogo penetrou no tórax pela face lateral direita, seguiu um trajecto orientado, da direita para a esquerda, ligeiramente de cima para baixo e coronal e ficou alojado na musculatura intercostal esquerda;
b) Outro projéctil penetrou no tronco no tronco pelo abdómen, seguiu um trajecto orientado da direita para a esquerda, horizontal e coronal e ficou alojado na espessura da musculatura lateral esquerda do abdómen;
c) Outro projéctil de arma de fogo penetrou no couro cabeludo a nível da região frontal e saiu a 3 cm acima, tendo seguido um trajecto tangencial à calote craniana, de frente para trás;
d) Outro projéctil penetrou no ombro esquerdo pela face anterior, seguiu um trajecto orientado de diante para trás, de baixo para cima e sagital e saiu pelo bordo superior do mesmo;
e) Outro projéctil penetrou no cotovelo direito pela face posterior e saiu pela face interna do braço, segundo um trajecto de trás para diante, da esquerda para a direita e aproximadamente horizontal;
f) Outro projéctil penetrou pela face dorsal da região proximal do polegar direito, tendo saído pela face palmar do mesmo dedo;
g) e outro projéctil penetrou a nível do bordo externo da articulação interdigital distal do 3º dedo da mão esquerda, tendo saído pela face palmar da mesma articulação.
25. As supra referidas lesões traumáticas torácicas e abdominais foram causa directa e necessária da morte das vítimas GG e EE.
26. O arguido, com a sua conduta, agiu de forma livre, deliberada e consciente, com a intenção de tirar a vida aos ofendidos GG, EE e FF, o que logrou em relação aos dois primeiros e não o logrando em relação a este último por o mesmo se ter abrigado.
27. Ao atingir as vítimas EE e GG com sucessivos disparos na zona torácica e abdominal, o arguido sabia que se tratava de órgãos vitais cuja lesão seria susceptível de causar a morte, resultado que o arguido quis e previu.
28. O arguido, com a sua conduta, bem sabendo que tinha uma arma de fogo proibida, agiu igualmente com o intuito de se colocar em fuga e não ser identificado e interceptado pelos agentes policiais.
29. Demonstrou, ainda, o arguido com a sua conduta uma total indiferença pela vida humana e insensibilidade ao tirar a vida às vítimas GG e EE imediatamente depois de ter sido abordado por estes, bem como regressou ao local para tirar a vida ao agente sobrevivente e testemunha ocular dos factos.
30. Quando foi detido, no dia seguinte, em Valinho da Estrada, Melides, o arguido possuía consigo a pistola usada para perpetrar os factos descritos, municiada com uma bala na câmara e respectivo carregador com 15 munições, bem como três carregadores repletos com 15 balas cada, nos bolsos das calças.
31. O arguido sabia que as suas condutas eram punidas e proibidas por lei.
32. O arguido não apresenta doença mental grave ou mesmo sinais e sintomas abnormes de natureza psicótica, que constituam anomalia psíquica grave e capaz de interferir de forma decisiva com o processamento cognitivo e por si impedir a avaliação da realidade, pelo que, no momento da prática dos factos, estaria, para estes em concreto, capaz de se avaliar e de se determinar de acordo com a sua própria avaliação.
33. Denota-se sintomaticamente alguma ansiedade, em grau insuficiente para permitir o diagnóstico de entidade nosológica/psicopatológica autónoma, antes se inserindo enquanto traço na sua Personalidade.
34. O arguido apresentava, à data em que foi observado no Instituto de Medicina Legal, um colorido emocional hostil, com uma certa angústia aparentemente reactiva à sua situação de reclusão.
35. Os factos pelos quais se encontra acusado são pelo mesmo descritos de uma forma defensiva, com juízo crítico, revelando uma correcta apreciação dos factos de acordo com objectividade e simultaneamente uma capacidade de elaboração pessoal adequada.
36. Ao nível cognitivo apresenta um funcionamento intelectual global de nível médio, com processamento cognitivo íntegro, sem indicadores de deterioração mental ou de deterioração mnésica, boa tolerância às tarefas e bom esforço de concentração, sem dificuldades na focalização da atenção.
37. Da avaliação da sua personalidade sobressai uma organização da Personalidade, entendida como Maneira de Ser, com traços anti-sociais, ansiosos e impulsividade e que remete para uma estrutura da personalidade, que poderá ser classificada como sendo do tipo borderline (estado limite).
38. A sua socialização encontra-se comprometida, uma vez que se verifica um fraco investimento no contacto e identificação com os outros e dificuldades relacionais na gestão de conflitos.
39. As relações estabelecidas são-no de forma superficial, sendo o modo comum de relacionamento o confronto e a rivalidade.
40. Tendo em conta que nos encontramos perante uma Personalidade/Maneira de Ser que apresenta dificuldades no manejo da agressividade, respondendo agressivamente aos estímulos do meio, e na contenção das pulsões, existem, independentemente de quadro psicopatológico, dificuldades de comportamento, com probabilidade de repetição de factos típicos semelhantes.
41. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.
42. A Polícia de Segurança Pública/Estado suportou com a atribuição do subsídio por morte ao pai da vítima EE, BB, a quantia de 6.917,37 euros, e a quantia de 920 euros de despesas com o funeral.
43. Igualmente, a Polícia de Segurança Pública/Estado suportou com a atribuição do subsídio por morte à viúva da vítima GG, DD, a quantia de 7.779,22 euros, e a quantia de 920 euros de despesas com o funeral.
44. Ademais, as vítimas foram removidas pela Polícia de Segurança Pública para o Instituto de Medicina Legal, e esse transporte orçou em 14,35 euros.
45. O total de oito disparos realizados pelo arguido contra a viatura policial supra identificada causaram extensos orifícios na carroçaria, que importa soldar, pintar, substituir e caracterizar as zonas atingidas.
46. Uma vez que o interior da viatura também foi atingida pela trajectória dos projécteis, resultaram estragos no forro do tejadilho, interior traseiro, da mala, vidro óculo traseiro, encostos de cabeça traseiro, mala de ferramentas, diversos frisos e kit personalizado da Polícia de Segurança Pública.
47. O valor total da recuperação do veículo orçou em 2.642,02 euros.
48. Após a morte do seu marido, a demandante DD ficou em estado de depressão psicológica e psiquiátrica que a obrigam a ser acompanhada e medicada por especialistas.
49. Logo após a notícia da morte do marido teve de ser acompanhada pelo psicólogo que presta serviços à Polícia de Segurança Pública, que a acompanhou até ao dia do funeral, na Guarda, em 22 de Março de 2005.
50. A demandante DD teve de abandonar a casa onde vivia com o cônjuge, sita na Urbanização ..., Lote ... – 3º Esqº., A-da-Beja, concelho da Amadora, e ir viver para junto dos seus pais, em Belmonte, pois não consegue viver na casa que partilhava com o marido, dado que aí estando sozinha estava permanentemente e recordar-se dele, nomeadamente do que tinha sido a vida do casal.
51. Mudou-se para casa dos pais após ter isso pela primeira vez a casa depois da morte do marido e já depois de ir viver com os seus pais, tendo voltado a casa, não conseguiu lá permanecer.
52. A partir dessa data passou a ser assistida por um psicólogo e por um psiquiatra do Hospital da Guarda.
53. Desde a morte do marido que não consegue dormir, tendo que ser medicada com calmantes.
54. A demandante além de trabalhar estudava, frequentando o Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), e com a morte do cônjuge deixou de ter capacidade para assistir às aulas e muito menos estudar e prestar provas de avaliação.
55. Por isso teve de abandonar os estudos, não estando ainda preparada para os reiniciar.
56. A demandante trabalhava na GRH, que presta serviço à EDP, e tinha o vencimento de 600 euros.
57. Com o estado depressivo em que ficou, consequência da morte do marido e o ter de deixar a casa onde morava e mudar-se para casa dos pais, teve de ficar no regime de baixa por doença, passando a receber a quantia mensal de 300 euros.
58. E encontra-se na situação de baixa desde 26 de Março de 2005.
59. Os demandantes BB e CC são pais de EE, que em 20 de Março de 2005 faleceu, no estado de solteiro, sem descendentes.
60. Os referidos demandantes, por escritura de 30 de Maio de 2005, foram habilitados como únicos e universais herdeiros do seu falecido filho.
61. A morte do agente EE ocorreu por volta das 03.15 horas do dia 30 de Maio mencionado.
62. A morte do seu filho causou aos demandantes uma tristeza e dor imensas, não conseguindo superar a dor irresistível da saudade do seu filho.
63. Os demandantes sentem-se privados de qualquer alegria, sem vontade de viver e trabalhar, sofrendo constantemente de crises nervosas
64. O falecido EE vivia com os pais e dois irmãos menores.
65. Era em casa dos pais que dormia, tomava as suas refeições e era a sua mãe quem lhe lava e passava a ferro a roupa, sempre que não se encontrava de serviço.
66. Como agente da Polícia de Segurança Pública, o agente EE auferia o salário líquido de 1.102,08 euros, pagável catorze vezes/anos, perfazendo os seus rendimentos anuais cerca de 15.429,12 euros.
67. O agente EE eram ainda um jovem de 23 anos, saudável, alegre e trabalhador.
68. Pessoa de hábitos frugais e sem vícios, não lhe eram conhecidas outras dedicações a não ser o trabalho, a família e os amigos.
69. O agente EE dada alguma contribuição para as despesas do agregado familiar.

Matéria de facto não provada
Da discussão da causa não resultou provada a seguinte matéria de facto constante da acusação ou pedidos de indemnização civil:
a) Que N... E... tenha saído do local antes de terem ocorrido disparos.
b) Que no momento referido em 8 o arguido já estivesse a esbracejar, no sentido de não deixar os agentes dele se aproximarem.
c) Que durante o período de cerca de uma hora que mediou entre os disparos de que foi vítima e a sua morte o agente EE tenha sofrido inúmeras e violentas dores.
d) Que a contribuição do agente EE para as despesas do agregado familiar fosse concretamente não inferior a 4.800,00 euros/ano.
e) O falecido EE não namorava nem perspectivava contrair matrimónio, pelo que seria de prever que independentemente dos aumentos que ocorreriam, contribuiria com a referida importância pelo menos mais dez anos.
f) Já que hoje é habitual que os jovens casem só a partir dos 33 anos.

Questão prévia I:
Não é admissível recurso:
…«De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não ponham termo à causa» – art.º 400.º, n.º 1, c), do Código de Processo Penal.
As decisões relativas à realização de segunda perícia médico-legal, assim como ao prosseguimento da audiência após o pedido de recusa dos juízes foi objecto de recursos interlocutórios já autonomamente decididos e julgados improcedentes pela Relação.
Tratando-se de decisões que «não puseram termo à causa», são agora irrecorríveis.
Consequentemente, o recurso ora presente ao Supremo Tribunal de Justiça, na medida em que reedita o objecto daqueles dois recursos interlocutórios – conclusões 1 a 23 inclusive – é de rejeitar por inadmissibilidade, nos precisos termos dos artigos 420.º, n.º 1, e 414.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Questão prévia II
Resta apenas para conhecer o restante objecto da impugnação ora aqui presente, ou seja, a medida da pena, tal como vem vertida nas conclusões 24 a 46 na parte útil sobrante.
Para tanto, haverá que indagar se a matéria de facto em que repousa o decidido pela Relação se mostra isenta de vícios, mormente os referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Como flui do já exposto, a Relação de Lisboa assentou em que «apesar de o arguido AA não ter antecedentes criminais, a gravidade dos factos e a intenção dolosa com que foram praticados apelam para uma pena que traduza esse elevado grau da medida da culpa agravada, para a qual concorrem três circunstâncias qualificativas das alíneas f), i) e j) do nº2 do art. 132.º do Código Penal.
Por isso, sendo de 12 a 25 anos a moldura penal abstracta do crime de homicídio qualificado, entendemos ajustadas as penas de 23 anos de prisão pelo homicídio do guarda GG, de 23 anos de prisão pelo homicídio do guarda EE e de 14 anos de prisão para o homicídio qualificado tentado do guarda FF e em cumulo 25 anos de prisão.
Termos em que se denega provimento aos recursos do arguido AA.»
Houve assim o caso como preenchendo a figura criminal do homicídio voluntário qualificado.
E deu lugar de destaque à «intenção dolosa» como suporte da medida das penas parcelares e única aplicadas ao recorrente.
Acontece que o acórdão recorrido – de resto em reprodução nesse ponto do de 1.ª instância no tocante à matéria de facto necessária para suporte da imputação subjectiva dolosa do crime – ut art.º 14.º do Código Penal – se mostra deficientemente elaborado.
Com efeito, exige a lei – art.º 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – a enunciação dos factos provados e não provados.
E, no contexto do caso, em que a gravidade dos factos sustenta a aplicação da pena única máxima, a intenção dolosa adquire relevo essencial, havendo os factos respectivos de ser cristalinos, sem deixarem margem para dúvidas ou hesitações.
Acontece que o facto essencial relativo ao dolo, mormente a capacidade intelectiva e valorativa do agente repousam em matéria de facto obscura que deixa margem para dúvidas.
Com efeito, assenta essa matéria, além do mais, no ponto 32. «O arguido não apresenta doença mental grave ou mesmo sinais e sintomas abnormes de natureza psicótica, que constituam anomalia psíquica grave e capaz de interferir de forma decisiva com o processamento cognitivo e por si impedir a avaliação da realidade, pelo que, no momento da prática dos factos, estaria, para estes em concreto, capaz de se avaliar e de se determinar de acordo com a sua própria avaliação.»
Por um lado, o afirmar-se condicionalmente, que o arguido «estaria …capaz de se avaliar e determinar…» não satisfaz o requisito legal. «Estaria» não é um facto. É uma hipótese condicional. A lei exige factos. Não se basta com hipóteses.
Além disso, não apresentar «doença mental grave», não é o mesmo que não apresentar doença mental alguma. Para mais, quando se admite, como hipótese possível, que essa hipotética doença mental (embora «não grave») pode interferir (embora de forma não decisiva) «com o processamento cognitivo» e correspondente avaliação da realidade dos factos.
Tudo a deixar na penumbra elementos de avaliação imprescindíveis, como o de saber, em termos factuais, o que se tem por interferência «de forma decisiva com o processamento cognitivo», uma conclusão que, naturalmente, necessita de ser descodificada em factos que a suportem. Circunstâncias, cuja valoração em sede de doseamento da pena será despiciendo ora salientar, nomeadamente em face do disposto nos artigos 14.º e 71.º n.º 2, a) b) e c), do Código Penal.
O que, sem mais delongas, permite concluir que o acórdão recorrido é nulo na vertente apontada, justamente por não incluir a enumeração capaz dos factos provados – art.º 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, a), do Código de Processo Penal. Nulidade de conhecimento oficioso em recurso – n.º 2 deste mesmo artigo.
Procede assim a segunda questão prévia

3. Termos em que:
a) Na procedência da questão prévia da irrecorribilidade da decisão relativamente aos recursos interlocutórios, rejeitam esses segmentos do recurso – art.ºs 420.º, n.º 1, e 414.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
b) Na procedência da segunda questão prévia, anulam a parte sobrante do acórdão recorrido para que outro seja proferido em obediência ao exposto, nomeadamente com enunciação de factos que suportem um juízo conclusivo sobre o que se tem por «influência decisiva» com o processamento cognitivo e, sobretudo, que o arguido, no momento da prática dos factos, estava ou não «capaz de se avaliar e se determinar de acordo com a sua própria a avaliação», sendo irrelevante a afirmação condicional feita no acórdão recorrido – n.º 32 dos factos provados – apenas de que «estaria» nessas condições – art.ºs 379.º, n.º 2, e 374.º, n.º 2, do mesmo Código de Processo.
c) Julgam prejudicado o conhecimento das restantes questões.
Pelo decaimento no tocante à 1.ª questão prévia, pagará o recorrente custas, com taxa de justiça que se fixa em 3 unidades de conta a que se somam outras tantas a título de sanção processual nos termos do citado artigo 420.º, n.º 4.

Supremo Tribunal de Justiça, 18 de Janeiro de 2007

Pereira Madeira (relator)
Simas Santos
Santos Carvalho