Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
99B848
Nº Convencional: JSTJ00038770
Relator: PEIXE PELICA
Descritores: CRÉDITO LABORAL
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
Nº do Documento: SJ199911180008482
Data do Acordão: 11/18/1999
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N491 ANO1999 PAG233
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR OBG.
DIR PROC CIV - PROC EXEC.
Legislação Nacional: DL 17/86 DE 1986/04/16 ARTIGO 6 ARTIGO 12.
CCIV66 ARTIGO 151.
Sumário : I- Apenas beneficiários do privilégio imobiliário que contemplado no artigo 12 da Lei 17/86 de 14 de Junho (Lei dos Salários em Atraso) os créditos emergentes da falta de pagamento de salários e retribuições e os créditos provenientes de indemnizações por rescisões de contratos de trabalho operadas ao abrigo do artigo 6 da mesma Lei.
II- Já não gozarão assim de tal privilégio os créditos provenientes de indemnizações resultantes de acordos revogatórios de contratos de trabalho situados fora do âmbito desse artigo 6.
III- É de aplicar directamente, ou por analogia, o disposto no artigo 751 do CCIV aos privilégios imobiliários gerais instituídos pela Lei 17/86, pelo que os créditos assim privilegiados devem ser graduados com prioridade relativamente aos créditos garantidos por hipoteca, ainda que esta seja de data anterior.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
A -
Por sentença de 23 de Janeiro de 1995, transitada em julgado, foi decretada a falência da Sociedade A, S.A. sediada no Porto.
Foram reclamados e graduados vários créditos sobre a massa falida.
Na sentença que graduou esses créditos fez-se a destrinça entre os créditos dos trabalhadores que tinham rescindido com aquela sociedade - para quem trabalhavam - o contrato de trabalho, e, os créditos dos demais trabalhadores.
Quanto aos créditos dos primeiros - que englobavam além das remunerações do trabalho, propriamente ditas, as indemnizações por despedimento, - aquela decisão graduou-os à frente dos demais credores, entre os quais se encontrava o Banco Internacional de Crédito S.A..
Quanto aos créditos dos segundos, fez, a mencionada sentença, destrinça entre os que, respeitavam a créditos laborais relativos aos últimos seis meses - dando-lhes privilégio mobiliário geral (artigo 737 n. 1 alínea d) do Código Civil) - e os restantes a quem graduou como meros credores comuns.
Foi interposto recurso, dessa sentença, para o Tribunal da Relação do Porto, não só pelo referido Banco como pelos antigos trabalhadores, B, C, e D por adesão.
Pelo respectivo Acórdão (de 23 de Março de 1999) foram julgados procedentes os "recursos interpostos pelos trabalhadores recorrentes e improcedente a apelação do B.I.C. S.A." e, subsequentemente, foi fixado que os créditos daqueles trabalhadores - salários e indemnizações - beneficiam de privilégio mobiliário e imobiliário geral "devendo ser graduados em primeiro lugar ... à frente dos demais credores, mesmo hipotecários, como é o caso do B.I.C. ..."
É desse Acórdão que, agora recorre o B.I.C..
As alegações que apresenta são concluídas do seguinte modo.
Os créditos dos trabalhadores que gozam de privilégio mobiliário geral são apenas os que são emergentes do contrato individual de trabalho, ou seja, as remunerações ou salários.
Foi intenção do legislador (Código Civil de 1966) reduzir, ao mínimo, o número de créditos que gozam de privilégio creditório em nome da certeza e segurança do tráfego jurídico.
O artigo 737 n. 1, alínea d) do Código Civil quando trata dos créditos a que atribui privilégios creditórios separa os créditos emergentes do contrato de trabalho, por créditos surgidos por violação ou cessação deles.
Por isso o n. 1 do artigo 12 da Lei 17/86 deve ser interpretado como respeitando apenas aos créditos assentes no contrato de trabalho (remunerações) excluindo-se os advindos da violação ou cessação desse contrato, ou seja, as indemnizações.
É que.
Desde logo, não pode esquecer-se que o fim da lei foi defender os salários, tendo, para tanto, eliminado a limitação dos seis meses prevista no Código Civil.
Depois, que, ao lado da rescisão do contrato de trabalho, a dita lei 17/86, admite, também, a suspensão que não assenta em causa ilícita, e, por isso não pode ter um tratamento idêntico.
Em terceiro lugar, se o legislador (v.g. artigo 35 do Decreto-Lei 64-A/89) atribuiu tão só, aos créditos por indemnização, firmados na rescisão ou cessão do contrato de trabalho, um privilégio mobiliário geral (em que tem de haver sempre ilicitude e/ou culpa da entidade empregadora) não se compreende que, por crédito indemnizatório não baseado em ilicitude ou culpa (Lei 17/86) atribuísse um privilégio de maior garantia.
Acresce que.
Não tendo a Lei 17/86 regulamentado as relações entre os privilégios imobiliários que criou e os direitos de terceiros, a solução tem de se encontrar nos princípios gerais de Direito.
Ora, devendo entender-se que os privilégios creditórios imobiliários são sempre especiais não podem existir, na definição do seu conteúdo, interpretações analógicas ou extensivas.
De resto só este tipo de entendimento salvaguarda os comandos insertos, entre outros, nos artigos 686 - n. 1, 749, 750 e 751, todos do Código Civil, bem como a certeza do comércio jurídico em geral.
Contra-alegaram os recorridos C e B defendendo a posição do Acord. da Relação.
B -
Frente ao que se acaba de alinhar o objecto do presente recurso terá por fim indagar.
O conceito normativo contido no n. 1 do artigo 12 da Lei 17/86 "créditos emergentes de contrato individual de trabalho regulados pela presente lei" abrange os créditos advindos das remunerações ou os créditos das remunerações e das devidas indemnizações?
E, no caso das indemnizações o correspondente crédito abarca ou não as indemnizações fora do direito determinado pela rescisão dos contratos feita nos moldes do artigo 6 da Lei 17/86?
Com que consequência?
C -
Os factos dados como provados pelas instâncias, além daqueles que constam de folhas 6 a 11 do Acórdão (folhas 274 a 279 destes autos) - aqui dados por reproduzidos - são os seguintes.
Por sentença de 23 de Janeiro de 1995, transitada em julgado foi decretada a falência da Sociedade A.
Entre os créditos reclamados e admitidos contam-se os consubstanciados pelas quantias de:
2128412 escudos, reclamada por C representante de 222660 escudos de remunerações, de 1632840 escudos por indemnização, e de juros;
2929005 escudos reclamada por B representante de 157650 escudos de remunerações e de 2417300 escudos por indemnização além dos juros;
955500 escudos reclamados por D que aderiu ao recurso da C e do B representante de 445500 escudos por remunerações e 540000 escudos por indemnização.
Estes créditos reclamados bem como os demais referenciados sob a epigrafe C-1-b não assentaram na rescisão dos contratos (ex vi artigo 6 da Lei 17/86) mas apenas em acordo de revogação.
Os restantes créditos reclamados (folha 279) firmaram-se na rescisão dos contratos (Dec. 17/87).
Reclamou (e foi aceite o seu direito de crédito) o pagamento de 557892728 escudos, o recorrente Banco Internacional de Crédito, como credor hipotecário.
D -
1.
O artigo 8 do Decreto-Lei 47344 de 25 de Novembro de 1966, estipulou que "não são reconhecidos para o futuro, salvo em acções pendentes, os privilégios e hipotecas legais que não sejam concedidos no novo Código Civil, mesmo quando conferidos em legislação especial".
Este enunciado, cujos propósitos de salvaguarda da boa fé e segurança do tráfego jurídico são evidentes, foi, todavia, subvertido, posteriormente, por vários diplomas avulsos que criaram outros tantos privilégios creditórios.
Entre esses diplomas conta-se a lei 17/86 de 14 de Junho que procurou regulamentar "os efeitos jurídicos produzidos pelo não pagamento pontual da retribuição devida aos trabalhadores por conta de outrem" (artigo 1 n. 1).
2.
Em relação à Lei 17/86, na perspectiva dos privilégios creditórios, que, a mesma contempla, quanto aos "créditos emergentes dos contratos individuais de trabalho" (artigo 12) surge, de pronto, a necessidade de saber:
Se os denominados "créditos emergentes dos contratos..." abrangem, ao lado do crédito pelas remunerações, o crédito por indemnizações, e, se este último diz respeito a qualquer indemnização baseada no contrato de trabalho, ou apenas à que emergir da rescisão do contrato de trabalho no modo relatado no artigo 6 da dita Lei.
Que dizer?
É fora de dúvida que, em geral, a expressão "créditos emergentes do contrato individual de trabalho" tanto abrange os créditos por remunerações como os créditos por indemnizações.
Qualquer deles, no plano literal económico/social é uma verdadeira "consequência" do contrato de trabalho.
Mas será este o sentido do citado artigo 12 da Lei 17/86?
Mormente se tivermos em atenção a delicadeza (e insegurança) resultante da criação de "novos" privilégios creditórios?
Independentemente da posição que se tome quanto à criação avulsa de privilégios creditórios, na situação que se vem a tratar, tem, inevitavelmente de se considerar o espírito e o texto da Lei 17/86, cuja natureza especial é indiscutível.
Ora, apesar da dita Lei ser titulada pela "sigla", "salários em atraso"; apesar de ser do conhecimento geral que o diploma foi ditado por razões geradas pelo não pagamento tempestivo, a muitos trabalhadores, dos salários, o certo é que, isto, não chega para encaminhar, definitivamente a pesquisa.
Então como prosseguir?
Pensa-se que, do modo seguinte.
Conforme se lê dos artigos 3, 4, 5, n. 1, 6 a 11 - que constituem o Capítulo II, titulado sob a epigrafe "consequências especiais do não pagamento pontual das retribuições dos trabalhadores - da Lei 17/86, a falta de pagamento da retribuição mensal por um período superior a 30 dias, confere ao trabalhador, além do direito ao crédito emergente da retribuição omitida, o direito de: rescindir o contrato de trabalho com justa causa; e obter uma indemnização de acordo com a respectiva antiguidade.
O que é que daqui se depreende?
Primeiro que, se o legislador considerou, como efeitos do não pagamento tempestivo das retribuições mensais dos trabalhadores, tanto o direito ao crédito fundado em tais omissões, como o direito ao crédito por indemnização resultante de rescisão contratual, não é lógico entender que o conceito "créditos emergentes..." não abranja uns e outros.
Depois que, se o legislador não formulou qualquer destrinça (apesar de bem conhecer da sua existência) em relação a tais direitos de créditos, não cumpre ao interprete fazê-la.
Mas - eis a outra questão - o direito a uma indemnização assentará apenas numa efectiva rescisão contratual, formulada ao abrigo do disposto no artigo 6 da Lei 17/86, ou, pode mesmo ir até a qualquer outro circunstancialismo potenciado (legalmente) pelo contrato de trabalho?
Parece - eis a resposta - incontroverso que esse direito terá de ter apenas por origem a rescisão do contrato no modo relatado no dito artigo 6.
Porquê?
Porque é isto que resulta do binómio traduzido pela especialidade da Lei 17/86, e pelo estatuído no artigo 12, n. 1 da mesma Lei.
De facto, reconhecida aquela qualificação (especialidade do diploma) a referência do citado artigo 12, n. 1, aos "... créditos regulados na presente lei ..." só pode razoavelmente - numa interpretação que tenha presente os princípios proclamados no artigo 9 do Código Civil - dizer respeito aos que emergem da rescisão do contrato de trabalho formulada no plano previsto no artigo 6 da Lei 17/86.
Disto conclui-se o quê?
Que o conceito em causa contempla em exclusivo:
os créditos surgidos da falta de pagamento dos salários (retribuições);
e os créditos provenientes de indemnizações determinadas pelas rescisões, dos contratos de trabalho, realizadas na perspectiva do citado artigo 6.
Que apenas esses créditos beneficiam do privilégio imobiliário geral previsto no artigo 12 da Lei 17/86.
3.
Fica ainda, de pé, um último obstáculo a resolver:
Não dizendo a Lei 17/86, qual o modo e forma do relacionamento desses privilégios imobiliários gerais com os direitos de terceiros, terá de se averiguar qual a forma de se fazer essa conexão.
Por força do disposto no artigo 1 n. 2 da Lei 17/86, "em tudo o que não estiver previsto ... aplica-se, subsidiariamente o disposto na lei geral".
E qual é, nessa óptica, a lei geral?
É a que se encontra consubstanciada pelos artigos 749 e 751, ambos do Código Civil.
Analisando o 1. desses preceitos (749) verifica-se que ele se dirige aos privilégios mobiliários gerais (cfr. por todos Varela in Código Civil Anotado I/583) o que o afasta de uma aplicação aos privilégios imobiliários.
E o artigo 751?
Quanto a ele, impõe dizer-se, o seguinte.
O enunciado da norma - "os privilégios imobiliários são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ... e preferem ... à hipoteca ... ainda que estas garantias sejam anteriores" - pressupõe que o privilégio imobiliário é de natureza especial. Esse entendimento moldou não só a redacção do comando como determinou o seu alcance.
Será, apesar disso, o dito artigo aplicável aos privilégios imobiliários gerais criados pela Lei 17/86?
A resposta tem de ser positiva, por duas razões.
Primeira porque não existe outra norma equivalente a nível de "lei geral".
Depois, porque tal aplicabilidade impor-se-á, sempre, por via analógica (artigo 10 do Código Civil).
Com que consequência?
Com a consequência de que o privilégio imobiliário geral contemplado no descrito artigo 12 da Lei 17/86, suplantará preferencialmente a hipoteca mesmo quando esta seja de data anterior.
E -
Cumpre, de seguida, aplicar os princípios ao caso, e conhecer do recurso.
Vem provado, além do mais que:
Os créditos, narrados a folha 11, do Acórdão recorrido (página 279) titulados sob a epigrafe C-1-a provém, de remunerações não pagas e de indemnizações por rescisão de contratos de trabalho feitas nos termos do artigo 6 da Lei 17/86.
Os créditos dos recorridos, B e todos os restantes indicados em C-1-b, subdividem-se em:
Créditos provenientes de remunerações; e créditos provenientes de indemnizações assentes em acordos revogatórios dos contratos de trabalho, fora do perspectivado no descrito artigo 6 da Lei 17/86.
Como resolver?
Pela atribuição do privilégio imobiliário geral, exclusivamente:
Aos créditos surgidos pelas omissões de pagamentos das remunerações;
Aos créditos originados pelas indemnizações causadas pelas rescisões contratuais feitas no âmbito do artigo 6 da Lei 17/86;
Aos juros, de 2 anos, desses créditos.
Pela atribuição (ao referido(s) privilégio(s) de preferência em relação a qualquer hipoteca mesmo que de data anterior.
F -
Por todo o exposto concede-se, revista e, subsequentemente faz-se a graduação dos créditos, do seguinte modo.
Os créditos titulados no Acórdão recorrido sob a epigrafe C-1-a, com juros de dois anos, serão pagos antes (e com preferência) dos créditos hipotecários - incluindo nestes, como é obvio, o crédito do recorrente Banco - na demais forma relatada na alínea b) do n. 3 do artigo 12 da Lei 17/86.
Os créditos referenciados no Acórdão recorrido sob epigrafe C-1-b, serão, no respeitante aos oriundos de remunerações não pagas, liquidados preferencialmente aos créditos hipotecários (no qual se inclui o crédito do recorrente) com juros de dois anos.
Os restantes créditos serão pagos na forma fixada na sentença da 1. instância.
Custas na proporção do decaimento do recorrente e recorridos.
Lisboa, 18 de Novembro de 1999.

Peixe Pelica,
Ferreira Almeida,
Noronha Nascimento.
5. Juízo Cível do Porto - Processo 1887-Q/96 - 2. Secção.
Tribunal da Relação do Porto - Processo 83/97 - 2. Secção.