Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2705/18.0T8BRR.L1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: RECURSO DE REVISTA
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 11/16/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
Como resulta do disposto no artigo 682.º, n.º 2 do CPC, a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º do mesmo Código.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 2705/18.0T8BRR.L1.S1

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,

1. Relatório

AA, instaurou a presente ação declarativa de condenação, a seguir a forma de processo comum contra Konica Minolta Business Solutions Portugal, Unipessoal, Lda., pedindo

a. o reconhecimento de que, desde 30 de setembro de 2013, esteve vinculada à Ré por um contrato de trabalho por tempo indeterminado;

b. o reconhecimento, nessa medida, que a cessação de contrato unilateralmente operada pela Ré configura um despedimento ilícito;

c. o pagamento das seguintes quantias vencidas:

- € 65.626,23, a título de créditos laborais decorrentes de subsídios de férias e de Natal e férias não gozadas, quotizações da Ordem dos Advogados e contas finais não fechadas,

- € 8.591,40, a título de juros de mora da quantia referida na alínea anterior, calculados à taxa legal até à data, e a que deverão acrescer os que se vençam até integral pagamento;

- € 28.000,00, de indemnização compensatória pelas perdas materiais resultantes da não inscrição da Autora na Segurança Social durante o período da duração do contrato, com juros de mora desde a citação da Ré;

- € 21.600,00, a título de indemnização em substituição da reintegração, a que acrescem os juros de mora legais desde a data da cessação do contrato.

- € 25.000, a título de compensação pelos danos não patrimoniais advindas da situação profissional precária e sofrimento que foi imposto pela Ré à Autora, com juros de mora desde a data da citação;

- no pagamento à Autora de todas as importâncias que esta deixou de auferir, desde o despedimento até ao trânsito em julgado de decisão judicial que decrete a ilicitude do despedimento.

A Ré contestou. Afirmou, designadamente, que contrariamente ao afirmado pela Autora, sempre pretendeu celebrar um contrato de trabalho, tal como ficou consignado no contrato-promessa de trabalho. Sucede que foi a própria Autora que sugeriu que celebrassem um contrato de prestação de serviços, tendo sido ela própria quem procedeu a alterações à minuta do contrato de trabalho enviado pela Ré.

Realizado o julgamento foi proferida sentença com o seguinte teor:

“a) julgo procedente a exceção de abuso de direito suscitada pela Ré e, em consequência, julgo improcedente a presente ação, absolvendo a ré de todos os pedidos formulados pela autora.

b) absolvo a ré do pedido de condenação por litigância de má-fé.

c) julgo procedente o pedido de condenação da autora como litigante de má-fé, condenando a autora na multa de 4 UC´s por litigância de má-fé.”

Inconformada a Autora recorreu.

Também a Ré interpôs um recurso subordinado, o qual, por não ter decaído era na realidade um pedido de ampliação do objeto do recurso.

O Tribunal da Relação de Lisboa veio a proferir Acórdão com o seguinte teor:

“Face a todo o exposto, acorda-se na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar totalmente improcedente o presente recurso de apelação interposto pela Autora, AA, mantendo integralmente a sentença recorrida. Relativamente à ampliação do pedido, o seu conhecimento está precludido.”

Ainda inconformada a Autora interpôs, para a Secção Social deste Supremo Tribunal de Justiça, recurso excecional do Acórdão na parte em que absolveu a Ré do pedido e a condena como litigante de má fé, bem como revista ordinária do Acórdão com fundamento em violação do artigo 662.º, n.º 2, al. c), do CPC. Por Acórdão da Formação, prevista no artigo 672.º, n.º 3 do CPC junto desta Secção Social, proferido a 22.04.2022, não foi admitida a revista excecional.

Foi admitido o recurso interposto ao abrigo do artigo 671.º do CPC.

No segmento das Conclusões que delimitam o objeto do recurso que foi admitido a Recorrente insurge-se contra a utilização de uma presunção judicial inexistente por parte do Tribunal da Relação (Conclusões 30 e 31, 98 e seguintes), a qual teria operado em violação de factos que deveriam ter sido dados como provados por existir, em seu entender, prova plena dos mesmos nos autos (Conclusão 32), ou não provados com a violação de regras da prova porquanto não teriam sido atendidos documentos particulares (designadamente emails) que porque não impugnados teriam força probatória plena (Conclusões 92 a 97), e dos quais resultaria que não deveriam ter sido dados como provados os factos 94 a 97 e 99 (Conclusão 97). Invoca, igualmente, contradição entre os factos provados 95 e 99. (Conclusões 78 a 81) e que o Tribunal da Relação não teria exercido o controlo, que lhe competia por ser contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto (artigo 662.º, n.º 2, alínea c) do CPC) (Conclusão 84), requerendo a este Supremo Tribunal de Justiça a remessa dos autos ao Tribunal da Relação à luz do disposto no artigo 682.º, n.º 3 parte final (Conclusão 85).

A Ré contra-alegou.

Em cumprimento do disposto no artigo 87.º n.º 3 do CPT o Ministério Público emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.

Fundamentação

De facto

Considera-se aqui reproduzido para os efeitos legais a matéria de facto dada como provada nas instâncias. Apenas se irá proceder à transcrição dos factos 94 a 99:

94- A R. pretendia contratar a A. mediante a celebração de um contrato de trabalho, tal como ficou consignado no contrato-promessa celebrado em agosto de 2013.

95- Foi a própria autora que sugeriu que as partes celebrassem um contrato de prestação de serviços.

96- Foi a própria autora que procedeu a alterações à minuta do contrato de trabalho enviado pela Ré.

97- Foi a própria autora que introduziu na minuta do contrato de prestação de serviços a cláusula 8 sobre as quotizações e contribuições devidas à Ordem dos Advogados e à Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores.

98- A carta de compromisso referida em 4) dos factos provados foi uma exigência da autora e não da ré.

99- Foi a autora quem, perante o Diretor Financeiro da Ré, Dr. BB, solicitou que entre as partes fosse celebrado um contrato de prestação de serviços e não de trabalho.

De direito

A possibilidade de o recurso de revista incidir sobre a decisão das instâncias em matéria de facto é muito circunscrita e delimitada. Desde logo, sublinhe-se que de acordo com o n.º 4 do artigo 662.º do CPC, das decisões tomadas pelo Tribunal da Relação ao abrigo dos números 1 e 2 do mesmo preceito não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Assim e designadamente não é sindicável por este Tribunal a decisão da Relação que não considerou haver deficiência, obscuridade ou contradição da decisão proferida sobre a matéria de facto que justificasse a anulação da decisão proferida na 1.ª instância. É certo que este Supremo Tribunal pode, outrossim, decidir que o processo volte ao tribunal recorrido designadamente quando “ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito”.

No entanto, e como bem destaca o douto Parecer do Ministério Público proferido nos presentes autos, junto deste Tribunal, não existe, em rigor contradição entre o facto 94 e o facto 99. “Sugerir” e “solicitar” não são palavras com conteúdos opostos, aproximando-se ambas da noção de pedido e promoção. Como se pode ler no referido Parecer:
“Afigura-se que aquelas duas palavras, a terem qualquer diferença significativa numa perspetiva semântica, não implicariam qualquer contradição que colocasse em causa a coerência da matéria da facto dada como provada, pois uma foi utilizada num determinado momento em relação à empregadora (e numa utilização não relacionada com ninguém em concreto, conforme se conclui do ponto 94 da matéria dada como provada); e, a outra, utilizada noutro momento, e concretamente em comunicação com o Diretor Financeiro da Ré, Dr. BB. Só que as palavras em causa não possuem uma diferença de significado que consiga gerar qualquer contradição, o que se pode comprovar pelos sinónimos que lhe são atribuídos, e que constam em qualquer dicionário. E, se dúvidas existissem, bastava ter em conta os sinónimos que a recorrente obteve em relação a cada uma dessas palavras e que constam nas suas alegações, na parte já acima transcrita. Veja-se que, citando o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, a recorrente acaba por indicar a palavra promover como sinónimo tanto da palavra «sugerir» como da palavra «solicitar». Em conclusão, não existe qualquer contradição, e muito menos inconciliável, pelo que não ocorreu violação do disposto no art. 662º, nº 2, al. c), do CPC” (sublinhado e negrito no original).
Com efeito, não vemos qualquer contradição na existência de uma sugestão, seguida de um pedido.
Quanto ao mais, importa atentar no disposto no artigo 674.º, n.º 3, que apenas permite que o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa seja objeto do recurso de revista quando exista disposição expressa da lei que exija uma certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova. Não sendo esse o caso, e não estando confrontado com prova legalmente tabelada ou tarifada, o Tribunal da Relação pode livremente apreciar os emails e outros documentos particulares trocados pelas partes.
Com efeito, embora os documentos particulares, que não sejam impugnados, tenham a força probatória que lhes é reconhecida pelo artigo 376.º do Código Civil, o Tribunal da Relação ponderou-os cuidadosamente como resulta inequivocamente da decisão que transcrevemos neste ponto:

“Logramo-nos convencer da versão trazida aos autos por esta testemunha em detrimento da versão da autora. Para tanto contribuiu decididamente a troca de mensagens eletrónicas entre a autora e a testemunha, BB, constantes de fls. 118 a 124.

Realça-se, desde logo, o e-mail de 30.08.2013 remetido pela testemunha com o seguinte teor: “(…) Na sequência da N. conversa, agradeço que me remeta as alterações ao contrato de trabalho que propõe (sublinhado nosso). Após receção da sua proposta (sublinhado nosso), iniciaremos as devidas ações no sentido de validar o teor de tais alterações”. Tendo a autora em 30 de Agosto de 2013 remetido e-mail à testemunha com indicação “de valores mensais a pagar pela Konica Minolta a título de retribuição (em resultado da conversão do contrato de trabalho para contrato de prestação de serviços) até 30.09.2014 e após essa data, que indico em seguida (…)”. A que se seguiu e-mail da autora de 31 de agosto de 2013 em que a mesma envia “sugestões de alteração ao contrato de trabalho” e outro com a mesma data em que diz quanto às quotizações e contribuições “sugiro que o mesmo seja alterado da seguinte forma”.

Finalmente, no dia 24 de setembro de 2013 a testemunha envia e-mail à autora com o seguinte teor “Como combinado analisei atentamente o teor das cláusulas que pretende alterar (sublinhado nosso) no contrato de trabalho standard da Konica Minolta.Nada tenho a salientar em relação a estas cláusulas. Face ao exposto, sugiro que a AA possa aglutinar o seu articulado com o contrato de trabalho standard sem termo que anexo e que carece naturalmente de ajustamentos significativos. Por outro lado, agradeço que a AA possa redigir a carta de compromisso (sideletter) que propõe (sublinhado nosso) para N. análise”.

Finalmente por e-mail de 27 de Setembro de 2013 a autora escreveu “ Conforme combinado, segue o contrato de trabalho adaptado, assim como a carta de compromisso que assinarei com o contrato. Parece-me que está tudo conforme combinado”.

Vistas as referidas comunicações, as mesmas corroboram a versão da testemunha BB, não se podendo deixar de notar que, por várias vezes, referindo-se às alterações contratuais e carta de compromisso usa a expressão “ que propõe” e “que pretende”, imputando, desse modo, a iniciativa à autora. O que a mesma não refutou ou questionou nas suas comunicações. Também, se nota que verificando-se que a troca de comunicações que nos ocupa se iniciou em 30 de Agosto de 2013 e, ainda, nesse mês a autora fez sugestões de alteração ao contrato, tais dados, indesmentíveis, abalam as declarações prestadas pela autora que afirmou que foi na última semana de Setembro que se encontrou com a testemunha BB e que este lhe disse que não poderiam celebrar contrato de trabalho, tendo sugerido a celebração de um contrato de prestação de serviços ao que anuiu por estar de boa-fé e lhe ter sido assegurado por BB que seria uma situação provisória.

Tais comunicações que, importa dizê-lo, foram juntas aos autos pela ré e não pela autora, permitem-nos afirmar, com a necessária segurança, que foi a autora quem propôs as alterações contratuais verificadas e a elaboração de uma carta de compromisso e que procedeu à redação do clausulado”.

E também o controlo de presunções judiciais pela Relação se deve restringir a casos em que tal uso ofenda uma norma legal, seja patentemente ilógico ou se faça a partir de factos não provados. No caso, o Tribunal da Relação partiu simplesmente da premissa de que um Advogado, mesmo um Advogado estagiário, conhece a diferença (ou, melhor, as diferenças) entre um contrato de trabalho e um contrato de prestação de serviços.

Decisão: Indeferida a revista
Custas pelo Recorrente
Lisboa, 16 de novembro de 2022

Júlio Gomes (Relator)

Francisco Marcolino

Ramalho Pinto