Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B4433
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
CULPA DO LESADO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
MORTE
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ200701110044332
Data do Acordão: 01/11/2007
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE.
Sumário : 1 . Sendo de imputar totalmente ao condutor de veículo segurado na ré a culpa na produção dum choque entre o veículo que conduzia e uma carrinha, não deverá repartida a responsabilidade da seguradora por a vítima seguir na caixa aberta desta carrinha, se não se provou que o posicionamento da mesma vítima foi "conditio sine qua non" da produção ou agravamento das lesões mortais por esta sofridas.
2 . Mas mesmo que se provassem factos integrantes da concausa e se concluísse pela culpa também da própria vítima, sempre seria de condenar a seguradora no pagamento da totalidade da indemnização, nos termos da parte final do n.º1 do artigo 570.º do Código Civil, uma vez que a condutora do veículo segurado, perante um sinal de "Stop" existente antes dum cruzamento nem sequer abrandou, chocando com a carrinha, fazendo capotar esta várias vezes e levando a que fossem produzidos ferimentos mortais numa pessoa que circulava em posicionamento algo frequente, ainda que ilegal.
3 . A indemnização pela perda do direito à vida (em sentido estrito, não abrangendo a relativa ao sofrimento entre o facto danoso e a morte e a relativa ao sofrimento dos chegados à vítima) é desconhecida na Resolução n.º 7/75, de 14.3.1975, do Conselho da Europa, vem sendo ignorada em decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e, ou é ignorada ou é repudiada, nos principais países da União Europeia.
4 . O que determina, no nosso país, nova ponderação jurisprudencial sobre a sua concessão, atentas as perspectivas de harmonização indemnizatória no espaço da União.
5 . Actualmente, vista a uniformidade da nossa jurisprudência e atento o n.º3 do artigo 8.º do Código Civil, deve ser concedida.
6 . No cálculo do respectivo "quantum" deve-se excluir, por inconstitucionalidade, o critério do artigo 494.º deste código reportado à situação económica do lesante ou da vítima.
7 . Mas - atento ainda este preceito - não devem deixar de ser atendidos outros factores de acordo com o que, em concreto, aquela vida, continha.
8 . Relevam, assim, a idade, a alegria de viver, os projectos que a falecida tinha e outras concretizações do preenchimento que ela fazia da existência.
9 . Neste modo de pensar e atendendo ao que vem sendo fixado por este Tribunal, a quantia de cinquenta mil euros relativamente a jovem alegre, de 18 anos, cheios de vitalidade, é adequada para indemnizar a perda do direito à vida.
10 . Relativamente ao sofrimento entre o facto danoso e a morte, tendo-se provado apenas que a vítima faleceu passadas horas e que teve dores, não se precisando por quanto tempo as teve, deve ser fixada a indemnização de nove mil euros.
11 . O montante de 25 mil euros não peca por excesso relativamente ao sofrimento da mãe que perdeu aquela filha, o que lhe causou desgosto, desespero e angústia, ainda hoje chorando a morte, permanecendo num estado depressivo e não se sentindo, por isso, muitas vezes em condições de trabalhar. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I -
"AA" instaurou, no Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, com distribuição ao 3º Juízo Cível, acção declarativa com processo ordinário, emergente de acidente de viação, contra:
Empresa-A, e outra que agora não interessa.

Alegou, em síntese, que, nas circunstâncias de tempo e lugar que precisa, a sua filha BB, seguia num veículo ligeiro de mercadorias que num cruzamento foi embatido pelo veículo automóvel que identifica, seguro na R., cuja condutora desrespeitou o sinal de "Stop".
Do embate resultaram para a BB ferimentos que lhe determinaram directa e necessariamente a morte.
Esta produziu os danos materiais e imateriais que detalhadamente refere, incluindo o sofrimento dela, autora.

Pediu, em conformidade:
A condenação da seguradora a pagar-lhe € 171.840,93, acrescidos de juros legais desde a citação, até integral e efectivo pagamento.

Esta contestou, impugnando a versão do acidente e as consequências advenientes para a A.
Acrescentou, porém, que a vítima, ao seguir na caixa aberta de tal veículo automóvel, sem que esta se encontrasse preparada para a circulação de passageiros, sendo apenas destinada ao transporte de mercadorias, se expôs aos riscos inerentes a essa situação, contribuindo para o desfecho fatal que veio a ocorrer.

A acção prosseguiu e, na altura própria, foi proferida sentença cuja parte decisória é do seguinte teor:

"Nos termos e fundamentos expostos, julga-se parcialmente procedente a presente acção intentada por AA contra "Empresa-A", e, em consequência, condena-se esta a pagar à autora a quantia de € 63.072,25 (Esc. 12.644.850$00), sendo € 6.957,48 ("1.394.850$00") por danos patrimoniais e € 56.114,76 ("11.250.000$00") por danos não patrimoniais, acrescidos de juros legais de mora, desde a citação, que ocorreu em 2004/Fev./03 (fls. 24), à taxa de 4 % ao ano e até integral pagamento."

II -
Recorreram A. e R. para o tribunal da Relação do Porto.
Este negou provimento ao recurso da seguradora e concedeu parcial provimento ao da A., subindo o montante indemnizatório para €75.602,25, acrescidos de juros.

III -
Pede revista a R.

Conclui as alegações do seguinte modo:

A) O Venerando Tribunal não considerou da forma mais correcta a aplicação do artigo 570.º do C.C., pois subavaliou o contributo do comportamento da lesada nos danos por esta sofridos.
B) Ponderado correctamente o contributo do comportamento da vitima para o resultado final, o Venerando Tribunal deveria ter desagravado a responsabilidade da Segurada e,
C) Consequentemente, ter ABSOLVIDO a Recorrente do pagamento da compensação do dano "perda do direito à vida", da (consequente) compensação por danos não patrimoniais para a Recorrida em virtude do sofrimento causa do pela morte da filha e da indemnização por danos patrimoniais .
D) Pela aplicação correcta do artigo 570.º do C.C., deveria o Venerando Tribunal ter excluído o direito de indemnização da Recorrida por estes danos (morte!).
E) E, em relação aos demais danos, sempre deveria o Venerando Tribunal, ter agravado o grau de culpa da lesada na produção/agravamento das lesões, adequando de uma forma mais justa os montantes compensatórios a atribuir à Recorrida.
F) Decidindo desse modo, deveria, o Venerando Tribunal ter valorado compensações pela perda do direito à vida em €35.000,00, em €7.500,00 a compensação pelo dano não patrimonial próprio da vítima e €10.000.00 a compensação do dano patrimonial sofrido pela Recorrida (1) .
G) Ao decidir de modo diverso, o Venerando Tribunal violou o disposto nos artigos 570°, n.º 1, 483° e 496°, todos do Código Civil.

Não houve contra-alegações.

IV -
Ante as conclusões das alegações - que, com ressalvas que aqui não cabem, delimitam o âmbito do recurso - importa tomar posição sobre se:
É de considerar que a própria vítima contribuiu para os danos mortais que sofreu, sendo por isso, de reduzir ou eliminar a indemnização nas suas várias parcelas;
Mesmo que assim se não entenda, a valoração dos danos - quer pela perda do direito à vida, quer pelo sofrimento da vítima antes da morte, quer pelo sofrimento da recorrida - foi exagerada.

V -
Vem provada a seguinte matéria de facto:

1.º) No dia 17.10.2000, cerca das 15H50, no Local-A, Fiães, Santa Maria da Feira, ocorreu um acidente de viação em que foi interveniente o veículo ligeiro de passageiros de matrícula Nº-0, pertencente a CC e por esta conduzido. [A)]
2.º) Na altura referida em 1.º) [A)], CC seguia na Endereço-A, no sentido de Penoucos. [1.º)]
3.º) Nessa mesma altura, circulava pela Endereço-B, no sentido Lourosa-Feira dos Dez para o Centro de Fiães, pela metade direita da faixa de rodagem, o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula Nº-1. [6.º)]
4.º) À data, o veículo de matrícula Nº-1 era pertença de Empresa-B [7.º)]
5.º) Na altura referida em 1.º) [A)], o veículo de matrícula Nº-1 era conduzido pela funcionária de Empresa-B de nome DD. [8.º)]
6.º) A BB e a FF seguiam igualmente como passageiras do Nº-2, estando esta última e a DD sentadas nos bancos existentes nesse veículo e munidas dos respectivos cintos de segurança. [I) e 9.º]
7.º) A BB fazia-se transportar na caixa do veículo de matrícula Nº-1. [33.º)]
8.º) A caixa referida em 7.º) [33.º)] não se encontrava preparada para o transporte de passageiros, não dispondo, nomeadamente, de bancos e de cintos de segurança. [34.º)]
9.º) A caixa referida em 7.º) [33.º)] destina-se apenas ao transporte de mercadorias ou de outros objectos. [35.º)]
10.º) Ao aproximar-se do cruzamento existente na intersecção da Endereço-A com a Endereço-B, CC não imobilizou o seu veículo. [3.º)]
11.º) No local, existia um sinal vertical de "Stop" colocado junto à berma do lado direito, atento o sentido de marcha do Nº-3, e antes da intersecção referida em 10.º) [3.º)]. [4.º)]
12.º) Ao aproximar-se do cruzamento referido em 10.º) [3.º)], a CC também não reduziu a sua velocidade. [5.º)]
13.º) Quando o veículo de matrícula Nº-1 ultrapassava o meio do cruzamento descrito em 10.º) [3.º)], foi embatido na parte lateral direita pela frente do veículo de matrícula Nº-0. [10.º)]
14.º) Em virtude da colisão, o veículo automóvel em que seguia a BB, tombou lateralmente sobre ele próprio, por três vezes, ficando imobilizado cerca de 22,9 m. à frente do local do embate. [J) e 11.º)]
15.º) Essa imobilização ocorreu junto ao passeio do lado esquerdo. [12.º)]
16.º) Em consequência do embate descrito em 13.º) [10.º)], BB sofreu, nomeadamente, traumatismo craniano, torácico e abdominal, com hemorragia subdural e subaracnoideia dos lobos parietal e occipital do hemisfério cerebral direito. [13.º)]
17.º) Em consequência do embate descrito em 13.º) [10.º)], BB sofreu igualmente fracturas costais e da clavícula esquerda. [14.º)]
18.º) Em consequência do embate descrito em 13.º) [10.º)], BB sofreu também a laceração do baço e do rim esquerdo. [15.º)]
19.º) As lesões descritas de 16.º) a 18.º) [13.º) a 15.º)] determinaram directa e necessariamente a morte de BB. [16.º)]
20.º) No local do embate, a estrada descreve uma recta. [17.º)]
21.º) A estrada por onde seguia o Nº-2 tem cerca de 7,00 m. de largura. [18.º)]
22.º) No local do embate, o trânsito efectua-se nos dois sentidos de marcha. [19.º)]
23.º) O piso era de asfalto e fazia bom tempo. [20.º)]
24.º) A morte de BB causou à autora desgosto, desespero e angústia. [21.º)]
25.º) À data do acidente a A. já tinha perdido o marido, pai da BB, na sequência de um acidente de viação. [22.º)]
26.º) Ainda hoje, a autora chora a morte de BB, permanecendo num estado depressivo. [24.º)]
27.º) Na sequência do falecimento da sua filha e do subsequente desgosto, a A. não se sente muitas vezes em condições de trabalhar. [25.º)]
28.º) À data do acidente, BB era uma jovem cheia de vitalidade, que aparentava ter saúde, era alegre e dedicada à mãe e à irmã mais nova. [26.º)]
29.º) A BB era também dedicada ao seu trabalho. [27.º)]
30.º) A BB sofreu dores, falecendo horas depois da ocorrência do acidente de viação. [28.º)]
31.º) Na altura do acidente a BB contribuía para as despesas de casa, onde vivia com a sua mãe, em montante que não foi possível determinar. [29.º)]
32.º) A A. suportou as despesas do funeral da BB, no valor de Esc. "488.600$00. [31.º)]
33.º) Dessa quantia a A. recebeu da Segurança Social, a título de subsídio de funeral, o montante de Esc. "382.800$00". [32.º)]
34.º) À data do acidente, a responsabilidade decorrente da circulação rodoviária do veículo Nº-0 encontrava-se transferida para a ré Empresa-A, mediante contrato de seguro titulado pela apólice nº 04-40-722462 (doc. de fls. 52). [B)]
35.º) Correm termos os autos de Processo Comum Singular registados sob o nº 3539/00.4TAVFR em que são arguidos CC e outros (doc. de fls. 72 e segs.). [C)]
36.º) Encontra-se junto aos autos identificados em 34.º) [C)] um relatório de exame directo e autópsia de BB, nele se fazendo menção que no dia 17.10.2000, no Hospital São Sebastião, em Santa Maria da Feira, foi efectuada autópsia a BB, filha de EE e de FF, nascida em Julho de 1982, natural de Fiães, Santa Maria da Feira (doc. de fls. 72 e segs.). [D)]
37.º) No relatório aludido em 34.º) [D)], os peritos médicos formularam as seguintes conclusões: 1º- A morte de BB foi devida às lesões traumáticas cranianas, torácicas e abdominais descritas; 2º- Tais lesões traumáticas foram causa necessária de morte; 3º- Estas lesões, assim como as restantes lesões traumáticas, denotam haver sido produzidas por instrumento de natureza contundente ou actuando como tal, podendo ter sido devidas a acidente de viação, como consta da informação; 4º- Aguarda-se o resultado da pesquisa de álcool no sangue do cadáver (doc. de fls. 72 e segs.). [E)]
38.º) Por escritura de habilitação outorgada no 1º Cartório Notarial de Santa Maria da Feira, a fls. 43 do livro 133-I, no dia 15.01.2001, FF, casada com GG em comunhão de adquiridos e segundas núpcias de ambos, natural da freguesia de Fiães, concelho da Santa Maria da Feira, residente na Rua da Inacor, n..., 2º recuado, em Mozelos, Santa Maria da Feira, declarou na qualidade de cabeça de casal na herança aberta por óbito da sua filha BB que "no dia dezassete de Outubro de dois mil, nesta cidade de Santa Maria da Feira, no Hospital São Sebastião, faleceu a dita BB, no estado de solteira, maior, natural da freguesia de Fiães, deste concelho, e residente que era com a sua mãe na dita Rua da Inacor, n..." (doc. de fls. 13 e segs.). [F)]
39.º) Declarou também FF que "não deixou testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, nem deixou descendentes, tendo-lhe sucedido como herdeira, sua mãe, ora declarante" (doc. de fls. 13 e segs.). [G)]
40.º) Declarou finalmente FF que "não há quem à indicada herdeira prefira na sucessão ou quem concorra com ela" (doc. de fls. 13 e segs.). [H)] .

VI -
A primeira questão que se nos depara consiste em saber se é de considerar a relevância, para efeitos indemnizatórios, do comportamento da vítima, ao seguir na caixa aberta da carrinha.

Vigorava, ao tempo do acidente, o Código da Estrada aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3.5, na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3.1.
Face ao seu comando constante do artigo 29.º, n.º1, conjugado com o artigo 3.º-A (sinal B2) do Regulamento do Código da Estrada, a CC foi a única culpada na eclosão do acidente.
Nem a sua culpa, em tal eclosão, vem discutida pela seguradora.

VII -
Mas não é o acidente culposo em si que, sem mais, leva ao surgimento da obrigação de indemnizar.
Para esta vir a lume há ainda que aquele ter determinado danos reparáveis.
Só, assim, se fecha o ciclo donde emerge a responsabilidade civil, tal como a configura o artigo 483.º do Código Civil (Diploma a que também pertencem os artigos que se vão indicar quando não se referir a sua inserção).

VIII -
Por regra, o acidente dá origem a danos reparáveis e da culpa na produção daquele resulta imediatamente a culpa relativamente ao aparecimento destes.
Só que, pode dar-se o caso de ser discutível esta coincidência e para, então, tomarmos posição, importa cindir, considerando, com autonomia, o que vai do evento ao facto danoso. Ou seja, indagar se, para a produção deste, algo mais concorreu que permita afastar a exclusividade na responsabilização que, em princípio, impenderia sobre o condutor culpado.
Interessa-nos, então, de sobremaneira e já perspectivando a análise do nosso caso, o artigo 570.º, n.º1:
"Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída."
Temos aqui duas partes distintas:
Uma respeitante à concorrência do lesado para a produção ou agravamento dos danos;
Outra concernente à possibilidade que o tribunal tem de, verificada aquela, conceder totalmente, reduzir ou mesmo excluir a indemnização.

IX -
A primeira tem levantado uma clivagem na doutrina.
Para uns, valeria qualquer conduta do lesado, ainda que não censurável.
Para outros, a conduta relevante do lesado haverá de ser culposa. (2)
Além bastaria a relação de causalidade. Aqui exigir-se-ia ainda a culpa do lesado.

Mas todos estão de acordo no requisito da causalidade. Que, aliás, se impõe pela evidência. (3)

Assim, temos que para se chegar a colocar a questão da pretendida minoração da indemnização, há que indagar se os factos provados encerram uma relação de causalidade entre a conduta da lesada, ao seguir na caixa aberta, e os ferimentos mortais que sofreu.

X -
O primeiro dos requisitos da mencionada relação de causalidade reporta-se à "conditio sina qua non". Não que todas as condutas sem as quais o dano não se teria produzido devam ser consideradas como causais daquele mesmo dano. Isso seria arvorar este requisito em teoria a acolher e são manifestas as críticas que, considerando-o sob este prisma, todos lhe fazem.
O que se passa é antes que, no plano da teoria da causalidade adequada, o primeiro passo de aferição se situa na exclusão das condutas sem as quais o dano se teria produzido. (4) Só entre as que foram condições do dano se há-de encontrar aquela ou aquelas que foram adequadas a produzi-lo.

XI -
Chegados aqui, atentemos no nosso caso.
Provou-se que teve lugar um acidente.
A vítima seguia na caixa aberta contrariando o n.º4 do artigo 54.º do CE e, bem assim, o n.º1 do artigo 24.º do Regulamento do Código da Estrada e sofreu as lesões mortais que se descrevem nos factos provados.
Mas o facto de seguir na caixa aberta, terá sido condição sem a qual os ferimentos mortais não teriam ocorrido?
Não resulta isso da enumeração factual. Nada da caixa aberta ou do posicionamento da vítima nesta está relacionado com tais ferimentos. Não se provou que tivesse sido projectada, que tivesse sofrido as lesões por esmagamento debaixo do veículo ou que tivesse colidido com algo da própria caixa aberta ou nela transportada. Em contrário, provou-se que o veículo tombou três vezes lateralmente sobre si próprio, o que deixa a dúvida sobre, se seguindo ela na cabine com cinto de segurança, não teria também morrido. Nem consta dos factos provados, constando apenas das alegações da seguradora, que as pessoas que aí seguiam tivessem tido apenas ferimentos ligeiros. (5)
Isto, passando à margem da ideia, comunemente aceite, de que a relação de causalidade, nesta vertente, a existir, havia de ser fixada pela Relação porque de matéria factual ainda se trata e esta, salvo casos contados que aqui não cabem, escapa à censura do Supremo Tribunal de Justiça.

XII -
São, pois, insuficientes os factos para se estabelecer a relação de condição entre o acto ilícito consistente no trânsito na caixa aberta e as lesões mortais.
Mas, se acaso se entendesse chegarem eles ainda para deixar o julgador na dúvida, então haveria que atender ao que dispõe o artigo 572.º. Na sua curiosa redacção, faz impender sobre aquele que alega a culpa do lesado o ónus de prova da sua verificação, embora estatua também que, mesmo faltando a alegação, o tribunal conhecerá da culpa.
Não pode o intérprete chegar à ideia de contradição no mesmo preceito e, não o podendo, cremos que o efeito útil da primeira parte se cifra nas consequências da falta de alegação e/ou demonstração. Como referem Pires de Lima e A. Varela em anotação ao artigo 342.º "o significado essencial do ónus de prova não está tanto em saber a quem incumbe fazer a prova do facto como em determinar o sentido em que deve o tribunal decidir no caso de se não fazer essa prova".
Impulsionados pela seguradora ou adquiridos oficiosamente chegam-nos apenas os factos supra enumerados e se se considerasse deixarem eles o julgador na dúvida, o caminho a seguir seria o da decisão contra aquela.

XIII -
Falecendo o nexo de causalidade, fica prejudicada a questão de saber se interessava tomar posição sobre se a conduta da vítima foi culposa.

XIV -
Mas, mesmo que toda a construção que vimos trazendo cedesse, ainda haveria a considerar o ponto dois da estratificação que fizemos em VIII, parte final.
O mencionado artigo 570.º deixa à ponderação do tribunal, além do mais, a redução ou não da indemnização. E a ponderação, a ter de ser feita, passaria pela relevância da morte duma pessoa jovem, pela infeliz vulgaridade com que se transportam ou fazem transportar pessoas em caixas abertas de carrinhas e, fundamentalmente, pela culpa, particularmente grave, da condutora do veículo segurado na ré, que, perante um sinal de "STOP", nem sequer abrandou, provocando um acidente de violência inusitada, evidenciada pelo sucessivo capotar do outro veículo.
Assim levando a cabo tal ponderação, o tribunal não optaria pela redução indemnizatória.

XV -
Alcançada a confirmação de que a seguradora deve ser responsabilizada pelo total da indemnização, importa agora percorrer as parcelas que põe em causa em ordem a confirmar ou não os respectivos montantes.

Impugna ela os valores que nos chegam quanto:
À perda do direito à vida;
Ao sofrimento da vítima entre o acidente e a morte;
Ao sofrimento da própria autora emergente da morte da filha.

XVI -
Quanto ao primeiro, chega-nos da Relação o valor em euros correspondente a dez milhões de escudos.

A partir do Acórdão deste Tribunal de 17.3.1971, proferido em revista alargada, mas com cinco votos de vencido (que se pode ver no BMJ 205, 150), a jurisprudência nacional tem sido unânime na atribuição da indemnização especificamente pela perda do direito à vida.
Na doutrina nacional, já não se pode falar em unanimidade, ainda que se deva aludir a esmagadora maioria no mesmo sentido. Contra pronunciaram-se Oliveira Ascensão (Direito das Sucessões, 4ª ed., 49 e seguintes) e Pamplona Corte-Real (Direito de Família e das Sucessões, II, 45 e seguintes).

Na verdade, a questão está, a nosso ver e ressalvada sempre a devida consideração, longe de não merecer, a nível jurisprudencial, uma muito maior atenção e subsequente discussão.

Acentuando-se sempre que apenas se discute a indemnização pela perda da vida e não a indemnização pelo dano afectivo dos chegados à vítima nem a reportada a eventual sofrimento desta entre o facto danoso e a morte.

XVII - (6)
A Resolução n.º75-7 do Conselho da Europa, de 14.3.1975, relativa à reparação dos prejuízos em caso de lesões corporais e de morte, cujo texto se pode ver em Armando Braga, A Reparação do Dano Corporal na Responsabilidade Civil Extracontratual, 296 e seguintes, omite, no seu número 3, todo dedicado à " Reparação em caso de morte ", qualquer referência sequer a perda do direito à vida. Alude à reparação dos danos patrimoniais e quanto à parte não patrimonial limita-se ao seguinte princípio:
"Os sistemas jurídicos que, actualmente, não admitem o direito à reparação por sofrimentos psíquicos de terceiros em consequência da morte da vítima, só devem proceder à sua reparação quando essas pessoas sejam a mãe, o, pai, o cônjuge ou os filhos da vítima; mesmo nestes casos, a reparação deve ter em consideração os laços afectivos existentes com a vítima antes do seu falecimento".
Esta Resolução não é - é evidente - vinculativa mas teve e tem enorme importância na fixação de indemnizações nos vários países europeus em cujos tribunais, com frequência, é citada e interpretada.

Por sua vez, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, nas decisões de 18.5.2000 de Velikova contra a Bulgária, de 10.4.2001 de Tanli contra a Turquia, de 4.5.2001 de Mckerr contra o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte e de 8.6.2002 de Öneryields contra a Turquia (7) - julgou violado o art. 2.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e fixou indemnizações com total ignorância de parcela por "perda do direito à vida ". As indemnizações - para além das relativas às despesas - reportam-se ao dano afectivo dos demandantes.
Isto, não obstante a redacção muito mais "categórica" daquele art.º 2.º do que do nosso art.º 496º do CC. " O direito de qualquer pessoa à vida é protegido por lei ", começa aquele preceito.
E numa resenha - necessariamente muito breve - do que se passa a nível interno dos principais países comunitários, vemos que tal parcela indemnizatória ou não chega sequer a ser discutida ou, quando o é, é repudiada (sem prejuízo, acentue-se sempre, da indemnização relativa aos danos afectivos dos chegados à vítima e da reportada ao eventual sofrimento da vítima entre o acto mortal e a ocorrência da morte ).
Em Espanha, o sistema ressarcitório assenta em grande medida na ley 30/95 de 8.11 que acolheu um " baremo " relativo às indemnizações emergentes de acidentes de viação com veículos a motor, mas que tem servido como referência também para indemnizações com outras causas.
A regra 4ª do "Anexo" respectivo define quem tem a condição de lesado em caso de morte e não inclui a vítima. Depois, na Tabela respectiva fixam-se os montantes a favor dos " prejudicados/ beneficiários", enumerando-os sucessivamente e excluindo de qualquer direito indemnizatório quem ali não estiver referido.
Temos, então, com evidência, que não há qualquer indemnização pela perda do direito à vida. (8)
Em Itália, temos o Acórdão da Cassazione (O Supremo Tribunal) Sez III Civile n.º887 de 25.01.2002 (9) "Não é ressarcível o dano biológico da morte imediata ou da lesão mortal seguida da morte imediata, não podendo o defunto transmitir aos herdeiros, pela perda da capacidade jurídica, o direito de crédito consequente à perda da vida".
Neste país, contudo, o repúdio desta parcela indemnizatória não é tão claro como nos outros. Aparece, pelo menos, a indemnização relativa a tal conceptualizada e discutida, como nos acórdãos de 2.4.2001, n.º4783 da Cassazione (III Sezione Civile) e de 12.6.96 do Tribunale di Cassino, Sezione Civile. (10)
Na Alemanha, tem-se, com frequência, atribuído indemnização aos herdeiros pelo sofrimento da vítima entre o facto danoso e a morte.
Com alguma dificuldade e discussão, também se vem atribuindo indemnização aos muito afectivamente ligados à vítima, mas só nos casos em que, em virtude da morte, entram em situações com tradução clínica (depressão, colapso nervoso, etc.).
A indemnização pela perda do direito à vida aparece raramente em discussão, às vezes com outras designações, e é frontalmente repudiada (11) .
Dos muitos acórdãos em que tal se manifesta, seleccionámos:
Do Bundesgerichtshof ( o Tribunal Supremo ) o de 12.5.98, em que se discute a indemnização a filhos por causa da morte dos pais e nem sequer se coloca a questão de qualquer quantia pela perda do direito à vida, tudo girando em torno do sofrimento destes antes de morrerem. (12)
.
Do Oberlandesgericht (correspondente " grosso modo" ao nosso Tribunal da Relação) de Karlsruhe NZV 1999, 210 em que se fixou indemnização (de 75 mil euros) pelo sofrimento de pessoa que veio a falecer 21 meses depois do facto danoso ( mas em consequência deste ) e o tribunal se recusou a ter em conta sequer, para aferição do montante indemnizatório, que "por causa do acidente a vida tenha sido encurtada". (13)
Do mesmo tribunal, de 25.1.2000, em que se recusou totalmente indemnização, no plano não patrimonial, em virtude do falecimento duma mulher que seguia num barco que embateu num poste de amarração : " As lesões conduziram imediatamente à morte. Esta surgiu sem aparecimento de qualquer dano imaterial. A vida acabou e não tem significado a perda da personalidade." (14)
Em França também se desconhece qualquer indemnização pela perda do direito à vida ( cfr-se os vários acórdãos referidos de pag.s 3 a 9 em "Indemnisation Du Dommage Corporel" de Jean Gaston Moore ).
Na sua página na Internet, Catherine Meimon Nisenbaum sintetiza doutamente o regime indemnizatório daquele país. (15)

E ignora qualquer indemnização por tal.
No seguimento da posição da jurisprudência francesa, o grupo de trabalho presidido por Madame Lambert-Faivre que apresentou ao Ministério da Justiça, em 22.7.2003, um relatório visando a sistematização e reforma do regime indemnizatório francês (16), também ignora qualquer parcela pela perda do direito à vida, ignorância, aliás, que já é patente no livro desta autora " Droit Du Dommage Corporel ", página 295 e seguintes.
Relativamente àquele país, podemos atentar ainda no Decreto n.º2001-3 de 3.1, referente à Indemnização das Vítimas de Actos de Terrorismo e de Outras Infracções Penais. Num diploma manifestamente protector das vítimas e dos titulares de direitos em casos de morte destas, descreve-se aquilo a que se deve reportar a garantia de indemnização em caso de decesso, ou seja, ao "préjudice moral et économique des ayant droit de la victime décédée", ignorando-se também qualquer parcela pela perda da vida em si. (17)
XVIII -
O isolamento de Portugal pesa, pois, muito como argumento a favor da discussão e até da solução contrária à que, entre nós, vem sendo adoptada.
Tanto mais que a harmonização indemnizatória, principalmente a nível de acidentes de viação, representa um objectivo que a União Europeia vem perseguindo.
O considerando quinto da Directiva do Conselho de 30.12.1983 (84/5/CEE) - Segunda Directiva Automóvel é do seguinte teor:
"Considerando que os montantes até à concorrência dos quais devem permitir, em toda e qualquer circunstância, que seja garantida às vítimas uma indemnização suficiente, seja qual for o Estado membro onde o sinistro ocorra":
E o considerando quarto da Terceira Directiva do Conselho (90/232/CEE, de 14 de Maio de 1990) refere o seguinte:
"Considerando que deve ser garantido que as vítimas de acidentes de veículos automóveis recebam tratamento idêntico, independentemente dos locais da Comunidade em que ocorram acidentes."
Estes considerandos ultrapassam a categoria lógica de fundamentos, passando a constituir também uma finalidade, como atesta a seguinte passagem do Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades (Quinta Secção) de 14.9.2000, cujo texto integral se pode obter, por via informática, em http://www.dgsi.pt/celj. (doc. n.º 61998J0348 da Jurisprudência da UE ).
"Com efeito, como o Tribunal de Justiça já declarou no seu acórdão de 28 de Março de 1996... o preâmbulo das directivas em causa revela que estas têm como objectivo, por um lado...e, por outro, assegurar que as vítimas dos acidentes causados por esses veículos receberão tratamento idêntico, independentemente do local do território em que o acidente tenha ocorrido."
No sentido da sintonia indemnizatória com os demais países da União Europeia, vem, outrossim, este STJ tomando posição em vários arestos, afirmando, de modo concludente, no de 7.7.99 (CJ VII, III, 18) que:
"...o montante das indemnizações por via de acidentes de viação, praticado na União Europeia, de cujos prémios de seguros tendencialmente se vão aproximando os portugueses, poderá servir de critério para as fixar em Portugal..."

Outro argumento que fragiliza a nossa posição reside na contradição relativa ao "quantum" indemnizatório. O direito à vida é o bem supremo - afirma-se sem contestação - mas têm-se arbitrado indemnizações bem superiores às normalmente fixadas pela perda de tal direito, relativamente a danos em que o ofendido se mantém vivo. Seria, aliás, de todo por todo, inaceitável que os quantitativos arbitrados pela dita perda do direito à vida constituíssem tecto inultrapassável relativamente a outras indemnizações por danos pessoais particularmente graves (cfr-se, a este propósito, em www.dgsi.pt, o Ac. deste Tribunal de 8.3.2005 ).

E um terceiro ainda se pode encontrar na violência ética que representa esta indemnização.
Sob a capa da "justiça" que, numa análise superficial, representa a indemnização pela perda do direito à vida, está antes uma realidade consistente em alguém receber dinheiro para obtenção de prazeres porque outrem morreu. (18)
Decerto que a morte de alguém pode provocar e normalmente provoca sofrimento até muito intenso aos afectivamente ligados à vítima. E que, por isso, destes, os incluídos na enumeração legal e verificando-se os demais pressupostos da responsabilidade civil, devem ser indemnizados a fim de obterem prazeres que compensem a sua dor. A não indemnização até seria chocante. Mas estamos, então, perante outra parcela indemnizatória. Assim como relativamente ao sofrimento da vítima entre o facto danoso e a morte. Até ao último segundo de vida não havia a certeza da morte e aquela adquiriu um direito de indemnização que será transmitido, atentas as regras da sucessão, aos herdeiros. Representaria uma subversão de regras fundamentais do regime sucessório a não indemnização a receber por estes.
Mas o que estamos agora a discutir é apenas a indemnização derivada da própria morte e mal se concebe que um morra e o outro se divirta pelo facto concreto de outrem ter morrido.

De qualquer modo, não pode nem deve o juiz português ignorar o comando do n.º3 do art.º 8.º do Código Civil e ter bem presente a uniformidade da nossa orientação jurisprudencial. Ou, noutro modo de dizer o mesmo, ponderar a injustiça relativa que resultaria para os chegados à vítima, ao verem negada uma parcela indemnizatória que a totalidade dos tribunais vem fixando.

XIX -
Tendo chegado nós, afinal, à indemnização, importa discorrer sobre o seu montante.
Trata-se dum dano não patrimonial e, caracterizando-se a distinção entre este tipo de danos e os patrimoniais pela avaliabilidade em dinheiro, logo se vê que há-de intervir neste domínio, com primacialidade, o critério do julgador.

São de acolher plenamente aqui as palavras de Antunes Varela (Direito das Obrigações 9.ª ed., I, 627, nota de pé de página):
"Da restrição do artigo 496.º extrai-se indirectamente uma outra lição: a de que o montante da reparação deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras da boa prudência, do bom sendo prático, da justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida. É este, como já foi observado por alguns autores, um dos domínios onde mais necessários se tornam o bom senso, o equilíbrio e a noção das proporções com que o julgador deve decidir."
Nem a remissão que o artigo 496.º faz para os critérios do artigo 494.º (os reportados à situação económica do lesante e, particularmente do lesado, de mais que discutível constitucionalidade, face ao artigo 13.º da Constituição da República) (19) aproximam a lei dos quantitativos concretos a fixar.
Tem, pois, o juiz aqui que preencher um espaço muito maior do que o que habitualmente a lei lhe deixa para proferir a sua decisão.

Se assim é, ganham foros de particular importância, as decisões que anteriormente vêm sendo tomadas pelos tribunais, em especial por este Tribunal.
Nem outra coisa resulta, aliás, do artigo 8.º, n.º3 do dito código.

XX -
No caso de indemnização pela perda do direito à vida, a distância a que a lei deixa o julgador é ainda maior.
O que está em causa assume foros de tal dignidade (20) que a consideração da situação económica do lesado, ou mesmo do lesante, como critério aferidor, a que alude o mencionado artigo 494.º violaria frontalmente o mencionado artigo 13.º da Constituição da República. Uma vida não vale mais ou menos de acordo com a realidade patrimonial de quem morre ou de quem mata.

Afastado o critério económico, constatamos que há que distinguir.
Ou se entende que estamos perante uma indemnização relativa ao direito a não ser morto;
Ou se entende que a indemnização se reporta à perda do que a vida traduz.

No primeiro caso, a supressão da vida encerra um valor absoluto. O montante indemnizatório não depende da idade da vítima, do seu estado de saúde ou da alegria que tinha em viver e aí por diante. Foi a orientação seguida por esta Tribunal nos Ac.s de 7.2.2006, 8.6.2006 e 20.6.2006. (21)
No segundo atende-se à privação da vida, consistindo este valor não só na afectação do direito a viver, como também na supressão inerente a tudo o que a vida proporciona. Aqui passa a interessar a idade da vítima, a sua alegria de viver, os projectos pessoais que tinha e outras concretizações do preenchimento que fazia da existência. Tem sido a orientação mais comum deste Tribunal, como, muito exemplificativamente, se pode ver nos acórdãos de 6.3.2001, 24.5.2001,30.4.2002 e 10.10.2002 e 10.11.2005.
Já referimos que o artigo 496.º remete para "as circunstâncias" do artigo 494.º. Este manda atender à equidade que é uma figura que se caracteriza como o aferimento da justiça atendendo ao caso concreto. (22)
Ora, se assim é, cremos dever estar na primeira linha das circunstâncias a que alude este artigo 494.º, precisamente o concreto da vida da pessoa que faleceu, mormente a sua idade, a alegria de viver e demais dados referidos. Nomeadamente, morrer na madrugada da vida ou no entardecer dela deve ser encarado, para estes efeitos, de modo diferente.
Este tribunal tem mesmo afirmado que, numa interpretação actualista, o direito à vida, constitucionalmente assegurado, não abrange apenas o direito a viver, mas, para além dele, o direito a viver com qualidade - Ac. de 26.4.1995 (BMJ 446, 224).

Por outro lado, se o legislador tivesse a perda do direito à vida como valor independente das circunstâncias de vida não deixaria de estabelecer um valor fixo que o julgador se limitaria a verter nas decisões.
Propendemos, assim, para a segunda das posições. Sempre com a ressalva do afastamento de critérios económicos como acima se referiu.

XXI -
Temos, então, em conta que a falecida tinha 18 anos, cheios de vitalidade e era pessoa alegre.
Relativamente a arguidos jovens que perderam a vida, foram considerados adequados os montantes de 49.879,79 € (Ac. de 10.11.2005), de 8.000.000$00 (Ac. de 2.12.2004), também de 8.000.000$00 (Ac. de 10.10.2002) e ainda de 8.000.000$00 (ainda que por defeito) (Ac. de 25.2.2004) e de 40.000 € (Ac. de 4.12.2003) (podendo ver-se todos os Ac.s em www.dgsi.pt).
O valor da vida, no modo de ver internacional, não nos pode ajudar porquanto os países com os quais temos mais afinidades, por estarmos com eles na União Europeia, não contemplam esta vertente indemnizatória, contemplando apenas as demais (relativas ao sofrimento entre o facto danoso e a morte e ao sofrimento dos chegados à vítima). (23) ...

Fixamos, assim, a nossa atenção nestes valores e, partindo deles, chegamos ao montante que vem fixado.

XXII -
O que dissemos supra quanto aos danos não patrimoniais em geral vale também para aferirmos da bondade da quantia fixada pela Relação a propósito do sofrimento da vítima entre o facto danoso e a morte.
A Relação acolheu os 2.500.000$00 que lhe chegaram da primeira instância.
Os factos são muito escassos.
Provou-se apenas que a BB sofreu dores, falecendo horas depois da ocorrência do acidente.
Podemos ainda inferir que as dores foram terríveis, por terríveis serem os ferimentos.
Mas fica a ausência de presciência da morte, que conjugada, quer com a limitação a horas entre o facto danoso e a morte, quer com as possibilidades que a medicina hoje tem de minimizar as dores físicas, nos levam a pensar em exagero daquele montante.
Repare-se mesmo que o que se provou foi que a vítima sofreu dores, não se tendo sequer provado por quanto tempo as teve. A intervenção médica nestes casos, que passa, muitas vezes, por inconsciencializar o doente, será factor a atender.
Assim, havia a autora que provar que tais dores subsistiram durante as horas - cujo número, aliás, se não revela - que mediaram entre o acidente e a morte.
Olhando para a jurisprudência deste tribunal, podemos atender aos Acórdãos de 6.5.2002 (com muitas dores e presciência da morte e fixação indemnizatória em 900.000$00), 2.12.2004 (com dores que só cessaram com a morte, pânico e presciência desta e indemnização de 2.000.000$00), de 30.4.2002 (com sofrimento e dores, ainda que por escasso tempo e indemnização de 1.000.000$00) e de 23.11.2005 (já citado supra) (com dores atrozes ao longo das cerca de cinco horas que viveu depois do facto danoso e indemnização de € 9.975,96, correspondentes a 2.000.000$00).
Tudo tendo em conta, cremos dever fixar a indemnização relativa a esta parcela em nove mil euros.

XXIII -
Resta a parcela relativa ao sofrimento da mãe.
São concludentes os factos neste ponto. A autora sofreu desgosto, desespero e angústia, ainda hoje chorando a morte da filha, permanecendo num estado depressivo, não se sentindo muitas vezes em condições de trabalhar.
Integram-se estes factos concretos perfeitamente na relação biológica que necessariamente se estabelece entre uma mãe e uma filha ou um filho e que se projecta, por regra, ao longo de toda a vida.
A filha que ela viu agora morrer tinha-a visto desenvolver-se no seu próprio ventre e dele sair para este mundo. E, se casos há em que as vicissitudes da vida truncam - ou aparentam truncar - a afectividade duma relação tão forte, o nosso está bem fora deles.
Os 25.000 euros que nos chegam, se pecarem, é por defeito.

XXIV -
Face a todo o exposto, concede-se a revista apenas relativamente ao montante indemnizatório correspondente ao sofrimento da vítima entre o facto danoso e a morte que se fixa em nove mil euros, mantendo-se tudo o mais constante do acórdão recorrido.
Custas por A. e R. na proporção do vencimento e decaimento.

Lisboa, 11 de Janeiro de 2007
João Bernardo
Duarte Soares
Oliveira Rocha (Vencido. Com o maior respeito pela posição que fez vencimento, entendo que, à R., caberia apenas, o ónus de prova da violação, pela vítima, do disposto no art.º 54.º do C. da Estrada e à autora o ónus de alegar e provar que, não obstante essa violação, as lesões, com a gravidade atingida, teriam, na mesma ocorrido, caso a vítima não tivesse infringido a disposição legal citada.
Assim, nos termos do artigo 570.º, n.º1 do Código Civil, considero que a actuação da vítima foi concausal da medida do dano).
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(1) Aqui há um lapso material. Vê-se bem da fundamentação das alegações, mormente do ponto 46.º, que a seguradora queria aludir ao dano não patrimonial da recorrida e não ao dano patrimonial desta. A redução ou mesmo exclusão dos danos patrimoniais são referidas apenas como corolário da pretendida aplicação do artigo 570.º do Código Civil.
Por outro lado parece, numa primeira análise do texto das conclusões, que a seguradora apenas se insurge quanto aos montantes relativos aos danos não patrimoniais, nesta vertente, relativa ao artigo 570.º. Mas assim não é. Também se vê do artigo 43.º e seguintes das alegações que os ataca, independentemente da construção, que defende, de aplicação daquele mesmo artigo.
(2) Veja-se a nota de pé de página n.º687 do Direito das Obrigações de Menezes Leitão.
(3) Muito exemplificativamente, cfr-se Pires de Lima e A. Varela em anotação a este artigo e Pessoa Jorge, Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, 360.
(4) Assim, Pessoa Jorge, ob. cit. 393, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6.ª ed. 654, A. Varela, Das Obrigações em Geral, 9.ª ed. 918, Galvão Teles, Direito das Obrigações, 404 Rui Alarcão, Direito das Obrigações, 278 e Menezes Leitão, ob. cit. I vol. 342.
(5) Em sintonia com a construção que vimos fazendo, podem ver-se os acórdãos deste Tribunal de 6.10.1982 (BMJ 320, 319) e de 23.11.2005 (pontos sumariados em I,II e III) (transcrito em www.dgsi.pt). Especificamente sobre a relevância do transporte em caixa aberta já se pronunciou também este Tribunal, mas na vertente da descaracterização ou não do acidente como de trabalho (ac. de 22.5.2002, revista n.º 2171/01) sobre igual vertente se tendo pronunciado o ac. da RP de 2.6.1993 (CJ, 1993, III, 179).
(6) Vamos seguir agora, de muito perto, a exposição feita no Ac. deste tribunal, com o mesmo relator, de 15.3.2006 que se pode consultar em www.dgsi.pt.
(7) Chega-se com alguma facilidade aos (extensos) textos integrais, em francês ou inglês. No sítio do respectivo tribunal, na referência dedicada às decisões judiciais, escreve-se o tema " indemnisation en cas de mort " ou o correspondente em inglês, surgindo vários arestos, entre os quais os citados.
(8) Veja-se, a este propósito, Jesús Entralgo, Sub Judice n.º17, pag.s 14 e 15 e, bem assim, Laura Serrano, La Indemnizatión Por Causa de Muerte, 62. Escreve esta autora, com referência as decisões das Salas Primeira e Segunda do Tribunal Supremo:
"Y es que si na finalidade que persigue toda indemnización es el ressarcimento del dano producido, en realidad en el caso de murte el dano que sufre el sujeto por la privación de su própria vida, nunca le podera ser indemnizado, por el echo de que el momento del nacimiento de tal derecho coincide com el de la extinción de la personalidad jurídica y por tanto com la incapacidad para assumir cualquier titularidad."
(9)Com recolha fácil na Internet : http://www.codiceonline.com/nonrisarcibile.htm
(10) Ambos com recolha fácil na Internet a partir dos sítios dos respectivos tribunais.
(11) Sobre a negação categórica dessa indemnização, pode ver-se o artigo da Vice-Presidente do Supremo Tribunal e Presidente do Senado deste com competência para os casos de indemnização emergente de acto ilícito, Gerda Müller, publicado em "Versicherungsrecht", Outubro de 2006, 1289 e seguintes (Caderno 28).
(12) Que se pode ver entrando em http://www.alpmann.schmidt.de, depois, Urteile, depois, a data e a referência VI ZR 182/97.

(13) Referido em Schmerzensgeldbeträge, de Hacks, Bohm e Ring, 22ª edição, pag. 12,
(14) Também Schmerzensgeldbeträge, pag. 46.
(15)Cfr-se http://www.meimon-nisenbaum.avocat.fr/indemnisations.htm

(16) Este relatório, de muito interesse, pode obter-se, com facilidade, também na Internet, inserindo no motor de busca " Rapport de Madame Lambert-Faivre".
(17) Pode-se consultar em http://www.jurisques.com/jfcivi.htm
(18) Temos aqui implícita a razão de ser para atribuição de indemnização por danos não patrimoniais comunemente invocada entre nós, a "compensatio doloris" (Cfr-se, exemplificativamente, Pessoa Jorge, ob. cit., 375 e Galvão Teles, ob. cit. 380)
(19) O princípio 12.º da já referida Resolução 7/75 refere precisamente que o cálculo da indemnização pelas dores físicas e sofrimento psíquico deve ser independente da situação económica da vítima.
(20) Afirmação que não colide com as reservas que expusemos supra sobre se deve ter lugar indemnização.
(21) Que, com os outros que são citados sem menção de inserção, se pode ver em www.dgsi.pt.
(22) Estão autores e jurisprudência de acordo neste ponto, o que nos dispensa citações.
(23) Em Baremos Seguros e Derecho de Danõs, de Jesús Pintos Ager, pag. 237, a propósito do valor da vida humana em termos estatísticos, refere-se a publicação de 4.12.1993, "The Price of Life" do norte-americano "The Ecomonist" que nos trata em termos cujos resultados não podemos acolher e até seriam humilhantes para nós. A vida humana valeria dois milhões de dólares nos EUA, 1.236.000 na Suécia, 1.100.000 na Grã Bretanha, 928.000 na Alemanha, 350.000 em França e 20.000 (!) em Portugal...
Cremos que no casos dos demais países se atendeu a todos os danos - e pelo menos na França e na Alemanha não se indemniza sequer a perda do direito à vida como a vimos abordando - e que, em Portugal, se reparou só nesta parcela ou, então, na lei dos acidentes de trabalho.