Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2140/09.1TBCTB.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: SOCIEDADE POR QUOTAS
PERSONALIDADE JURÍDICA
EXTENSÃO DA PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
CAPACIDADES JUDICIÁRIA
REGISTO SUPERVENIENTE DO CONTRATO DE SOCIEDADE
Data do Acordão: 06/14/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS - PERSONALIDADE JURÍDICA
DIREITO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS - REGISTO COMERCIAL
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
Doutrina: - Lebres de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1, pág. 17.
- Menezes Cordeiro, in “Código das Sociedades Comerciais Anotado”, 2009 – pág. 85.
- Oliveira Ascensão, “Direito civil — Teoria geral”, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, I, pág. 37.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 66.º, 158.º
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 5.º, 18.º, N.º5, 37.º, 40.º
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 5.º, 6.º, AL. D)
CÓDIGO DE REGISTO COMERCIAL (CRCOM.): - ARTIGO 3.º, AL. A).
Sumário : I) - Uma sociedade comercial não registada não tem personalidade jurídica, porque o registo definitivo do contrato é elemento constitutivo dessa personalidade – art.5º do Código das Sociedades Comerciais – mas tem personalidade judiciária por força do disposto no art. 6º, al. d) do Código de Processo Civil.

II) – Comprovado o registo superveniente de uma sociedade por quotas, que ao tempo da celebração de contrato-promessa de compra e venda não estava registada, intervindo como promitente-compradora, está, agora, por via desse registo, válida e definitivamente constituída, verificando-se a assunção retroactiva dos negócios celebrados em seu nome, dispondo de personalidade e capacidade judiciária, sendo de imputar as consequências desse negócio ao património autónomo que a sociedade constitui.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

          


AA Lda., instaurou, em 23.12.2009, na Comarca de Castelo Branco – 3º Juízo – acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário, contra:

- BB e marido CC.

- DD, e;

- EE.

 Pedindo a condenação dos RR. a ver resolvido o contrato-promessa que com ela celebraram em 12.09.2008 e, em função disso, a restituir-lhe o montante de € 500.000,00, correspondente ao dobro do sinal prestado, bem como juros à taxa legal sobre tal quantia, acrescidos da sobretaxa de 4%, desde a data da decisão até efectivo e integral pagamento.

Para tanto, alega ter negociado com os RR., em 12.09.2008, um contrato-promessa de compra e venda de determinado imóvel, pelo qual aqueles lho prometeram vender pelo preço de € 500.000,00;

- por conta desse preço os RR. já receberam da Autora € 250.000,00;

- apesar de intimada por duas vezes a outorgar o contrato prometido, os RR. sempre se vem recusando a tal celebração, recusa que se deve ao facto de, entretanto, já terem prometido vender o mesmo imóvel a terceiro, transmitindo-lhe através de tal promessa a respectiva posse;

- sucede até que, por virtude desse negócio, o referido terceiro já instaurou contra os RR. uma acção destinada à execução específica da promessa de venda;

- achando-se, deste modo, inviabilizado o cumprimento do contrato celebrado com a Autora, tem esta direito à respectiva resolução e ao embolso do dobro do sinal prestado.

Contestando, os RR. arguiram, por via de excepção, a falta de personalidade e capacidade judiciárias da Autora, uma vez que a mesma não se encontra registada como sociedade comercial.

- por impugnação, defenderam-se dizendo que, desde Fevereiro de 2008, está lavrado provisoriamente por dúvidas o registo da Autora;

- que desconheciam, no momento da celebração do contrato com a Autora, a existência de qualquer outro contrato, bem como da acção que, com base nele, àquela foi instaurada;

- que os RR. concordaram em outorgar a escritura em Janeiro de 2009;

- que a matrícula da Autora está cancelada desde Junho de 2009, situação que se mantinha em 21 de Outubro de 2009;

- que o motivo invocado pela Autora não constitui obstáculo à celebração da escritura;

 - que a Autora já manifestou claramente a sua intenção de não cumprir as suas obrigações.

 Terminam com a absolvição dos RR. da instância, ou, assim não se entendendo, do pedido.

Deduzindo reconvenção, apesar de invocarem a imputabilidade à Autora do incumprimento e o direito a fazerem seu o sinal prestado, não formulam, todavia, qualquer pedido concreto a esse título.

Replicando, a Autora veio aduzir que desconhecia o cancelamento da respectiva matrícula, apesar de haver mantido a respectiva actividade e de continuar a deter a propriedade de vários imóveis e a possuir a respectiva contabilidade organizada;

- que, apesar disso, os gerentes e únicos sócios irão intervir e ratificar o processado, sanando o vício.

 Quanto à reconvenção propugna que a mesma seja declarada inepta por falta de pedido, decidindo-se em conformidade.

Em requerimento autónomo, as sociedades “FF, Lda” e “GG, Lda”, alegando a sua qualidade de sócios únicos da Autora, apresentaram-se a requerer a respectiva intervenção principal espontânea, dando por reproduzidos os articulados por aquela oferecidos, aos quais declararam aderir in totum.

No despacho saneador, a M.ma Juíza, depois de considerar verificada a falta de personalidade e capacidade judiciárias da Autora, absolveu os Réus da instância.

Inconformada, recorreu a Autora para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, por Acórdão de 30.11.2010 – fls. 174 a 181 –, sentenciou:

Pelo exposto, na procedência da apelação, revogam o despacho saneador na parte em que declarou a Autora carecida de personalidade e capacidade judiciárias, decidindo-se que se substitua essa decisão por outra que reconheça à apelante esses dois pressupostos processuais, devendo aquele despacho prosseguir com a apreciação das demais questões, conforme for de direito”.

            Inconformadas, as Rés recorreram para este Supremo Tribunal de Justiça, e, alegando, formularam as seguintes conclusões:

1 – Julgou incorrectamente o Tribunal da Relação de Coimbra.

2 – É manifesto que não estamos perante a mesma sociedade, autora nos presentes autos.

3 – Foi constituída uma nova sociedade com novo número fiscal e novo pacto social, logo estamos perante uma sociedade por quotas totalmente distinta da criada pela Autora.

4 – A autora não tem nem nunca teve personalidade jurídica.

5 – Foi criada de raiz uma nova sociedade em todo diferente da identificada como Autora.

4 – A Autora não pode, por falta de personalidade judiciária, demandar e permanecer na lide.

6 - A Autora nunca teve personalidade jurídica, pelo que não é susceptível de ser parte art. 5° do Código de Processo Civil.

7- Nunca esteve constituída de acordo com o art. 5º do Código das Sociedades Comerciais

8- Assim como também não tem capacidade jurídica, uma vez que por si, não tem susceptibilidade de estar em juízo art. 9° do Código de Processo Civil.

9 - Existe uma clara violação da lei substantiva. – art. 722°, n°2, 2ª parte, do Código de Processo Civil.

A Autora contra-alegou, pugnando pela confirmação do Acórdão.

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou factualmente relevante o seguinte;

“Os pressupostos de facto a ter em conta são os que ressaltam do antecedentemente relatado. Por relevantes, aditam-se também os seguintes dados do processo:

A) - Na procuração que acompanha a petição inicial (fls. 31), consta que “AA.”, representada neste acto pelos seus sócios HH e II, constitui seus bastantes procuradores os Srs. Drs. JJ e KK, advogados, sócios da “JJ & KK – Sociedade de Advogados (...)”. 

B) - A fls. 74/76 encontra-se junta uma informação não certificada da Conservatória do Registo Comercial de Castelo Branco relativamente à matrícula de “AA, Lda.”, em que está lançada por Ap. de 08.01.2008 a inscrição provisória por dúvidas da constituição da mencionada sociedade;

C) - Da mesma informação não certificada, consta ainda, sob a epígrafe órgãos designados, que a gerência pertence a HH e II;

D) - E bem assim que, em 28.05.2009, foi cancelada a matrícula da mesma sociedade. 

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se a Autora tem personalidade e capacidade judiciária.

Ao recurso é aplicável o regime legal introduzido pelo DL. 303/2007, de 24.8, uma vez que a acção ingressou em juízo após 1.1.2008 – arts. 11º, nº1, e 12º, nº1, do referido diploma legal.

No despacho saneador – fls. 133 a 137 – as Rés foram absolvidas da instância por se ter considerado que a Autora não dispunha de personalidade e capacidade judiciárias, pelo facto de não estar registada na Conservatória do Registo Comercial, afirmando-se: “Posto que não tem personalidade (não sendo caso de extensão da personalidade, não se inscrevendo a situação concreta na esfera de previsão do artigo 6º, alínea d) do Código de Processo Civil) nem capacidade judiciária.”.

O Acórdão recorrido, discordando desta solução afirmou –  “A decisão impugnada afastou liminarmente a subsunção da situação da Autora à previsão contida na al. d) do art.º 6º do Código de Processo Civil, argumentando que ela não se inscreveria no quadro respectivo.

Salvo o devido respeito, não subscrevemos este entendimento, nem conseguimos apreender as razões que em que possa estar sustentado.

Na verdade, a norma em questão veio estabelecer o princípio de que gozam de personalidade judiciária (entre outras entidades) as sociedades comerciais, até à data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem, nos termos do art.º 5º do Código das Sociedades Comerciais”.

            Vejamos:

            Nos termos do art. 5º do Código de Processo Civil –  “1. A personalidade judiciária consiste na susceptibilidade de ser parte”.

 E o nº2 – “Quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária.”

Em anotação ao citado normativo Lebres de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1, pág. 17, escrevem:

 “O n.° 2 exprime a normal coincidência entre a personalidade jurídica e a personalidade judiciária.

Assentando esta naquela, pode ser parte em processo civil quem tiver “susceptibilidade de ser titular de situações jurídicas” Oliveira Ascensão, “Direito civil — Teoria geral”, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, I, p. 37).

Assim, têm personalidade judiciária as pessoas singulares (art. 66º Código Civil) e as pessoas colectivas, isto é, as associações e fundações que tenham personalidade jurídica (art. 158º Código Civil), as sociedades comerciais a partir do registo definitivo do contrato que as constitui (art. 5º do Código das Sociedades Comerciais), as sociedades civis sob forma comercial (art. 5 Código das Sociedades Comerciais, por remissão do art. 1-4 Código das Sociedades Comerciais) e as pessoas colectivas públicas (Estado, autarquias locais, institutos públicos, universidades públicas, etc.”.

O art. 6º do Código de Processo Civil na d) estende a personalidade judiciária às - “As sociedades comerciais, até à data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem, nos termos do artigo 5.° do Código das Sociedades Comerciais”.

Os mesmos tratadistas, em anotação a este normativo, obra citada, escrevem na pág.20:

 “A alínea d) atribui personalidade judiciária, quer activa quer passiva, às “sociedades comerciais, até à data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem”, quando anteriormente a tinham apenas passiva.

Segundo o relatório do DL. 329-A/95, procurou-se, com a alteração, “articular o regime da personalidade judiciária limitada das sociedades irregulares (…) ao regime de aquisição da personalidade jurídica pelas sociedades comerciais, decorrente do artigo 5.° do Código das Sociedades Comerciais”.

O art. 18º, nº5, do Código das Sociedades Comerciais impõe a obrigatoriedade de inscrição no registo comercial do contrato de sociedade.

Essa mesma obrigatoriedade resulta do disposto no art. 3º, al. a) do C. R.Comercial.

O art. 5º do Código das Sociedades Comerciais estatui – “As sociedades gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem, sem prejuízo do disposto quanto à constituição de sociedades por fusão, cisão ou transformação de outras”.

Em comentário a este normativo o Professor Menezes Cordeiro, in “Código das Sociedades Comerciais Anotado”, 2009 – pág. 85 – escreve:

 “Antes do registo, se a sociedade começar a funcionar, teremos uma sociedade irregular por incompletude, à qual se aplicam os artigos 37.° a 40.° do Código das Sociedades Comerciais.

 De um modo geral: são operacionais, mas não beneficiam de todos os privilégios da personalidade plena e, designadamente, da exclusiva imputação à sociedade dos actos praticados pelos administradores em seu nome e da total separação patrimonial em relação aos sócios.

Todavia, já então se pode falar em pessoas colectivas rudimentares, verdadeiras sociedades: mas diversas do que ocorre, depois do registo.

                O actual Direito português consagra, assim, um sistema de aquisição semi-automática, da personalidade, quanto às sociedades.

 Ela não depende de lei especial (outorga), nem de um acto específico do Estado (concessão), nem de autorização administrativa (autorização).

Mas também não se contenta, formalmente, com a mera vontade das partes (aquisição automática) antes exigindo, além desta, uma formalidade que apenas depende da vontade delas”.

O art. 37º do Código das Sociedades Comerciais – “1. No período compreendido entre a celebração do contrato de sociedade e o seu registo definitivo são aplicáveis às relações entre os sócios, com as necessárias adaptações, as regras estabelecidas no contrato de sociedade e na presente lei, salvo aquelas que pressuponham o contrato definitivamente registado”.

O art. 40º do mesmo Código consigna – “1. Pelos negócios realizados em nome de uma sociedade por quotas, anónima ou em comandita por acções, no período compreendido entre a celebração do contrato de sociedade e o seu registo definitivo, respondem ilimitada e solidariamente todos os que no negócio agirem em representação dela, bem como os sócios que tais negócios autorizarem, sendo que os restantes sócios respondem até às importâncias das entradas a que se obrigaram, acrescidas das importâncias que tenham recebido a título de lucros ou de distribuição de reservas”.

Nos termos deste normativo existe responsabilidade solidária e ilimitada daqueles que agiram, autorizando ou celebrando negócios em nome da sociedade, no período que mediou entre a celebração do contrato e o seu registo, pelo que articulando este normativo com os anteriormente citados, não se vê como possa em especial ser afastado aqueloutro do Código de Processo Civil que estendeu a personalidade judiciária às sociedades comerciais até à data do registo definitivo do contrato – art. 6º d).

Uma sociedade comercial não registada não tem personalidade jurídica, porque o registo definitivo do contrato é elemento constitutivo dessa personalidade – art.5º do Código das Sociedades Comerciais – mas tem personalidade judiciária por força do disposto no art. 6º, al. d) do Código de Processo Civil.

Ademais, afirma-se no Acórdão recorrido:

Sobrevindo na fase recursiva a certidão permanente do registo comercial através da qual, ao abrigo dos arts. 693º-B e 524º do Código de Processo Civil, a Autora e apelante comprova o seu registo definitivo, a questão da personalidade judiciária passou a partir desse momento a consolidar-se, agora nos termos do art.º 5º, nº2, do Código de Processo Civil, com a aquisição em pleno da respectiva personalidade jurídica.

 Trata-se aqui de aplicar da regra da actualidade material da decisão do art.º 663, nº 1, do Código de Processo Civil, por virtude da qual a sentença (ou a decisão) deve tomar em consideração todos os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam após a propositura da acção, de modo a corresponder à situação existente no momento do encerramento da discussão (valendo aqui o encerramento da discussão perante a Relação).”

Comprovado o registo superveniente da sociedade Autora e, portanto, estando definitivamente constituída, verifica-se a assunção retroactiva dos negócios celebrados em seu nome, sendo agora de imputar as consequências desses negócios ao património autónomo que a sociedade constitui.

O contrato em causa celebrado pela Autora, antes do registo definitivo da sua constituição, não lhe retirou personalidade judiciária, apesar de à data da propositura da acção – em Dezembro de 2009 – se achar em situação irregular no que toca ao registo do seu acto constitutivo.

Estando definitivamente registada, a situação inicial de extensão da personalidade judiciária – art. 6º d) do Código de Processo Civil – que até aí era uma sociedade irregular, por via do registo definitivo superveniente, dispõe depois de tal registo, de personalidade de capacidade judiciária.

Assim sendo o Acórdão recorrido não merece censura.

Conclusão – art.713º, nº7, do Código de Processo Civil.

 Comprovado o registo superveniente de uma sociedade por quotas, que ao tempo da celebração de contrato-promessa de compra e venda, intervindo como promitente-compradora, não estava registada, está, agora, por via desse registo, válida e definitivamente constituída, verificando-se a assunção retroactiva dos negócios celebrados em seu nome, dispondo de personalidade e capacidade judiciária, sendo de imputar as consequências desse negócio ao património autónomo que a sociedade constitui.

Decisão.

Nega-se a revista.

Custas pelos RR./recorrentes.

Supremo Tribunal de Justiça, 14 de Junho de 2011

Fonseca Ramos (Relator)

Salazar Casanova

Fernandes do Vale