Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A1418
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MOREIRA CAMILO
Descritores: FALÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
HIPOTECA LEGAL
CRÉDITO DA SEGURANÇA SOCIAL
Nº do Documento: SJ200305270014181
Data do Acordão: 05/27/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 1177/02
Data: 11/21/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : 1ª - A referência a "privilégios creditórios" das instituições de segurança social no artigo 152º do CPEREF abrange não só tais garantias stricto sensu consideradas, mas igualmente outras garantias, nomeadamente a hipoteca legal, cujas afinidades com aqueles são manifestas.
2ª - Tal resulta da integração de uma lacuna legislativa, através do recurso à analogia, nos termos do artigo 10º, nºs 1 e 2, do Código Civil.
3ª - Assim, a extinção dos privilégios creditórios dessas entidades acarreta simultaneamente a extinção das respectivas hipotecas legais, mesmo que estas tenham sido objecto de registo predial, nos termos do artigo 12º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I - Nos autos de reclamação de créditos nº 199-E/1999, pendentes no 2º Juízo Cível da Comarca de Santa Maria da Feira, na sequência de declaração de falência da sociedade comercial por quotas "A, Lda", foi proferida sentença do seguinte teor:
"Graduam-se, assim, os aludidos créditos reconhecidos da seguinte forma:
a) no que respeita ao prédio apreendido a fls. 7, verba nº 48 do Apenso B:
- em primeiro lugar, o crédito referido em 11, nos termos e até ao montante em que foi reconhecido;
- em segundo lugar, o crédito referido em 3, nos termos e até ao montante em que foi reconhecido;
- em terceiro lugar, o crédito referido em 15, nos termos em que foi reconhecido e até ao montante de 50.500.000$00;
- em quarto lugar, o crédito referido em 9, al. b), nos termos e até ao montante em que foi reconhecido;
em quinto lugar, todos os restantes créditos reconhecidos, incluindo o remanescente do crédito referido em 15, nos termos em que o foram, procedendo-se a rateio, caso tal se revele necessário;
b) (...)".
Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso de apelação o reclamante Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, Delegação de Aveiro, tendo o Tribunal da Relação do Porto proferido acórdão a confirmar aquela sentença.
Ainda irresignado, veio o aludido reclamante interpor o presente recurso de revista, o qual foi admitido.
O recorrente apresentou as suas alegações, formulando as seguintes conclusões:
1ª - Por sentença de 12 de Janeiro de 2000 foi declarada falida a requerida A, Lda, com sede na zona industrial do Roliço, Espargo, Santa Maria da Feira.
2ª - O ainda Centro Regional de Segurança Social do Centro, Serviço Sub-Regional de Aveiro, reclamou os seus créditos no montante de 102.998.507$00, sendo 72.986.310$00 de contribuições não pagas declaradas nas folhas de remunerações compreendidas entre Dezembro/94 a Março/99 e respectivos juros de mora, vencidos até Janeiro de 2000, no montante de 30.012.197$00.
3ª - O então Centro Regional de Segurança Social do Centro, Serviço Sub-Regional de Aveiro, para garantia da dívida de contribuições e juros de mora, constituiu duas hipotecas legais, sendo registadas pelas Ap. 31/130598 e Ap. 30/250794 (resulta da certidão da Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira haver aqui manifesto lapso, pois trata-se, por ordem cronológica, das Ap. 31/160198 e Ap. 30/130598) sobre o imóvel registado na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira, freguesia de Espargo, com a descrição predial nº 0251/250794.
4ª - O Tribunal Judicial da Comarca de Santa Maria da Feira, por despacho de verificação e graduação de créditos datado de 21 de Dezembro de 2001, verificou o montante global de 102.998.507$00 de contribuições não pagas entre 12/94 e 9/99 e respectivos juros de mora, bem como as hipotecas legais constituídas sobre o imóvel supra identificado, propriedade da falida, registadas pelas Ap. 31/160198 e Ap. 30/130598, conforme se pode comprovar no respectivo despacho.
5ª - O Tribunal "a quo" verificou ainda o crédito respeitante aos meses compreendidos entre Dezembro de 1994 e Março de 1999 e respectivos juros de mora no montante de 96.951.264$00, bem como a dívida respeitante aos meses compreendidos entre Abril de 1999 e Setembro de 1999 e respectivos juros de mora.
6ª - No citado despacho, o Tribunal "a quo" não graduou as hipotecas legais constituídas pelo Centro Regional de Segurança Social do Centro, Serviço Sub-Regional de Aveiro, considerando que aquelas se extinguem, invocando para o efeito o artº 152 do CPEREF, onde se prescreve que "... com a declaração de falência, estinguem-se imediatamente os privilégios creditórios, das autarquias locais e das instituições de segurança social passando os respectivos créditos a ser exigíveis apenas como comuns...", bem como o nº 3 do artº 200 do mesmo Código.
7ª - A graduação feita pelo Tribunal "a quo" é contra legem, uma vez que o citado artº 152 do CPEREF nada dispõe relativamente às hipotecas legais constituídas por quem quer que seja, detendo-se apenas em regulamentar a extinção dos privilégios creditórios do Estado e das instituições de Segurança Social.
8ª - No que diz respeito às hipotecas legais, tais garantias reais são constituídas para garantir uma obrigação e, consequentemente, a possibilidade de ser pago pelo valor de certos bens móveis ou imóveis, com preferência sobre os demais credores (conforme artºs 686, 687 e 708 do Código Civil), não se englobando no disposto no artº 152º do CPEREF, uma vez que, salvo o devido respeito, nada na lei aplicável se prevê que aquelas se extingam com a declaração de falência.
9ª - Tal extinção das hipotecas legais seria desvirtuar o instituto prescrito no Código Civil, mais concretamente o disposto nos artºs 686, 704, 705 e 708.
10ª - Desde logo, não podemos contornar o elemento literal, uma vez que o universo de uma e outra garantia, apesar de ambas resultarem da lei, sem dependência da vontade das partes e constituindo-se desde que exista a obrigação a que servem de segurança (cfr. Artºs 704, 705 e 733 do Código Civil), se o legislador pretendesse tratá-las da mesma forma (extinguindo ambas as garantias) tê-lo-ia dito expressamente, e não o fez, prevendo apenas a extinção dos privilégios creditórios.
11ª - Pretendeu, pois, em nossa opinião, o legislador incentivar os entes públicos a lutarem também eles pela viabilização das empresas, mas não a qualquer preço.
12ª - Considera o aqui apelante que, se o legislador entendeu não se pronunciar sobre a admissibilidade das hipotecas legais, a interpretação correcta a fazer é que estamos perante um "caso não regulado" (intencionalmente), que não um caso omisso.
13ª - De acordo com o artº 9, nº 3, do Código Civil, considera-se que, em sede de fixação do sentido e alcance da lei, "o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados".
14ª - Não pode o Tribunal estender o conceito de privilégios creditórios, conceito que se usa no seu sentido próprio, de forma a abarcar outros direitos aos quais a lei lhe reconhece preferência no concurso de credores.
15ª - No caso em apreço, o Centro Regional de Segurança Social do Centro, Serviço Sub-Regional de Aveiro, não se bastando com o privilégio creditório de que já era titular, diligenciou ainda no sentido de registar tais hipotecas legais resultantes do artº 705, al. b), do Código Civil e do artº 12 do Dec. Lei 103/80, pelo que o seu crédito passou a ser duplamente garantido.
16ª - Uma vez extinto o privilégio por força do artº 152 do CPEREF, restam-lhe ainda, como garantia do seu crédito, as hipotecas legais registadas, e operam-se assim as regras gerais das garantias, ou seja, o crédito há-de ser graduado de acordo e nos termos dos artºs 687, 705 e 708 do Código Civil, com preferência sobre os demais credores no seu pagamento pelo valor do bem sobre o qual recai.
17ª - No que diz respeito ao artº 200, nº 3, do CPEREF, tal normativo dispõe que "Na graduação de créditos não é atendida a preferência resultante de hipoteca judicial..."
18ª - Salvo o devido respeito, não entende o aqui recorrente a aplicação do nº 3 do artº 200, uma vez que este apenas faz referência às hipotecas judiciais.
19ª - Ora, em nosso entender, não podemos compreender a graduação feita pelo Tribunal "a quo", uma vez que o artº 200, nº 3, do CPEREF apenas se refere às hipotecas judiciais.
20ª - Neste sentido, ver Acórdão do STJ de 3/3/98, publicado no BMJ nº 475-548, Acórdão de Revista do STJ nº 1141/02, Acórdão do STJ de 8/2/2001, Processo 3968/00, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, apelação nº 987/02, relativo ao Processo de Falência sob o nº 157/99, 2º juízo do Tribunal da Comarca de Ílhavo.
21ª - Neste particular, e atendendo à não aplicação, às hipotecas legais, do regime dos artºs 152 e 200, nº 3, do CPEREF, deverão ser graduadas as hipotecas legais constituídas pelo então Centro Regional de Segurança Social do Centro, Serviço Sub-Regional de Aveiro, pelo produto da liquidação do imóvel supra identificado, como crédito privilegiado no 4º lugar, atrás do crédito da trabalhadora B, do crédito garantido pela hipoteca voluntária constituída pelo credor Banco Mello, S.A., e, por último, pelo crédito garantido pela hipoteca voluntária constituída pelo credor C.C.E. - Controlo de Calçado para Exportação, Lda, uma vez que o crédito da trabalhadora beneficia de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário geral.
22ª - E, no que diz respeito às hipotecas voluntárias, estas foram anteriormente registadas e, por isso, mais antigas que a hipoteca constituída pelo Centro Regional de Segurança Social do Centro, de acordo com o estipulado no nº 1 do artº 6 do Código do Registo Predial.
23ª - Entretanto, o Tribunal de 2ª instância confirmou a sentença do Tribunal "a quo" objecto do recurso.
24ª - Considerou aquele tribunal "ad quem" no que concerne "aos privilégios creditórios quando estes incidam sobre valores imobiliários do devedor, a garantia dos mesmos decorrente, no que se refere aos créditos que seja titular a Segurança Social, está em pé de igualdade com aquela que resulta da constituição da hipoteca, dada a inconstitucionalidade do privilégio de que nos termos do artº 2 do Dec. Lei 512/76 de 3 de Julho, 11º do Dec. Lei 103/80 de 9 de Maio e 751 do C.C., aqueles gozavam, relativamente àquela - vide Acórdão do Tribunal Constitucional nº 160/2000 in DR nº 234/2000".
25ª - Porém, se analisarmos o teor do Acórdão nº 160/2000, facilmente chegamos à conclusão de que, por violação do artº 2 da Constituição da República, as normas constantes do artº 2 do Dec. Lei 512/76, de 3 de Julho, e do artº 11 do Dec. Lei 103/80, de 9 de Maio, foram julgadas inconstitucionais, normas estas interpretadas no sentido de que o privilégio imobiliário nelas conferido prefere à hipoteca, nos termos do artº 751 do Código Civil.
26ª - É incompreensível a interpretação do Tribunal de 2ª instância, pois considera que a constituição de hipotecas legais pelas instituições de segurança social, apesar de estarem abrangidas no artº 12 do Dec. Lei 103/80, de 9 de Maio, estão em pé de igualdade com os privilégios creditórios, e, dada a inconstitucionalidade dos mesmos privilégios, seriam também inconstitucionais as hipotecas legais constituídas pela Segurança Social.
27ª - Ora, considera o apelante que os Ex.mos Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto não leram com a devida atenção o texto do Acórdão 160/2000, pois o que se julgou inconstitucional, por violação do artº 2 do Dec. Lei 512/76, de 3 de Julho, e do artº 11 do Dec. Lei 103/80, de 9 de Maio, foi a interpretação no sentido de que o privilégio imobiliário geral prefere à hipoteca legal, nos termos do artº 751 do C.C.
28ª - No meu entender, não foi beliscada a possibilidade de a Segurança Social, e concretamente o aqui apelante, de constituir hipotecas legais, pois este expediente é um meio adequado a assegurar a efectividade dos seus créditos, sem frustração das expectativas de terceiros.
29ª - Neste sentido o próprio Acórdão 160/2000 consagra nos seus últimos parágrafos a possibilidade da Segurança Social constituir hipotecas legais como forma de assegurar, através do registo das mesmas, a efectividade dos seus créditos, sem frustração das expectativas de terceiros.
30ª - Em resumo, e face a todo o anteriormente exposto, deverão ser graduadas as hipotecas legais constituídas pelo então Centro Regional de Segurança Social do Centro, Serviço Sub-Regional de Aveiro, pelo produto
da liquidação do imóvel identificado, como crédito privilegiado no 4º lugar, atrás do crédito da trabalhadora B, do crédito garantido pela hipoteca voluntária constituída pelo credor Banco Mello, S.A., e, por último, pelo crédito garantido pela hipoteca voluntária constituída pelo credor C.C.E. - Controlo da Calçado para Exportação, Lda, uma vez que o crédito da trabalhadora beneficia de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário geral.
Não foram oferecidas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II - Com interesse para o conhecimento do presente recurso, temos os seguintes factos:
1. Por sentença de 12.01.2000, proferida em processo iniciado em 10.03.1999 como de recuperação da empresa, foi declarada a falência de "A, Lda".
2. O ainda Centro Regional de Segurança Social do Centro, Serviço Sub-Regional de Aveiro (agora, Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, Delegação de Aveiro) reclamou, em 14.03.2000, os seus créditos, no montante de 102.998.507$00, sendo 72.986.310$00 de contribuições não pagas declaradas nas folhas de remunerações compreendidas entre Dezembro de 1994 a Março de 1999 e respectivos juros de mora vencidos até Janeiro de 2000, no montante de 30.012.197$00.
3. O reclamante, para garantia da dívida de contribuições e juros de mora, constituiu duas hipotecas legais, registadas pelas Ap. 31/160198 e Ap. 30/130598, sobre o imóvel registado na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira, freguesia de Espargo, com a descrição predial nº 00251/250794.
4. Por sentença de verificação e graduação de créditos de 21.12.2001, foi graduado em quarto lugar o crédito de 6.047.243$00, proveniente da dívida respeitante aos meses compreendidos entre Abril de 1999 e Setembro de 1999 e respectivos juros de mora, por beneficiar de privilégio creditório constituído no decurso do processo de recuperação da empresa.
5. Os demais créditos do aqui apelante foram graduados como créditos comuns.
III - 1. A questão aqui a dilucidar consiste essencialmente em saber se, com a extinção dos privilégios creditórios consagrada no artigo 152º do
Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF), aprovado pelo Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril, haverá que considerar as hipotecas legais oportunamente registadas para garantia dos respectivos créditos, ou seja, saber-se se a extinção dos privilégios creditórios de que gozam o Estado, as autarquias locais e as instituições de segurança social, operada com a declaração de falência, acarreta simultaneamente a extinção dessas hipotecas legais.
Na sentença proferida, confirmada pelo acórdão ora recorrido, entendeu-se ser de aplicar regime idêntico ao resultante do artigo 200º, nº 3, do CPEREF, segundo o qual "Na graduação de créditos não é atendida a preferência resultante de hipoteca judicial, nem a proveniente da penhora".
O aqui apelante entende não haver razões para se aplicar esse regime.
Desde já, diremos que, em nossa opinião, a extinção dos privilégios creditórios implica a extinção das correspondentes hipotecas legais, pelas razões que passaremos a expor, seguindo de perto o raciocínio expendido no acórdão da Relação do Porto de 19.10.2000, proferido no processo 712/2000 - citado na sentença e no acórdão dos presentes autos -, o qual foi subscrito pelo aqui relator, então Desembargador daquela Relação, como 2º Adjunto.
2. Os artigos 11º e 12º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, conferem aos créditos por contribuições em dívida às caixas de previdência, hoje integradas no regime geral de segurança social - artigo 68º da Lei nº 28/84, de 14 de Agosto -, as garantias constituídas pelo privilégio mobiliário e, conjuntamente, pela hipoteca legal, relativamente aos imóveis existentes no património das entidades patronais devedoras, processando-se esta última garantia nos termos vigentes para a contribuição predial, hoje substituída pela contribuição autárquica - artigo 24º do Decreto-Lei nº 442-C/88. de 30 de Outubro.
O artigo 152º do CPEREF, na sua primitiva redacção, dispunha que "com a declaração de falência extinguem-se imediatamente os privilégios creditórios do Estado, das autarquias locais e das instituições de segurança social, passando os respectivos créditos a ser exigíveis apenas como créditos comuns".
Do conteúdo das normas integrativas do CPEREF constata-se, como expressamente decorre de todo o preâmbulo do diploma, que houve uma clara e nítida intenção do legislador de procurar incentivar a recuperação das empresas em situação económica difícil, e que sejam economicamente viáveis, de forma a impedir a sua extinção.
Na verdade, tal orientação está manifestamente patenteada num estudo integrado nos trabalhos preparatórios do diploma em causa, elaborado pelo Prof. Antunes Varela na RLJ, 123º, onde, a dado passo, este Mestre propugna que deve ser lembrado ao Estado o dever que lhe assiste de colaborar, antes de qualquer outro credor, na recuperação financeira de tais empresas, quer abolindo ou restringindo de vez os privilégios creditórios que injustamente prejudicam os demais credores ...- fls. 123.
Na sequência de tal opinião, pode ler-se no nº 6 do preâmbulo do Decreto-Lei 132/93:
"Não faria realmente grande sentido que o legislador, a braços com a tutela necessária das empresas em situação financeira difícil desde 1977 até hoje, continuasse a apelar vivamente para os deveres de solidariedade económica e social que recaem sobre os credores e mantivesse inteiramente fora das exigências desse dever de cooperação quer o Estado, quer as instituições de segurança social, que deveriam ser as primeiras a dar exemplo da participação no sacrifício comum.
A esta luz se compreende a doutrina verdadeiramente revolucionária do artigo 152º do presente decreto-lei, por força do qual «com a declaração de falência extinguem-se imediatamente os privilégios creditórios do Estado, das autarquias locais e das instituições de segurança social, passando os respectivos créditos a ser exigíveis como créditos comuns».
É uma solução que, antes mesmo da necessária revisão da legislação vigente sobre os privilégios creditórios, só pode robustecer a autoridade das pessoas colectivas públicas e facilitar o esforço colectivo dos credores realmente interessados na cura económica da empresa financeiramente enferma".
Se é certo que, quer o referido Mestre, quer o transcrito do preâmbulo do diploma, apenas aludem à expressão "privilégios creditórios", esta só colhe adequada compaginação com os objectivos tidos em vista com a inovadora inserção dos seus efeitos naquele diploma mediante a inclusão na mesma de outras garantias com análoga finalidade de que sejam titulares as indicadas entidades públicas.
Enquanto que os privilégios creditórios, no seu estrito sentido jurídico, constituem um direito conferido a certos credores de serem pagos com preferência sobre outros, em atenção à causa dos seus créditos, independentemente de registo - artigo 733º do Código Civil -, a hipoteca é a garantia que confere ao credor o direito de se pagar do seu crédito com preferência sobre os demais credores, que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo, pelo valor de certas coisas imóveis ou a elas equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro - artigo 686º do mesmo Código.
Com efeito, e no que respeita aos privilégios creditórios, quando estes incidam sobre valores imobiliários, a garantia dos mesmos decorrente, no que se refere aos créditos de que seja titular a Segurança Social, está em pé de igualdade com aquela que resulta da constituição de hipoteca, dada a inconstitucionalidade do privilégio de que, nos termos dos artigos 2º do Decreto-Lei nº 512/76, de 3 de Julho, 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, e 751º do Código Civil, aqueles créditos gozavam, relativamente àquela (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional nº 160/2000, de 22.03.2000, in DR, II, de 10.10.2000).
Temos, portanto, que não será aceitável que, no comum concurso de credores, regulado pela lei substantiva, os aludidos créditos se encontrem em paridade, quanto à inexistência de qualquer preferência, relativamente ao seu respectivo pagamento, e tal situação já não ocorra no âmbito do processo de falência.
Por outro lado, tal tese também seria de afastar, tendo em consideração a filosofia de manutenção das empresas com viabilidade económica e, consequentemente, dos respectivos postos de trabalho, que o legislador do CPEREF pretendeu transpor para este diploma.
Com efeito, seria totalmente absurdo que as entidades públicas titulares da referida garantia de hipoteca legal se dispusessem a viabilizar qualquer providência de recuperação da empresa devedora, já que, sendo certo que, na generalidade das situações a que é aplicável qualquer dos mecanismos aludidos no artigo 4º do CPEREF, os créditos dessas entidades assumem a maior fatia pecuniária, a manutenção da indicada garantia constituiria um factor inevitavelmente conducente à não aprovação, por parte dos seus respectivos representantes, de qualquer dessas providências de recuperação da empresa.
Efectivamente, gozando elas, cumulativamente, dos dois referidos tipos de garantias reais, sempre seria irrelevante, para as mesmas, a aprovação ou não aprovação de qualquer providência de recuperação da empresa em causa, pois que, em qualquer dessas circunstâncias, o seu crédito, como privilegiado, nunca seria afectado pela declaração de falência, o que já não ocorreria no caso de extinção, com a sentença que aquela decrete, de ambas as referidas garantias, em que haveria então lugar a um muito maior empenhamento dos representantes daquelas entidades credoras, no sentido de procurarem obter a sua viabilização, como meio de salvaguarda do recebimento dos seus créditos.
Por outro lado, seria igualmente incompreensível que, referindo o legislador à saciedade, no preâmbulo do CPEREF, a sua clara e nítida intenção de prescindir das garantias reais - privilégios creditórios - de que beneficiavam os seus créditos, mantivesse, contra tão apregoada manifestação de vontade, a garantia real constituída pela hipoteca legal, o que constituiria um manifesto desvirtuamento das intenções propugnadas.
Temos, assim, que entender, sob pena de violação do pensamento do legislador, que a referência a "privilégios creditórios" abrange não só tais garantias stricto sensu consideradas, mas também outras garantias, nomeadamente a hipoteca legal, cujas afinidades com aqueles são manifestas.
Perante a exclusiva alusão, expressa pelo legislador no artigo 152º, àquela expressão no seu sentido restrito, há que proceder à integração de tal lacuna legislativa, recorrendo para tal à analogia - artigo 10º, nºs 1 e 2, do Código Civil.
Com efeito, para que esta se possa configurar, torna-se necessário aferir se, relativamente às situações em presença, ocorre um conflito semelhante de interesses de natureza substancial, e não meramente formal, de tal modo que o juízo de valor emitido pela lei acerca de cada uma delas, tenha plena aplicação à outra, dada a similitude das razões justificativas da solução fixada na lei - cfr. Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, "Noções Fundamentais de Direito Civil", vol. I, pág. 170, e "Código Civil Anotado", vol. I, pág. 17.
Como resulta do já exposto, tal semelhança dos privilégios creditórios de natureza imobiliária com a invocada garantia real da hipoteca legal é absolutamente manifesta, nada, portanto, impedindo o recurso à analogia, como forma de integração da apontada lacuna legal.
3. O facto de o aludido acórdão do Tribunal Constitucional referir que a segurança social dispõe de meios adequados para assegurar a efectividade dos seus créditos, sem frustração das expectativas de terceiros, pois bastar-lhe-á proceder ao oportuno registo da hipoteca legal, nos termos do artigo 12º do Decreto-Lei nº 103/80, não altera a nossa posição.
Não se pode olvidar que, ao dizer isso, o acórdão tinha presente tão-só a situação aí em causa, a qual nada tinha a ver com uma declaração de falência e a consequente extinção de privilégios creditórios, mas sim uma reclamação de créditos em autos de acção executiva.
Logo, estamos perante duas realidades totalmente distintas.
Aqui, e pelas razões já apontadas, o facto de o recorrente ter procedido ao registo das hipotecas legais não constitui qualquer obstáculo a que, com a extinção dos privilégios creditórios determinada pelo aludido artigo 152º do CPEREF, se extingam também as hipotecas legais a eles associadas, independentemente de estas terem ou não sido objecto de registo predial.
A não se entender assim, teríamos que as instituições de segurança social furtar-se-iam sempre ao regime que o artigo 152º do CPEREF introduziu, registando sucessivamente hipotecas legais, ao abrigo do artigo 12º do Decreto-Lei nº 103/80, à medida em que se iam vencendo as contribuições que uma empresa deixava de pagar.
4. Infere-se, assim, do exposto que não colhem as conclusões do recorrente, tendentes ao provimento do recurso, pelo que o acórdão recorrido não merece qualquer censura.
IV - Podemos extrair as seguintes conclusões:
1ª - A referência a "privilégios creditórios" das instituições de segurança social no artigo 152º do CPEREF abrange não só tais garantias stricto sensu consideradas, mas igualmente outras garantias, nomeadamente a hipoteca legal, cujas afinidades com aqueles são manifestas.
2ª - Tal resulta da integração de uma lacuna legislativa, através do recurso à analogia, nos termos do artigo 10º, nºs 1 e 2, do Código Civil.
3ª - Assim, a extinção dos privilégios creditórios dessas entidades acarreta simultaneamente a extinção das respectivas hipotecas legais, mesmo que estas tenham sido objecto de registo predial, nos termos do artigo 12º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio.
V - Nos termos expostos, acorda-se em negar a revista e, em consequência, em confirmar a decisão recorrida.
Sem custas, por delas estar isento o recorrente - artigo 2º, nº 1, g), do Código das Custas Judiciais.

Lisboa, 27 de Maio de 2003
Moreira Camilo
Lopes Pinto
Pinto Monteiro