Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B370
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA GIRÃO
Descritores: DOCUMENTO AUTÊNTICO
FORÇA PROBATÓRIA
Nº do Documento: SJ200403250003702
Data do Acordão: 03/25/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 1859/03
Data: 09/30/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - A força probatória material dos documentos autênticos restringe-se, nos termos do artigo 371, nº1 do Código Civil, aos factos praticados ou percepcionados pela autoridade ou oficial público que emanam os documentos, já não abarcando, porém, a sinceridade, a veracidade e validade das declarações prestadas perante essa mesma autoridade ou oficial público;
II - Dois atestados emitidos pela Junta de Freguesia da respectiva residência e uma certidão dos serviços de Finanças sobre a liquidação do seu IRS nada provam, só por si, sobre a carente situação económica alegada pela autora, porquanto: um dos atestados é omisso sobre a razão de ciência do que atesta; o outro atesta com base no que foi declarado pela própria autora; a liquidação do IRS é calculada pelo que é declarado pelo próprio contribuinte.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" pede, na presente acção por si intentada contra o Centro Nacional de Pensões - actualmente, Instituto de Solidariedade e Segurança Social (ISSS) -, que lhe seja reconhecido o direito a receber a pensão de sobrevivência, nos termos do DL 1/94, de 18 de Janeiro, por inexistência de bens da herança de B, com quem viveu em união de facto, desde 1986 e até à data da sua morte, sendo certo que este não deixou quaisquer bens e a autora é carenciada, por estar desempregada e não receber qualquer subsídio e por, também, não ter cônjuge ou ex-cônjuge a quem pedir alimentos, nem os poder obter da sua mãe e dos seus irmãos.
O réu contestou, alegando desconhecer a factualidade alegada e concluindo que a acção deve ser julgada de acordo com a prova produzida.
Com o fundamento de que a autora não logrou provar que se encontra carenciada de alimentos e que os não consegue obter, a acção foi julgada improcedente, com a consequente absolvição do réu do pedido, sentença que a Relação de Lisboa, na improcedência da apelação interposta pela autora, veio a confirmar, remetendo para os respectivos fundamentos nos termos do nº5 do artigo 713 do Código de Processo Civil.
A autora pede revista deste acórdão com as seguintes conclusões:
1. A autora tem direito às prestações por morte no âmbito do regime de segurança social, previsto no DL 322/90, de 18/10 e Dec. Reg. 1/94, de 18/1.
2. O direito a tais prestações resulta da incapacidade da herança do companheiro de facto para a prestação de alimentos e da autora não possuir bens nem conseguir obter rendimentos, por si ou das pessoas referidas nas alíneas a) a d) do artigo 2009 do Código Civil, para alimentação, vestuário e habitação de que necessita para sobreviver.
3. A carência de meios e rendimentos da autora, bem como a incapacidade de por si os obter, resulta da prova plena emergente de documentos autênticos constantes dos autos, cujos factos neles atestados, a sua autenticidade e veracidade nunca foram colocados em causa no decurso destes autos, quer pelo recorrido ISSS, quer ex officio.
4. É documento autêntico a certidão de sentença junta aos autos proferida no âmbito do proc. nº579/97 do 2º Juízo do Tribunal Cível da Comarca do Porto, tal como o são os atestados da Junta de Freguesia e a certidão do Serviço de Finanças da área da residência da autora emitidos pelas respectivas entidades (artigos 363, nº2, 369 e 370, nº1 do C. Civil).
5. Consta, designadamente da referida certidão da sentença, atestado que «a A.. está desempregada, é doente» e «não consegue obter os meios de subsistência indispensáveis ao seu sustento, habitação e vestuário».
6. Os documentos autênticos fazem prova plena quanto às declarações e afirmações neles incluídas (STJ, 4-5-1970, BMJ).
7. Comprovam esses documentos a situação de carência efectiva de alimentos da autora, o que, não tendo sido destruída ou mesmo posta em causa a prova plena de que deles deriva, terá de conduzir necessariamente, pela correcta interpretação e aplicação do direito, à procedência da acção e não, como sucedeu, ao inverso.
8. O direito às prestações por morte do beneficiário, pela pessoa que com ele vivia em situação de união de facto, depende da prova de todos os requisitos previstos no nº1 do artigo 2020 do Código Civil.
9. Por documentos autênticos constantes dos autos, a autora fez prova de todos os requisitos contemplados nesse preceito, assim como da incapacidade da herança do companheiro de facto para lhe prestar alimentos.
10. Razões pelas quais conduz a que se declare a autora titular das prestações por morte de que era beneficiário o companheiro de facto.
11. Ao não apreciar a matéria colocada em causa pela autora no recurso da sentença e ao confirmar a decisão da 1ª instância que decidir improcedente a acção, em contradição com a situação demonstrada e do que deriva da força probatória plena dos factos atestados por documentos autênticos juntos aos autos, violou o douto acórdão recorrido os artigos 347, 370, nº1, e 2020 do C. Civil, o artigo 2º do Dec. Reg. 1/94, de 18/1 e os artigos 659, nº3, 712, nº1, al. b) e 713, nº2 do C.P.C.

O recorrido contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

Com o presente recurso de revista pretende a recorrente, ao fim e ao cabo, a alteração da decisão sobre a matéria de facto, mais concretamente - e embora não o refira expressis verbis - a alteração das respostas negativas aos quesitos 4º, 5º e 5º-A.

Estes quesitos contêm a matéria sobre a sua alegada situação de carência económica -- pressuposto do direito a que se arroga e que, segundo as instâncias, não logrou provar - são do seguinte teor:
4º -- A Autora encontra-se desempregada?
5º -- E não recebe qualquer subsídio?
5º-A - Não consegue a Autora obter meios de subsistência indispensáveis ao seu sustento, habitação e vestuário?

Todos estes três quesitos obtiveram resposta negativa.
Entende, no entanto, a recorrente que as instâncias não atenderam à força probatória plena dos documentos autênticos juntos aos autos - uma certidão de sentença, dois atestados emitidos pela Junta de Freguesia da sua residência e uma certidão emitida pelo Serviço de Finanças da mesma área.

Esta questão foi colocada no recurso de apelação, mas o acórdão recorrido -- elaborado por remissão nos termos do nº5 do artigo 713 do Código de Processo Civil, diploma a que pertencerão todos os artigos daqui em diante citados sem outra menção de origem -- não conheceu dela.

A recorrente, embora refira na sua última conclusão essa omissão de pronúncia, não arguiu expressamente a correspondente nulidade, nem sequer elenca o artigo 668 (onde essa nulidade está prevista) como disposição legal violada.

Sendo assim, está este tribunal impedido de declarar o acórdão nulo, com os efeitos previstos no nº2 do artigo 731, pois que a nulidade por omissão de pronúncia a que alude a primeira parte da al. d) do nº1 do artigo 668, não pode ser conhecida ex officio, conforme decorre do nº3 deste mesmo artigo.

Assim como também não pode ser conhecida a violação da al. b) do nº1 do artigo 712, assacada ao acórdão sob recurso pela recorrente na mesma conclusão, pois, tendo a acção dado entrada em 6/3/2000, aplica-se-lhe o nº6 aditado ao artigo 712 pelo DL 375-A/99, de 20 de Setembro, o qual passou a proibir o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões da Relação previstas nos restantes números do mesmo.

Não obstante, nada do que se acaba de expender é impeditivo de se conhecer da questão fulcral da revista - a alegada força probatória plena imputada pela recorrente aos documentos autênticos já referidos.
Pelo contrário, impõe-se-nos o conhecimento da questão face ao disposto na última parte do nº2 do artigo 722, e uma vez que se encontra alegada a ofensa a disposições expressas da lei que fixam a força de determinado meio de prova (in casu, documentos autênticos).

Vejamos então.

Começando pela certidão de sentença, é sabido que, sendo embora a certidão, qua tale, um documento autêntico na definição do artigo 363, nº2 do Código Civil, a força probatória do seu conteúdo (a sentença), dentro e fora do processo em que foi proferida, rege-se por normas e princípios próprios.

E, como também é por demais sabido, uma sentença transitada só produz efeitos no âmbito de outros processos quando faz caso julgado ou detém força de caso julgado, dependendo, no entanto e sempre, o espoletamento destas suas duas funções (positiva e negativa), da verificação da conhecida tríplice identidade (de sujeitos, de causa de pedir e de pedido), conforme decorre do nº1 do artigo 671, com referência aos artigos 497 e 498.

Ora, este fundamental pressuposto não se verifica entre a presente acção e aquela - processo 579/97 do 2º Juízo do Tribunal Cível da Comarca do Porto - onde foi proferida a sentença certificada nos autos.

Mas mesmo que se verificasse essa tríplice identidade, continuaria a não poder satisfazer-se a pretensão da recorrente de aqui invocar os factos dados como provados naquele outro processo 579/97 sobre a sua situação pessoal de estar desempregada e ser doente e de que não consegue obter os meios de subsistência indispensáveis aos seu sustento.
E isto por força dos limites objectivos do caso julgado, que, na interpretação dominante do artigo 673 do Código Civil, não ultrapassam a decisão (a parte dispositiva) e, eventualmente, as questões preliminares que tenham sido seu indispensável antecedente lógico.

Quanto aos dois atestados emanados pela Junta de Freguesia e à certidão emitida pelos serviços de Finanças - ambas as entidades da área da residência da recorrente - também não se põe em dúvida a sua natureza de documentos autênticos, pois que preenchem os requisitos exigidos pelos artigos 363, nº2, 369, nº1 e 370, nº1, todos do Código Civil.

Só que não podemos esquecer o que dispõe o nº1 do artigo 371 do mesmo Código sobre a força probatória dos documentos autênticos:
«Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como os factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador.».

Ou seja, nos termos deste normativo, a força probatória material dos documentos autênticos restringe-se aos factos praticados ou percepcionados pela autoridade ou oficial público que emanam os documentos, já não abarcando, porém, a sinceridade, a veracidade e a validade das declarações emitidas perante essa mesma autoridade ou oficial público (cfr. Manual de Processo Civil, de Antunes Varela, M. Bezerra e S. e Nora, página 522).

Ora, o atestado de fls. 13 é completamente omisso sobre a razão de ciência do que dele consta -- que a recorrente não tem qualquer rendimento, nem bens e a casa onde reside é emprestada - e o de fls. 38 atesta «...de harmonia com declarações prestadas pela própria...» (sic, sendo nosso o itálico).
O documento emitido pela 2ª Repartição de Finanças de Valongo é uma cópia da certidão de rendimentos da autora no ano de 1999, com a liquidação do IRS com base no rendimento global de 287.615 escudos, sendo, contudo, do conhecimento geral que estas liquidações são calculadas com base no que é declarado pelo próprio contribuinte a que respeita a liquidação.

Consequentemente, nenhum destes três documentos autênticos - tal como a supra analisada certidão de sentença - tem a força probatória plena que a recorrente lhes atribui, não havendo, por isso, qualquer censura a fazer às instâncias por alegada violação de normas legais fixadoras da força de determinado meio de prova.

DECISÃO
Por tudo quanto se expôs nega-se a revista, com custas pela recorrente.

Lisboa, 25 de Março de 2004
Ferreira Girão
Luís Fonseca
Lucas Coelho