Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
206/13.2TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE VIDA
EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS.
DIREITO DO CONSUMO - CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS / DEVER DE INFORMAÇÃO.
DIREITO DOS SEGUROS - CONTRATO DE SEGURO / RAMO VIDA.
Doutrina:
- Antunes Varela, Das Obrigações, vol. II, 5.ª ed., 516/517.
- Baptista Machado, «Tutela de confiança e “venire contra factum proprium”», in Obra Dispersa, vol. I, 385.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 334.º.
Sumário :
Atua em abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, a ré seguradora que tendo celebrado com a pessoa segura dois contratos de seguro do ramo vida, um em 2004 e outro em 2006, exerce em relação ao segundo o direito de pedir a exclusão da sua responsabilidade com base em doença pré-existente, quando no primeiro tinha conhecimento que a pessoa segura sofria dessa doença.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Em 2013.02.02, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – 1ª Secção Instância Central Cível - AA e BB, intentaram a presente ação declarativa com processo ordinário contra CC - Companhia de Seguros de Vida, S.A.


Pediram

a condenação da ré a pagar ao Banco DD, S.A.. a quantia de 35 000,00 euros, correspondente ao capital em dívida do contrato de mútuo celebrado com aquele Banco, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, liquidando os vencidos em 2 987,57 euros.


Alegaram

em resumo, que

- o falecido marido e pai das autoras, EE, celebrou com a ré um contrato de seguro, titulado pela apólice …90, que garantia o pagamento do capital em dívida no âmbito do contrato de mútuo celebrado com o Banco DD, S.A.. em caso de morte ou invalidez total ou permanente do mutuário;

- tendo-lhe sido comunicado o falecimento do segurado, a ré recusou o pagamento do capital coberto pelo referido seguro.


Contestando

e também em resumo, a ré invocou a anulabilidade do contrato de seguro, com fundamento em terem sido prestadas declarações inexatas relativamente ao estado de saúde da pessoa segura, bem como a exclusão da cobertura do seguro em virtude de doença pré-existente, concluindo pela improcedência da ação.


Replicando

 as autoras alegaram, também em resumo, que

- não ocorreu omissão de informação ou prestação de declarações inexatas ou falsas no preenchimento do questionário clinico;

- a ré dispunha de informação clínica relativa ao segurado dado que este tinha sido sujeito a exames médicos aquando da celebração, em 2004, de um outro contrato de seguro de vida, titulado pela apólice n.º …92, que garantia o pagamento do capital em dívida no âmbito do primeiro contrato de mútuo celebrado com o mesmo Banco, tendo este pago ao Banco beneficiário do seguro o capital em dívida após a participação do óbito do segurado, recusando-se, sem fundamento a pagar o capital coberto (35.000,00€) pelo seguro celebrado em 2006, titulado pela apólice n.º ...90.


Proferido despacho saneador, fixados os factos provados e enunciados os temas da prova, foi realizada audiência de discussão e julgamento.


Em 2014.05.19, foi proferida sentença que julgou a ação procedente.


A ré apelou, com êxito, pois a Relação de Lisboa, por acórdão de 2015.05.12, revogou a decisão recorrida e absolveu-a do pedido.


Inconformadas, as autoras deduziram a presente revista, apresentando as respectivas alegações e conclusões.

A recorrida contra alegou, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.

Cumpre decidir.


As questões


Tendo em conta que

- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;

- nos recursos se apreciam questões e não razões;

- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido

são os seguintes os temas das questões propostas para resolução:

A) – Nulidade do acórdão

B) – Cláusula de exclusão

C) – Abuso de direito.


Os factos


São os seguintes os factos que foram dados como provados nas instâncias:

1. A Autora AA casou com EE no dia 24 de Junho de 1986, no município do Bombarral, tendo sido o mesmo dissolvido por morte deste.

2. Dessa união nasceu uma filha, BB.

3. As Autoras são as únicas herdeiras do malogrado EE.

4. A 1ª Autora e o seu marido adquiram em 21 de Outubro de 2004 uma moradia unifamiliar para habitação sita na Rua … nº …, ..., 2540 - Bombarral, inscrita na respectiva matriz pelo artigo …49 e descrita na Conservatória do Registo Predial do Bombarral sob o nº …22.

5. Tal aquisição foi efetuada com recurso ao crédito bancário, garantido por hipoteca, em cuja escritura pública ficou a constar que os mutuários ficavam obrigados a contratar um seguro de vida, para garantia do capital mutuado, cujas condições seriam as indicadas pelo Banco.

6. No cumprimento desse acordo, a 1ª Autora e seu marido celebraram com a Ré um contrato de seguro do ramo vida, pelo valor do capital mutuado, que foi de € 81.091,90 (oitenta e um mil e noventa e um euros e noventa cêntimos).

7. Esse mesmo contrato foi titulado pela apólice nº …92, nela figurando como beneficiário irrevogável o Banco credor, Banco DD, S.A..

8. Mais tarde, em 19 de Junho de 2006, a Autora e seu marido contraíram novo empréstimo bancário e, consequentemente, um novo contrato de seguro de vida, cobrindo para além da morte, a invalidez, titulado pela apólice nº …90, cujo capital seguro era de € 35.000,0 (trinta e cinco mil euros), sendo o beneficiário do capital o Banco DD, na qualidade de credor hipotecário.

9. Quando da celebração do seguro, o marido da 1ª Autora assinou uma proposta de seguro, onde constava um questionário com as seguintes perguntas:

“- Já o aconselharam a consultar um médico, a ser hospitalizado, a submeter-se a algum tratamento ou intervenção cirúrgica?

- Está de baixa por doença ou acidente?

- Tem ou teve alguma doença que o tenha obrigado a interromper a sua atividade laboral durante mais de 15 dias consecutivos nos últimos cinco anos?

- Tem alguma alteração física ou funcional, teve algum acidente grave, foi submetido a alguma intervenção cirúrgica ou recebeu alguma transfusão de sangue?

- Já fez ou foi aconselhado a fazer um teste de SIDA?

- Pratica desporto de competição?

- Já lhe foi recusada a celebração de um seguro de vida, de doença ou de acidentes pessoais, ou o mesmo foi celebrado em condições especiais?

- Tem outros seguros de vida na Ocidental?

- Em caso afirmativo indique os montantes?

- É reformado?

- Pratica desporto?

- Qual/Quais?”.

10. No dia 25 de Dezembro de 2010, faleceu o marido da 1ª Autora, não tendo sido efetuada autópsia.

11. Por carta de 11 de Abril de 2011, a Ré comunicou, por escrito, às Autoras que tinha procedido à regularização da indemnização devida, relativamente ao seguro com apólice nº …92, assumindo perante o Banco DD, S.A. a liquidação do capital em dívida, no montante de € 81.091,90 (oitenta e um mil e noventa e um euros e noventa cêntimos) e recusou-se a pagar o capital relativo ao seguro com a apólice nº ...90 com base em “declarações inexatas …” por parte do falecido EE.

12. Para fundamentar a sua decisão, a Ré baseou-se num relatório médico fornecido pela A. mulher do falecido.

13. Desse relatório médico consta o seguinte:

“- HTA (hipertensão arterial), obesidade, hábitos tabágicos, diagnosticados em 1996 e dislipidémia;

- ECG (eletrocardiograma) com prova de esforço de 1997 – negativo para isquemia;

- ECO (ecografia) com HVE (hipertrofia ventricular esquerda) de Janeiro de 2000 e hiperuricemia;

Iniciou-se medicação com hipertensores + estatinas + alopurinol + aspirina. Com controlo tensional”.

14. Consta da alínea a) do artigo 6.º “DAS CONDIÇÕES GERAIS DO RAMO VIDA”, o risco de morte causado por doença pré-existente constitui cláusula de exclusão do âmbito dos riscos cobertos pelos contratos.

15. A apólice n.º …92, veio a ser emitida com agravamento de 275% na cobertura de morte, decorrente de motivos médicos, tendo a pessoa segura disso sido informado pela Ré, para a morada constante dos seus registos, em 27.10.2004.

16. O agravamento deveu-se a motivos médicos, relacionados com o sobrepeso e a hipertensão arterial.

17. Aos índices biométricos – peso, altura e tensão arterial – a pessoa segura respondeu:

Peso – 96Kg, altura – 1,65m, Tensão arterial Min. 15 Máx. 9.

18. O falecido EE na proposta de adesão relativa à apólice nº …90 indicou: Peso – 98Kg, altura – 1,78m, Tensão arterial Min. 8 Máx. 12.

19. Consta do impresso da proposta de adesão ao seguro titulado pela apólice nº …90 subscrita pelo falecido EE o seguinte texto pré-impresso:

“Declaração e Proteção de Dados Pessoais

Para efeitos de celebração do(s) presente(s) contrato(s) de seguro, o Tomador de Seguro e a Pessoa Segura declaram que:

1. São exatas e completas as declarações prestadas e que tomaram conhecimento de todas as informações necessárias à celebração do(s) presente(s) contrato(s), tendo-lhes sido entregues as respectivas Condições Gerais e Especiais, para delas tomarem integral conhecimento e prestados todos os esclarecimentos sobre as mesmas condições, nomeadamente sobre garantias e exclusões com as quais estão de acordo.

2. O Questionário Médico faz parte integrante do Seguro de Vida. As declarações inexatas ou reticentes ou a omissão de factos, tornam o pedido de adesão nulo e sem qualquer efeito e libertam a CC – Companhia Portuguesa de Seguros Vida, S.A. do pagamento de qualquer indemnização. A Pessoa Segura autoriza os médicos e todas as pessoas consultadas pela CC – Companhia Portuguesa de Seguros Vida, S.A. a prestarem a estas ou aos seus serviços médicos as informações que venham a ser solicitadas.

3. Tanto o Tomador do Seguro como a Pessoa Segura declaram ter tomado conhecimento das Condições Gerais do contrato a realizar, bem como da possibilidade de realização de Exames Médicos e/ou Exames Auxiliares de Diagnóstico que se tornem necessários pela conjugação do Capital com a Idade da Pessoa Segura ou pela existência de outros seguros de vida. Para efeito da realização dos referidos Exames Médicos e/ou Exames Auxiliares de Diagnóstico será contactada a Pessoa Segura. As garantias deste seguro de vida só serão acionadas após aceitação das mesmas pela CC – Companhia Portuguesa de Seguros Vida, S.A., que para o efeito, a comunicará ao Tomador de Seguro/Pessoa Segura.

4. Tomam conhecimento que, caso decorram mais de 6 meses entre a data de preenchimento da Proposta de Adesão/Seguro e a data de início do seguro, terá de ser preenchido novo Questionário Médico e repetidos os eventuais exames médicos, sem os quais a referida proposta não tem condições de aceitação.

5. Autorizam a cedência dos dados pessoais disponibilizados, sob o regime de absoluta confidencialidade, às empresas que integram o FF e o Grupo Seguros e Pensões, desde que compatível com a finalidade de recolha dos mesmos.

6. Autorizam que se proceda à recolha de dados pessoais complementares junto de organismos públicos, empresas especializadas e outras unidades económicas, tendo em vista a confirmação ou complemento dos elementos recolhidos necessários à gestão da relação contratual.

7. Autorizam a Seguradora a efetuar, se assim o entender, o registo magnético das chamadas telefónicas que forem realizadas, no âmbito da relação contratual ora proposta, quer na fase de formação do contrato, quer durante a vigência do mesmo, e bem assim a proceder à sua utilização para quaisquer fins lícitos, nomeadamente, para execução dos serviços contratados, para melhoramento e controlo dos mesmos e como meio de prova.

8. O risco proposto no seguro Multirriscos Habitação não se encontra, total ou parcialmente, abrangido por contrato de seguro em vigor para a data de início mencionada, nem existe prémio, fração de prémio ou outra garantia em dívida.

9. Quando subscrito Seguro de Construções, se o termo da obra ultrapassar a data de vigência do Seguro cabe ao Tomador do Seguro/Segurado assegurar a realização de um novo Contrato de Seguro de Construções. Neste caso o seguro Multirriscos apenas terá início após o termo efetivo da obra.

10. Os dados recolhidos serão processados e armazenados informaticamente e destinam-se à utilização nas relações contratuais com a Companhia e seus subcontratados. As omissões, inexatidões e falsidades, quer no que respeita a dados de fornecimento obrigatório, quer facultativo são da responsabilidade do Cliente.

11. De acordo com o previsto no D.L. 142/2000 de 17 de Julho, os dados agora recolhidos, referentes ao Seguro Multirriscos Habitação poderão ser comunicados à Associação Portuguesa de Seguradoras para constituição da Base de Dados “Prémios Não Pagos”, sempre que sem fundada justificação, os tomadores de seguro não satisfizerem as suas obrigações de pagamento relativamente aos contratos de seguro que celebrarem.

12. Os interessados podem ter acesso à informação que lhes diga diretamente respeito, solicitando a sua correção, aditamento ou eliminação, mediante contacto direto ou por escrito com as sucursais do FF”.

20. Do certificado de óbito resulta que a causa direta da morte foi enfarte agudo do miocárdio, devida ou consecutiva a H.T.A. (hipertensão arterial).

21. À morte do segurado EE não é alheia a HTA (hipertensão arterial), diagnosticada em 1996.


Os factos, o direito e o recurso


Na sentença recorrida julgou-se a ação procedente porque se entendeu que da matéria de facto apurada nada permitia concluir pela ocorrência de declarações inexatas por parte do falecido segurado e que a cláusula do seguro constante da alínea a) do artigo 6º das Condições Gerais do contrato, que excluía a cobertura do mesmo no caso de haver doença pré- existente, era nula e mesmo que tal não fosse considerada, não tinha a ré demonstrado que “em face de declarações diversas por parte da autora, não teria contratado o seguro com a mesma, ou o não teria feito nas mesmas condições e termos”. 


No acórdão recorrido, embora concordando-se com a decisão recorrida na parte em que não deu como provada a existência de declarações inexatas pela autora AA, absolveu-se a ré porque se entendeu aplicar aquela cláusula, de cujo conteúdo considerou devidamente informadas as autoras, considerando que “estando provado, através do respectivo certificado de óbito, que a causa direta da morte do segurado foi um enfarte agudo do miocárdio, devido ou consecutivo a H.T.A. (hipertensão arterial), de que padecia antes do contratado seguro de vida, está excluída, nos termos da citada cláusula das condições gerais, dos riscos cobertos pelo seguro”.


A) Questão nova


As autoras recorrentes entendem que o acórdão recorrido, ao pronunciar-se sobre a questão do dever de informação, estava a apreciar uma questão nova, que não havia sido levantada pelas partes nos seus articulados, pelo que não a podia conhecer.

Mas não é assim.


Na verdade, a exclusão da cobertura do contrato de seguro em causa por doença pré-existente – hipertensão arterial - foi invocada pela ré na sua contestação – ver, nomeadamente, os artigos 13º a 16º da mesma – a que as autoras responderam, alegando que a ré tinha conhecimento dessa doença quando da celebração do contrato – ver, nomeadamente, os artigos 16º a 18 da sua réplica.


Sobre a questão pronunciou-se a sentença e no sentido atrás referido, isto é, que a cláusula que estabelecia essa exclusão, constante da alínea a) do artigo 6º das Condições Gerais do Contrato, era nula, por absolutamente proibida face à Lei da Cláusulas Contratuais Gerais, aprovada pelo Decreto-lei 446/85, de 25.10.


Subjacente a toda esta problemática estava, pois, que as autoras sabiam da existência dessa cláusula e do seu conteúdo, aceitando o mesmo, apenas negando que a ré desconhecesse a doença e aceitando, implicitamente, que tinham sido informados pela ré do mesmo.

A questão foi, pois, levantada nos articulados e, embora implicitamente, apreciada na sentença proferida na 1ª instância.

Consequentemente, quando no acórdão recorrido houve pronúncia sobre a mesma, a questão não era nova, como pretendem as recorrentes.

Não existe, pois, a nulidade invocada por estas. 


B) – Dever de informação


Entendem as recorrentes que mesmo que se pudesse conhecer a questão do dever de informação, este não tinha sido cumprido por parte da ré, uma vez que não bastava para tal a assinatura do segurado da proposta onde consta a declaração.

Não pode ser.

E não pode ser em consequência do que se disse na questão anterior.


Na verdade, nunca as autoras, quer na sua petição inicial, quer na sua réplica, alegaram a falta de informação sobre as cláusulas do contrato, nomeadamente da cláusula em questão, antes e pelo contrário, sempre entenderam e aceitaram o conhecimento desta cláusula, pois só assim se compreende o facto de alegarem que o segurado EE padecia de hipertensão arterial, diagnosticada em 1996 e que tal era do conhecimento da ré seguradora.


Dito doutro modo, se as autoras sustentaram o conhecimento por parte da seguradora da existência de uma doença pré-existente sem questionarem a cláusula que a considerava excludente da responsabilidade da seguradora, é porque não questionavam o conhecimento dessa cláusula mas tão só o seu aproveitamento pela parte da seguradora.


Concluímos, pois, que a ré cumpriu o dever de informar em causa.


C) Abuso de direito


Como se tem entendido, o abuso de direito é de conhecimento oficioso.


Ora, no caso concreto em apreço, entendemos que a ré seguradora, ao exercer o seu direito de pedir a exclusão da sua responsabilidade com base na existência de doença pré-existente, atuou com abuso do mesmo.

Vejamos porquê.


A noção e abuso de direito foi consagrada no artigo 334º do Código Civil, segundo a conceção objetiva, conforme salienta Antunes Varela ao escrever: “para que haja lugar ao abuso de direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exercer o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito” - Das Obrigações, vol.II, 5ª ed. p.516.


Esta contradição é patente nos atos de “venire contra factum propium”: são os casos em que uma pessoa pretende destruir uma relação jurídica ou um negócio, invocando, por exemplo, determinada causa de nulidade, anulação resolução ou denúncia de um contrato, depois de fazer crer à contra parte que não lançaria mão de tal direito ou depois de ter dado causa ao facto invocado como fundamento da extinção da relação do contrato - Antunes Varela, ob.cit., p.517.


Conforme sublinha Baptista Machado “in” Tutela de confiança e “venire contra factum proprium” - Obra Dispersa, vol.I, p.385, a ideia imanente a esta proibição é a do dolus praesens, isto é, que a conduta sobre que incide a valoração negativa é a conduta presente, sendo a conduta anterior apenas ponto de referência para, tendo em conta a situação então criada, se ajuizar da conduta atual.


Na decorrência do exposto, enumera aquele mestre, a páginas 415 a 418 da citada obra, três pressupostos para o desencadeamento dos efeitos do instituto:

1º - uma situação objetiva de confiança: uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura.

2º - investimento na confiança: o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contra parte, com base na situação de confiança criada, toma disposição ou organiza planos de vida de que surgirão danos, se a confiança legitima vier e ser frustrada.

3º - boa fé da contra parte que confiou: a confiança do terceiro ou da contra parte só merecerá proteção jurídica quando tenha agido de boa-fé e com cuidados e precauções usuais no tráfico jurídico.


Posto isto, vejamos se, no caso concreto em apreço, se verificam estes três pressupostos.


Para que o primeiro requisito se tenha como verificado, necessário é que se tenha como demonstrado que a ré procedeu em termos de criar nas autoras a expectativa de que a invocação de doença pré-existente à celebração do contrato de seguro em causa jamais seria arguida.


A ré celebrou com a pessoa segura – o falecido EE – dois contratos de seguro do ramo vida, um em 2004 e outro em 2006 – este o que está em causa na presente ação.


Nos artigos 6º e 7º da sua contestação, a ré alegou que aquando da celebração do primeiro contrato, em 2004, houve um “agravamento de 275% na cobertura de morte, decorrente de motivos médicos (…) relacionados com o sobrepeso e a hipertensão arterial”.

Ou seja, em 2004, a ré teve conhecimento de que a pessoa segura padecia de hipertensão arterial.

Daí, temos que concluir que em 2006,aquando da celebração do contrato em causa na presente ação, a ré não podia deixar de saber da existência dessa doença que padecia a pessoa segura.

Ou pelo menos, que era razoável que esta presumisse que a ré tivesse conhecimento dessa informação que lhe havia sido dada em momento anterior, num primeiro contrato.


E se no segundo contrato a existência dessa doença não foi considerada pela ré como motivo para agravamento do risco, à semelhança do que aconteceu no primeiro, é questão que apenas diz respeito àquela ré e de cuja resposta não pode resultar, obviamente, a conclusão que a ré não conhecia da doença em causa.


No primeiro contrato, a ré seguradora sabia da existência da doença pré-existente em causa – hipertensão arterial – e não a considerou motivo de exclusão da sua responsabilidade.


Sendo assim, era de confiar que no segundo contrato, aquela doença não fosse invocada pela seguradora, uma vez que tinha dela conhecimento desde 2004 e a sua existência não tinha sido motivo para não celebrar o contrato aqui em causa.


Concluímos, pois, que se verifica o primeiro requisito acima enunciado para a verificação do abuso de direito.


Vejamos agora se se verifica o segundo.


Parece-nos evidente a sua existência.


Na verdade, com base na confiança de que a doença - hipertensão arterial - não seria considerada pela seguradora como motivo para excluir a sua responsabilidade com base na cláusula em causa, o segurado organizou a sua vida em termos de confiar que a seguradora aceitava a doença preexistente e não a invocaria para excluir a sua responsabilidade.


Finalmente, vejamos se se verifica o terceiro requisito.


Parece também evidente a sua existência.


O segurado agiu de boa-fé porque ofereceu à seguradora o conhecimento da sua doença, apesar de saber da existência da cláusula.

Logo, tendo esse cuidado, colocou a seguradora na posição de decidir se queria ou não celebrar o contrato de seguro e em que termos.


Concluímos, pois, que a ré, ao invocar a cláusula de e exclusão em causa, agiu com abuso de direito.

E por isso, o direito que lhe adviria daquela invocação não pode ser reconhecido.


Nesta conformidade, a ação tem de ser julgada procedente.


A decisão


Nesta conformidade, acorda-se em conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido, julgando-se procedente a ação e condenando-se a ré a pagar aos autores a quantia de 35.000,00 (trinta e cinco mil euros), acrescida de juros de mora desde a data em que o falecimento do segurado lhe foi comunicado.

Custas pela ré recorrida.


Lisboa, 10 de Março de 2016


Oliveira Vasconcelos (Relator)

Fernando Bento

João Trindade