Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4017/20.0T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ILICITUDE
EXCESSO DE LEGÍTIMA DEFESA
ACIDENTE DE TRABALHO
ATROPELAMENTO
FURTO QUALIFICADO
PRINCÍPIO DA NECESSIDADE
PRINCÍPIO DA ATUALIDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRESSUPOSTOS
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
I. Os Tribunais da Relação, na apreciação de uma impugnação da decisão sobre a matéria de facto podem utilizar, oficiosamente, as imagens do GoogleMaps/Street View, nos termos do artigo 662.º, n.º 2, b), do Código de Processo Civil, devendo, no entanto, juntar as mesmas ao processo ou proceder à sua exibição, segundo o disposto no artigo 428.º,do Código de Processo Civil, facultando às partes o seu conhecimento e a possibilidade da impugnação da sua exatidão, previamente à sua utilização como meio de prova, em obediência ao princípio do contraditório em sede instrutória.

II. Não é, no entanto, necessário assegurar o contraditório, se essas imagens não são utilizadas como um meio de prova dos factos em discussão, mas apenas como uma ferramenta de trabalho que facilita a compreensão e interpretação do conteúdo de qualquer meio de prova.

III. A verificar-se uma situação de legítima defesa num atropelamento de um peão, ela não excluiria a responsabilidade pelo risco do condutor atropelante, mas teria influência no valor da indemnização a arbitrar, uma vez que teriam que ser ponderadas todas as circunstâncias do caso, nos termos do artigo 494.º do Código Civil.

IV. Se com o Código Penal de 1982, aparentemente, deixou de existir uma total identidade dos requisitos e pressupostos das figuras civil e penal da legítima defesa, designadamente quanto à exigência da proporcionalidade entre o bem sacrificado e o bem defendido, que apenas se manteve no artigo 337.º do Código Civil, isso não significa que a necessária compatibilidade dos dois regimes não possa ser alcançada, quer através de uma solução coerente para as situações de reação do agressor a uma legítima defesa civil, quer com uma interpretação do artigo 337.º do Código Civil e da aplicação do abuso de direito a determinadas situações de aparente legítima defesa penal, conformes com uma harmonização das duas figuras gémeas.

V. Se o Interveniente Acessório, na condução do seu veículo automóvel, atropela o Autor, quando o perseguia, após este lhe ter assaltado a casa, com o intuito de o imobilizar, por forma a conseguir identificá-lo e, eventualmente, recuperar objetos de que ele se tivesse apropriado, tendo o atropelamento ocorrido quando o Interveniente, sob tensão, aproximou o veículo do Autor, que corria desenfreadamente, estamos perante uma situação de excesso de legítima defesa não justificada, porque se verificou uma manifesta desproporção entre o bem sacrificado e o bem protegido, sem que existisse uma perturbação ou medo que justificasse essa desproporção.

Decisão Texto Integral:
Autor: AA

Ré: Generali Seguros, S.A.

Interveniente acessório: BB

                                               *

I – Relatório

O Autor intentou ação declarativa de condenação, com processo comum, contra Seguradoras Unidas, SA., agora denominada Generali Seguros, SA, pedindo a condenação da mesma no pagamento da quantia de € 51.782,85, relegando para posterior liquidação a indemnização que resultar da IPP que lhe venha a ser fixada, tudo acrescido dos juros legais a contar da citação.

Alegou para tanto e em síntese o seguinte:

- CC, acusando o Autor de se ter introduzido em sua casa, perseguiu-o, conduzindo a sua viatura automóvel segura na Ré e, ao avistar o Autor, desviou a trajetória da viatura que conduzia, invadindo totalmente a faixa de rodagem contrária, indo embater com a frente esquerda do veículo no corpo do Autor, que ficou caído na valeta, com os membros inferiores fraturados e ferimentos na cabeça.

- O Autor foi transportado para o Hospital ..., onde foi sujeito a intervenção cirúrgica, tendo tido alta alguns dias depois.

- Durante o período que aguardou a chegada da ambulância, o referido CC puxou-lhe as pernas e pontapeou-o.

- O Autor tinha celebrado um contrato de trabalho a termo que não foi renovado em virtude do acidente, pelo que reclama a quantia que indica a título de perdas salariais.

-  As roupas e calçado que trazia consigo ficaram rasgadas e inutilizadas, teve despesas em transportes e no aluguer de cama articulada e em medicamentos.

A Ré contestou, por exceção, invocando a incompetência em razão da matéria dos tribunais cíveis e, por impugnação, dizendo, em síntese, o seguinte:

- CC recebeu um telefonema da esposa, informando-o que se encontrava alguém desconhecido na sua habitação;

- CC deslocou-se para aí, tendo encontrado um desconhecido que se veio a revelar ser o Autor, que fugiu;

- CC utilizou a sua viatura automóvel de forma a alcançar o Autor;

- Este ao sentir a aproximação da viatura, tentou fugir, tendo, para esse efeito, atravessado a rua na qual circulava, da esquerda para a direita, tendo ocorrido o embate devido a este comportamento súbito e repentino do Autor;

- CC não conseguiu evitar o embate entre o veículo e o Autor;

- Mesmo que se prove o atropelamento doloso do Autor, a Ré não está obrigada a indemnizar eventos nos quais a utilização de um veículo é manifestamente instrumental à atuação do agente, sendo aquele o único responsável.

A Ré requereu a intervenção acessória provocada de CC, que foi admitida.

CC apresentou contestação, dizendo, em síntese, o seguinte:

 - o embate ocorrido entre o Autor e o veículo por si conduzido enquadra-se na noção de acidente de viação;

- o evento dá-se após uma mudança repentina do sentido de circulação do Autor, que ia a correr do lado esquerdo e, repentinamente, virou para o lado direito, tentando fugir para um monte que se encontrava do lado contrário àquele em que circulava, acabando por embater na viatura conduzida pelo Interveniente;

- não utilizou a viatura para atropelar o Autor e causar-lhe dano, mas, com a intenção de recuperar os objetos que lhe tinham sido furtados, foi atrás do Autor de carro, porque estava a recuperar de uma cirurgia, estando com a mobilidade limitada, não podendo correr.

No despacho saneador foi julgada improcedente a exceção da incompetência em razão da matéria.

O Autor requereu a ampliação do pedido, pedindo que se acrescente ao pedido já formulado a quantia de € 28.448,00 a título de perdas futuras.

Alegou, para tanto, que o relatório pericial fixou ao Autor um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 5%, o que gera uma perda de rendimentos que terão de ser indemnizados, tendo em consideração o salário base que auferia, a idade do A. à data do acidente e a esperança média de vida para os homens.

Foi admitida esta ampliação do pedido.

Realizou-se o julgamento, tendo vindo a ser proferida sentença que decidiu:

Condeno a Ré, “Seguradoras Unidas, S.A.”, a pagar ao Autor, AA, a quantia de 352,85 Euros, a título de danos patrimoniais, e a quantia de € 30.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros vencidos desde a data da presente sentença e vincendos até integral pagamento, sobre o capital de € 30.352,00, à taxa legal de 4%.

O Autor e o Interveniente Acessório interpuseram recurso desta decisão para o Tribunal da Relação que, por acórdão proferido em 06.10.2022, decidiu julgar parcialmente procedentes os recursos interpostos pelo A. e pelo interveniente acessório e em consequência:

- revogar a sentença recorrida na parte em que condenou a Ré a pagar a quantia de € 160,00, substituindo-a nessa parte pela absolvição da Ré desse pedido;

- alterar a sentença recorrida na parte em que condenou a Ré a pagar juros de mora sobre a quantia de € 192,85 a contar da sentença, substituindo-a nessa parte pela condenação da Ré a pagar ao A. juros de mora sobre a referida quantia, à taxa de 4%, a contar da citação (08/09/2020) até à presente data e desde a presente data até integral pagamento à taxa dos juros civis que vigorar;

- alterar a sentença recorrida na parte em que condenou a Ré seguradora a pagar a quantia de € 30.000,00 a título de danos não patrimoniais substituindo-a nesta parte pela condenação da Ré a pagar ao A.:

i) a título de Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica, a quantia de € 20.000,00, acrescida de juros de mora à taxa dos juros civis que vigorar, a contar da data do presente Acórdão até integral pagamento;

ii) a título de danos morais a quantia de € 20.000,00, acrescida de juros de mora à taxa dos juros civis que vigorar, a contar da data do presente Acórdão até integral pagamento.

Desta decisão recorreu o Interveniente Acessório para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:

(...) Em primeiro lugar

13. A impugnação da produção de um novo meio de prova - utilização da ferramenta google maps street view – pelo Acórdão recorrido, pois considera que o dito meio de prova viola as normas materiais contempladas nos artigos 3.º n.º 3 e 415.º (princípio do contraditório), 4.º (principio da igualdade entre as partes), 410.º (princípio do dispositivo), 411.º (princípio do inquisitório), 412.º, 413.º (princípio da aquisição processual) e 620.º (princípio da intangibilidade do caso julgado), todos do CPC, e ainda, os artigos 2.º, 20.º n.º 1 e 4, e 282.º n.º 3, todos da Constituição da República Portuguesa. Pelo que deve ser declarado ilegal a utilização daquele meio de prova.

14. Sob este enfoque importa referir que o Acórdão Recorrido entendeu que não existia prova documental junta aos autos que permitisse elucidar o Tribunal quanto à dinâmica do acidente: “De referir que a prova documental em nada nos elucida quanto à dinâmica do embate em causa nos autos, sendo certo que a reconstituição efectuada pela Polícia Judiciária, junta aos autos pelo A. não pode ser utilizada como prova, pois não foi produzida num processo com audiência contraditória das aqui contrapartes (art.º 421.º do CPC)” (pág. 66 ).

15. Na mesma senda, da prova testemunhal carreada para os autos, o Tribunal recorrido concluiu que não existiram testemunhas oculares do acidente: Testemunha DD: “não viu o atropelamento” (pág. 55); Testemunha EE: “o que aconteceu antes de estar no chão não sabe” (ou seja, chegou após o acidente) (pág. 55); Testemunha FF: “ia a descer a rua, viu um rapaz deitado no chão, encostado a um muro, estava muita gente e um carro do outro lado da estrada” (pá. 56); Testemunha Paulo GG, militar da GNR: “quando chegaram ao local o veículo interveniente no embate já estava parado do lado direito” (pág. 57); Testemunha HH, militar da GNR: “não sabe como ocorreu o embate” (pág. 58);

16. Assim, como que se substituindo às partes, mormente ao Autor, e sem juntar qualquer documento ou imagem que comprove o que é referido no dito Acórdão, não fazendo sequer menção à data em que efetuou a consulta do google maps, deu como provados factos relativos à dinâmica do acidente com base nesse meio de prova, nomeadamente: i) a seguir á casa do interveniente acessório, a estrada tem uma curva acentuada à direita e a seguir desenvolve-se em sucessivas curvas ligeiras á esquerda; ii) a mesma não tem qualquer demarcação no pavimento; iii) no final a mesma existe, do lado esquerdo, um posto de transformação de electricidade, apelidado, ao longo do julgamento, de “cabine” ou “poste de transformação”, cuja parte frontal já se situa na zona em que a rua “afunila” para o lado esquerdo, como que deixando de ter lado direito, passando, a partir daí, a ser uma rua estreita; iv) a casa antes desse posto transformação tem o n.º 218; v) em frente ao posto de transformação, ou seja, do lado direito da estrada, existe um declive e um terreno vedado com rede e um portão”  (pág. 66) (negrito e sublinhado nossos).

17.  Ora, como é consabido, a aplicação google maps vai sendo frequentemente atualizada e nada nos garante que o que o Tribunal Recorrido viu na data em que consultou aquela funcionalidade correspondia precisamente às imagens da data do acidente, até porque, conforme informação que consta nos autos, o local do acidente, desde a data sua ocorrência, já sofreu obras – cfr. fotografias juntas aos autos pelo Recorrente por requerimento datado de 24.11.2022, com a referência ...79.

18. Ao proceder dessa forma o Acórdão recorrido violou o princípio do inquisitório previsto no artigo 411.º do CPC. Porquanto, apesar de ser poder-dever de o juiz proceder à realização de diligências probatórias que importem a justa composição do litígio, cumprindo-lhe exercitar a inquisitoriedade, este não poderia deixar de preservar o necessário equilíbrio de interesses, critérios de objetividade e uma relação de equidistância e de imparcialidade.

19. De igual modo, violou o princípio do contraditório previsto no artigo 3.º n.º 3 e 415.º do CPC, constituindo a produção daquele meio de prova uma “decisão surpresa” para o Recorrente, porquanto este não foi chamado a pronunciar-se sobre o mesmo.

20. Ora, o Princípio do Contraditório revela uma garantia constitucional da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todo os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão – cfr. José Lebre de Freitas, in “Introdução ao Processo Civil Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código”, 4ª Edição, págs.126 e 127.

21. Na mesma senda, violou o princípio da igualdade entre as partes contemplado no artigo 4º do CPC. Este principio impõe o equilíbrio entre as partes ao longo de todo o processo, exigindo a identidade de faculdades e meios de defesa processuais das partes e a sua sujeição a ónus e cominações idênticos, proibindo, em termos negativos, comportamentos discriminatórios e, em termos positivos, obrigando a tratar igualmente situações idênticas - cfr. José Lebre de Freitas, in “Introdução ao Processo Civil Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código”, 4ª Edição, págs. 138 e 139.

22. E, bem assim, violou o disposto nos artigos 410.º e 412.º ambos do CPC. Porquanto, a alegação da utilização da funcionalidade google maps pelo Acórdão recorrido não se traduz num facto notório que não carece de prova, muito menos resulta de factos que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções, sendo que ainda que assim fosse, deveria nos termos do artigo 412.º n.º 2 do CPC, juntar ao processo documento que os comprove.

23. Por outro lado, o Recorrente, em sede de audiência de discussão e julgamento, datada de 28.10.2021, requereu ao Tribunal de 1ª Instância a junção aos autos de fotografias do local tiradas pelo google maps, contudo, tal requerimento foi indeferido pelo Tribunal de 1ª Instância em despacho proferido em audiência que já transitou em julgado nos termos do artigo 620.º do CPC. Verificou-se, pois, uma extinção do poder jurisdicional do juiz, o que significa que o tribunal recorrido não poderia voltar a pronunciar-se sobre a matéria apreciada

24. Ora, o princípio da intangibilidade do caso julgado, goza de proteção constitucional e traduz-se na inadmissibilidade da substituição ou modificação da decisão por qualquer tribunal (incluído aquele que a proferiu) (...). É expressão de segurança e certeza jurídica, pois evita que a mesma ação seja instaurada várias vezes, obsta a que sobre a mesma ação recaiam soluções contraditórias e garante a resolução definitiva de litígios que os tribunais são chamados a dirimir. – cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 567, 568, Lex, 2.ª edição, Lisboa, 1997.

25. Concluindo, tendo o Tribunal Recorrido entendido que a prova carreada para os autos era insuficiente para determinar a dinâmica do acidente, ao invés de recorrer a um meio de prova que tinha sido indeferido anteriormente, e sem respeitar os princípios do inquisitório, contraditório e igualdade das partes, devia ter ordenado: a produção de novos meios de prova que fossem admissíveis (artigo 662.º n.º 2 b) do CPC), ou anular a decisão proferida na 1.ª instância (artigo 662.º n.º 2 c) do CPC), de modo a que esta ordenasse a produção de novos meios de prova que possibilitasse dirimir as dúvidas do Tribunal a cerca do modo como ocorreu o acidente. – neste sentido, vide, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 12.05.2016, relator: Cristina Cerdeira, proferido no âmbito do processo com o n.º 3/14.8TJVNF.G1, disponível em www.dgsi.pt.

26. Ou, em alternativa, na dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova, o Tribunal recorrido deveria ter decidido contra a parte a quem o facto aproveita, nos termos do disposto no artigo 414.º do CPC. Isto significa que na dúvida sobre a forma como ocorreu o acidente, o Tribunal deveria ter decidido a favor do Recorrente e não ter declarado um atropelamento doloso.

27. Mais acresce, é inconstitucional a interpretação das normas previstas nos artigos 3.º n.º 3, 4.º, 410.º, 411.º, 412.º, 413.º, 414.º, 415.º e 620.º todos do CPC, no sentido de serem admitidos meios de prova que anteriormente (nos mesmos autos) foram objeto de despacho de indeferimento já transitado em julgado, e que não foram objeto de contraditório, nem de junção de qualquer documento que o suporte.

28. por violar o princípio de Estado de Direito Democrático previsto no artigo 2.º da CRP, o princípio da intangibilidade do caso julgado também previsto, ainda que implicitamente, no artigo 2.º e 282.º n.º 3 da CRP, e bem assim, por violar o direito dos cidadãos a um processo justo e equitativo previsto no artigo 20.º n.º 1 e 4 da CRP.

Em segundo lugar

29. O presente recurso de Revista visa impugnar a fundamentação jurídica e o valor da indemnização arbitrada a título de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica.  Segundo o douto Acórdão recorrido, a quantificação do montante indemnizatório foi feita com recurso à equidade, atendendo às particularidades do caso concreto (que são: a idade do Autor, 19 anos; DFP de 5 pontos, compatível com o exercício da atividade profissional, mas implicam esforços suplementares; e o Autor auferia como retribuição o Salário Mínimo Nacional) tendo determinado que: “Nestas circunstâncias, sopesando todos referidos elementos e os valores comummente atribuídos na jurisprudência para casos similares, e aplicando o disposto no art.º 566º n.º 3 do CC, tem-se como adequada, equilibrada e justa a indemnização pelo DFP de €20.000,00, actualizada à presente data.”

30. De acordo com o entendimento consolidado da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sobre a reapreciação dos critérios gerais relativos à fixação da indemnização por danos patrimoniais, designadamente por via do recurso à equidade, é o de que, em princípio, deverá manter-se o juízo casuístico feito pelas Instâncias, salvo se for manifesto que a indemnização concretamente arbitrada não se contém dentro dos critérios jurisprudenciais habitualmente seguidos em casos similares, contudo, entende o aqui Recorrente que o valor arbitrado pelo acórdão recorrido é incompatível com os valores das indemnizações que têm vindo a ser concedidas pela jurisprudência dos Tribunais superiores em casos similares, sendo mesmo incompatível com os valores das indemnização reportadas no Acórdão

31. Isto significa que embora o douto tribunal recorrido tenha fundamentado a sua decisão com base neste Acórdão não o atendeu no momento em que determinou o valor indemnizatório a título de DFP, violando assim, o princípio da igualdade, pois arbitrou uma indemnização manifestamente superior à daquele Acórdão (quase o dobro).

32. Ora, em face de tudo isto, dúvidas inexistem que o recurso à equidade não permite manter o montante fixado, uma vez que se afasta dos padrões adotados na jurisprudência, mesmo numa perspetiva atualista, impondo-se a sua redução por forma a não abalar a segurança na aplicação do direito, decorrente da necessidade de adoção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados e, em última análise, o princípio da igualdade

33. A mais disto, no que concerne ao dano biológico, mais do que a consideração abstrata dos pontos atribuídos ao défice funcional permanente da integridade física de que o lesado passou a padecer, importam essencialmente as consequências das lesões na sua vida em todas as suas dimensões.

34. Sob este enfoque veja-se o Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal de 14 de janeiro de 2020 junto aos autos pelo próprio Autor na sua petição inicial datada de 02-09-2020 com a referência ...76 como “certidão judicial composta por 58 laudas”: “Atos da vida diária: sem alterações”; “Vida afetiva, social e familiar: sem alterações”; “Vida Profissional ou de formação: desempregado”; “Vida Profissional ou de formação: desempregado”; Membro inferior direito: “sem limitação de mobilidade”; Membro inferior esquerdo: “sem limitação funcional”. Nessa sequência, o Acórdão recorrido deu como factos provados que os danos que o Autor padeceu em virtude do acidente não tiveram repercussão permanente nas “atividades desportivas e de lazer”, nem na “atividade sexual”.

35. Logo, constata-se que não obstante o Autor padecer de um défice funcional permanente de 5 pontos percentuais, esse défice não tem qualquer repercussão na sua vida social e profissional.

36. O Supremo Tribunal de Justiça, em casos similares, com uma DFP de baixo índice, sempre atribuiu valores muito inferiores ao agora arbitrado ao Autor atendendo às circunstâncias concretas de cada caso – ver, Acórdão datado de 20.12.2017, relator: Roque Nogueira, proferido no âmbito do processo com o n.º 871/12.8TBPTL.G1.S1 (indemnização de €8.500,00 para uma DFP de 3 pontos percentuais, 19 anos de idade); Acórdão datado de 27.04.2017, relator: Tomé Gomes, proferido no âmbito do processo com o n.º  1343/13.9TJVNF.G1.S1 (indemnização de €10.000,00, DFP de 5 pontos, 56 anos de idade); Acórdão datado de 16.03.2017, relator: Maria da Graça Trigo, proferido no âmbito do processo com o n.º 294/07.0TBPCV.C1.S1 (indemnização de €6.000,00, DFP 2 pontos, 15 anos de idade); Acórdão datado de 06.10.2016, relator: António Joaquim Piçarra, proferido no âmbito do processo com o n.º 1043/12.7TBPTL.G1.S1 (indemnização de €10.000,00, DFP de 5 pontos, 32 anos); Acórdão datado de 11.02.2015, relator: Martins de Sousa, proferido no âmbito do processo com o n.º 3329/09.9TBVLG.P1.S1 (indemnização de €12.500,00, DFP de 4 pontos, 10 anos de idade); e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 13.01.2009 (indemnização de 15.000,00, DFP 5 pontos com 8 anos de idade).

37. Pelo que, e competindo ao Supremo Tribunal de Justiça, neste domínio, verificar se foram ultrapassados os limites dentro dos quais se deve conter o juízo equitativo, procurando, sem prejuízo das especificidades de cada caso, uma uniformização de critérios, à luz do princípio da igualdade, tendo em conta anteriores decisões das quais se possam extrair similitudes e padrões que venham a ser delineados, deve o valor atribuído ser manifestamente diminuído. Desde logo, porque o DFP de que o Autor padece em nada o limita na sua vida pessoal e profissional.

Em Terceiro Lugar,

38. No que se refere à indemnização arbitrada a título de danos morais, e considerando-se os factos dados como provados sob os números 4.19 a 4.25, 4.27 a 4.30, 4.32, 4.36 a 4.39, entendeu o Acórdão recorrido que “Sopesando todos os referidos elementos, os valores atribuídos na jurisprudência e aplicando o disposto no art.º 566º n.º 3 do CC, tem-se como adequada, equilibrada e justa a indemnização de €20.000,00 titulo de danos morais, actualizada à presente data”.

39. Também aqui, e à semelhança da indemnização arbitrada a título de DFP, o Acórdão recorrido invocando juízos de equidade, enunciou uma resenha jurisprudencial que fica muito aquém da realidade vertida nos presentes autos.

40. Senão vejamos, a título de exemplo, alguns dos Acórdãos que serviram de fundamento para o arbitramento da quantia de 20.000,00 € a título de danos não patrimoniais sofridos pelo Autor.

- Ac. do STJ de 16/06/2016, proc. 1364/06.8TBBCL.G1.S2: à semelhança do Acórdão recorrido, o valor da indemnização arbitrada a título de danos morais foi de €20.000,00. Mas, fazendo o paralelismo com a situação em análise nos presentes autos, temos que a situação aí analisada é mais grave, pois que, e a título de exemplo, enquanto que o Défice Funcional Temporário Total do Autor foi fixado em 124 dias, naquele Acórdão a vítima esteve com incapacidade temporária geral total durante 34 dias e com incapacidade temporária profissional total durante 341 dias – o que nem sequer se verifica no caso do Autor pois este nem sequer trabalhava -, e ao passo que o Défice Funcional Temporário Parcial do Autor foi fixado em 126 dias, naquele Acórdão, a vítima esteve com incapacidade temporária geral durante um período de 335 dias, pelo que violou o Acórdão recorrido o disposto nos artigos 496.º, n.º 4, e 494.º, ambos do Código Civil, porquanto, e como é fácil de verificar, arbitrou ao Autor uma indemnização de €20.000,00 a título de danos morais, quando, analisadas as demais decisões jurisprudenciais, tal valor é considerado para situações mais graves do que a agora aqui analisada.

- Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 21/10/2021, proc. 5405/19.0T8GMR.G1, nos termos do qual o valor da indemnização arbitrada a título de danos morais (22.000,00€) é muito semelhante à arbitrada pelo tribunal recorrido. Fazendo a comparação, desde logo se verifica que também aqui a situação analisada é mais grave, porquanto no caso analisado neste Acórdão a vítima ficou uma cicatriz cirúrgica de 14cm, ao passo que no caso o Autor ficou com cicatrizes de no máximo 4 cm – aliás, tem cicatrizes que nem sequer sabe se foram resultado do evento ou não (conforme consta do relatório pericial junto aos autos), foi-lhe fixado um DFP de 10 pontos (enquanto que ao Autor foi de 5 pontos), sofrendo de repercussões permanentes na atividade desportiva e de lazer (o que não se verifica no nosso caso);

- Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 04/03/2021, proc. 1490/17.8T8BRG.G1, o valor da indemnização arbitrada (17.500,00€ ) é inferior à arbitrada pelo tribunal recorrido apesar de se tratar de situação em muito semelhante à dos presentes autos. Fazendo uma comparação com o nosso caso em concreto, temos que neste Acórdão: o DFP foi fixado em 6 pontos, e no nosso caso em concreto em 5 pontos; o dano estético foi fixado no grau 3, e no nosso caso em concreto também foi fixado no grau 3; existiu repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer, e no caso concreto não; o período de défice funcional temporário total foi de 10 dias, e no caso em concreto foi de 124 dias; o período de défice funcional temporário parcial foi fixado em 424 dias, e no caso concreto em 126 dias; existiu repercussão temporária na atividade profissional total durante 87 dias, e no caso em concreto não, o Autor nem sequer trabalhava; e o quantum doloris foi fixado no grau 4, enquanto que no caso em concreto foi fixado em 5 pontos.

41. Face ao exposto, impunha-se a determinação de um valor a título de indemnização por danos morais manifestamente inferior ao que foi arbitrado, decorrente da própria jurisprudência relativa a situações análogas ao caso dos presentes autos – ver, neste sentido, Acórdão da Relação do Porto, datado de 15.11.2018, proferido no âmbito do processo com o n.º  7147/17.2T8VNG (indemnização de €7.500,00); Acórdão da Relação de Lisboa, datado de 22.01.2019, proferido no âmbito do processo com o n.º 212/15.2T8SRQ.L1-7 (indemnização de €3.000,00); Acórdão da Relação de Lisboa, datado de 22.03.2018, proferido no âmbito do processo com o n.º 10667/12.1TCLRS.L1-8 (indemnização de €4.000,00); Acórdão da Relação de Lisboa, datado de 26.09.2017, proferido no âmbito do processo com o n.º 10421/14.T2SNT-7 (indemnização de €3.000,00).

42. O Tribunal recorrido sufragando a sua decisão na recolha de jurisprudência que fez, pecou por excesso na atribuição da indemnização ao Autor, até porque, e não se pode perder de vista, que a indemnização tem por finalidade ressarcir o lesado dos prejuízos que, na realidade, sofreu, não podendo conduzir a um gritante desequilíbrio da prestação relativamente ao dano, designadamente não podendo servir para um enriquecimento injusto do lesado à custa do lesante, com a indemnização a funcionar como um mero “taxímetro”.

43. A mais disto, o Acórdão recorrido violou ainda o disposto no artigo 494.º do Código Civil, por remissão do artigo 496.º, n.º 4, do mesmo diploma legal, na medida em que na determinação do quantum indemnizatório a título de danos morais não atendeu a dois critérios essenciais: a situação económica do agende e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.

44. O Tribunal recorrido deveria ter ido em consideração “as demais circunstâncias do caso”, nomeadamente o facto de ter sido o Autor o principal causador de toda esta situação, ao assaltar do aqui Recorrente, obrigando-o a ir atrás dele com o objetivo de recuperar os seus pertences (pois qualquer pessoa colocada na posição do Recorrente, vendo um desconhecido dentro da sua residência que quando se apercebe que não está sozinho começa a correr com o objetivo de fugir e não ser apanhado, pensa, necessariamente, que foi assaltado).

45. Se o Autor não tivesse assaltado a casa do Recorrente o atropelamento não se teria verificado. Aliás como o próprio Acórdão recorrido refere no seu sumário “o facto de o interveniente acessório ter utilizado a viatura para perseguir o A., devido ao facto de o ter surpreendido na sua (do interveniente) habitação e ter fugido, havendo a suspeita que teria consigo bens furtados, constitui a causa remota do ato de condução…”

46. Não obstante isto, o Tribunal recorrido entendeu que o Recorrente atuou com dolo eventual, porquanto “ao utilizar o OI com a intenção de mais facilmente alcançar eventualmente deter o A. e, assim, lograr a sua identificação e recuperar eventuais objetos de que se tivesse apropriado e ao aproximar, sob tensão, o OI do A., que corria desenfreadamente pela esquerda, o interveniente acessório representou como possível que podia embater o A. e, dessa forma, molestar o corpo e a saúde do mesmo, mas conformou-se com isso” (facto 4.46, pág. 87).

47. Mas, sempre se refira que o aqui Recorrente mantém a sua posição de que o evento ocorreu por culpa exclusiva do Autor, ainda que o Tribunal recorrido assim não o tenha entendido. Todavia, ainda que assim não fosse, sempre o Recorrente agiu ao abrigo de uma causa excludente de ilicitude – a legitima defesa, pois que o acidente ocorreu na sequência de uma situação de flagrante delito (artigo 255.º, n.º 1, al. b), do CPP).

48. Contudo, entendeu o Tribunal recorrido que “os meios empregues na execução dessa detenção não podem ser excessivos ou desproporcionados relativamente aos interesses em presença, ou seja, tem de haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse que se possa sacrificar com a execução da detenção”, pelo que, e após uma ponderação de valores, entendeu que “pese embora o referido quadro de flagrante delito, a mesma não justifica a conduta do interveniente acessório, tendo em consideração o resultado da mesma”.

49. No entanto, não se concorda com o douto Acórdão, porque naquele momento não existia outro meio que o Recorrente pudesse empregar para deter o Autor que como ficou provado “corria desenfreadamente”. Sendo que, ainda que se entenda, o que não se concede, que o resultado foi excessivo ou desproporcional, a verdade é que a legítima defesa implica sempre um risco para o autor do crime das consequências da defesa não serem exactamente aquelas ditadas por um estrito princípio de necessidade, havendo um espaço imprevisível de consequências, sem que daí se possa afirmar uma defesa ilegitimada – ver, neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-01-1998, processo n.º 97P1189, relator: Virgílio de Oliveira, disponível em www.dgsi.pt.

50. Logo, a indemnização arbitrada a este título de danos morais, ainda que não se tenha dado como verificada nenhuma causa excludente de ilicitude, deveria ter tido em atenção que a prática do crime de furto pelo Autor foi a causa remota do acidente. Isto posto, não pode ser arbitrada uma indemnização que não contemple esta circunstância do caso.

51. Por outro lado, o Tribunal recorrido também não atendeu a outro critério tipificado na lei (artigo 494.º do CC) para determinar o citado quantum indemnizatório a título de danos morais, mormente, o critério relativo à situação económica do Recorrente e do Autor, pois consta do Acórdão recorrido que “Desconhecem-se as condições económicas quer do agente quer do autor.” (pág. 119).

52. Contudo, e atentas as especificidades do caso concreto, entende o Recorrente que o Tribunal recorrido devia ter atendido à sua situação económica, pois que, como se sabe, considerando o Tribunal recorrido que o evento se deu por culpa única e exclusiva do Recorrente, a Seguradora, a posteriori, em sede de ação de regresso, vai exigir do Recorrente aquilo que vier a pagar ao Autor.

53. Assim, verificando-se que no caso dos autos “Desconhecem-se as condições económicas quer do agente quer do autor” (pág. 119 do acórdão recorrido), ou seja, verificando-se que há insuficiência de prova para determinar este critério, deveria o Tribunal Recorrido, em ordem à descoberta da verdade material, mesmo oficiosamente, proceder ao reexame da causa, mediante a renovação das provas produzidas na 1ª instância ou, ordenar a produção de novos meios de prova, ao abrigo do disposto nas alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 662º do Código de Processo Civil – ver, neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 26.11.2019, relator: Pedro de Lima Gonçalves, proferido no âmbito do processo com o n.º 431/14.9TVPRT.P1.S1, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 12.05.2016, relator: Cristina Cerdeira, proferido no âmbito do processo com o n.º 3/14.8TJVNF.G1, relator: Cristina Cerdeira, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

54. Nestes termos, e em conclusão, uma vez que dos autos nada consta quanto à situação económica do recorrente e do autor e não tendo o Tribunal recorrido tomado ele próprio a iniciativa de produção de novos meios de prova, deveria ter anulado a decisão proferida pela 1.ª Instância, de modo a que este último tribunal ordenasse oficiosamente a realização das diligências necessárias com vista alcançar a verdade material.

55. Em face do exposto, deve a indemnização fixada a título de danos morais pelo Tribunal da Relação de Guimarães ser manifestamente reduzida, atendendo aos juízos de equidade, mormente aos valores fixados pela jurisprudência em casos análogos ao dos presentes autos, bem como, atendendo às circunstâncias do caso concreto (foi o Autor que deu causa remota ao acidente).

(...)

59. Quanto à valoração da prova por declarações de parte, entendeu o Tribunal recorrido que “Entende-se que, muito embora as declarações de parte tenham de especifico o facto de provir de uma parte do processo, as mesmas podem, por si, estribar a convicção do juiz, assumindo valor probatório suficiente e autónomo pois, como manda o n.º 3 do art.º 466º do CPC, trata-se de prova sujeita à livre apreciação do tribunal á semelhança de outras, sem que se questione que o juiz possa considerar um facto provado só com base numa dessas provas singulares, seja ela prova pericial de um único perito, seja um só depoimento testemunhal.”

60. Contudo, entende o Recorrente que a decisão proferida está em contradição com o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 06.10.2016, relator: Tomé Ramião, proferido no âmbito do processo com o n.º 1457/15.0T8STB.E1, disponível em www.dgsi.pt, já transitado em julgado, no domínio da mesma legislação (artigo 466.º, n.º 3, do CPC), e sobre a mesma questão fundamental (valoração da prova por declarações de parte), não tendo sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência, tudo nos termos do disposto no artigo 672.º, n.º 1, al. c), do CPC.

61. Entre o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento existe uma identidade da questão de direito sobre que incidiram (valoração da prova por declarações de parte), cuja resposta implicou a interpretação das mesmas normas jurídicas, referindo-se o Acórdão fundamento a uma situação em que, à semelhança do nosso caso concreto, o Tribunal considerou que inexistiam testemunhas presenciais do acidente, em que o Autor se limitou a reproduzir o afirmado na sua petição inicial, no que respeita à versão do acidente, que nem sequer foi corroborada por qualquer testemunha ou por qualquer documento, podendo afirmar-se, assim, que o núcleo essencial de apreciação da matéria subjacente a cada uma das decisões em confronto é equiparável.

62. A oposição concreta verifica-se, porquanto, enquanto que o Acórdão recorrido, considerou que “muito embora as declarações de parte tenham de especifico o facto de provir de uma parte do processo, as mesmas podem, por si, estribar a convicção do juiz, assumindo valor probatório suficiente e autónomo pois, como manda o n.º 3 do art.º 466º do CPC, trata-se de prova sujeita à livre apreciação do tribunal á semelhança de outras, sem que se questione que o juiz possa considerar um facto provado só com base numa dessas provas singulares, seja ela prova pericial de um único perito, seja um só depoimento testemunhal”, o Acórdão fundamento, na sua fundamentação considerou que “Seguindo idêntica orientação, e na ausência de qualquer outro meio probatório, é duvidosa a versão apresentada pelo Autor, relativamente a essa factualidade, contrariada pelo depoimento do outro condutor, razão pela qual será de observar o disposto no art.º 414.º do C. P. Civil, o qual prescreve: “A dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita”.

63. Por fim, esta oposição tem naturalmente reflexos na decisão tomada, pois, na tese do aqui Recorrente, as declarações de parte, só por si, não são suficientes para o Tribunal dar como assentes determinados factos, pelo que, procedendo esta tese, sempre os factos dados como provados com base única e exclusivamente nas declarações de Parte do Autor teriam que ser dados como não provados, alterando-se, na sequência, a sentença proferida.

64. A mais disto, sempre se diga, que o entendimento sufragado pelo aqui Recorrente, quanto a este segmento, encontra respaldo em vários Acórdãos, todos disponíveis em www.dgsi.pt, os quais, independentemente da especificidade da situação apreciada, se debruçam sobre a questão fundamental dirimida nos presentes autos, que é, no essencial, a mesma, valoração da prova por declarações de parte, fazendo-se referência, a título de exemplo, os seguintes: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 05.12.2019, relator: Maria João Vaz Tomé, proferido no âmbito do processo com o n.º 13951/16.1T8LSB.L2.L1.S2; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 04.05.2022, relator: Manuel Domingos Fernandes, proferido no âmbito do processo com o n.º 688/20.6T8PVZ.P1; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 12.07.2021, relator: Manuel Domingos Fernandes, proferido no âmbito do processo com o n.º 1016/20.6T8PNF.P1; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 08.04.2021, relator: Vera Sottomayor, proferido no âmbito do processo com o n.º 4239/17.1.T8GMR.G1; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 20.02.2020, relator: Vera Sottomayor, proferido no âmbito do processo com o n.º 227/18.9.Y2GMR.G1; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 09.09.2019, relator: Pedro Brighton, proferido no âmbito do processo com o n.º 8375/13.5TCLRS-A.L1-1; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 17.12.2014, relator: Pedro Martins, proferido no âmbito do processo com o n.º 2952/12.9TBVCD.P1.

65. (...) e em consequência, por violação do artigo 466.º n.º 3 do CPP, devem ser dados como não provados os factos que se basearam nas declarações de parte do Autor, mormente, os factos respeitantes à determinação do acidente como atropelamento doloso pelo Recorrente e relativos a determinados danos não patrimoniais - factos constantes do Acórdão recorrido 4.12, 4.13, 4.24, 4.27, 4.28, 4.29, 4.30, 4.46 e 4.47 -  porquanto estes basearam-se exclusivamente nas declarações de parte do Autor, não tendo sido sustentados por qualquer outra prova adicional ou complementar, seja testemunhal, seja documental.

66. Sem prescindir, ainda que este douto Tribunal para o qual se recorre seja do entendimento de manter a tese do atropelamento doloso do Autor pelo Recorrente, o que não se concede, e apenas se equaciona por excessiva cautela de patrocínio, a verdade é que desconsiderando-se os factos 4.27, 4.28, 4.29 e 4.30 relativos aos danos morais sofridos, sempre o quantum indemnizatório fixado para os danos morais deverá ser manifestamente reduzido, por se declararem por não provados os danos que apenas foram mencionados pelo Autor e não foram comprovados por qualquer outo meio de prova.

(...)

67. Quanto ao preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, entendeu o Tribunal recorrido que “A sentença recorrida considerou verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito. As alterações introduzidas na matéria de facto não conduzem a um resultado diferente, ainda que certos elementos possam ter um conteúdo diferente”, conformando-se com a decisão do Tribunal de 1ª Instância, não apreciando, no entanto, a questão de se verificar uma causa de exclusão de ilicitude, sendo certo, sempre se refira, que não é pelo facto de o Recorrente não ter invocado expressamente no seu recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães uma causa de exclusão de ilicitude (apesar de ter invocado a existência de uma situação de flagrante delito, nos termos do artigo 256.º n.º 1 e 2 do CPP), que esse douto Tribunal não a pudesse conhecer, na medida em que está dentro dos seus poderes de cognição, de acordo com o gizado no artigo 5.º n.º 3 do CPC.

68. É que, e tendo por base os factos dados como provados no Acórdão recorrido, com relevância para a presente questão – alguns deles diferentes dos que foram dados como provados pelo Tribunal de 1ª Instância -, sob os números 4.4. a 4.7, 4.9, 4.12 e 4.46, decorre, inequivocamente, que o acidente ocorreu numa situação de legitima defesa (ver facto 4.53), e tendo isto em consideração, entendemos que o Acórdão recorrido está em contradição com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 13.06.2018, relator: Carlos Gil, proferido no âmbito do processo com o n.º 1985/17.3T8VNG.P1, disponível em www.dgsi.pt, já transitado em julgado, no domínio da mesma legislação (artigos 337.º e 338.º do CC), e sobre a mesma questão fundamental (verificação de uma causa de exclusão da ilicitude), não tendo sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência, tudo nos termos do disposto no artigo 672.º, n.º 1, al. c), do CPC.

69. O caso do Acórdão fundamento é análogo ao dos presentes autos, mas teve um desfecho mais gravoso, pois culminou na morte do agressor. Tratou-se de uma situação em que um agressor que tinha acabado de cometer um crime de furto numa loja de conveniência se dirigiu ao veículo do defendente, encapuçado, e empunhado de uma arma (que depois se verificou ser falsa), e em que este perante a ameaça iniciou a marcha do veículo tendo o agressor assaltante se colocado à frente do veículo, mas foi logo atropelado pelo defendente em ato de legitima defesa, ainda que putativa.

70. Existe assim, uma identidade da questão de direito sobre que incidiram o acórdão recorrido e o acórdão fundamento - verificação de uma causa de exclusão da ilicitude -  cuja resposta implicou a interpretação das mesmas normas jurídicas, referindo-se o Acórdão fundamento a uma situação em que, à semelhança do nosso caso concreto, o Réu em resposta a uma agressão iminente, atropelou o ali Autor (que tinha praticado um crime de Furto), agindo, assim, num quadro de legitima defesa, podendo afirmar-se, assim, que o núcleo essencial de apreciação da matéria subjacente a cada uma das decisões em confronto é equiparável. Note-se ficou dado como provado que o Recorrente encontrou o Autor dentro da sua própria habitação, que quando avistou o Recorrente fugiu desenfreadamente do local com os objetos furtados.

71. A oposição concreta entre Acórdãos verifica-se na medida em que o Acórdão recorrido considerou que “Mas os meios empregues na execução dessa detenção não podem ser excessivos ou desproporcionados relativamente aos interesses em presença, ou seja, tem de haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse que se possa sacrificar com a execução da detenção. Os interesses a salvaguardar, no caso, seriam a detenção do suspeito e a sua entrega às autoridades competentes para fins de procedimento criminal e a recuperação dos bens eventualmente furtados, o que nos conduz ao interesse público na perseguição e prevenção do crime e a um interesse particular, traduzido no direito de propriedade; o interesse a sacrificar (como foi) é o da integridade física, que constitui um bem jurídico pessoal (art.º 70º n.º 2 do CC). É manifesto que numa ponderação de valores, incluindo à luz do art.º 1º da CRP – Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana … - e do disposto no art.º 25º n.º 1 da CRP - A integridade moral e física das pessoas é inviolável - e mesmo considerando o interesse do Estado em punir e prevenir a prática de crimes, há uma manifesta desproporção entre os interesses que se visavam salvaguardar (recuperação de objectos eventualmente furtados) e os interesses que se sacrificaram. Não é licito nem razoável impor ao A. o sacrifício da sua integridade física para defesa do direito de propriedade do interveniente acessório”.

72. Ao passo que o Acórdão fundamento entendeu que “Ainda que se entenda existir um facto dominável ou controlável pela vontade, afigura-se-nos que a atuação do condutor do veículo FM é lícita, já que age num quadro de legítima defesa própria e de terceiro (o seu filho de dois anos), em resposta a uma agressão iminente do peão atropelado, ainda que seja uma legítima defesa putativa porque a arma exibida pelo peão não era verdadeira”.

73. Por último, esta oposição tem naturalmente reflexo na decisão tomada, pois, se o Acórdão recorrido tivesse considerado que o Recorrente agiu em legítima defesa, tinha considerado, e bem, que não estão preenchidos os requisitos da responsabilidade civil por factos ilícitos, não se verificando, na sequência, a obrigação de indemnizar o Autor.

74. A mais disto, e para o enquadramento da causa excludente de legítima defesa, importa referir que, no caso concreto, não fosse a delonga no andamento do processo crime instaurado pelo Autor ao aqui Recorrente (processo n.º 977/19.... a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, ... Secção do DIAP ...), pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada, o pedido de indemnização civil seria deduzido no processo crime, nos termos do artigo 71.º do CPP, pelo que, não podemos olvidar o conceito de legítima defesa constante do nosso Código Penal, no artigo 32.º.

75. Esta norma é idêntica à norma prevista no Código Civil (artigo 337.º), pois em ambas as normas, ainda que a terminologia varie, consideram como pressupostos da situação da legitima defesa a existência de uma agressão atual e ilícita contra a pessoa ou o património do agente ou de terceiro, existindo, contudo, uma divergência que se situa na exigência de proporcionalidade, pois, e de acordo com o artigo 32.º do CP, a legitima defesa “não está limitada por uma exigência de proporcionalidade, podendo em nome dela sacrificar-se bens jurídicos de valor superior ou mesmo superior ao dos defendidos” – cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, Questões Fundamentais A Doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, 2012, 2ª Reimpressão, pág.436. 

76. Na verdade, entende Figueiredo Dias que “no concreto caso do art. 337.º do CC se deva concluir, com Conceição Valdágua, que após a entrada em vigor do art. 32.º se deu a revogação daquele preceito do CC na parte em que exige que o prejuízo causado pelo acto de defesa não seja manifestamente superior ao que pode resultar da agressão” – cfr. Obra citada pág. 437.

77. Aliás, foi este o entendimento do Acórdão fundamento, ainda que implícito, na medida em que considerou aplicável ao caso a legitima defesa prevista na norma civil constante no artigo 337.º do CC e por isso, entendeu que estava verificada uma causa de exclusão de ilicitude, sendo que o bem lesado pelo defendente no exercício da legítima defesa foi manifestamente superior  (lesão do direito à vida) ao que poderia resultar da putativa agressão (furto de coisa móvel).

78. Assim sendo, realizar uma interpretação diferente do conceito de legitima defesa e da exigência de proporcionalidade, consoante estejamos perante um processo civil ou um processo crime, implicaria a existência de duas decisões judiciais diferentes relativamente à mesma situação jurídica, o que seria inadmissível num Estado de Direito Democrático como o nosso, violando assim, o princípio da segurança jurídica.

79. É que, no nosso caso, dúvidas inexistem de que o Autor, quando assaltou a casa do Recorrente, subtraindo-lhe coisas móveis, com a ilegítima intenção de se apropriar para si de tais coisas, agrediu um interesse juridicamente protegido do Recorrente, o direito à propriedade, que esta conduta foi ilícita (sendo mesmo crime), que se tratou de uma agressão atual, pois, no momento em que dá o acidente de viação, o Autor ainda não se encontrava na posse pacífica da coisa – muito pelo contrário, ia a fugir para alcançar esta posse pacífica -, e, quanto à defesa do Recorrente, que o meio usado foi necessário, pois que o Recorrente tinha dificuldades em caminhar, sendo, assim, o uso do automóvel o único meio para que este pudesse deter o Autor, inexistindo qualquer outro disponível e, como tal, o meio deve considerar-se adequado e não censurável em face das concretas circunstâncias dos factos.

80. Na verdade, do conceito de necessidade não resulta um conceito de proporcionalidade dos bens jurídicos, pois que tanto a propriedade como o domicílio podem ser defendidos com os meios necessários para repelir a agressão. Assim, o juízo de necessidade deve reportar-se, sempre, ao momento da agressão, e nele deve ser avaliada objetivamente toda a dinâmica do acontecimento, merecendo especial atenção as características pessoais do agressor (19 anos de idade, compleição física robusta, perigosidade), os instrumentos de que dispõe, a intensidade e a surpresa do ataque, em contraposição com as características pessoais do defendente (46 anos de idade, limitado na sua mobilidade porque se encontrava a recuperar de uma cirurgia) e os instrumentos de defesa de que poderia lançar mão (o automóvel era o único meio disponível no momento da agressão). -  ver, neste sentido Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Gera, Tomo I, 2ª Edição, Questões Fundamentais A Doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, 2012, págs. 427 e 428, e M. Miguez Garcia, in O Risco de Comer uma Sopa e Outros Casos de Direito Penal, I – Elementos da Parte Geral, Almedina, 1ª Edição, 2011,  pág. 363.

81. Com base em tudo isto, não assiste razão ao Acórdão recorrido, salvo o devido respeito, que é muito, quando diz que “A integridade moral e física das pessoas é inviolável - e mesmo considerando o interesse do Estado em punir e prevenir a prática de crimes, há uma manifesta desproporção entre os interesses que se visavam salvaguardar (recuperação de objectos eventualmente furtados) e os interesses que se sacrificaram. Não é licito nem razoável impor ao A. o sacrifício da sua integridade física para defesa do direito de propriedade do interveniente acessório”, pois, e conforme já referimos, a proporcionalidade entre os valores dos bens agredido e defendido não é requisito imposto pela disciplina jurídica da legítima defesa no nosso Direito e, por isso, em princípio, não pode sustentar-se que o valor do património haja de ceder perante o valor da integridade física ou da vida.

82. A utilização do veículo para tentar alcançar e deter o Autor foi por isso o meio necessário para a sua detenção, pois que, como ficou provado, a intenção do Recorrente era a de “mais facilmente alcançar e eventualmente deter o A. e, assim, lograr a sua identificação e recuperar eventuais objetos de que se tivesse apropriado (facto 4.46.) e não a de “atentar contra a vida ou contra a integridade física do autor” (facto 4.53.).

83. Pelo que, naquele momento, não existia outo meio que o Recorrente pudesse empregar para deter o Autor que como ficou provado “corria desenfreadamente”. Sendo que, ainda que se entenda, o que não se concede, que o resultado foi excessivo ou desproporcional, a verdade é que a legítima defesa implica sempre um risco para o autor do crime das consequências da defesa não serem exatamente aquelas ditadas por um estrito princípio de necessidade, havendo um espaço imprevisível de consequências, sem que daí se possa afirmar uma defesa ilegitimada - ver, neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-01-1998, processo n.º 97P1189, relator: Virgílio de Oliveira, disponível em www.dgsi.pt.

84. Nestes termos, declarando procedente o presente recurso de revista excecional deverá ser considerado que o Recorrente atuou em legítima defesa, excluindo-se, assim a ilicitude da sua conduta, devendo, em consequência, considerar-se que não existe obrigação de indemnizar, nos termos do artigo 338.º do Código Civil.

                                               *

II – Do objeto do recurso

O Interveniente interpôs recurso de revista normal quanto a algumas questões e recurso de revista excecional quanto a outras.

Subsidiariamente, interpôs recurso de revista normal quanto a todas as questões suscitadas nas alegações de recurso.

Estamos perante uma ação de responsabilidade civil, por responsabilidade civil extracontratual, tendo a decisão da 1.ª instância condenado a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 352,85, a título de danos patrimoniais, e a quantia de € 30.000,00, a título de danos não patrimoniais, enquanto o acórdão do Tribunal da Relação, além de absolver a Ré do pagamento de 160,00 euros, arbitrados a título de danos patrimoniais, condenou a Ré a pagar, a título de danos não patrimoniais, 40.000,00 euros, subdividindo esta indemnização em duas parcelas de 20.000,00 euros, cada uma, respeitando uma ao Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica, e outra a danos morais.

O Interveniente, com o presente recurso, questiona:

a) a utilização pelo Tribunal da Relação das imagens do Google Maps para decidir a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, por violação de regras probatórias;

b) a utilização pelo Tribunal da Relação das declarações de parte do Autor para decidir a impugnação da decisão da matéria de facto, por violação de regras probatórias;

c) a prática de um ato ilícito pelo Interveniente que fundamente um dever de indemnização, por responsabilidade extracontratual;

d) o valor da indemnização por Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica;

e) o valor da indemnização por danos morais, tendo neste tema questionado o não uso pelo Tribunal da Relação dos poderes referidos nas alíneas a) e b) do n.º 2, do artigo 662.º, do Código Civil, para determinar as condições económicas do Autor e do Interveniente.

O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2022 [1], definiu que em ação de responsabilidade civil extracontratual fundada em facto ilícito, a conformidade decisória que caracteriza a dupla conforme impeditiva da admissibilidade da revista, nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do CPC, avaliada em função do benefício que o apelante retirou do acórdão da Relação, é apreciada, separadamente, para cada segmento decisório autónomo e cindível em que a pretensão indemnizatória global se encontra decomposta.

 As questões acima referidas nas alíneas a) e b) respeitam à apreciação da impugnação da decisão sobre matéria de facto efetuada apenas pelo Tribunal da Relação, pelo que não se verifica uma duplicidade decisória, sendo por isso a mesma suscetível de ser colocada num recurso de revista normal.

As questões acima referidas sob as alíneas d) e e) respeitam a segmentos decisórios em que o Recorrente viu a sua posição agravada pelo acórdão recorrido, pelo que é admissível o seu conhecimento em recurso de revista normal.

A questão acima referida na alínea c) respeita a toda a decisão, uma vez que impugna a existência de responsabilidade extracontratual. Dado que, relativamente a esta questão de base, não é possível cindir os diferentes segmentos decisórios do acórdão recorrido, uma vez que se verifica uma dependência funcional dos fundamentos que os sustentam, devendo esse acórdão ser apreciado unitariamente, é também admissível o recurso de revista normal, uma vez que a decisão do Tribunal da Relação não coincide integralmente com a decisão proferida pela 1.ª instância, não sendo o disposto no artigo 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, um obstáculo à apreciação do recurso interposto, como revista normal.

Encontrando-se o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da revista e pelo conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar as seguintes questões:

- se o acórdão recorrido, ao socorrer-se das imagens do Google Maps/Street View, para decidir a impugnação da decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto utilizou indevidamente um novo meio de prova, que não foi sujeito a contraditório?

- se o acórdão recorrido violou o caso julgado ao utilizar as imagens do Google Maps/Street View, uma vez que o Interveniente já havia requerido a junção das imagens desse serviço de pesquisa informático na 1.ª instância, o que foi indeferido?

- se não poderiam ter sido valoradas as declarações de parte do Autor em seu favor?

- se a conduta do Interveniente se encontra justificada, por este ter atuado em legítima defesa?

- se deve ser diminuído o valor da indemnização arbitrada a título de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica?

- se deve ser diminuído o valor da indemnização arbitrada por danos morais?

                                               *

III – Os factos

Neste processo, o Tribunal recorrido fixou como provada a seguinte matéria de facto:

1. No dia 22 de Março de 2019, pelas 12.00H, na Rua ..., ..., do Concelho ..., ocorreu um atropelamento, e do qual resultaram ferimentos no corpo do Autor.

2. Em que foi interveniente, o veículo da marca Renault com a matrícula ..-OI.., pertença de S... Lda., e conduzido na altura do acidente pelo seu sócio e gerente CC (o Interveniente acessório), que embateu no Autor, atropelando-o.

3. A proprietária do veículo, transferiu a responsabilidade civil decorrente de acidente de viação para a companhia de Seguros Seguradoras Unidas, ora Ré, mediante apólice Nº ...86.

4. No dia 22/03/2019, a esposa do aqui Interveniente, apercebendo-se da presença de estranhos no interior da sua habitação, contatou o chamado que se encontrava nas instalações da empresa S..., Lda, sita na rua..., em ..., de que é sócio gerente, o qual se deslocou, de imediato, a sua casa.

5. Chegado à sua habitação, o Interveniente entrou pela porta da cozinha e confirmou a presença de um homem encapuçado, no interior da sala.

6. O dito intruso ao ser surpreendido pelo Interveniente, deslocou-se na sala de um lado para o outro, sem saber o que fazer até que conseguiu fugir pela porta das traseiras da sala, tendo de seguida saltado o muro e fugido a pé, a correr, na direção à Rua ....

7. Ato continuo, o CC, porque estava a recuperar de uma cirurgia e tinha a locomoção limitada, entrou na viatura da marca Renault, de modo a encetar uma perseguição ao intruso, que dele fugia a correr pela Rua ..., no sentido descendente, em direção à Rua da ....

8. O referido condutor seguia a velocidade não concretamente apurada.

9. O que fez com o intuito de imobilizar aquele intruso, por forma a conseguir identificar o autor do furto e eventualmente recuperar objetos de que porventura este se tivesse apropriado.

10. O irmão e o sobrinho do Interveniente, II e JJ, respetivamente, também perseguiram o intruso, mas apeados.

11. O intruso ia a correr pelo lado esquerdo da estrada, no sentido descendente.

12. Quando o Autor se encontrava sensivelmente em frente ao nº 218 da Rua ..., próximo da berma do lado esquerdo, a correr desenfreadamente, o Interveniente Acessório, sob tensão, aproximou o OI daquele, em consequência do que o embateu, com a parte do veículo em que se situa a ótica esquerda, na parte inferior do corpo.

13. O primeiro impacto do veículo no corpo daquele cidadão ocorreu nos membros inferiores e de imediato, projetado pelo capot e vidro do lado do condutor, tendo acabado por cair no pavimento na zona da valeta, onde ficou imobilizado sem se conseguir mexer, já que tinha os membros inferiores fraturados e também ferimentos e hematomas na cabeça por força do embate no vidro da viatura.

14. Em consequência, aquele intruso que se veio a constatar ser o Autor, foi transportado de ambulância à urgência do hospital ..., em ..., onde ficou internado até ao dia 29-3-2019.

15. A via por onde seguia o veículo, segurado da Ré, é uma rua com dois sentidos de trânsito e o pavimento é em paralelepípedo, sendo que a largura da rua, no local do embate, é de cerca de largura considerável (cerca de 7 metros, descontada a largura da baia de estacionamento existente do lado direito).

16. Após o local do acidente, mais concretamente depois da cabine ali existente, a estrada afunila significativamente, permitindo assim a circulação de um veículo de cada vez, em cada um dos sentidos.

17. No local do embate e em quase toda a extensão do arruamento, a via é ladeada por casas de habitação.

18. Era de dia e estava sol e com boa visibilidade, e o pavimento em paralelepípedo encontrava-se seco e em normal estado de conservação.

19. Em consequência direta e necessária do referido embate, o Autor sofreu várias lesões, em especial fratura da diáfise do fémur esquerdo, fratura da tíbia direita e fratura do maléolo externo direito e hematomas na região frontal.

20. Que determinaram tivesse sido transportado de ambulância para os serviços de urgência do Hospital ..., em ..., onde permaneceu internado até 29-3-2019.

21. Período durante o qual sofreu intervenção cirúrgica ao fémur com fixação interna com cavilha e colocação de tala cruropodalica à direita.

22. Foi-lhe dada alta médica em 29-3-2019, data a partir da qual teve de ficar imobilizado na sua cama durante 90 dias.

23. Após esse período, só conseguia locomover-se com recurso a apoios, vulgo muletas ou canadianas, durante 30 dias.

24. Período a partir do qual, passou muito lentamente a locomover-se pelo seu próprio pé, mas claudicando durante algum tempo.

25. Atualmente o Autor ainda tem algumas dores.

26. (Eliminado)

27. Logo a seguir ao atropelamento e depois de cair ao solo, logo percebeu o Autor, que tinha os membros inferiores fraturados, situação que lhe provocou inenarráveis dores e grande sofrimento.

28. Dores e sofrimento que continuaram no hospital, antes e depois da intervenção cirúrgica e que a medicação apenas atenuava.

29. Dores e sofrimento que se mantiveram quando regressou a sua casa após alta, tendo-lhe sido prescritos vários medicamentos.

30. Para além disso, o Autor permaneceu durante 90 dias, completamente imobilizado na cama do seu quarto de dormir, com a parte anterior do seu corpo virada para o teto, aí tomando as refeições, medicamentos, fazendo as suas necessidades fisiológicas, sempre com a ajuda da sua Mãe.

31. (Eliminado)

32. O Autor nasceu a .../.../1999 e tinha a energia própria da sua idade.

33. E tinha no inicio desse ano de 2019, iniciado um contrato de trabalho subordinado, ao serviço da empresa M..., Lda, com sede em ..., ..., auferindo a RMMG de 635,00€ (docs. 2, 3 4 ).

34. (Eliminado)

35. No decurso da vigência do contrato, o autor teve as seguintes faltas injustificadas:

- Em janeiro, faltou 8 horas;

- Em Fevereiro, faltou 16 horas; - Em Março, faltou 36 horas;

36. Em consequência do acidente descrito, o Autor sofreu as seguintes sequelas:

- Membro inferior direito – queixas de dor à palpação no terço inferior da perna e do dorso do pé. Cicatriz localizada no terço superior da face anterior da perna, com 3 cm de comprimento, relativamente à qual o examinado não sabe especificar se terá ou não resultado do evento. Sem limitação da mobilidade do tornozelo. Sem aparentes desvios do eixo longo da perna, á observação. Sem assimetrias do comprimento real e aparente dos membros e perímetros da coxa e perna, quando comparado com o membro contralateral;

- Membro inferior esquerdo – duas cicatrizes cirúrgicas localizadas na face lateral da anca, com 4 cm e 3 cm de comprimento; duas cicatrizes cirúrgicas localizadas no terço inferior da face lateral da coxa, com 1 cm e 1 cm de comprimento. Queixas de dor à mobilização da anca, sem limitação funcional, mais acentuadas nos movimentos de abdução e rotação externa. Sem assimetrias de comprimento real e aparente dos membros e perímetros da coxa e perna.

37. As lesões a nível dos membros inferiores, tendo em conta a sua localização e conjugando com a dinâmica relatada do evento, terão resultado primariamente do embate do automóvel contra as pernas do examinado.

38. Consta do relatório pericial que “não é provável que a agressão descrita (pontapés e puxões pelas pernas) tenham causado as lesões descritas, nem haverá força suficiente associada (considerando a força habitual de braços e pernas de uma pessoa) para que agravassem as já existentes provocadas pelo embate”.

39. Do relatório pericial ficaram ainda a constar as seguintes conclusões:

- a data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 26/11/2019;

- Período de Défice Funcional Temporáreo Total fixável num período de 124 dias;

- Período de Défice Funcional Temporário Parcial fixável num período de 126 dias;

- Período de Repercussão Temporárea na Atividade Profissional Total fixável num período de 250 dias;

- Quantum Doloris fixável num grau 5 de 7;

- Défice Funcional Permanente de Integridade Fisico-Psiquica fixável em 5 pontos;

- As sequelas descritas são, em termos de repercussão permanente na atividade profissional, compatíveis com o exercício da atividade à data do evento e com a atual, mas implicam esforços suplementares;

- Dano estético Permanente fixável no grau 3/7.

- Não há repercussão Permanente nas atividades desportivas e de lazer. - Não há repercussão permanente na atividade sexual;

- Tratamentos médicos futuros: necessidade futura de extração de material de osteossíntese do fémur esquerdo.

40. À data do acidente, o Autor tinha 19 anos de idade, já não frequentava qualquer estabelecimento de ensino e encontrava-se a trabalhar na empresa M..., Lda, com sede em ..., ..., auferindo o salário mínimo de 635,00€.

41. Era o primeiro emprego do Autor e a sua entidade patronal celebrou contrato por 3 meses, cujo termo ocorreria em 31-3-2019.

42. (Eliminado).

43. Ainda como causa direta e necessária do acidente, despendeu o Autor as seguintes quantias:

i) Em transportes efetuadas pela ... da residência do Autor, para o Hospital ... e o retorno, nos dias 29/3/2019 e 7/5/2019, a quantia de 52,00€ ( docs. 5, 6 e 7 ).

ii) No aluguer da cama articulada, colchão e grades, despendeu 94,99 ( docs 8 e 9 ).

iii) Em medicamentos 45,86€ ( docs. 10, 11 e 12 ).

44. Aquando do acidente, o Autor trajava roupas e calçado que ficaram rasgadas e inutilizadas;

45. Por entender que os factos supra descritos contém factos suscetíveis de constituir crime, o Autor participou destes ao DIAP ..., cujo processo 977/19.... da ... Secção, está em fase de inquérito, encontrando-se o Interveniente e outros indiciados pela prática de um crime de homicídio na forma tentada.

46. Correu termos pelo tribunal da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal ... – J..., um processo crime contra o Autor, ao qual foi atribuído o nº 208/19...., no âmbito do qual foi proferida decisão que condenou o aqui Autor pela prática em 22/03/2019, por volta das 12 horas, de um crime de furto qualificado na forma tentada, p. e p. pelos artigos 203º, 204º/2 e) do C.P., ocorrido na residência do aqui Interveniente, sita na Rua do ..., Lote 56, ..., numa pena de 1 ano e 2 meses de prisão suspensa na sua execução, por igual período, decisão já transitada em julgado.

47. Nessa mesma sentença, além do mais, foram julgados provados os seguintes factos:

- após colisão entre a viatura do ofendido (o aqui Interveniente Acessório) e o arguido (o aqui Autor), este caiu, e uma vez imobilizado, o arguido devolveu ao CC uma moeda de 1 kilo em prata bem como uma moeda mais pequena, esta também em prata.

- o arguido agiu com a intenção concretizada de se apropriar de duas medalhas (as moedas acima referidas) de prata de valor estimado em 680 €...(certidão junta aos autos).

48. Ao utilizar o OI com a intenção de mais facilmente alcançar e eventualmente deter o Autor e, assim, lograr a sua identificação e recuperar eventuais objetos de que se tivesse apropriado e ao aproximar, sob tensão, o OI do Autor, que corria desenfreadamente pela esquerda, o Interveniente Acessório representou como possível que podia embater o A. e, dessa forma, molestar o corpo e a saúde do mesmo, mas conformou-se com isso.

49. Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

                                               *

IV – O direito aplicável

1. Da não utilização pelo Tribunal da Relação dos poderes referidos nas alíneas a) e b), do n.º 2, do artigo 662.º, do Código de Processo Civil

O Interveniente alega que o Tribunal da Relação, com vista à descoberta da verdade material, não determinou a renovação da provas já produzidas na 1.ª instância, nem a produção de novos meios de prova, perante o desconhecimento das condições económicas do Autor e do Interveniente, as quais eram relevantes para a determinação dos montantes indemnizatórios, nos termos do artigo 494.º do Código Civil.

As alíneas a) e b), do artigo 662.º, do Código de Processo Civil, dispõem que a Relação, mesmo oficiosamente, deve ordenar a renovação da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento, e ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova.

Ora, não se constata que da análise da matéria de facto os subscritores da decisão recorrida tenham assumido dúvidas sérias sobre a credibilidade de qualquer um dos depoentes na audiência de julgamento ou sobre o sentido do seu depoimento, assim como sobre a prova das circunstâncias económicas do Autor e do Interveniente, pelo que não há qualquer justificação para repetir provas já produzidas ou determinar a produção de qualquer outro meio de prova.

Não se constatando por parte do Tribunal da Relação o não uso injustificado de qualquer um dos poderes previstos nas alíneas a) e b) do artigo 662.º, do Código de Processo Civil, improcede este fundamento do recurso.

2. A utilização do Google Maps/Street View pelo Tribunal da Relação

O Recorrente vem questionar a utilização oficiosa do Street View da Google Maps como meio de prova pelo Tribunal da Relação na apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

Tem sido cada vez mais frequente a utilização pelos Tribunais, na instrução do processo civil, do serviço de visualização de imagens de satélite da Terra (Google Maps), da Google, assim como da sua ferramenta, o Google Street View, agora também autonomamente acessível numa aplicação, a qual disponibiliza vistas panorâmicas das vias de circulação rodoviária, ao nível do solo.

Sendo imagens que retratam uma realidade no momento em que foram captadas, estamos perante documentos (artigos 362.º do Código Civil), que fazem prova plena da realidade que mostram, se a parte contra quem são apresentadas não impugnar a sua exatidão (artigo 368.º do Código Civil) [2].

Estas imagens devem ser apresentadas e juntas ao processo (artigo 423.º do Código de Processo Civil) ou, no caso em que se pretenda uma exibição dinâmica das mesmas, através da utilização dos múltiplos recursos que aquele serviço permite, deve proceder-se à sua exibição, nos termos previstos no artigo 428.º do Código de Processo Civil.

Os Tribunais da Relação na apreciação de uma impugnação da decisão sobre a matéria de facto também poderão utilizar oficiosamente estas imagens, nos termos do artigo 662.º, n.º 2, b), do Código de Processo Civil, devendo, no entanto, juntar as mesmas ao processo ou proceder à sua exibição, facultando às partes o seu conhecimento e a possibilidade da impugnação da sua exatidão, previamente à sua utilização como meio de prova, em obediência ao princípio do contraditório em sede instrutória, espelhado no artigo 415.º do Código de Processo Civil.

Na presente ação, o Tribunal da Relação na apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, alude, por três vezes à utilização do Google Maps/Street View:

- Quando descreve toda a prova produzida, na parte em que refere a inspeção ao local, finaliza com a seguinte menção, a fls. 60 do acórdão:

Consigna-se que a funcionalidade do Google Maps “Street View” está activa para a Rua do ..., ..., ..., permitindo assim visualizar o caminho percorrido pelo tribunal a quo e descrito no Auto de inspecção ao local.

- Quando analisa a dinâmica do atropelamento do Autor, relativamente à conformação da rua onde o mesmo ocorreu, a fls. 65 do acórdão, diz-se o seguinte:

Está em causa nos autos o embate de um veículo num peão, pelo que releva conhecer a conformação da via em que ocorreu o embate, no que releva o Auto de inspecção ao local, o qual, nesta Relação, foi complementado com a consulta do Google Maps através da ferramenta “Street View”, sendo patentes cinco realidades:

i) a seguir à casa do interveniente acessório, a estrada tem uma curva acentuada à direita e a seguir desenvolve-se em sucessivas curvas ligeiras á esquerda;

ii) a mesma não tem qualquer demarcação no pavimento;

iii) no final a mesma existe, do lado esquerdo, um posto de transformação de eletricidade, apelidado, ao longo do julgamento, de “cabine” ou “poste de transformação”, cuja parte frontal já se situa na zona em que a rua “afunila” para o lado esquerdo, como que deixando de ter lado direito, passando, a partir daí, a ser uma rua estreita;

iv) a casa antes desse posto transformação tem o n.º 218;

v) em frente ao posto de transformação, ou seja, do lado direito da estrada, existe um declive e um terreno vedado com rede e um portão.

- Ainda na análise da dinâmica do atropelamento do Autor, a fls. 69 do acórdão, recorrido consta o seguinte:

Em primeiro lugar impõe-se referir que, percorrida a Rua em referência, através da funcionalidade “Streetview” temos alguma dificuldade em visualizar uma curva seguida de uma contracurva, como declarou o A., porquanto o sentido comum desta expressão é haver uma curva, seja para a esquerda ou para a direita e imediatamente a seguir outra curva, mas no sentido contrário ao da primeira.

No caso concreto, a partir da curva à direita imediatamente a seguir à casa do interveniente acessório, a rua desenvolve-se em curvas sucessivas à esquerda, incluindo junto ao posto de transformação de eletricidade, em que a curva para a rua estreita é acentuada.

Em segundo lugar e tendo em consideração o auto de inspecção ao local, a consulta do Google Maps - em que é visível que antes do posto de transformação a habitação ali existente tem o n.º 218 - e o extratado dos diversos depoimentos, sobretudo do depoimento do interveniente acessório, que afirmou que o A. ia no lado esquerdo, ele ia no meio da estrada, mas depois “cheguei-me mais para aquele lado para ele me ouvir dizer “para”, cheguei-me mais para o lado dele”, que o A. declarou que foi embatido a 1/2 metros do muro da casa e o próprio interveniente declarou que o embate deu-se mais do lado esquerdo da via, a cerca de 2 m do muro (o que retira credibilidade ao depoimento da testemunha II que afirmou que o embate se deu a 4/5 m da berma, ou seja, nem é sequer do muro…), há que concluir que quando o A. se encontrava em frente ao nº 218 da Rua ..., próximo da berma do lado esquerdo, o OI aproximou-se de tal forma do mesmo e embateu-o, na parte inferior do corpo, com a parte do veículo em que se situa a óptica esquerda, tendo o A., de seguida, caído sobre o capot e para brisas do lado do condutor, que partiu, vindo a cair no pavimento, na zona da valeta, do lado esquerdo onde ficou imobilizado sem se conseguir mexer, já que tinha os membros inferiores fraturados e hematoma na cabeça por força do embate no vidro da viatura.

Da leitura destes excertos constata-se que a consulta do Google Maps através da ferramenta Street View, pelos juízes que integraram o coletivo subscritor do acórdão recorrido, não funcionou como um elemento de prova dos factos em discussão, mas apenas como uma ferramenta de trabalho na compreensão e interpretação do conteúdo do termo da inspeção judicial realizada e dos depoimentos prestados sobre o local onde ocorreu o atropelamento do Autor.  Não estamos perante o recurso a um meio de prova que substituiu ou completou os meios de prova produzidos na primeira instância, mas sim perante a utilização de um instrumento que facilitou a leitura e a compreensão desses meios de prova. Daí que não seja aqui acertada a conhecida expressão que uma imagem vale mais do que mil palavras, sendo mais correto afirmar-se que, no caso, uma imagem poderá auxiliar na compreensão de mil palavras.

Este tipo de utilização é semelhante à que ocorre com a assessoria de um técnico nos termos do artigo 601.º do Código de Processo Civil, que também poderá ser utilizada pelo Tribunal da Relação na decisão sobre impugnação de matéria de facto, sem que a mesma constitua um meio de prova [3].

Não tendo a ferramenta do Street View, do Google Maps, neste caso, sido utilizada como meio de prova, não estava o seu conteúdo sujeito ao contraditório, pelo que a ausência de notificação prévia das partes não constitui qualquer vício que invalide a sua utilização.

Pelas mesmas razões, o despacho proferido na 1.ª instância que não admitiu a junção aos autos de fotos recolhidas no Google Maps, não impede este tipo de utilização pelo Tribunal da Relação, uma vez que não foi sobre essa utilização que o mesmo se pronunciou, não ocorrendo qualquer desrespeito a um caso julgado formal.

Quanto à suscitação da inconstitucionalidade da interpretação normativa no sentido de que são admissíveis meios de prova que anteriormente (nos mesmos autos) foram objeto de despacho de indeferimento já transitado em julgado, e que não foram objeto de contraditório, nem de junção de qualquer documento que o suporte, uma vez que a mesma não constitui ratio decidendi deste acórdão, dado que não nos encontramos perante a valoração de um meio de prova, não há qualquer utilidade para a decisão deste recurso na apreciação da inconstitucionalidade suscitada, pelo que não se conhece da mesma.

Por estas razões, improcede este fundamento do recurso.

2. A valoração das declarações de parte do Autor

O Interveniente alega que não é possível julgar provados factos, tendo apenas como suporte probatório as declarações de parte do Autor, como fez o acórdão recorrido quanto ao atropelamento e quanto aos danos morais alegados na petição inicial.

Efetivamente no acórdão recorrido afirmou-se:

Entende-se que, muito embora as declarações de parte tenham de especifico o facto de provir de uma parte do processo, as mesmas podem, por si, estribar a convicção do juiz, assumindo valor probatório suficiente e autónomo pois, como manda o n.º 3 do art.º 466º do CPC, trata-se de prova sujeita à livre apreciação do tribunal á semelhança de outras, sem que se questione que o juiz possa considerar um facto provado só com base numa dessas provas singulares, seja ela prova pericial de um único perito, seja um só depoimento testemunhal.

(...)

O facto de provirem de uma parte interessada num determinado desfecho da causa apenas constitui um parâmetro de aferição das declarações.

Desde que as declarações de parte permitam concluir, segundo critérios de valoração racional e lógica e as regras da experiência, estarem demonstrados determinados os factos controvertidos, nada obsta à sua valoração.

E tal ocorre desde que os factores intrínsecos (relativos à razão de ciência, á forma como a parte depôs, ou seja, o que disse e como disse, o seu comportamento verbal e não verbal, tendo em vista verificar se existem enviesamentos, a imparcialidade, coerência interna e espontaneidade do depoimento, em última análise a sua consistência interna) e extrínsecos (as características do evento ou a compaginação com outros meios de prova, tendo em vista verificar a verosimilhança do narrado, ou seja, a sua coerência externa) às declarações permitam formular um juízo de razoabilidade quanto à sua credibilidade, isto é, à realidade dos factos narrados.

No entanto, da leitura pormenorizada da sua fundamentação constata-se que, em nenhum momento, o depoimento do Autor, prestado em declarações de parte, foi o único elemento de prova ajuizado para considerar provada qualquer factualidade.

Assim, o resultado da valoração da prova relativa à dinâmica do atropelamento (pontos 4.7., 4.12, 4.13, 4.52, 4.46. e 4.47, do acórdão recorrido) resultou da ponderação crítica não só do depoimento do Autor, como também do Interveniente, de testemunhas, e da leitura do termo da inspeção ao local do atropelamento, além de múltiplos raciocínios presuntivos.

Quanto à prova dos danos morais (pontos 4.22. a 4.32), além do depoimento do Autor, foi também valorada prova documental, prova pericial e prova testemunhal, pelo que também, relativamente a estes factos, as declarações de parte do Autor não foram o único meio de prova que sustentou o juízo probatório nesta matéria.

Dispõe o artigo 466.º do Código de Processo Civil:

1 - As partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1.ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto.

2 - Às declarações das partes aplica-se o disposto no artigo 417.º e ainda, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior.

3 - O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.

Esta apreciação tanto pode ser favorável à pretensão do Autor, como desfavorável, não se colocando, neste caso, face ao teor da decisão recorrida, a questão de a possibilidade dessas declarações serem o único elemento de prova avaliado, assim como está excluída a possibilidade de no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça se sindicar a apreciação efetuada pelo tribunal recorrido das declarações prestadas pelo Autor em conjugação com outros elementos de prova.

Por estas razões improcede também este fundamento do recurso.

3. Da ilicitude do atropelamento

O acórdão recorrido considerou que existia uma responsabilidade civil subjetiva (artigo 483.º do Código Civil), do Interveniente, pelos danos que resultaram do atropelamento do Autor, tendo condenado a Ré Seguradora a pagar o valor da respetiva indemnização.

Relativamente à ilicitude do atropelamento, o acórdão teceu as seguintes considerações:

Estando em causa a suspeita da prática de um crime de furto - o qual, na modalidade de furto simples é punível com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa (cfr. art.º 203º do CPenal) -, em flagrante delito (cfr. o disposto no art.º 256º n.ºs 1 e 2 do C Processo Penal), a lei autoriza a detenção por qualquer pessoa, se não estiver presente nem puder ser chamada em tempo útil uma autoridade judiciária ou entidade policial (cfr. art.º 255º do CPP).

Mas os meios empregues na execução dessa detenção não podem ser excessivos ou desproporcionados relativamente aos interesses em presença, ou seja, tem de haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse que se possa sacrificar com a execução da detenção.

Os interesses a salvaguardar, no caso, seriam a detenção do suspeito e a sua entrega às autoridades competentes para fins de procedimento criminal e a recuperação dos bens eventualmente furtados, o que nos conduz ao interesse público na perseguição e prevenção do crime e a um interesse particular, traduzido no direito de propriedade; o interesse a sacrificar (como foi) é o da integridade física, que constitui um bem jurídico pessoal (art.º 70º n.º 2 do CC).

É manifesto que numa ponderação de valores, incluindo à luz do art.º 1º da CRP – Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana … - e do disposto no art.º 25º n.º 1 da CRP - A integridade moral e física das pessoas é inviolável - e mesmo considerando o interesse do Estado em punir e prevenir a prática de crimes, há uma manifesta desproporção entre os interesses que se visavam salvaguardar (recuperação de objetos eventualmente furtados) e os interesses que se sacrificaram.

Não é lícito nem razoável impor ao A. o sacrifício da sua integridade física para defesa do direito de propriedade do interveniente acessório.

Destarte, pese embora o referido quadro de flagrante delito, a mesma não justifica a conduta do interveniente acessório, tendo em consideração o resultado da mesma.

A conduta do interveniente ofendeu o direito à integridade física do A. não estando em causa a necessidade de evitar uma lesão maior ou, pelo menos, igual.

O Interveniente, no recurso sob apreciação, discordando da transcrita avaliação da ilicitude do atropelamento do Autor, invoca que o quadro fáctico apurado integra uma situação de legítima defesa, o que justificaria o seu comportamento, afastando, assim, a ilicitude do mesmo.

Alega o seguinte:

... dúvidas inexistem de que o Autor, quando assaltou a casa do Recorrente, subtraindo-lhe coisas móveis, com a ilegítima intenção de se apropriar para si de tais coisas, agrediu um interesse juridicamente protegido do Recorrente, o direito à propriedade, que esta conduta foi ilícita (sendo mesmo crime), que se tratou de uma agressão atual, pois, no momento em que dá o acidente de viação, o Autor ainda não se encontrava na posse pacífica da coisa – muito pelo contrário, ia a fugir para alcançar esta posse pacífica -, e, quanto à defesa do Recorrente, que o meio usado foi necessário, pois que o Recorrente tinha dificuldades em caminhar, sendo, assim, o uso do automóvel o único meio para que este pudesse deter o Autor, inexistindo qualquer outro disponível e, como tal, o meio deve considerar-se adequado e não censurável em face das concretas circunstâncias dos factos.

Na verdade, do conceito de necessidade não resulta um conceito de proporcionalidade dos bens jurídicos, pois que tanto a propriedade como o domicílio podem ser defendidos com os meios necessários para repelir a agressão. Assim, o juízo de necessidade deve reportar-se, sempre, ao momento da agressão, e nele deve ser avaliada objetivamente toda a dinâmica do acontecimento, merecendo especial atenção as características pessoais do agressor (19 anos de idade, compleição física robusta, perigosidade), os instrumentos de que dispõe, a intensidade e a surpresa do ataque, em contraposição com as características pessoais do defendente (46 anos de idade, limitado na sua mobilidade porque se encontrava a recuperar de uma cirurgia) e os instrumentos de defesa de que poderia lançar mão (o automóvel era o único meio disponível no momento da agressão).

(...)

A utilização do veículo para tentar alcançar e deter o Autor foi por isso o meio necessário para a sua detenção, pois que, como ficou provado, a intenção do Recorrente era a de “mais facilmente alcançar e eventualmente deter o A. e, assim, lograr a sua identificação e recuperar eventuais objetos de que se tivesse apropriado (facto 4.46.) e não a de “atentar contra a vida ou contra a integridade física do autor” (facto 4.53.).

Pelo que, naquele momento, não existia outo meio que o Recorrente pudesse empregar para deter o Autor que como ficou provado “corria desenfreadamente”. Sendo que, ainda que se entenda, o que não se concede, que o resultado foi excessivo ou desproporcional, a verdade é que a legítima defesa implica sempre um risco para o autor do crime das consequências da defesa não serem exatamente aquelas ditadas por um estrito princípio de necessidade, havendo um espaço imprevisível de consequências, sem que daí se possa afirmar uma defesa ilegitimada.

(...).

3.1. Da relevância da legítima defesa

É verdade que a verificar-se uma situação de legítima defesa, não incidiria sobre o Interveniente uma responsabilidade civil subjetiva (artigo 483.º do Código Civil), ao contrário do que concluiu o acórdão recorrido, uma vez que a sua conduta se encontraria justificada, nos termos do artigo 337.º do Código Civil.

No entanto, a responsabilidade do Interveniente também pode resultar da mera direção efetiva do veículo atropelante no seu interesse, nos termos da responsabilidade pelo risco (artigo 503.º, n.º 1, do Código Civil). Neste tipo de responsabilidade não só se prescinde de um juízo de culpa, mas também não se exige que a conduta seja necessariamente ilícita [4], pelo que a eventual existência de uma situação de legítima defesa que exclua a ilicitude, nunca terá a virtualidade de afastar a responsabilidade pelo risco do Interveniente e, consequentemente, da Ré Seguradora.

Não se ignora, contudo, que nas situações de exclusão da ilicitude pela existência de uma causa de justificação há que verificar se o circunstancialismo que integra essa causa não exclui a ofensa perpetrada da esfera do risco assumido por quem tem o domínio efetivo do veículo [5]. Ora, tendo o Interveniente, na condução do seu veículo automóvel, atropelado o Autor, quando o perseguia, após este lhe ter assaltado a casa, com o intuito de o imobilizar, por forma a conseguir identificá-lo e, eventualmente, recuperar objetos de que porventura ele se tivesse apropriado, tendo o atropelamento ocorrido quando o Interveniente, sob tensão, aproximou o veículo do Autor, que corria desenfreadamente próximo da berma do lado esquerdo, não oferece dúvidas que a ofensa causada ao Autor, se insere na esfera do risco inerente à condução de um veículo automóvel, o qual se apresenta até agravado e não excluído, pela finalidade visada pelo condutor com essa condução.

É, pois, indiferente a eventual licitude da conduta do Interveniente para a sua responsabilização pelo risco, nos termos do artigo 503.º do Código Civil.

No entanto, a responsabilidade do Interveniente, por responsabilidade civil subjetiva (artigo 483.º) como sustentou o acórdão recorrido, ou apenas pelo risco, como resultará, caso se entenda que o Interveniente agiu em legítima defesa, terá seguramente repercussões no cálculo dos valores indemnizatórios que se encontram em discussão na presente ação [6], pelo que importa decidir se o atropelamento do Autor pelo interveniente ocorreu numa situação de legítima defesa, tal como sustenta o Interveniente.

3.2. A legítima defesa civil

A força justificativa da legítima defesa, situada na esfera de liberdade pessoal do agredido, tem raízes profundas e consolidadas na convivência humana, desempenhando, numa conceção intersubjetiva, um papel imprescindível na salvaguarda da ordem jurídica e na proteção dos concretos bens jurídicos sob ataque ilícito [7].

O artigo 21.º da Constituição garante o direito dos cidadãos de repelirem pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública, sem que tenha havido a preocupação de delimitar os pressupostos e requisitos desse direito de defesa, sendo deixada ao legislador ordinário uma larga margem na definição dos regimes penal e civil desta figura, desde que não inutilize e respeite os princípios da proporcionalidade e racionalidade [8]

Tal como ocorre no direito penal, a legitima defesa desempenha na responsabilidade civil aquiliana o papel de tipo justificador, apesar da escassa atenção que esta figura merece neste ramo do direito, cujo regime se encontra praticamente esquecido [9].

O Código Civil de 1966 [10] acolheu-a no artigo 337.º, dispondo:

1. Considera-se justificado o ato destinado a afastar qualquer agressão atual e contrária à lei, contra a pessoa ou património do agente ou de terceiro, desde que não seja possível fazê-lo pelos meios normais e o prejuízo causado pelo ato não seja manifestamente superior ao que pode resultar da agressão.

2. O ato considera-se igualmente justificado, ainda que haja excesso de legítima defesa, se o excesso for devido a perturbação ou medo não culposo do agente.

Convém ter presente que é o direito civil, mormente o instituto da responsabilidade civil, que, muitas vezes, face à natureza subsidiária (de última ratio) do direito penal, assegura, em exclusividade, uma tutela eficaz de certos bens ou interesses jurídicos, evitando situações de insuficiência em que as normas de proteção existentes poderiam ficar aquém do constitucionalmente exigível [11]. Assim, se a exclusão do ilícito civil tendencialmente afasta a ilicitude penal (artigo 31.º, n.º 1, do Código Penal), o inverso já não é verdade, subsistindo, muitas vezes, uma ilicitude civil desacompanhada de qualquer sancionamento penal. Cada ramo jurídico também tenderá a ser mais ou menos benevolente na definição das condições de justificação, em consonância com a teleologia e a maior ou menor gravidade das respetivas sanções jurídicas. Ao nível da justificação penal discute-se a submissão do agente à mais grave forma de sanção que o Estado dispõe. Por isso admite-se uma maior benevolência nas condições da ilicitude ... Pelo contrário, ao nível da justificação civil, discute-se, em primeira linha, a eventual sujeição do autor ao dever de indemnizar os danos causados à vítima. Daí que a menor gravidade desta sanção jurídica justifique um maior rigor, na delimitação das condições de justificação [12].

No entanto, relativamente, à legítima defesa, tem-se sustentado a necessidade de se verificar uma identidade de regimes da legítima defesa penal e da legítima defesa civil, sob pena de se verificar uma insanável contradição lógica e normativa desta causa de justificação, geradora de uma insuportável insegurança e incerteza jurídicas [13], advogando-se que ocorreu uma revogação tácita do conteúdo do artigo 337.º do Código Civil, na parte em que não coincida com a causa de justificação prevista no artigo 32.º do Código Penal, aquando da aprovação deste diploma [14]. Argumenta-se que, caso existissem situações não cobertas pela legitima defesa civil, mas penalmente justificadas pelo preenchimento da legitima defesa penal, o ato do defendente representaria também, relativamente ao primitivo agressor, uma agressão atual e ilícita, o que permitiria que este, por sua vez, pudesse responder em legítima defesa, colocando em causa o princípio de que contra legítima defesa (penal), não vale legítima defesa [15].

Efetivamente, se, com o novo Código Penal de 1982, aparentemente deixou de existir uma total identidade dos requisitos e pressupostos das figuras civil e penal da legítima defesa, designadamente quanto à exigência da proporcionalidade entre o bem sacrificado e o bem defendido, que apenas se manteve, numa formulação atípica, no artigo 337.º do Código Civil, isso não significa que a necessária compatibilidade dos dois regimes não possa ser alcançada, quer através de uma solução coerente para as situações de reação do agressor a uma legítima defesa civil, quer com uma interpretação do artigo 337.º do Código Civil e uma aplicação do abuso de direito a determinadas situações de aparente legítima defesa penal, conformes com uma harmonização das duas figuras gémeas [16].

No presente caso, provou-se a seguinte factualidade com interesse para apurar a alegada existência de uma situação de legítima defesa:

- No dia 22/03/2019, a esposa do aqui Interveniente, apercebendo-se da presença de estranhos no interior da sua habitação, contatou-o, pelo que este se deslocou, de imediato, a sua casa.

- Chegado à sua habitação, o Interveniente entrou pela porta da cozinha e confirmou a presença de um homem encapuçado (que se veio a confirmar ser o Autor), no interior da sala.

- O dito intruso, ao ser surpreendido pelo Interveniente, deslocou-se na sala de um lado para o outro, sem saber o que fazer, até que conseguiu fugir pela porta das traseiras da sala, tendo de seguida saltado o muro e fugido a pé, a correr, na direção à Rua ....

- O Autor levava consigo duas moedas de prata, no valor de € 680,00, que havia subtraído da residência do Interveniente [17].

- Ato continuo, o Interveniente, porque estava a recuperar de uma cirurgia e tinha a locomoção limitada, entrou na sua viatura automóvel, de modo a encetar uma perseguição ao intruso, que dele fugia a correr pela Rua ..., no sentido descendente, em direção à Rua da ..., o que fez com o intuito de imobilizar aquele intruso, por forma a conseguir identificar o autor do furto e eventualmente recuperar objetos de que porventura este se tivesse apropriado.

- O irmão e o sobrinho do Interveniente, II e JJ, respetivamente, também perseguiram o intruso, mas apeados.

- O intruso ia a correr pelo lado esquerdo da estrada, no sentido descendente.

- Quando o Autor se encontrava sensivelmente em frente ao n.º 218 da Rua ..., próximo da berma do lado esquerdo, a correr desenfreadamente, o Interveniente, sob tensão, aproximou o veículo por si conduzido daquele, em consequência do que o embateu, com a parte do veículo em que se situa a ótica esquerda, na parte inferior do corpo.

- O primeiro impacto do veículo no corpo daquele cidadão ocorreu nos membros inferiores e de imediato, projetado pelo capot e vidro do lado do condutor, tendo acabado por cair no pavimento na zona da valeta, onde ficou imobilizado sem se conseguir mexer, já que tinha os membros inferiores e maléolo externo direito fraturados, além de também ferimentos e hematomas na cabeça por força do embate no vidro da viatura.

- Ao utilizar o seu veículo automóvel com a intenção de mais facilmente alcançar e eventualmente deter o Autor e, assim, lograr a sua identificação e recuperar eventuais objetos de que se tivesse apropriado, e ao aproximar, sob tensão, o veículo automóvel do Autor, que corria desenfreadamente pela esquerda, o Interveniente representou como possível que podia embater o Autor e, dessa forma, molestar o corpo e a saúde do mesmo, mas conformou-se com isso.

- A via por onde seguia o veículo é uma rua com dois sentidos de trânsito e o pavimento é em paralelepípedo, sendo que a largura da rua, no local do embate, é de cerca de largura considerável (cerca de 7 metros, descontada a largura da baia de estacionamento existente do lado direito).

- No local do embate e em quase toda a extensão do arruamento, a via é ladeada por casas de habitação.

- Era de dia e estava sol e com boa visibilidade, e o pavimento em paralelepípedo encontrava-se seco e em normal estado de conservação.

3.3. A atualidade da agressão

A primeira dúvida que desde logo este quadro fáctico suscita na verificação dos pressupostos e requisitos da legítima defesa civil é o da atualidade da agressão aquando do atropelamento.

Só se encontra justificado o ato destinado a afastar a agressão atual, o que significa que a conduta defensiva pode ter lugar até ao último momento em que a agressão ainda persiste.

Nos atos ofensivos do direito de propriedade, como sucede neste caso, não é fácil definir o momento em que termina a agressão, tendo-se vindo a entender, em matéria criminal, de que está coberta pela legítima defesa a resposta que ocorra enquanto o “ladrão” não tiver logrado a posse pacífica da coisa subtraída [18].

O Interveniente surpreendeu o Autor ainda  no interior da sua residência e, quando este conseguiu fugiu para o exterior, perseguiu-o de imediato, utilizando um veículo automóvel, não tendo existido um qualquer hiato que permitisse dizer que o Autor chegou a dispor de uns momentos em que esteve fora do alcance da ação do Interveniente, pelo que nunca se atingiu uma situação de “posse pacífica” dos bens subtraídos da residência do Interveniente (duas moedas em prata),  mantendo-se, por isso, a agressão atual quando o Autor foi atropelado pelo Interveniente. Apesar do momento da consumação do crime, numa agressão ilícita e a atualidade da agressão, para efeitos da legitimação de uma conduta defensiva serem questões distintas [19], a circunstância de, neste caso, o Autor ter sido condenado pela prática de um crime de furto, mas na forma tentada, ou seja não consumado, é indicativa de que, quando o Autor foi atropelado, o ato de subtração de bens do Interveniente ainda não tinha finalizado.

3.4. A necessidade do meio de defesa

Outro requisito da legítima defesa é o de que sejam utilizados os meios necessários para evitar a agressão, considerando-se o meio necessário se ele for idóneo para deter a agressão e se, entre os meios possíveis, ele é o menos gravoso para o agressor [20]. Como refere o artigo 337.º, n.º 1, do Código Civil, considera-se justificado o ato destinado a afastar qualquer agressão ... desde que não seja possível fazê-lo, pelos meios normais.

O juízo de necessidade é reportado ao momento da agressão, tendo natureza ex ante, devendo ser feita uma avaliação objetiva de todo o circunstancialismo apurado [21].

Face à fuga do Autor para a via pública, previsivelmente levando consigo bens furtados da residência do Interveniente, como efetivamente se veio a constatar, a utilização de um veículo automóvel na sua perseguição é idónea a alcançar e intercetar o Autor, de forma a impedi-lo de consumar a subtração daqueles bens. E, tendo-se provado, que o Interveniente, porque estava a recuperar de uma cirurgia, tinha a locomoção limitada, não se descortina que outro meio eficaz, mas menos gravoso para a integridade física do Autor, poderia ter sido utilizado para o deter, sendo certo que o aviso das forças policiais não era suscetível de evitar, pela previsível demora da reação destas, a consumação do furto.

Note-se que, apesar de se ter provado que o irmão e o sobrinho do Interveniente também perseguiram o Autor, mas apeados, não se conhecem pormenores dessa perseguição, nomeadamente a distância entre eles e o Autor, que permitam avaliar a possibilidade da mesma ter êxito, não podendo, por isso, ser a mesma elegível como uma legítima defesa por terceiro que se impusesse ao Interveniente, por ser um meio menos gravoso de garantir a sua defesa [22], o que excluiria o preenchimento do requisito da necessidade.

3.5. A proporcionalidade

Resta agora apurar da proporcionalidade da defesa utilizada, ou melhor, como se refere no artigo 337.º, n.º 1, do Código Civil, se o prejuízo causado pelo ato foi manifestamente superior ao que pode resultar da agressão [23], o que, a verificar-se, em princípio, excluiria uma legítima defesa [24].

A permissão do direito de defesa resulta numa restrição aos direitos fundamentais do agressor, os quais não deixam de merecer uma proteção, embora diminuída, por causa do seu comportamento ilícito [25]. Num Estado de direito democrático, a adoção de uma conduta ilícita, não justifica uma instrumentalização, sem resguardos, da pessoa do agressor, não se legitimando um direito de defesa ilimitado. Daí que, verificada a adequação e a necessidade do meio de defesa utilizado, deva ser ponderado se a relação entre o prejuízo causado e o benefício obtido é adequada, ou melhor, é manifestamente desadequada. Neste juízo não se trata de verificar, em abstrato, qual dos direitos ou interesses em jogo tem maior valor e, por isso, deve prevalecer, mas sim de apurar a adequação material da utilização de um meio restritivo avaliado pelo fim visado com a restrição. E o legislador do Código Civil de 1966 entendeu fornecer-nos um critério material para efetuarmos este juízo de adequação, para efeitos indemnizatórios – a restrição será inadmissível, ocorrendo um excesso, quando o prejuízo causado for manifestamente superior ao que pode resultar da agressão.

O prejuízo causado pelo ato foi sofrido pelo Autor que, em consequência do atropelamento, viu fraturados os dois membros inferiores e o maléolo externo direito, além de feridas e hematomas na cabeça, enquanto o prejuízo evitado foi o da subtração de duas moedas em prata do Interveniente, com o valor global de € 680,00.

A desproporção entre a gravidade da lesão à integridade física do agressor e o interesse patrimonial que foi protegido é indiscutível e manifesta [26], o que afasta a possibilidade da presente situação poder integrar um caso de legítima defesa previsto no artigo 337.º, n.º 1, do Código Civil.

No entanto, o n.º 2, do mesmo artigo, mantém a justificação do ato quando, ainda que se tenha verificado um excesso de legítima defesa [27], o que sucede quer nos casos de ausência de necessidade do meio, quer nos casos de desproporção entre as ofensas provocados e os bens defendidos, esse excesso tiver resultado de perturbação ou medo desculpável do agente.

Para operar esta perturbação ou medo, deve este estado atingir um grau justificativo do excesso de defesa ocorrido, pelo que também neste aspeto é necessário recorrer a um juízo de proporcionalidade entre o grau de perturbação ou medo ocorrido e o grau de excesso verificado.

No presente caso, apenas se provou que o Interveniente no momento da prática do ato se encontrava sob tensão.

Ora, um mero estado de tensão, inerente a quem surpreendeu um intruso a assaltar-lhe a residência e o persegue, tentando evitar a sua fuga, não integra um grau de perturbação e, muito menos, um medo que justifique um comportamento em que o defensor não se aperceba da manifesta desproporção da valia dos bens sacrificados em comparação com os interesses protegidos, pelo que o estado de tensão apurado não é suficiente para legitimar o ato defensivo, em excesso, praticado pelo Interveniente.

Estamos, pois, perante uma situação de excesso de legítima defesa não justificada e, portanto, ilícita, o que enquadra uma responsabilidade subjetiva do Interveniente pelos danos provocados ao Autor, nos termos do artigo 483.º do Código Civil, sendo a Ré seguradora responsável pela respetiva obrigação de indemnizar.

4. Da indemnização pelo défice funcional permanente da integridade físico-psíquica

O acórdão recorrido arbitrou uma indemnização ao Autor, no valor de € 20.000,00, pelo  Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica, que apenas determina a realização de esforços suplementares para o Autor desenvolver a actividade profissional habitual, sem perda ou diminuição de rendimentos.

O Recorrente defende que a indemnização fixada se revela desenquadrada da prática jurisprudencial, sendo excessiva.

Entendendo-se que este é um dano não patrimonial, uma vez que consiste no dispêndio de um esforço físico acrescido, a sua fixação deve ser efetuada nos termos do artigo 496.º, n.º 4, do Código Civil, com recurso a um juízo de equidade. O juízo equitativo que fixa o valor deste tipo de danos, conforme determina aquele preceito, deve ter em consideração as circunstâncias referidas no artigo 494.º do Código Civil, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, assumindo, por razões de igualdade, ainda uma especial relevância, os padrões de indemnização adotados, nos tempos mais próximos, pela jurisprudência, em casos análogos.

Resulta da factualidade provada que:

- o embate ocorreu a 22/03/2019;

- em consequência do embate o Autor ficou com um Défice Funcional Permanente de Integridade Fisico-Psiquica fixável em 5 pontos;

- as sequelas de que o A. ficou a padecer são, em termos de repercussão permanente na atividade profissional, compatíveis com o exercício da atividade à data do evento e com a atual, mas implicam esforços suplementares;

- não há repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer.;

- não há repercussão permanente na atividade sexual;

- o Autor nasceu a .../.../1999;

- e tinha no início de 2019, iniciado um contrato de trabalho subordinado, ao serviço da empresa M..., Lda, com sede em ..., ..., auferindo a RMMG de 635,00 €.

O acórdão recorrido encontrou o valor indemnizatório arbitrado após consulta de várias decisões dos tribunais superiores que julgaram casos idênticos, as quais indica na sua fundamentação.

O Interveniente, por sua vez, também recorre a outras decisões jurisprudenciais em que foram arbitradas indemnizações de valor inferior para o mesmo tipo de dano.

Em primeiro lugar, devendo o valor das indemnizações arbitradas segundo um juízo de equidade terem em consideração o circunstancialismo do caso, cada uma delas atende a particularidades específicas que impedem uma correspondência igualitária.

Em segundo lugar, atenta a multiplicidade de decisões proferidas pelos tribunais nesta matéria, não há uma garantia que as decisões invocadas pelo Recorrente tenham respeitado um determinado padrão indemnizatório no julgamento segundo a equidade, pelo que o exemplo de “meia dúzia” de decisões não é suficiente para que se encontre esse padrão uniformizador.

Em terceiro lugar, contrariamente ao que ocorrerá com os exemplos apontados pelo tribunal recorrido, o Recorrente, no exercício do seu legítimo direito de defesa, apenas indica aquelas decisões que são favoráveis à sua pretensão de redução do valor indemnizatório, ocultando deliberadamente as demais.

Finalmente, há que ter em consideração que muitos dos valores indemnizatórios fixados nos tribunais superiores estão limitados pelo objeto dos recursos ou encontram-se reduzidos em função da culpa do lesado, pelo que não são idóneos como elementos indicativos do valor de referência.

Na fixação do valor indemnizatório por este dano há que ter em consideração o grau de incapacidade do Autor, a sua idade, a existência de dolo eventual no atropelamento, mas também a circunstância que foi um comportamento ilícito do Autor que desencadeou toda a situação que culminou no seu atropelamento, assim como a generalidade dos valores que os tribunais habitualmente fixam para este tipo de dano.

Verifica-se que o juízo de equidade efetuado pelo tribunal recorrido no arbitramento desta indemnização não valorizou a circunstância de ter sido um comportamento de elevada ilicitude do Autor que desencadeou uma ação defensiva do Interveniente, que, numa reação excessiva atropelou-o de modo a evitar que este lograsse apropriar-se de bens que havia subtraído da residência do Interveniente, justificando-se que o peso desta circunstância determine uma redução do valor indemnizatório, nos termos do artigo 494.º do Código Civil, fixando-se o valor de € 15.000,00, tendo em consideração o valor da moeda na data em que foi proferido o acórdão recorrido – 06.10.2022.

5. Da indemnização pelos danos morais

O acórdão recorrido arbitrou uma indemnização ao Autor, no valor de € 20.000,00, por todos os danos morais por aquele suportados.

O Recorrente defende que a indemnização fixada se revela desenquadrada da prática jurisprudencial, sendo excessiva, e que não reflete a ponderação das demais circunstâncias do caso, designadamente o facto de ter sido o Autor o principal causador de toda esta situação, ao assaltar a casa do Interveniente.

Ora, ficou provado que:

- em consequência direta e necessária do referido embate, o Autor sofreu várias lesões, em especial fratura da diáfise do fémur esquerdo, fratura da tíbia direita e fratura do maléolo externo direito e hematomas na região frontal;

- que determinaram tivesse sido transportado de ambulância para os serviços de urgência do Hospital ..., em ..., onde permaneceu internado até 29-3-2019;

- período durante o qual sofreu intervenção cirúrgica ao fémur com fixação interna com cavilha e colocação de tala cruropodalica à direita;

- foi-lhe dada alta médica em 29-3-2019, data a partir da qual teve de ficar imobilizado na sua cama durante 90 dias;

- após esse período, só conseguia locomover-se com recurso a apoios, vulgo muletas ou canadianas, durante 30 dias;

- período a partir do qual, passou muito lentamente a locomover-se pelo seu próprio pé, mas claudicando durante algum tempo;

- atualmente o Autor ainda tem algumas dores;

- logo a seguir ao atropelamento e depois de cair ao solo, logo percebeu o Autor, que tinha os membros inferiores fraturados, situação que lhe provocou inenarráveis dores e grande sofrimento;

- dores e sofrimento que continuaram no hospital, antes e depois da intervenção cirúrgica e que a medicação apenas atenuava;

- dores e sofrimento que se mantiveram quando regressou a sua casa após alta, tendo-lhe sido prescritos vários medicamentos;

- para além disso, o Autor permaneceu durante 90 dias, completamente imobilizado na cama do seu quarto de dormir, com a parte anterior do seu corpo virada para o teto, aí tomando as refeições, medicamentos, fazendo as suas necessidades fisiológicas, sempre com a ajuda da sua mãe;

- o A. nasceu a .../.../1999 e tinha a energia própria da sua idade;

- em consequência do acidente descrito, o Autor sofreu as seguintes sequelas:

  - membro inferior direito – queixas de dor à palpação no terço inferior da perna e do dorso do pé. Cicatriz localizada no terço superior da face anterior da perna, com 3 cm de comprimento, relativamente à qual o examinado não sabe especificar se terá ou não resultado do evento. Sem limitação da mobilidade do tornozelo. Sem aparentes desvios do eixo longo da perna, à observação. Sem assimetrias do comprimento real e aparente dos membros e perímetros da coxa e perna, quando comparado com o membro contralateral;

  - membro inferior esquerdo – duas cicatrizes cirúrgicas localizadas na face lateral da anca, com 4 cm e 3 cm de comprimento; duas cicatrizes cirúrgicas localizadas no terço inferior da face lateral da coxa, com 1 cm e 1 cm de comprimento. Queixas de dor à mobilização da anca, sem limitação funcional, mais acentuadas nos movimentos de abdução e rotação externa. Sem assimetrias de comprimento real e aparente dos membros e perímetros da coxa e perna;

- as lesões a nível dos membros inferiores, tendo em conta a sua localização e conjugando com a dinâmica relatada do evento, terão resultado primariamente do embate do automóvel contra as pernas do examinado;

- a data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 26/11/2019;

- o período de Défice Funcional Temporário Total fixável num período de 124 dias;

- o período de Défice Funcional Temporário Parcial fixável num período de 126 dias;

- quantum doloris fixável num grau 5 de 7;

- dano estético Permanente fixável no grau 3/7.

Estão contemplados neste capítulo as dores e sofrimentos sofridos pelo Autor, o dano estético permanente que o passará afetar permanentemente, com a gravidade que resulta da matéria de facto acima descrita, e ainda todos os constrangimentos decorrentes da imobilidade que o Autor teve que suportar durante todo o longo período de convalescença.

Tendo em consideração as mesmas ponderações que foram acima efetuadas, relativamente ao dano da incapacidade parcial permanente, uma vez que também é aqui aplicável o critério definido no artigo 494.º do Código Civil (artigo 496.º, n.º 4, do Código Civil), num recurso a um juízo de equidade, também se evidencia que o valor único arbitrado para esta indemnização global deva se ser reduzido para € 15.000,00, tendo em consideração o valor da moeda na data em que foi proferido o acórdão recorrido – 06.10.2022.

6. Conclusão

Atentas as razões acima expostas, deve o recurso ser julgado parcialmente procedente, alterando-se o acórdão recorrido apenas na parte em que condenou a Ré apagar ao Autor € 40.000,00 (€ 20.000,00 + € 20.000,00), reduzindo-se o valor indemnizatório para € 30.000,00, mantendo-se a condenação em juros.

                                               *

Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo Interveniente Acessório, alterando-se o acórdão recorrido apenas no valor indemnizatório de € 40.000,00 (€ 20.000,00 + € 20.000,00) que condenou a Ré a pagar ao Autor, o qual é reduzido para € 30.000,00.

                                               *

Custas da ação pelo Autor, na proporção de 62%, e pela Ré, na proporção de 38%.

Custas dos recursos de apelação por cada um dos Recorrentes, relativamente ao recurso que cada um interpôs.

Custas do recurso de revista na proporção de 25% pelo Autor e 75% pelo Interveniente Acessório.

                                               *

Notifique.

                                               *

Lisboa 27 de abril de 2023

João Cura Mariano (Relator)

Fernando Baptista

Vieira e Cunha

_____

[1] Publicado no Diário da República n.º 201/2022, série I, de 18.10.2022.
[2] A visualização das imagens do Google Maps/Street View, de forma estática ou dinâmica, apesar de colhidas na Internet, não parece consistir na realização de uma “cibernavegação”, enquanto modalidade de inspeção judicial, nos termos do artigo 450.º do Código de Processo Civil, na categorização de ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS PEREIRA DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª ed., Almedina, 2022, que foi seguida no Acórdão da Relação de Lisboa de 14.02.2023, Proc. 400/19.2T8CSC.L1-7 (Rel. Luís Filipe Pires de Sousa).
[3] ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2022, p. 760, e LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 3.ª ed., Almedina, p. 682.
[4] ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª ed., Almedina, 2020, p. 636, INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações, 7.ª ed., Coimbra Editora, 1997, p. 215-216, SINDE MONTEIRO, Estudos sobre a Responsabilidade Civil, 1983, p. 10-11, CARNEIRO DA FRADA, Contrato e Deveres de Proteção, Separata do vol. XXXVIII do Suplemento ao B.F.D.U.C., 1994, p. 130-131, BRANDÃO PROENÇA, A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, Almedina, 1997, p. 233, nota 743, SOFIA DE SEQUEIRA GALVÃO, Reflexões acerca da responsabilidade do Comitente no Direito Civil Português, AAFDL, 1990, p. 71-73, e MAFALDA MIRANDA BARBOSA, Estudos a Propósito da Responsabilidade Objetiva, Principia, 2014, p. 61 e seg.
[5] Alertando para essa possibilidade, MAFALDA MIRANDA BARBOSA, ob. cit., p. 77-78.
[6] O artigo 494.º do Código Civil, também aplicável às situações de responsabilidade pelo risco (ANTUNES VARELA, ob. cit., p. 914, ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 12.ª ed., Almedina, 2009, p. 780, GALVÃO TELLES, ob. cit., p. 211, nota 1, e NUNO PINTO DE OLIVEIRA, Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra Editora, 2011, pág. 725), assim como à indemnização por danos não patrimoniais (artigo 496.º, n.º 4, do Código Civil), obriga a ponderar todas as circunstâncias do caso.
[7] Sobre os fundamentos justificativos da legítima defesa, CAVALEIRO FERREIRA, Lições de Direito Penal, vol. I, Verbo, 1985, FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, Tomo I, 3.ª ed., Gestlegal, 2019, p. 473-477, TAIPA DE CARVALHO, A Legítima Defesa, Coimbra Editora, 1995, p. 409-434, MARIA FERNANDA PALMA, A Justificação por Legítima Defesa como Problema de Delimitação de Direitos, AAFDL, 1990, GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português, vol. II, Verbo, 1998, p. 89-90, MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, 3.ª ed., Almedina, 2017, vol. V, p. 456-458, TERESA QUINTELA DE BRITO, Justificação por Legítima Defesa e por Direito de Necessidade no Código Civil e no Código Penal, “Estudos Comemorativos do 150.º Aniversário do Tribunal da Boa-Hora”. Ministério da Justiça, 1995, p. 42 e seg., FERNANDO CONDE MONTEIRO, Algumas Considerações sobre a Legítima Defesa, a partir da Constituição da República Portuguesa, “Estudos Dedicados ao Professor Doutor Nuno Espinosa Gomes da Silva”, vol. I, Universidade Católica Editora, 2013, pág. 327 e seg, e ARAÚJO BARROS, Legítima Defesa, Athena Editora, 1989, p. 11-22.
[8] JORGE MIRANDA e LOBO MOUTINHO, Constituição Portuguesa Anotada, vol. I, 2.ª ed., Wolters Kluwer, sob a marca Coimbra Editora, 2010, p. 465, e FERNANDO CONDE MONTEIRO, ob. cit., p. 336 e seg.
[9] MARIA DA GRAÇA TRIGO, Comentário ao Código Civil. Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, p. 798-800, e MENEZES CORDEIRO, ob. cit., p. 459, nota 1564. Daí que neste acórdão se irá procurar algum suporte na doutrina penal em tudo em que este regime não se afasta do regime do Código Civil.
[10] No Código de Seabra a legítima defesa estava prevista no artigo 367.º entre os direitos originários e regulada nos artigos 2354.º e 2367.º.
[11] Vide, neste sentido, JORGE PEREIRA DA SILVA, Deveres do Estado de Proteção de Direitos Fundamentais, Universidade Católica Editora, 2015, p. 638.
[12] TERESA QUINTELA DE BRITO, ob. cit., p. 44.
[13] Na doutrina penal, FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 513-514, TAIPA DE CARVALHO, ob. cit., p. 54-61, CONCEIÇÃO VALDÁGUA, Aspetos da Legítima Defesa no Código Penal e no Código Civil, “Jornadas de Homenagem ao Professor Doutor Cavaleiro Ferreira”, p. 269 e seg.; na doutrina civil, MARIA DA GRAÇA TRIGO, ob. cit., p. 800, MENEZES CORDEIRO, ob. cit., p. 468-469, e Código Civil Comentado, I – Parte Geral, Almedina, 2020, p. 964, e RUI ATAÍDE, Direito das Obrigações, vol. I, Gestlegal, 2022, p. 372-373,
[14] FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 514, CONCEIÇÃO VALDÁGUA, ob. cit., p. 269 e seg., MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, cit.,  p. 469, e Código Civil Comentado, cit., pág. 964, e RUI ATAÍDE, ob. cit., p. 373.
[15] FIGUEIREDO DIAS, cit., p. 513, CONCEIÇÃO VALDÁGUA, ob. cit., p. 272-276, MARIA DA GRAÇA TRIGO, ob. cit., p. 800, MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, cit.,  p. 469, e Código Civil Comentado, cit., pág. 964, e RUI ATAÍDE, ob. cit., p. 373.
[16] Veja-se uma proposta de interpretação harmonizadora dos artigos 337.º do Código Civil e 32.º do Código Penal, em FERNANDA PALMA, ob. cit., p. 575-589, e TERESA QUINTELA DE BRITO, ob.  cit., p. 47-51.
Também CAVALEIRO FERREIRA, ob. cit., p. 77, salientando a diferente natureza do ilícito penal e do ilícito civil, recusa que o Código Penal de 1982 tenha revogado a regulamentação do Código Civil de 1966.
[17] Este facto foi julgado provado no processo criminal em que o Autor foi condenado pela prática do crime de furto tentado, relativamente ao qual o Interveniente reagiu com a conduta em causa nos presentes autos, sendo certo que essa sentença faz caso julgado contra o Autor, relativamente aos factos que nela foram dados como provados (ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, no Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª ed., Almedina, 2022, p. 804).
[18] No direito penal, EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, vol. II, Almedina, 1971, p. 43-44, FIGUEIREDO DIAS, ob. cit. p. 484, TAIPA DE CARVALHO, ob. cit., p. 305-307, MARIA FERNANDA PALMA, ob. cit., vol. I, p. 334-336, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª ed., Almedina, 2015, p. 236, FARIA E COSTA, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, p. 50, BRUNO DE OLIVEIRA MOURA, A Não-Punibilidade do Excesso na Legítima Defesa, Coimbra Editora, 2013, p. 53, e CÁTIA PIRES, Legítima Defesa: Proporcionalidade e Limites Ético-Sociais, Jurismat, n.º 7, 2015, p. 408-409.
[19] Vide FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 483-484, FARIA COSTA, ob. cit., p. 48-50. e FERNANDA PALMA, ob. cit., p. 334-337.
[20] Na doutrina penal, EDUARDO CORREIA, ob. cit., p. 37 e 44, CAVALEIRO FERREIRA, ob. cit., p. 87-91, FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 490, TAIPA DE CARVALHO, ob. cit., p. 317-318, FERNANDA PALMA, ob. cit., p. 345 e seg., BRUNO DE OLIVIRA E MOURA, ob. cit., p. 58-59, CÁTIA PIRES, ob. cit., p. 409-413; no direito civil, FERNANDO PESSOA JORGE, ob. cit., p. 241 e seg., MARIA DA GRAÇA TRIGO, ob. cit., p. 799, MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, cit., p. 463-465, e Comentário ao Código Civil, cit., p. 962, e RODRIGES BASTOS, Notas ao Código Civil, vol. II, ed. autor, 1988, p.108.
[21] FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 490, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, ob. cit., p. 238, e FERNANDO PESSOA JORGE, ob. cit., p. 247, nota 221.
[22] Sobre esta prevalência, TAIPA DE CARVALHO, ob. cit., p. 341-342, e PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, ob. cit., p. 238.
[23] Esta redação resultou de sucessivos acertos nos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966:
   No Anteprojeto de Vaz Serra: ... que o dano por ela causado não seja manifestamente desproporcionado ao que resultaria da agressão;
   No Anteprojeto saído da 1.ª Revisão Ministerial: ... os prejuízos causados pelo acto se não mostrem desproporcionadamente superiores aos da agressão que se pretenda evitar.
No Anteprojeto saído da 2.ª Revisão Ministerial e no Projeto: ... os prejuízos causados pelo acto não sejam manifestamente superiores aos que podem resultar da agressão.
[24] É este requisito que não se encontra expresso no artigo 32.º do Código Penal, embora a doutrina penal recorra à figura do abuso do direito de legítima defesa ou ao excesso desta, por “crassa desproporção entre a agressão e a defesa”, para impor limites à legitimação da defesa.
[25] Como diz FERNANDO PESSOA JORGE, quem envereda pela atuação ilícita, não só incorre nas sanções respetivas, como vê diminuída até certo ponto a tutela jurídica dos próprios bens, na medida em que o agredido passa a merecer tutela especial (ob. cit., p. 229).
[26] Neste sentido, numa idêntica ponderação, mesmo que para efeitos penais, TAIPA DE CARVALHO, ob. cit., p. 487, que considera este tipo de casos, em que para proteção de bens patrimoniais, independentemente do seu valor, se sacrifica gravemente a integridade física do “ladrão” ou a sua vida, como casos de “crassa desproporção” entre a agressão e a defesa.
[27] Discute-se se, nos casos do n.º 2, do artigo 337.º, do Código Civil, estaremos perante uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, apesar da letra da lei apontar para a primeira hipótese (v.g. FERNANDO PESSOA JORGE, ob. cit., p. 248-250, MARIA DA GRAÇA TRIGO, ob. cit., p. 799-800, ANA PRATA, Código Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2017, p. 414, e RUI ATAÍDE, ob. cit., p. 374).