Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2698/03.9TBMTJ.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MOREIRA ALVES
Descritores: COMPRA E VENDA COMERCIAL
VENDA DE CORTIÇA
COISA DEFEITUOSA
CONTAGEM DOS PRAZOS
EXAME
RECLAMAÇÃO
DENÚNCIA
CADUCIDADE
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/06/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário : I - Sendo a compra e venda objectivamente comercial – art. 463.º, n.º 1, do CCom –, apesar de ser subjectivamente civil – art. 464.º, n.º 2, do CCom –, o contrato assume, no seu todo, natureza mercantil, como resulta do disposto no art. 99.º do CCom.

II - O segmento final do art. 99.º do CCom não afasta a aplicação à parte não comerciante da disciplina prevista no Código Comercial, para aquele tipo contratual, pois, de contrário, esvaziar-se-ia o princípio geral contido na norma: essa excepção refere-se apenas àqueles actos que ali são regulados para se aplicarem exclusivamente aos comerciantes, como, por exemplo, as que determinam a obrigatoriedade de adoptar uma firma, de terem uma escrituração comercial, de dar balanço ou prestar contas, ou que fixam regras quanto à prova de certos actos.

III - O prazo curto de 8 dias, a que se refere o art. 471.º do CCom, não foi estabelecido em benefício do vendedor comercial, e tem a ver, essencialmente, com a celeridade, segurança e certeza que o legislador quis imprimir à contratação comercial, tanto se verificando para a compra e venda condicional, dos arts. 469.º e 470.º do CCom, como para a compra e venda pura, sujeita ao regime comercial.

IV - O mencionado prazo de 8 dias só pode contar-se a partir da entrega da mercadoria, quando, nesse prazo curto, a simples inspecção dela habilita o comprador a aperceber-se da desconformidade e, consequentemente, a protestar e rejeitar a coisa entregue. Diferentemente, se o defeito é tal que só com exames especiais, designadamente laboratoriais, pode ser detectado, o prazo só se iniciará decorrido o período de tempo razoável e necessário, conforme as circunstâncias, para que o comprador tome conhecimento do defeito, agindo com a diligência devida.

V - Recai sobre o comprador o ónus de provar a impossibilidade de detectar o vício ou defeito no prazo de 8 dias após a entrega, bem como da data em que, depois de uma conduta diligente, tomou dele conhecimento.

VI - No caso concreto, sendo a autora/compradora uma empresa que exerce profissionalmente a actividade de fabricante de cortiça, e estando provado que o defeito existente era apreensível a olho nu, por qualquer pessoa que habitualmente trabalha com cortiça, sem necessidade de qualquer exame especial ou laboratorial – como a autora alegou, mas não provou – era exigível à autora, em termos de diligência normal, que, quer por intermédio dos seus representantes, quer através dos seus colaboradores, procedesse ao exame da mercadoria logo após a entrega da última partida de cortiça entregue pelo réu, em ordem a controlar a sua qualidade.
Decisão Texto Integral:
Relatório
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No Tribunal Judicial da Comarca do Montijo,
AA Limitada,
intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra
BB,
pedindo a condenação do R. a pagar-lhe a quantia de 545.740,96 € e juros moratórios de 12%, desde 1/11/2003, e a levantar da fábrica da A. a cortiça extraída da herdade da A..., pertença do R., e que este havia vendido à A., mas que se encontrava com defeito.
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O R. veio contestar, negando o defeito que a A. imputa à cortiça transaccionada. Por cautela, suscita a excepção de caducidade.
Formula ainda pedido reconvencional, peticionando a condenação da A. a pagar-lhe o remanescente do preço, que ainda se encontra em dívida, no montante de 553.034,71 €, acrescido dos juros de mora.
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Replicou a A. reafirmando o alegado na petição inicial e contestando, consequentemente o pedido reconvencional.
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Foi realizada perícia colegial antecipada à partida de cortiça em causa.
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Proferiu-se despacho saneador, fixaram-se os factos assentes e organizou-se a base instrutória.
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Instruídos os autos, procedeu-se a julgamento, findo o qual foi elaborada sentença final que julgou a acção improcedente e a reconvenção procedente, e, consequentemente, condenou a A. a pagar ao R. 553.634,71 €, acrescido dos juros de mora, à taxa anual de 4%, desde 16/2/2004.
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Inconformada, recorreu a A., mas sem êxito, visto que a Relação julgou improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
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Novamente inconformada, volta a recorrer a A., agora de revista e para este Supremo Tribunal de Justiça.
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Conclusões
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Apresentadas tempestivas alegações, formulou a recorrente as seguintes conclusões:
“O douto acórdão recorrido violou o n° 2 do art° 490° do CPC ao considerar não provado que a Recorrente enviou ao Recorrido, na data de 30 de Outubro de 2003, uma carta a denunciar o defeito da cortiça e a pedir a restituição da parte do preço já pago e o levantamento da cortiça, cometendo, ainda, o erro de confundir o recebimento da carta (facto não impugnado) com alguns aspectos do conteúdo da carta (facto impugnado), devendo-se adicionar este facto ao elenco dos factos provados ou inserir-se no facto n°-14.


O douto acórdão recorrido violou os art°s 37° e 38° do CPC ao confirmar a redacção do facto n° 24 da matéria de facto, devendo o sujeito desse facto ser o advogado da Autora e não a Autora, visto que só à parte compete definir a lide quanto à sua estrutura factual ou existencial, participando nisso o advogado só nos dois casos referidos na lei processual.
O douto acórdão recorrido errou na aplicação e interpretação do regime jurídico substantivo ao presente caso dos autos, consistindo o erro em ter aplicado ao julgamento do caso os art°s 470° e 471° do Código Comercial quando devia ter aplicado os art°s 913° e 916° do Código Civil. Com efeito,
Sendo um ordenamento jurídico especial (art° 3º do C. Comercial), as normas do Código Comercial somente se aplicam às situações nele previstas, actuando o regime geral e supletivo do Código Civil em todas as demais situações. Ora,
O regime jurídico especial plasmado nos art°s 470° e 471° do C. Comercial somente é aplicável aos casos em que o contrato de compra e venda fica imperfeito e pendente da condição, em virtude de o seu objecto serem "coisas não à vista". Ora,
No caso dos autos, o objecto do contrato eram coisas bem à vista pelo que o contrato ficou perfeito desde o seu início, sem ligação a qualquer condição. Isto é,
O contrato dos presentes autos não se enquadra, "não encaixa" naquele regime especial dos art°s 470° e 471° do C. Comercial. Portanto,
O regime jurídico aplicável ao caso dos autos é o dos art°s 913° e 916° do Código Civil.
Como consta do facto n° 23, em 14 de Outubro de 2003, a empresa rolheira .ABEL DA COSTA TAVARES LDA comprou à Recorrente uma partida de cortiça que, depois de cozida, foi colocada pela Recorrente na dita empresa em 21.10.2003, tendo sido devolvida, por estar defeituosa, em 28.10.2003.
10ª
Quem despoletou e alertou a Recorrente para o defeito da cortiça foi a dita empresa rolheira e foi nessa data de 28 de Outubro de.2003 que a Recorrente tomou conhecimento do defeito, e conhecimento rigoroso perante o que lhe disse a empresa rolheira.
11ª
Até à data de 28.10.2003, a Recorrente não tinha qualquer dúvida sobre a "sanidade" da cortiça, não obstante poderem aparecer, num volume de 17.300 arrobas, algumas pranchas menos boas.
12ª
Logo que a Recorrente teve conhecimento do defeito, mandou proceder a exame técnico que o confirmou e em 30 de Outubro de 2003, enviou uma carta ao Recorrido a denunciar o defeito e a pedir a anulação do contrato.
13ª
A actuação da Recorrente foi diligente e responsável só tendo denunciado o defeito depois de ter provas rigorosas da sua existência.
14ª
O aspecto exterior da cortiça era tão favorável que ninguém duvidaria que a sua estrutura interior ou interna correspondesse ao exterior.
15ª
A Recorrente actuou, pois, ao abrigo dos art°s 913° e 916° do C. Civil, e atempadamente, pelo que deve ser dado provimento ao recurso, declarando-se procedente a acção e improcedentes a excepção e a reconvenção.
16ª
Mesmo na hipótese de aplicação ao caso do art° 471° do C. Comercial, o prazo de oito dias não poderia ser aproveitado pelo Recorrido porque, sendo misto o contrato, o benefício dos oito dias só pode ser invocado pelo outorgante do contrato que seja comerciante.


17ª
A omissão cometida no douto acórdão recorrido de não conhecer da alegação de anulação do contrato com fundamento em erro, constitui a causa de nulidade prevista na alínea d) do n° 1 do art° 668° do CPC, aplicável por força do n° 2 do art° 721° do CPC.”
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O R. apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência da revista.
Porém, para o caso de procedência, requereu o alargamento do âmbito do recurso nos termos do Art.º 684º-A do C.P.C.
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Os Factos
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As instâncias fixaram a seguinte factualidade:
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“1- A A. é uma sociedade que exerce a actividade de fabricante de cortiças, matriculada na Conservatória do Registo Comercial do Montijo com n° 00342/600, tendo como sócio-gerente Manuel Lagoa, e o R. é empresário agrícola, proprietário de terras com montados de sobreiros.
2- A A. e o R. celebraram por escrito acordo que denominaram de "contrato promessa de compra e venda" de cortiça amadia, datado de 12/6/2003, em que a A. figura como promitente-compradora e o R. como promitente-vendedor, nos termos seguintes :
-"O objecto do presente contrato é toda a cortiça amadia, incluindo bocados, com idade legal, a ser extraída no presente ano, por conta do primeiro outorgante nas herdades da A... e Quinta do Passil – 1ª;
-Pelo presente contrato o primeiro vende à segunda outorgante a cortiça referida na cláusula anterior, ao preço de € 52,50 por cada arroba, acrescida de IVA à taxa legal - 2ª;
-Será efectuado no final de cada dia o carregamento de toda a cortiça extraída nesse dia, sendo pesada sobre camião e controlada por ambos outorgantes, numa báscula existente na Quinta do primeiro outorgante - 3ª;
-Caso chova antes ou durante o levantamento da cortiça, haverá lugar a um desconto julgado necessário para compensação da água absorvida pela dita cortiça - 4ª;
-Em toda a cortiça pesada será feito um desconto de 20% para compensação da seiva e verde, assim como os bocados pesados conjuntamente com a prancha - 5ª;
-Os pagamentos serão efectuados da seguinte forma :
1º- Como sinal e princípio de pagamento é entregue nesta data pelo segundo outorgante ao primeiro outorgante o valor de € 250.000, acrescidos de IVA à taxa legal de 19%, o que perfaz a quantia de € 297.500, cheque n° 134533 sobre o BES ;
2º- Após a tiragem de toda a cortiça, proceder-se-á ao acerto de contas em função da quantidade de cortiça pesada, e os restantes pagamentos serão efectuados da seguinte forma:
-30 de Setembro de 2003, 1/3 (um terço);
-30 de Janeiro de 2004, 1/3 (um terço);
-30 de Abril de 2004, 1/3 (um terço) e restante pagamento - 6ª".
3- Foi previsto que a contagem rigorosa da cortiça extraída das duas propriedades mencionadas em 2., supra, ocorresse após a sua tiragem.
4- Da Herdade da A... foram retiradas 17.300 arrobas de cortiça amadia, e da Quinta do Passil 1.200 arrobas.
5-0 preço global da cortiça extraída da Herdade da A... ascende a 1.080.817,50 € - 908.250 € + 172.567,50 € de Imposto sobre o Valor Acrescentado, e a extraída da Quinta do Passil ascende a 74.970 € - 63.000 € + 11.970 € de Imposto sobre o Valor Acrescentado.
6- A A. pagou ao R. a prestação vencida em 30/9/2003, no montante de 286.095,83 € e cumpriu a obrigação que lhe advinha do contrato celebrado de levantar diariamente a cortiça^ que fosse extraída dos sobreiros.
7- A cortiça é formada por um conjunto de células mortas, dispostas de um modo compacto e regular, sem espaços livres entre si.
8- Por exame técnico efectuado em pranchas de cortiça crua e preparada verificou-se que tais pranchas evidenciavam separação entre assentadas de células suberosas, três/quatro anos após a última despela ou descortiçamento, associado a zonas de menor resistência da cortiça, correspondentes a pontos onde são menos espessas as membranas celulares, sendo, portanto, zonas de maior fragilidade celular, o que é designado por esfoliado, solapado ou folheado, ocorrendo devido a uma paragem momentânea do crescimento do tecido suberoso, fenómeno que impede a utilização da cortiça por ele atingida na produção de rolhas de cortiça natural porque a cortiça não se apresenta compacta, e a rolha proveniente dessa cortiça deixa de ter estanquicidade, deixando passar o ar.
9- A rolha de cortiça natural só pode fabricar-se ou extrair-se da cortiça amadia, sendo que a rolha de cortiça natural é considerada o produto mais rentável da cortiça amadia.
10- A A. obteve o parecer por exame técnico de que a cortiça amadia extraída da Quinta do Passil estava em condições normais.
11- O lote de cortiça amadia extraída da Herdade da A... é insusceptível de ser utilizado na fabricação de rolhas de cortiça natural.
12- A A. destinava a cortiça amadia em causa para a fabricação de rolhas de cortiça natural, e não compraria a cortiça amadia pelo preço referido em 2., supra, se soubesse que era imprópria para esse fim.
13- A cortiça colocada pela A. em fabricantes de rolhas foi toda rejeitada, e a imperfeição referida em 8., supra, faz destinar a cortiça a fins industriais menores, o que faz desvalorizar o preço da cortiça numa percentagem muito elevada.
14- A A. tomou conhecimento rigoroso da imperfeição em Outubro de 2003, e após essa data solicitou ao R. a anulação do contrato, a retirada da cortiça e a devolução das verbas pagas.
15- A cortiça era verificada, carregada e transportada no fim de cada dia pela autora, e o período de tiragem, verificação e carregamento da cortiça pela A. decorreu entre Julho e Agosto de 2003.
16- No descortiçamento, verificação e carregamento e pesagem, o sócio-gerente da A. ou o seu representante não observaram nem registaram a imperfeição referida em 8., supra.
17- A imperfeição imputada à cortiça tem manifestações externas, sendo passível de apreensão visual por quem habitualmente trabalha com cortiça.
18- Em 14/10/2003, a cortiça já havia sido colocada pela A. num fabricante de rolhas, para o que foi objecto de uma escolha das pranchas de cortiça pela sua espessura e qualidade.
19- Depois do referido na segunda parte de 18., supra, as paletes de cortiça foram sujeitas a um processo de cozedura dentro de água.
20- A A. só cozeu e preparou uma reduzida parte da cortiça negociada com o R., estando a maior parte nas instalações da A. tal como veio do R..
21- A cortiça amadia pode destinar-se à produção de rolha técnica e aglomerada, a discos, blocos, revestimentos, decoração e isolamentos, para além da produção de rolha natural, e o destino da cortiça não foi referido ao R..
22- Em qualquer descortiçamento há uma percentagem de cortiça extraída que apresenta alguma imperfeição.
23- O contrato de venda entre a A. e a empresa rolheira "Abel da Costa Tavares, Lda" foi celebrado em 14/10/2003, tendo as paletes da cortiça sido colocadas pela A. na empresa rolheira em 21/10/2003, sendo devolvidas em 28/10/2003 após a verificação da imperfeição, constando de guia de remessa datada de 21/10/2003 a anotação assinada pela compradora de devolvido por não se encontrar em condições, tendo também ocorrido a devolução da factura n° 1616 em 29/102003.
24- A A., através do seu advogado, remeteu ao R., carta datada de 24/11/2003, em cujo ponto 2 referiu que : "Já na fase do manuseamento em fábrica se notara um comportamento anómalo da cortiça porquanto surgiram alguns fenómenos de fissuramento e consequente descontinuidade estrutural do tecido suberoso das pranchas de cortiça".”
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Fundamentação
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São, como é por demais sabido, as conclusões que determinam o objecto do recurso.
Ora, compulsadas as formuladas pela A/recorrente, verifica-se que vem impugnada parte da matéria de facto tida por provada na 1ª instância e que a Relação, em sede de reapreciação, manteve inalterada.
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De facto, e no que respeita à resposta ao quesito 19º, entende a recorrente, que deve ter-se por provado que, em 30/10/2003, remeteu ao R. a carta documentada a fls. 20, e, quanto ao ponto 24 da matéria de facto provada, não pode ter-se como imputável à A. a carta de 24/11/2003 (fls. 376/377), porquanto foi subscrita pelo advogado da A. e não pela A., sendo que o referido patrono não detinha poderes especiais para vincular a A.
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Além disso e quanto à aplicação do direito, impugna a decisão, por ter julgado verificada a excepção de caducidade, que, na sua opinião, não ocorre, e por ter cometido nulidade por falta de pronúncia, uma vez que não apreciou a questão da anulação do contrato por erro, questão que a A. tinha suscitado na apelação.
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Analisemos, então, as questões suscitadas, começando pela matéria de facto.
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É hoje jurisprudência unanime, que o S.T.J. não aprecia matéria de facto, a menos que se verifiquem as situações excepcionais previstas no Art.º 722º n.º 2 do C.P.C..
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Quer dizer, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não podem ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
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Pode ainda o S.T.J. ordenar a ampliação da matéria de facto, quando faltem as bases factuais necessárias para aplicar o direito ou quando exista contradição na decisão de facto que inviabilize a decisão de direito (Art.º 729º n.º 3 do C.P.C.).
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Tem-se, igualmente, entendido que, não tendo a Relação reapreciado a matéria de facto impugnada, em conformidade com o legalmente estabelecido, se estará, ainda, no âmbito da aplicação do Art. 729º n.º 3, na medida em que “... a aí prevista ampliação da matéria de facto, pode passar, não só pela averiguação de factos que não foram apurados, mas também pela reapreciação de factos que o tenham sido deficientemente” (confr. Ac. do S.T.J. de 30/4/2002 – Revista n.º 917/02 – 1ª – Sumários internos 4/2002 - ).
Sem rejeitar tal interpretação, pensamos que, no mencionado caso, para que o S.T.J. possa intervir no domínio da matéria de facto, é necessário que a referida reapreciação deficiente, represente a violação de lei processual ou substantiva, caindo, assim, na alçada da sindicância do S.T.J., por se tratar de matéria de direito.
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Carta de 30/10/2003
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Posto isto, vejamos o que dizer sobre a carta de 30/10/2003, relacionada com a resposta restritiva ao quesito 19º.
Aí se perguntava, se, em 30/10/2003 a A. enviou ao R. uma carta a declarar sem efeito o contrato referido em C), pedindo-lhe a retirada da cortiça e a devolução das verbas já pagas.
Trata-se, evidentemente, da carta de fls. 20, cuja cópia a A. juntou aos autos com a petição inicial.
Tal quesito mereceu a resposta seguinte:
“Provado que após a data referida em 18 (isto é, após Outubro de 2003), a A. solicitou ao R. a anulação do contrato, a retirada da cortiça e a devolução das verbas pagas”.
Como se vê da fundamentação, não se teve por provado que a A., em 30/10/2003, remeteu ao R. a carta de fls. 20, porquanto, esse facto foi impugnado pelo R., na sua contestação, designadamente, no seu artigo 2º.
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Diferentemente, pretende a recorrente que a remessa dessa carta está provada, porquanto o R., tendo impugnado o defeito nela denunciado, não pôs em causa o envio da carta em si mesmo considerado, pelo que, nos termos do disposto no Art. 490º n.º 2 do C.P.C., deve ter-se demonstrado que a A., em 30/10/2003, por intermédio da carta em causa, denunciou ao recorrido o defeito da cortiça, e exerceu o seu alegado direito de anulação do negócio.
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Segundo o determinado pelo Art.º 490º n.º 2 do C.P.C., deve ter-se por admitido por acordo, os factos que não foram impugnados, impondo-se, assim, força probatória vinculativa à falta de impugnação de determinado facto.
Parece, portanto, que a situação se encontra abrangida no âmbito do n.º 2 do Art.º 722º do C.P.C., se se considerar que a falta de impugnação constitui um meio de prova da veracidade do facto não impugnado, ou, em qualquer caso, que o desrespeito de tal regra, constitui a violação de lei processual, podendo, por conseguinte, a questão ser apreciada pelo S.T.J.
Assim, apreciando a questão, afigura-se-nos que, na verdade, assiste, neste ponto, razão à recorrente (pese embora a procedência desta questão não ter qualquer influência na decisão, como se verá).
Como se disse, a A. alegou na petição inicial que enviou ao R., a carta datada de 30/10/2003, que deu por reproduzida.
Por sua vez o R., na contestação, impugnou, por falsos, pelo menos com o sentido pretendido pela A., o conteúdo dos artigos 14 e seguintes da p.i., bem como dos documentos n.ºs 4, 5 e 6 (sendo este último a carta aqui em análise).
O articulado de contestação, como qualquer outro escrito, pode e deve ser interpretado de acordo com as regras gerais dos Art.ºs 236º e seg. do C.C.
Ora, considerando o que consta da contestação, fácil é perceber que, em relação à aludida carta, o que o R. impugna é o seu conteúdo, isto é, impugna, não só a existência do denunciado defeito (confr. Essencialmente os pontos 3 a 18 do articulado), bem como o momento em que, a existir a deficiência, a A. dela teve conhecimento (confr. Pontos 24 a 28 da contestação).
Não se vê que o sentido da impugnação do R. possa abranger o envio do documento em causa, em si mesmo considerado.
Ao que pode deduzir-se da impugnação do R., há-de convir-se que ele não põe em causa que a A. lhes tenha remetido a carta de 30/10/2003, e, como ela foi endereçada para a morada do R., constante do contrato documentado a fls. 14 e 15, competia-lhes, pelo menos, alegar não a ter recebido.
Não o tendo feito, parece-nos que tem de ter-se por provado que a A. remeteu ao R. a carta de 30/10/2003, a denunciar o defeito da cortiça negociada, e, por via dela, a anulação do contrato.
Tal não significa, obviamente, que dessa carta resulte a prova do defeito ou a tempestividade da denúncia. Esta matéria foi inequivocamente impugnada e, por isso, foi objecto de prova, sendo certo que veio a provar-se o defeito da partida de cortiça aqui em causa, embora não se tenha provado, como melhor se verá, a tempestividade da respectiva denúncia.
Portanto, deve ter-se por provado que, em 30/10/2003, a A. enviou ao R. uma carta a declarar sem efeito o contrato referido em c), pedindo-lhe a retirada da cortiça e a devolução das verbas já pagas.
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Ponto 24º da matéria de facto. Carta de 24/11/2003
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Vejamos, agora, se deve manter-se (ou não) no elenco da matéria de facto o ponto 24.
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Aí se dá por demonstrado que “A A., através do seu advogado, remeteu ao R., carta datada de 24/11/2003, em cujo ponto 2º referiu que: «já na fase do manuseamento em fábrica se notara um comportamento anómalo da cortiça porquanto surgiram alguns fenómenos de fissuramento e consequente descontinuidade estrutural do tecido suberoso das pranchas de cortiça».
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A referida carta foi junta aos autos pelo R. na audiência de 12/10/2007 (doc. n.º 3, anexado aos autos a fls. 376/377).
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Sobre a junção deste documento, após prazo para o seu exame, pronunciou-se a A. (evidentemente, através do seu advogado), nos termos seguintes. “Quanto ao documento 3, junto pelo Réu, a Autora nada tem a opor, em virtude do mesmo se consubstanciar numa assunção clara e evidente do Réu, ao juntar tal documento que lhe foi dirigido, que o defeito presente nos autos é proveniente da propriedade da A..., propriedade do Réu, e que o mesmo contesta, logo fundamental para a descoberta da verdade material”.
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Mas, a descoberta da verdade material, parece, agora, já não interessar à A., visto que pretende a eliminação do referido facto, alegando que o mandatário subscritor do documento só vincula o seu mandante nos articulados (Art. 38º do C.P.C.) e fora deles, somente quando munido de procuração com poderes especiais (Art. 37º do C.P.C.), o que não ocorre no caso concreto.
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Assim, o que se pode depreender da referida argumentação, é que a A. encara a passagem da dita carta, que as instâncias tiveram por provada, como uma declaração confessória, para cuja emissão o advogado subscritor não teria os necessários poderes.
Nessa medida, o tribunal, ao aceitar tal “confissão” como boa, terá violado regras de direito material probatório, daí a competência deste Supremo Tribunal para apreciar tal questão de facto.
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Acontece que, na nossa modesta opinião, tal carta não contém qualquer declaração confessória, muito menos inequívoca, como sempre teria de ser uma declaração daquele tipo (Art. 357º n.º 1 do C.C.), nem tal foi alguma vez afirmado pelo tribunal do julgamento.
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Desde logo, o §2º da dita carta (matéria que foi transcrita no ponto 24 da matéria de facto provada), não traduz o reconhecimento da A. de que, quando denunciou os defeitos da cortiça ao R., dando sem efeito o contrato, já tinham decorrido os prazos de caducidade estabelecidos nos Art.ºs 471º do C. Com. ou 916º do C.C.
De facto, dizer-se que “já na fase do manuseamento em fábrica se notara um comportamento anómalo da cortiça ...” não indica, como é óbvio, o exacto momento em que a A. manuseou a mercadoria, e, por isso, não há qualquer assunção de que deixou esgotar os prazos de caducidade para rejeitar o negócio.
Não estamos, pois, seguramente, perante a figura da confissão.
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Assim sendo, tendo o Ex.mo advogado que subscreveu a carta de 24/11/2003, expressamente declarado ter aceite ser advogado da A. e nessa qualidade responde à carta do R., não pode, razoavelmente, deixar de se entender que agiu em representação da A. e por ela devidamente mandatado ou autorizado.
Portanto o acto praticado em representação da A., só à A. pode ser imputado.
Nem outro entendimento era exigível ao R.
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Por outro lado, apresentada a carta em causa no decurso da audiência, é claro que o Ex.mo patrono da A. tinha poderes bastantes para exercer o contraditório (Art. 36º do C.P.C.), sendo certo que não só não se opôs à junção do documento nem impugnou qualquer passagem dele, como entendeu ser elemento necessário à descoberta da verdade material.
Consequentemente, nada impedia que o tribunal o tivesse em consideração, apreciando-o livremente em conjugação com os restantes elementos probatórios produzidos, sem violar qualquer norma de direito probatório material.
Designadamente, não foram violados os Art.ºs 37º e 38º do C.P.C.
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Assim, o ponto 24 da matéria de facto não tem de ser eliminado, nem alterado na sua redacção.
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Enquadramento jurídico do contrato e seu regime (Art.º 470/471 do C.Com. ou Art.º 913/916 do C.C.?).
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Não está em questão que estamos perante um contrato de compra e venda e não de um contrato promessa, como as partes o denominaram.
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Por outro lado, parece que também não está em causa a natureza comercial do contrato.
Quanto a este aspecto, remete-se para o que foi dito no acórdão recorrido, por se concordar com a respectiva argumentação.
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Assim, sendo incontestável que a A. fez uma compra objectivamente comercial (Art.º 463º n.º 1 C. Com.), apesar de a venda ser subjectivamente civil (em relação ao R. – Art.º 464º n.º 2 C. Com. -), o contrato assume, no seu todo, natureza comercial, como resulta do disposto no Art.º 99º do C. Com.
É o ensinamento de Cunha Gonçalves (Compra e Venda no Direito Comercial Português – 2ª ed.) onde se lê: “Basta que um dos contratantes pratique, comprando ou vendendo, um acto de comércio, para que todo o contrato seja comercial, pela impossibilidade de o cindir …”
No mesmo sentido se pronuncia Pedro Pais de Vasconcelos (Direito Comercial – I -) “… a compra e venda é, em princípio, um contrato unitário, um acto jurídico só, e não dois, um acto de compra e um acto de venda. Por isso, não pode ter uma dupla natureza civil e comercial.
O acto é qualificável com o acto de comércio misto … O acto de comércio misto não é separado em duas partes, uma civil e outra comercial; é regido unitariamente como um só acto de comércio ao qual é aplicável todo o regime do acto de comércio”.
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Posto isto, considerando as questões suscitadas na revista, há que qualificar o contrato e determinar qual o regime aplicável ao cumprimento defeituoso (Art.º 471º do C. Com. ou 913/916 do C.C.?).
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Sabemos que a A. comprou ao R. uma partida de cortiça amadia, incluindo bocados, com idade legal, a ser extraída da herdade da A....
Dela foram, de facto, retiradas 17.300 arrobas daquela cortiça, que vieram a ser efectivamente entregues à A., que a transportou para as suas instalações e aí as armazenou, o que tudo ocorreu entre Julho e Agosto de 2003.
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Ao que resulta do acórdão recorrido, pode afirmar-se que aceitou a qualificação do contrato como constituindo uma compra e venda sob exame ou “sob condição salva à vista”, integrando a espécie prevista no Art.º 470º do C. Com.
Assim, a compra da cortiça em causa, ter-se-á realizado sem que estivesse à vista a mercadoria adquirida pela A.
Aliás, não deixou a A. de, também enquadrar nesta previsão legal o negócio em causa, como se vê dos pontos 37 e 38 da réplica.
Seja como for, vem, agora, a recorrente colocar em causa tal qualificação jurídica, porquanto, o objecto do negócio era coisa bem à vista, razão porque não teria aplicação o regime especial da compra e venda condicional a que referem os Art.ºs 470 e 471º do C. Com.
Diferentemente, tratando-se de um negócio que ficou desde logo perfeito, deve aplicar-se o regime supletivo da compra e venda civil de coisa defeituosa (Art.ºs 913/916 do C.C.).
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Cremos, no entanto, que a argumentação da recorrente não procede, por várias ordens de razões.
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Em primeiro lugar, não consta da matéria de facto que a A. tenha, sequer, observado a cortiça na árvore, à data do negócio (confr. respostas negativas aos quesitos 30 e 31), daí que não possa ter-se o negócio como realizado à vista da mercadoria.
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Em segundo lugar, apesar de a cortiça comprada pela A., no momento da compra, se encontrar ainda nos sobreiros (ainda não tinha ocorrido o descortiçamento), e, portanto à vista de quem a quisesse observar, a verdade é que a compra à vista da mercadoria, supõe necessariamente, que o comprador a pode examinar, no momento da celebração do negócio, de modo a ficar ciente das suas qualidades.
Ora, no caso, embora se tenha provado que a imperfeição da cortiça tinha manifestações externas, sendo passível de apreensão visual por quem habitualmente trabalha com tal matéria prima, a verdade é que se provou, igualmente, que o defeito existente, designado por “esfoliado” “solapado” ou “folheado”, se traduz na separação entre assentadas de células suberosas, ocorrida ¾ anos após a última despela ou descortiçamento, originando um menor espeçamento (e, portanto, quebra de resistência) das membranas celulares.
Assim, sendo o defeito congénito, que ocorre durante o processo de crescimento, ao nível celular, embora visível a olho nú, visto que dá origem a zonas de descontinuidade visíveis, tais linhas de descontinuidade só podem ser detectadas quando observadas as pranchas de cortiça na sua espessura, observação que, naturalmente, só pode ser efectuada após o descortiçamento.
Daí que, como se diz no exame pericial de fls. 145, quando na árvore, tal defeito de formação, não é susceptível de ser notado.
Verdade que, tendo sido perguntado no quesito 16, se a imperfeição era insusceptível de ser detectada na árvore, inexplicavelmente se respondeu NÃO PROVADO, mas, tal resposta não implica que deva ter-se provado o contrário, tudo se passando como se tal matéria não tivesse sido alegada.
Porém, atentas as características do defeito da cortiça aqui em causa, afigura-se-nos que tal impossibilidade de detecção, antes da separação das pranchas de cortiça da árvore, se apresenta como um facto notório que não carece de ser alegado e provado (Art.º 514 n.º 1 do C.P.C.). Logo pode e deve ser considerado.
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Assim sendo, mesmo que o representante da A., no momento do negócio, tenha visualizado os sobreiros da herdade da A..., não tinha qualquer hipótese de se aperceber do defeito da cortiça, razão porque, para efeitos do disposto no Art.º 470º do C. Com., a compra deva ser tida como não à vista, já que a situação descrita cabe claramente na ratio legis do regime instituído no preceito.
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Em terceiro lugar, mesmo a ter-se o negócio como um contrato de compra e venda com a mercadoria à vista (caso em que não se enquadraria na previsão do Art.º 470º do C. Com.) e, portanto, se tratasse de uma compra e venda comercial pura e simples (isto é, o contrato produz todos os seus efeitos, desde a celebração – transmissão da propriedade, dos riscos, do pagamento do preço -), mesmo então, quando se trata de saber qual o prazo dentro do qual o comprador deve protestar no caso de a mercadoria não ter as qualidades convencionadas, ou seja, entregue mercadoria defeituosa, aplicar-se-ia a regra geral do Art. 471º do C. Com, já que, como ensina Cunha Gonçalves (obr. Cit.), referindo-se ao Art.º 471º do C. Com., “Posto que neste artigo o legislador só tenha previsto a hipótese de ser a venda condicional, parece-me que, também sendo ela pura e simples, deve a reclamação ser feita no prazo máximo de oito dias, não se tendo verificado a mercadoria no acto da entrega, visto haver entre os dois casos manifesta analogia”.
Na verdade, sendo o direito comercial, um ramo de direito especial (mas não excepcional), nada impede a sua aplicação analógica.
De resto, é a própria lei comercial (Art.º 3º do C. Com.) que expressamente impõe o recurso à analogia quando dispõe no mencionado preceito “Se as questões sobre direitos e obrigações comerciais não puderem ser resolvidos nem pelo texto da lei comercial, nem pelo espírito, nem pelos casos análogos nele prevenidos, serão decididos pelo direito civil”.
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Assim, só em último recurso será legítimo recorrer ao regime subsidiário do direito civil.
Ora, não oferecerá grandes dúvidas, que a razão de ser do prazo curto de 8 dias a que se refere o Art.º 471º do C. Com., que tem a ver com a celeridade, segurança e certeza que o legislador quis imprimir à contratação comercial, ou seja, com a “praticabilidade” (por contraposição à “dogmaticidade”), no dizer sugestivo de Pedro Pais de Vasconcelos (obr. Cit. 30/31), tanto se verifica para a compra e venda condicional dos Art.ºs 469º e 470º do C. Com., como para a compra e venda pura, sujeita ao regime comercial.
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Aliás, a tese dualista defendida pela A., afigura-se-nos incoerente, além de colidir com a harmonia e equilíbrio do próprio sistema.
De facto, tratando-se de compra não à vista, o comprador tem de reclamar do defeito no prazo de 8 dias a contar da entrega (ou do momento em que dele teve conhecimento, agindo diligentemente), se não a examinar nesse momento, mal se entenderia que, tendo a mercadoria à vista, gozasse de prazo mais dilatado para o efeito (ou seja, os 30 dias da lei civil, como pretende a recorrente).
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Alega ainda a recorrente que, mesmo a ter-se por aplicável o Art.º 471º do C. Com., não se aplicaria, no caso concreto, o prazo de 8 dias referido no preceito, isto porque, não sendo o vendedor comerciante, não pode beneficiar desse prazo curto que foi estabelecido a favor da parte comerciante.
Seria o que, na sua opinião, resultaria da excepção determinada pelo Art.º 99º do C. Com.
Assim, o prazo para reclamar, na circunstância, seria o prazo civil de 30 dias.
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Não tem razão.
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Dispõe o mencionado preceito que “Embora o acto seja mercantil só em relação a uma das partes será regulado pelas disposições da lei comercial quanto a todos os contratantes, salvos os que só forem aplicáveis àquele ou àqueles por cujo respeito o acto é mercantil ...”.
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Quer isto dizer que, em relação aos chamados actos de comércio mistos, adopta-se como regra geral, o sistema da unidade.
Por exemplo, sendo o contrato de compra e venda, objectivamente comercial pela parte do comprador e subjectivamente civil, pela parte do vendedor, como é o caso dos autos, e apesar disso, um contrato unitário, formando um só acto jurídico, que assume na sua unidade, natureza mercantil, como já se referiu, ficando, por isso, sujeito a um regime jurídico único, isto é, ao regime comercial.
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O segmento final do preceito (a excepção) não afasta a aplicação à parte não comerciante da disciplina comercial prevista no C. Comercial, para aquele tipo contratual, pois, de contrário, esvaziar-se-ia o princípio geral contido no preceito.
Haveria, então, manifesta contradição nos próprios termos da norma.
A excepção do Art. 99º do C. Com., refere-se, tão somente, àqueles actos que são regulados no código, para se aplicarem apenas aos comerciantes, como por exemplo, as que determinam a obrigatoriedade de adoptar uma firma, de terem uma escrituração comercial, de dar balanço ou prestar contas, ou que fixam regras quanto à prova de certos actos ... (cof. Fernando Olevo – Direito Comercial – I – 2ª ed. e Pedro Pais de Vasconcelos – Direito Comercial – I -).
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Por outro lado, a fixação do curto prazo de 8 dias a que se refere o Art.º 471º do C. Com., não foi estabelecido em benefício do vendedor comercial, que apenas reflexamente, dele pode aproveitar.
O objectivo da lei é, essencialmente, o de instituir um regime de certeza que deve presidir ao tráfego comercial em geral, facilitando a segurança e celeridade das transações.
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De resto, se fosse válida a tese da recorrente, sendo a compradora a parte comerciante e tratando-se de uma compra objectivamente comercial, o prazo para reclamar, que sempre lhe seria aplicável, era o da lei comercial, uma vez que só a ela competia o ónus de examinar a mercadoria e reclamar atempadamente.
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Assente, assim, que o contrato em lide cabe perfeitamente na previsão do Art.º 470º do C. Com., e que sempre lhe seria aplicável o prazo de 8 dias do Art.º 471º do mesmo diploma, é claro que se tem de rejeitar a tese da recorrente.
Ao caso concreto, nunca se poderia aplicar o prazo de 30 dias do Art.º 916º do C.C.
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Convém, no entanto, referir, ainda, que se aceita integralmente a posição do acórdão recorrido, quando defende que o início da contagem do prazo de 8 dias para reclamar do vício, e com base nele, rejeitar o negócio, não tendo o exame da mercadoria sido efectuado no momento da entrega (no caso, da última entrega), quer por iniciativa da compradora, que por exigência do vendedor, apenas se inicia quando o comprador teve conhecimento do defeito, ou, mais exactamente, quando o podia ter, agindo com a diligência normal exigível no caso concreto.
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Quer dizer, o mencionado prazo de 8 dias, só pode contar-se a partir da entrega da mercadoria, quando, nesse curto prazo, a simples inspecção dela habilita o comprador a aperceber-se da desconformidade, e consequentemente a protestar e rejeitar a coisa entregue.
Diferentemente, se o defeito é tal, que só com exames especiais, designadamente laboratoriais, pode ser detectado, o prazo só se iniciará, decorrido o período de tempo razoável e necessário, conforme as circunstâncias, para que o comprador dele tomar conhecimento e, na sequência, rejeitar a mercadoria, agindo com a diligência devida.
É esta a orientação actual da jurisprudência deste tribunal (confr., por todos, o Ac. do S.T.J. de 26/1/99 – BMJ n.º 483 – 236 e seg.).
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Mas, sendo assim, naturalmente, recai sobre o comprador o ónus de provar a impossibilidade de detectar o vício ou defeito no prazo de 8 dias após a entrega, bem como da data em que, depois de uma conduta diligente, tomou dele conhecimento .
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Sendo de aplicar ao caso concreto o aludido prazo de 8 dias (Art. 471º do C. Com.), nos termos acima definidos, resta averiguar se a A. deixou esgotar tal prazo, o mesmo é saber, se se verifica a caducidade do direito de reclamar dos defeitos que se provaram existir na partida da cortiça aqui em causa.
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Acompanhamos, também, neste aspecto, o decidido pelo acórdão recorrido, tendo em conta a factualidade provada.
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Vejamos melhor.
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- Sabemos que a cortiça foi comprada na árvore, ficando o descortiçamento a cargo e por conta do R/vendedor;
- Competia à A/compradora levantar diariamente a cortiça que fosse extraída dos sobreiros, o que cumpriu;
- O lote aqui em causa sofria de mal formação, defeito conhecido no meio por “esfoliado”, “solapado” ou “folheado”, e, por isso, é insusceptível de ser utilizado na fabricação de rolhas de cortiça natural, produto que é considerado o mais rentável da cortiça amadia;
- Tal imperfeição (defeito congénito de formação celular) tem manifestações externas que são detectáveis visualmente, a olho nu, por quem habitualmente trabalha com cortiça;
- Foi a A. quem verificou (verificação não especificada, como se diz na fundamentação), carregou, transportou e armazenou nas suas instalações fabris o lote de cortiça em causa, o que fez diariamente, à medida em que as pranchas de cortiça eram extraídas dos sobreiros;
- Tais operações de verificação, recolha, transporte e armazenamento ocorreram entre Julho e Agosto de 2003;
- Durante o período de verificação, carregamento e armazenamento, o sócio-gerente da A. ou seus representantes, que presenciaram esses actos, não observaram ou registaram a imperfeição da cortiça;
- O descortiçamento, verificação, carregamento e pesagem, foram efectuados por profissionais experientes;
- Em 14/10/2003, parte da cortiça aqui em causa, havia sido colocada (vendida) pela A. a uma empresa fabricante de rolhas de cortiça natural;
-Para esse efeito, as pranchas de cortiça foram objecto de escolha pela sua espessura e qualidade;
- Após o que as pranchas foram sujeitos a um processo de cozedura dentro de água;
- A A. entregou a cortiça que vendeu à empresa rolheira em 21/10/2003;
- Tal partida foi devolvida à A. em 28/10/2003 após verificação da imperfeição;
- A A. tomou conhecimento rigoroso da imperfeição em Outubro de 2003;
- Por carta de 30/10/2003, a A. denunciou ao R. o defeito da cortiça, dando sem efeito o negócio e solicitou-lhe a retirada da cortiça das suas instalações e a devolução das verbas já pagas (a A. tinha já pago ao R., a 1ª prestação do preço em 30/9/2003, conforme o convencionado).
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É esta, no que ora interessa, a matéria de facto provada (tendo já em conta a alteração efectuado por este S.T.J., quanto ao envio da carta de 30/10/2003).
É, por isso, evidente que, ao contrário do que afirma a recorrente, não está provado que ela só tenha tido conhecimento do defeito que denunciou e no qual fundamenta a rejeição do contrato, em 28/10/2003 ou em 30/10/2003.
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O que consta da resposta restritiva ao quesito 18 é que a A. tomou conhecimento rigoroso da imperfeição em Outubro de 2003.
Pese embora a equivocidade manifesta da expressão conhecimento rigoroso, dando de barato que só em Outubro de 2003 a A. teve conhecimento do defeito, é claro que fica por averiguar a data concreta na qual, nesse mês de Outubro, lhe adveio o conhecimento da imperfeição, visto que tal facto, tanto podia ter ocorrido no início desse mês, como no meio ou no fim dele.
Assim, como a A. só denunciou o defeito da mercadoria e rejeitou o contrato em 30/10/2003, não está provado que essa denúncia e consequente rejeição ocorreram no período de 8 dias após o conhecimento da deficiente qualidade da cortiça, sendo certo que a prova da tempestividade da denúncia e rejeição do negócio, era ónus da A. como se deixou dito.
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Por outro lado, e decisivamente, se a A. só teve efectivo conhecimento da imperfeição da cortiça em 28/10/2003 ou em 30/10/2003, como alega (o que se ignora, como se disse), a verdade é que, perante a factualidade provada, esse tardio conhecimento é-lhe imputável a título de manifesta negligência.
Na verdade, sendo a A. uma empresa que exerce profissionalmente, a actividade de fabricante de cortiça, e estando provado que o defeito existente era apreensível a olho nu, por qualquer pessoa que habitualmente trabalha com cortiça, sem necessidade de qualquer exame especial ou laboratorial, como o A. alegou, mas não provou (recorde-se que os peritos detectaram e quantificaram o defeito por simples observação directa, sobre amostra da cortiça, como é prática normal), era exigível à A. (em termos de diligência normal) que, quer por intermédio dos seus representantes, quer através dos seus colaboradores (aliás pessoas experientes como se provou), procedesse ao exame da mercadoria, logo após a entrega da última partida de cortiça (Agosto de 2003) entregue pelo R., em ordem a controlar a sua qualidade.
Se o tivesse feito, como era seu ónus (Art.º 471º do C. Com.), facilmente se teria apercebido da deficiência em causa no prazo dos 8 dias a que se refere o citado preceito, ficando logo habilitada a reclamar o seu direito de distratar o negócio em tempo útil.
Ora, o que a A. vem dizer nas suas alegações, no fundo, é que não procedeu a qualquer exame da mercadoria até ser alertada para a existência da deficiente formação da cortiça, pela empresa rolheira a quem vendeu parte do lote comprado ao R.
Até aí, simplesmente presumiu a boa qualidade do material, apesar de terem surgido algumas pranchas defeituosas quando procedeu a cozedura.
Porém, se a A. presumiu a boa qualidade da cortiça, sem se dar ao cuidado de a examinar, tal presunção é da sua conta e risco, visto que era seu ónus examinar a mercadoria, para poder reclamar no prazo de caducidade, se fosse caso disso.
Não o fazendo, aceitou, como boa, a entrega do material comprado, o que significa que aprovou a mercadoria, tornando definitiva a compra e venda, isto é, tornando perfeito o contrato.
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Portanto, não tendo a A. provado, como lhe competia, que durante os cerca de dois meses, em que teve a cortiça em seu poder e à sua disposição, estava impossibilitada, por razões de ordem técnica, ou outros razoavelmente atendíveis, de detectar o defeito, resultando até, da prova, que, durante esse lapso de tempo, tivesse a A. examinado a mercadoria com a diligência exigível a um profissional na matéria, facilmente tomaria conhecimento da imperfeição da cortiça em toda a sua extensão (não se esqueça que foi a Ré quem transportou para as suas instalações a cortiça, quem procedeu à sua verificação — posto que de forma genérica e não específica — e quem a armazenou, actos esses supervisionados pelo sócio-gerente da A. ou seus representantes, sendo certo que vendeu parte dessa cortiça a uma terceira empresa rolheira, tendo-se procedido para esse efeito, à escolha das respectivas pranchas pela sua espessura e qualidade, — o que implicaria, desde logo, a detecção do defeito, que, como se viu, é observável exactamente na espessura das pranchas — após o que a submeteu a um processo de cosedura em água, tendo até, neste processo, detectado algumas pranchas defeituosas), o conhecimento tardio do defeito só a ela pode ser imputado.
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Consequentemente, no caso concreto, o prazo para a reclamação era de 8 dias, a contar da última entrega, e, por isso, não tendo sido exercido tal direito no prazo de caducidade, o contrato tornou-se perfeito, não podendo, agora, a A. reclamar o distrate ou anulação do contrato, como pretende. Tal direito caducou efectivamente e estava já caducado em 30/10/2003.
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Finalmente, imputa a recorrente ao acórdão recorrido, o vício da nulidade por falta de pronúncia sobre questão suscitado nas suas alegações de apelação.
É que a A. invocou a anulabilidade do contrato com base no erro, pois que, ao comprar a cortiça aqui em questão pelo preço de 52,50€ a arroba, fê-lo porque a julgava apta para a produção de rolhas de cortiça natural, o que não é possível face à cortiça entregue pelo R. à A., por causa da deficiência detectada.
Essa deficiência desvaloriza grandemente a cortiça, daí que, se a A. soubesse do vício, não a compraria, ou não a compraria pelo preço convencionado no contrato.
Tem assim, a A. o direito de pedir a sua anulação nos termos do disposto nos Art.º 251º e 247º, tendo em conta o disposto nos Art.ºs 905º e 913º, todos do C.C.
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Ora, o acórdão recorrido não se pronunciou sobre esta questão, daí a sua nulidade.
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Embora não tivesse ficado mal que o acórdão recorrido se pronunciasse com maior clareza sobre esse assunto, a verdade é que, na nossa modesta opinião, não pode dizer-se que omitiu pronúncia sobre “um outro fundamento do pedido da acção”.
O acórdão julgou caducado o direito que a recorrente invoca, com base nos defeitos da cortiça, defeitos que, segundo alega, só foram do seu conhecimento em 28/10/2003 ou 30/10/2003.
É que, apesar de tal alegação, entendeu-se que a A. não denunciou tais defeitos, nem reclamou tempestivamente.
Ora, uma vez que o acórdão recorrido considerou estar-se perante um verdadeiro contrato de compra e venda e não face a um contrato promessa (para esta hipótese, a pretensão da A. era a resolução do contrato, quanto à partida de cortiça defeituosa), então o pedido formulado pela A. era, exactamente, a anulabilidade (anulação) do negócio por erro.
Quer dizer, para a hipótese de se considerar que o contrato celebrado entre a A. e o R., era um contrato de compra e venda (como veio a considerar-se), então, o direito invocado pela A. era a anulação desse negócio (cofr. Ponto 35 da p.i.).
E foi exactamente esse direito de anulação que o acórdão recorrido teve por caducado, como se vê de fls. 718, onde se pode ler “O certo é que a recorrente suscitou ... ao apelado a anulação do contrato mais de oito dias depois do momento que, certamente, teve conhecimento dos defeitos da cortiça em toda a sua extensão se para o efeito actuasse ... com a diligência que lhe era exigida por virtude da sua actividade corticeira”.
Vê-se, assim, que o acórdão recorrido não deixou de se pronunciar sobre a caducidade do direito de anulação, invocado pela A., em função dos defeitos detectados na cortiça, e ao abrigo do disposto nos Art.ºs 913º, 905º, 247º e 251º do C.C.
Só que, considerou, e bem, como já vimos, que tais preceitos não têm aplicação ao caso concreto, o qual deve ser apreciado, como foi, à luz das regras dos Art.º 463º e seg. do C. Comercial, designadamente do seu Art.º 471º (cofr. Acórdão recorrido – fls. 714(i) e 718).
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Certo que o acórdão recorrido não analisou toda a argumentação que, a respeito da anulação por erro, a A. desenvolveu na apelação, mas essa omissão, como é sabido, não gera nulidade da decisão nos termos do Art.º 668º n.º 1 d) do C.P.C.
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Portanto, no limite, o mais que se poderá dizer, é que o acórdão teve por prejudicada toda a argumentação da A., face a decretada caducidade do direito de anulação que a A. queria fazer valer.
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Não se verifica, pois, nulidade por falta de pronúncia (Art.ºs 660º n.º 2 e 664º do C.P.C.).
Podemos, no entanto, ir um pouco mais longe, para referir que, atento o disposto nos Art.ºs 913º e 905º do C.C., é possível ao comprador pedir a anulação do contrato com base no erro quanto à qualidade da coisa objecto do negócio, verificados que sejam os requisitos legais da anulabilidade.
Como se vê do Art.º 913º do C.C. o cumprimento defeituoso abre essa possibilidade, a par de outros, como a reparação ou substituição da coisa, redução do preço ou indemnização.
Mas, todos esses direitos, dependem da prévia denúncia dos defeitos, feita dentro do prazo de caducidade, que, na lei civil, é de 30 dias a contar do conhecimento do vício.
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Foi sem dúvida esta, a construção jurídica em que a A. fundamentou o seu pedido de anulação do negócio.
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Porém, como vimos, no caso concreto, estamos perante um contrato de natureza mercantil, já que a compra da cortiça efectuada pela A., para revenda, é obrigatoriamente comercial.
Consequentemente, não têm aplicação no caso concreto as regras dos Art.ºs 913º e seg. do C.C, pela simples, mas clara razão, que a disciplina aplicável é a que resulta do C. Com., mais exactamente, a decorrente dos Art.º 470º e 471º do referido diploma legal, conforme já se deixou explicitado.
A compra e venda está, pois, condicionada à simples conveniência do comprador, que a pode rejeitar, pura e simplesmente, se ela não lhe convier, sem sequer ter necessidade de fundamentar a rejeição, desde que o faça no prazo de 8 dias a contar da entrega nos termos acima explicados.
Fica, assim, o comprador dispensado, não só de demonstrar o defeito da coisa (basta que declare não lhe interessar o negócio), como também de recorrer a qualquer acção de anulação do negócio por erro.
Mas, como contrapartida deste regime especial simplificado, impõe-se ao comprador o ónus de examinar a coisa, de reclamar (no caso rejeitar), num prazo muito curto (8 dias), sob pena de se presumir, júris et de jure, que o exame foi efectuado e a coisa aceite, tornando-se o negócio perfeito, precludindo, por isso, o direito de rejeitar o negócio, seja por que motivo for.
De facto, não teria qualquer sentido que, não tendo o comprador aproveitado o regime comercial mais favorável, pudesse, posteriormente ao decurso do prazo de 8 dias previsto no Art.º 471º do C. Com., vir socorrer-se do regime civil da compra e venda de coisa defeituosa.
Os dois regimes, essencialmente diferentes, não estão, em alternativa, na disposição do comprador.
Aplicando-se, ao caso, a lei comercial, fica excluído o recurso à lei civil, como parece evidente, de modo que, perdido, por caducidade, o direito de distratar o contrato nos termos previstos no Art.º 471º do C.Com., não pode conseguir-se resultado semelhante por via de acção de anulação, nos termos do C. Civil.
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Fica, assim, porventura, mais clara, a razão porque se disse que o acórdão recorrido não omitiu pronúncia sobre a questão suscitada nos autos, ou que, no limite, está absolutamente prejudicada a averiguação dos requisitos da anulabilidade (Art.º 905º, 913º, 247º e 251º do C.C.).
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Improcedem, pois, todas as conclusões da revista.
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Decisão
Termos em que, acordam neste S.T.J. em negar revista, confirmando o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.
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Lisboa, 6 de Março de 2012.


Moreira Alves (Relator)

Alves Velho

Paulo Sá