Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B2756
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANOS PATRIMONIAIS
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
SALVADOS
BOA-FÉ
EQUIDADE
SEGURADORA
Nº do Documento: SJ200310160027562
Data do Acordão: 10/16/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 982/01
Data: 02/04/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : I. É à seguradora do lesante responsável pelo acidente de viação que incumbe o encargo de alienar os «salvados» da viatura sinistrada, com vista a adregar uma atenuação do prejuízo decorrente das despesas do respectivo «aparcamento», ou seja do respectivo depósito em local apropriado, cabendo-lhe ainda, por sua própria iniciativa e a expensas suas, diligenciar pela sua célere e eficaz «vistoria» e pela respectiva reparação (restauração natural - artº 566º nº 1 do C. Civil ), sempre que esta for possível, e se o respectivo dono a tal não se opuser - artº 562º do C. Civil.
II. Se o lesante não for lesto em tal providenciamento e a demora, por incúria, se avolumar, será ele quem deverá suportar as consequências desse facto, que não o lesado.
III. O lesado não é obrigado a adoptar medidas para defender os interesses do lesante ou da seguradora, pois que tal não lhe é imposto pelo princípio da boa-fé.
IV. Incumbe ao juiz de 1ª Instância na sentença final, que não à prova pericial eventualmente produzida, como prova livre que é (artº 389º do C. Civil) a formulação de um «juízo seguro» acerca da inviabilidade económica, ou melhor, da "excessiva onerosidade" da reparação do veículo.
V. Só a data da decisão de 1ª instância que tal prova cooneste, poderá assim funcionar como certo e inequívoco «dies ad quem» do período temporal relevante para o cálculo do dano, tudo em ordem a que a «decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão» - conf. artº 663º, nº 1, do CPC.
VI. Só há lugar ao recurso à equidade - no nº 3 do artº 566° do C. Civil - se ocorrer impossibilidade absoluta de averiguar o valor «exacto» dos danos, que não a mera falta de elementos para fixação do respectivo «quantum», caso em que é de aplicar a regra do artº 661 °, n° 2, do CPC - relegação para o incidente de liquidação na acção executiva da fixação desse «quantum».
VII. Estando, porém, acertada a existência de um dano indemnizável, que não o valor exacto do prejuízo, o tribunal só deverá deixar de recorrer à equidade para fixar o montante da indemnização se não lhe for possível, por total carência de elementos, determinar os limites dentro dos quais se deva fazer a fixação.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A", com sede ao Largo da L..., Porto, intentou, com data de 29-5-98, acção sumária contra "B-COMPANHIA PORTUGUESA DE SEGUROS SA ", com sede Av da..., Lisboa, pedindo a condenação desta a ver declarada a sua responsabilidade no que toca às consequências do acidente dos autos, designadamente a pagar-lhe a importância global de 2.657.000$00 relativa a prejuízos contabilizados até 1-6-98, acrescida de juros contados à taxa legal de 10% sobre tal importância até integral reparação dos danos sofridos, bem como a custear a reparação integral da viatura DC ou, subsidiariamente, e, se tal reparação não for possível, a entregar um veículo de idênticas características à do acidentado e a pagar as despesas com todos os prejuízos decorrentes da imobilização da viatura desde 1-6-98 até à entrega da viatura devidamente reparada ou substituída, bem como todas as despesas de aparcamento da viatura até à sua integral reparação ou substituição.
Acidente esse ocorrido no dia 17-3-97, pelas 7.00 horas, na Rua da Boavista, na zona de intersecção desta com a Rua Barão de Forrester, e no qual foram intervenientes os veículos DC e VA que entre si embateram, o primeiro um veículo ligeiro de mercadorias de marca "Fiat", modelo "Fiorino Furgone 1.7", propriedade da A., qualidade que mantinha em 17-3-97, e conduzido por C e o segundo um ligeiro de passageiros segurado na Ré na ocasião conduzido por D.

2. Contestou a Ré impugnando em geral os factos alegados, e alegando, em suma e além do mais, que o condutor do veículo de matrícula DC possuía, antes do embate, um valor venal de 500.000$00, os salvados possuíam o valor de 60.000$00 e ainda que o valor da reparação dos danos, que o veículo da A. sofreu, ascende a mais de 1.000.000$00, pelo que se mostra economicamente desaconselhável velar pela respectiva reparação.

3. Por sentença de 9-1-01, o Mmo Juiz da 9ª Vara Cível da Comarca do Porto julgou a acção parcialmente procedente, condenando, em consequência, a Ré a pagar à A. as seguintes quantias:
a)- 17.000$00 a título do reboque do veículo DC;
b)- 440.000$0 pelo valor venal do veículo DC antes do acidente, deduzido do valor dos salvados;
c)- 1.000$00 por cada dia de aparcamento do veículo DC, contado desde 17-3-97 até integral e efectivo pagamento;
d)- 5.000$00 por cada dia contado desde a data do acidente até efectivo e integral pagamento, pelo dano da privação do veículo.
Mais decretou que sobre todas as quantias incidissem juros à taxa de 10% até 16-04-99 e de 7% após esta data e até efectivo e integral pagamento.
No mais, absolveu a Ré do restante parte do pedido.

4. Inconformada com tal sentença, dele veio a Ré "B-COMPANHIA PORTUGUESA DE SEGUROS SA" apelar, tendo o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 4-2-03, concedido parcial provimento à apelação, revogando parcialmente a sentença recorrida, e em consequência:
- no respeitante à quantia fixada pelo aparcamento do veículo DC, condenando agora a Ré a pagar à A. a quantia de 1.000.000$00 por cada dia contado desde a data do acidente - 17-3-97 - e até ao dia 18-4-00 - o que perfaz o montante total de 1.127.000$00;
- no respeitante à quantia fixada pelo dano da privação do veículo, condenando agora a Ré a pagar à A. a quantia de 3.000$00 por cada dia contado desde a data do acidente até efectivo e integral pagamento.
No mais, manteve esse acórdão o decidido em 1ª Instância.

5. Inconformada com tal decisão, dela veio a A. recorrer de revista para este Supremo Tribunal, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:
1ª- Atentas a inércia da ora recorrida, as suas obrigações, inerentes à qualidade de lesante, era à lesante que incumbia a remoção dos salvados sendo que nunca tal obrigação poderá ser imputada a qualquer lesado, aí se incluindo a ora recorrente;
2ª- A ora recorrente não pode ser responsabilizada por uma situação criada única e exclusivamente pela má actuação da própria recorrida, pelo que não pode considerar-se que a mesma contribuiu para o agravamento dos prejuízos a partir do momento em que, tendo conhecimento da inviabilidade da reparação do seu veículo, não procedeu à venda dos salvados nem cuidou de os remover da oficina onde se encontravam depositados há cerca de dois anos a aguardar peritagem a efectuar pela recorrida, oficina essa que se encontrava a cobrar 1.000$00/dia pelo seu aparcamento, sendo que, à data da perícia, já se encontrava em débito a quantia de 5.621,45€;
3ª- Salvo melhor opinião, não é exigível a qualquer lesado, aqui se incluindo a recorrente, que disponha de tão avultada soma quando se encontra a sofrer prejuízos patrimoniais há cerca de dois anos e, quando a peritagem poderia muito bem ter sido efectuada logo após a data do sinistro pelos serviços da recorrida, tal como é procedimento normal das seguradoras;
4ª- Deve assim ser reposta a decisão proferida pelo tribunal de 1ª instância, revogando-se, em conformidade, o douto acórdão recorrido;
5ª- Atenta a matéria de facto dada como provada, que ora se dá por integralmente reproduzida, é possível concluir que, em virtude da privação do seu veículo, a recorrente sofreu graves prejuízos, os quais, salvo melhor opinião, devem ser ressarcidos à razão de 5.000$00/dia, pelo que deverá ser revogado o douto acórdão recorrido, repondo-se a inicial decisão no que a esta matéria diz respeito;
6ª- O douto acórdão recorrido violou o disposto nos artºs 483º, 562º, 564º e 566º, entre outros, todos do C. Civil, devendo ser reposto o decidido pela 1ª instância.

6. Contra-alegou a Ré "B-COMPANHIA PORTUGUESA DE SEGUROS SA" no recurso de revista interposto pela A. "A", formulando, por seu turno, as seguintes conclusões
1ª- A recorrida conforma-se com o douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto quanto aos fundamentos e ao valor da indemnização atribuída à recorrente a título de aparcamento do seu veículo;
2ª- A recorrida B não é a proprietária dos salvados e, como tal, não tem legitimidade para vender ou proceder ao levantamento dos salvados;
3ª- No que se refere à indemnização pela privação do veículo do sinistrado, o montante de 3.000$00/dia é manifestamente excessivo, face à matéria de facto provada;
4ª- Por outro lado não pode deixar de ser ponderado que pela perda de um veículo no valor de 500.000$00 (mas com os salvados a valerem 60.000$00 e portanto um prejuízo de 460.0000$00) a recorrente pretende receber uma indemnização de cerca de 7.000.000$00;
5ª- Qualquer montante compensatório pela privação do uso deve ser substancialmente mais baixo, considerado o baixo valor real do veículo - 500.000$00 - e o seu curto período de vida útil.

7. No recurso subordinado de revista interposto pela Ré veio a mesma formular as seguintes conclusões:
1ª- Os factos provados, salvo o devido respeito por opinião contrária, não permitem fixar uma indemnização pelo recurso à equidade;
2ª- A recorrida teve dificuldades no abastecimento e no fornecimento, mas não deixou de comprar produtos, não diminuíram as vendas, não perdeu clientes;
3ª- Na verdade, não alegou qualquer prejuízo concreto, nem sequer alegou não ter outros veículos com os quais podia continuar a desenvolver normalmente a sua actividade;
4ª- Se não houver elementos para fixar o montante da indemnização, o tribunal deve condenar no que se liquidar em execução de sentença, sendo que esta solução permite à recorrida demonstrar com exactidão quais os danos que efectivamente sofreu;
5ª- A atribuição da indemnização no caso em apreço, e face aos factos provados, deve depender da prova da efectiva perda de receitas ou da prova de um acréscimo de despesas motivado pela privação do uso, sob pena de a recorrida obter um enriquecimento ilegítimo à custa da recorrente;
6ª- Acresce que, caso assim se não entenda, o montante de 3.000$0/ dia é manifestamente excessivo face à matéria de facto provada;
7ª- Qualquer montante compensatório pela privação do uso deve ser substancialmente mais baixo, considerado o baixo valor real do veículo - 500.000$00 e o seu curto período de vida útil;
8ª- O douto acórdão recorrido violou o disposto nos artºs 483º, 562º, 564º, 565º e 566º do C. Civil e o artº 661º, nº 2 do CPC.
Deve relegar-se para execução de sentença a indemnização a atribuir à autora/recorrida pela privação do uso do veículo sinistrado e subsidiariamente, caso assim se não entenda, ser fixado um montante compensatório pela privação do uso substancialmente mais baixo.

8. Contra-alegou a A. nesse recurso subordinado propugnando a improcedência do mesmo.

9. Em matéria de facto relevante, deu a Relação como assentes os seguintes pontos:
1º- A A é proprietária do veículo ligeiro de mercadorias de matrícula DC e de marca "FIAT", modelo "Fiorino Furgone 1.7";
2º- À data de 17-3-97, a A. já era proprietária de tal veículo;
3º- No dia 17-3-97, pelas 7.00 horas, na Rua da Boavista, na zona de intersecção desta com a Rua Barão de Forrester, deu-se um embate entre os veículos DC e VA;
4º- O veículo de matrícula DC era, na ocasião, conduzido por C e o VA era conduzido por D;
5º- A Rua da Boavista é de sentido único, descendente;
6º- Atento esse sentido, do lado direito entronca nesta a Rua Barão de Forrester que tem duplo sentido;
7º- Na mesma zona, do lado esquerdo, tem o seu início a Rua de Cedofeita que se prolonga até à Praça Carlos Alberto;
8º- A Rua de Cedofeita é de sentido único, no sentido Boavista - Carlos Alberto, e constitui o prolongamento da Rua Barão de Forrester, após o terminus desta na Rua da Boavista;
9º- O cruzamento da Rua da Boavista com o terminus da Rua Barão de Forrester é regulado por sinais de semáforos que se encontram colocados no terminus da Rua Barão de Forrester e na Rua da Boavista, junto à confluência desta com aquela;
10º- Em tais circunstâncias de tempo e lugar, seguia o DC pela Rua Barão Forrester, no sentido Forrester - Cedofeita enquanto que o VA descia a Rua da Boavista;
11º- Do embate dos veículos anteriormente referidos resultaram amolgadas as partes laterais e traseiras do DC que, desde logo, o impediram e impedem de circular;
12º- O DC encontra-se ainda por reparar, não tendo a Ré ordenado a peritagem e vistoria do veículo, nem a respectiva reparação;
13º- A Ré não providenciou pela substituição do DC por outro veículo, apesar de a A. a ter instado a fazê-lo;
14º- O proprietário do VA havia transferido para a Ré a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pela circulação de tal veículo, por contrato titulado pela apólice nº 00347469 - doc de fls 38, que aqui se dá por inteiramente reproduzido;
15º- O condutor do veículo DC, quando chegou ao terminus da Rua Barão de Forrester, deparou com o sinal vermelho dos semáforos;
16º- Razão pela qual estancou a marcha da viatura ainda em Barão Forrester;
17º- Quando tal sinal se comutou para a luz verde, o condutor do veículo DC avançou no cruzamento, dirigindo a viatura para a Rua de Cedofeita;
18º- Depois de uma viatura ter avançado;
19º- Nessa altura, o sinal do semáforo implantado na Rua da Boavista, à entrada da confluência com a Rua Barão de Forrester, estava vermelho;
20º- O condutor do veículo VA não parou a tal sinal;
21º Passando pelo semáforo quando este estava vermelho para si;
22º- E entrou na zona de intersecção das duas vias, por onde, na altura passava o DC;
23º- Com o sinal verde na Rua Barão de Forrester;
24º- O veículo DC encontrava-se a meio da Rua da Boavista quando foi embatido na parte lateral esquerda pela frente do veículo VA;
25º- A colisão dos veículos deu-se na zona de intersecção das vias referidas;
26º- O veículo VA provocou a projecção do veículo DC contra uma viatura imobilizada junto à berma esquerda da Rua da Boavista;
27º- O veículo VA era conduzido por D;
28º- O veículo DC foi rebocado e depositado em oficina onde ainda se encontra por reparar;
29º- Em tal reboque dispendeu 17.000$00;
30º- A A. dedica-se ao comércio de retalho, desenvolvendo a actividade de mercearia;
31º- A A. utilizava o veículo DC para se abastecer de produtos e víveres que depois revendia no seu estabelecimento;
32º- Deslocava-se a mercados abastecedores e centros grossistas com tal viatura;
33º- Com o veículo DC procedia a entregas e fornecimentos a clientes;
34º- A A., desde o acidente, tem tido dificuldades de abastecimento e fornecimentos o que prejudica o seu giro comercial;
35º- Por vezes, tem-se socorrido de transportes alternativos mais onerosos;
36º- A oficina referida no anterior nº 28º vai cobrar despesas de aparcamento de 1.000$00/dia;
37º- No dia 1-6-98 o veículo já estava aparcado há 440 dias;
38º- O veículo da A. tinha, antes do embate, um valor venal de 500.000$00;
39º- Os salvados têm o valor de 60.000$00;
40º- O valor da reparação dos danos que o veículo da A. sofreu ascende a mais de 1.000.000$00.
Passemos agora ao direito aplicável.

10. Âmbito das revistas principal e subordinada.
Nada a sindicar quanto à «cinemática» do acidente, ao facto ilícito, à culpa exclusiva do agente, ao dano e ao nexo de causalidade entre o facto e o dano como pressupostos necessários da obrigação de indemnizar a cargo da Ré seguradora "B-COMPANHIA PORTUGUESA DE SEGUROS SA".
Apenas vêm controvertidos os valores indemnizatórios parcelares atribuídos a título de aparcamento da viatura sinistrada (respectivos salvados) e a título de paralisação/privação do uso dessa mesma viatura.

11. Danos resultantes do aparcamento da viatura sinistrada.
A este primeiro título - de aparcamento da viatura - a 1ª Instância condenou a Ré pagar à A. a quantia de 1.000$00 por dia desde a data do acidente até à data da reparação do veículo, valor esse efectivamente cobrado pela empresa depositária.
Porém, a Relação entendeu que tal indemnização só seria devida desde a data do evento até 18-4-00, data esta última na qual os peritos acabaram por concluir pela inviabilidade económica dessa reparação; e daí que esse tribunal de recurso haja reduzido tal valor indemnizatório para 1.127.000$00, correspondente ao período de 1.127 dias que mediou entre a data do evento (17-3-97) até essa data de 18-4-00, não considerando, pois, o período compreendido entre essa data de 18-4-00 e a data de 9-1-01 (esta última data da sentença de 1ª instância).
Nas suas alegações de recurso - e como já deixámos atrás dito - insurge-se a A. A contra a "redução" da indemnização a esse título operada pela Relação.
E isto por, em seu entender, não pode ser responsabilizada por uma situação criada única e exclusivamente pela má actuação da própria recorrida (seguradora), não podendo considerar-se que a recorrente contribuiu para o agravamento dos prejuízos a partir do momento em que, tendo conhecimento da inviabilidade da reparação do seu veículo, não procedeu à venda dos salvados nem cuidou de os remover da oficina onde se encontravam depositados há cerca de dois anos a aguardar peritagem a efectuar pela recorrida, oficina essa que se encontrava a cobrar 1.000$00/dia pelo seu aparcamento, sendo que, à data da perícia, já se encontrava em débito a quantia de 5.621,45€.
Não lhe era pois exigível - como de resto a qualquer lesado - que dispusesse de tão avultada soma quando se encontrava a sofrer prejuízos patrimoniais há cerca de dois anos e, quando a peritagem poderia muito bem ter sido efectuada logo após a data do sinistro pelos serviços da recorrida, tal como é procedimento normal das seguradoras.
Deve, assim, ser reposta a decisão proferida pelo tribunal de 1ª instância, revogando-se em conformidade o douto acórdão recorrido;
Já a Ré seguradora, na sua contra-alegação, se conforma com o valor indemnizatório arbitrado pela Relação, aduzindo em abono da sua tese que ela Ré não é proprietária dos salvados (a propriedade destes é da A. ora recorrente) e, como tal, não possui a Ré recorrida legitimidade para vender ou proceder ao levantamento dos salvados.
Há, todavia, que dizer, a este respeito - na esteira do considerado pela Relação, mas em contrário do sustentado pela Ré seguradora - que não era sobre a A, na qualidade de lesada, que incumbia o encargo de alienar os «salvados» da sua viatura DC, com vista a adregar uma atenuação do prejuízo decorrente das despesas do respectivo «aparcamento», ou seja do respectivo depósito em local apropriado.
É, na realidade, inquestionável que à A. assistia o direito à reparação do seu veículo por iniciativa e a expensas da Ré seguradora; era, pois, a esta que incumbia diligenciar pela célere e eficaz pela «vistoria» e pela reparação do veículo (restauração natural - artº 566º nº 1 do C. Civil), dever que comprovadamente não cumpriu.
Constitui, de resto, jurisprudência corrente dos tribunais superiores a de que incumbe aos responsáveis pelos acidentes de viação a obrigação de efectuarem ou mandarem providenciar pela reparação de que o veículo sinistrado careça, sempre que possível e se o respectivo dono a tal não se opuser, tudo por força do disposto no artº 562º do C. Civil. Se o lesante não for lesto «em tal providenciamento e a demora, por desleixo, se avoluma... será o mesmo lesante que haverá de suportar as consequências daí decorrentes, que não o lesado» (conf. v.g, entre muitos outros, o Ac do STJ de 8-11-84, in BMJ nº 341º, pág 418).
Considera a Relação que tal dever só cessaria «no momento em que, segundo as regras da experiência comum e de harmonia com os ditames da boa-fé pudesse formular-se um juízo seguro no sentido de que não era economicamente viável a reparação do veículo sinistrado» nos termos e para os efeitos do nº 1, "in fine" do artº 566º do C. Civil.
Mas há que dizer a, talho de foice, e na peugada do decidido no Ac deste Supremo Tribunal datado de 7-7-99, in CJSTJ, Tomo III, pág 17, que "o lesado não é obrigado a adoptar medidas para defender os interesses do lesante ou da seguradora, pois que tal não lhe é imposto pelo princípio da boa-fé".
Quem pois de direito para formular esse tal «juízo seguro» acerca da inviabilidade económica, ou melhor da "excessiva onerosidade" da reparação do veículo:simples prova pericial eventualmente adquirida no processo, ou o "dictat" judicial emitido na sequência e em conformidade com a prova produzida?
Temos para nós que só a data da decisão de 1ª instância que tal prova cooneste poderá funcionar como certo e inequívoco «dies ad quem» do período temporal relevante para o cálculo do dano. E isto desde logo porque a força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal (artº 389º do C. Civil).
Como assim, não deve tal cômputo indemnizatório ser feito até apenas até à data - meramente incidental e aleatória - da realização da prova pericial eventualmente produzida no processo mas sim até à data da sentença de 1ª instância, tudo em ordem a que a «decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão» - conf. artº 663º, nº 1 do CPC.
E daí que assista pela razão à A. quando, neste particular domínio, solicita a revogação do acórdão recorrido e subsistência do decidido em 1ª instância.

12. Indemnização por privação do uso do veículo.
A este título parcelar, o Mmo Juiz de 1ª Instância havia condenado a Ré a pagar à A. a indemnização de 5.000$00 por dia contado desde a data do acidente (17-3-97) até efectivo e integral pagamento, mas a Relação reduziu tal montante para 3.000$00 por dia por igual período.
Mas a Ré seguradora "B - Companhia de Seguros SA" - insurge-se contra tal fixação, considerando tal montante como manifestamente excessivo, propugnando antes a relegação para execução de sentença da respectiva liquidação, ou, caso assim se não entenda, a fixação de um montante compensatório substancialmente mais baixo.
Ora, no que tange a este último pedido subsidiário, deve desde já dizer-se que não pode arvorar-se em critério aferidor decisivo do cálculo indemnizatório o «baixo valor real do veículo» sinistrado e o seu «curto período de vida útil» como defende a Ré seguradora.
E também quanto ao pedido «principal» de liquidação incidental em sede de execução de sentença não assiste razão à recorrente.
Segundo a teria da causalidade adequada plasmada no artº 563º do C. Civil - na formulação negativa proposta por Enneccerus-Lhemann - o facto (condição) só deixará de ser causa do dano se, segundo a sua natureza geral, houver sido de todo indiferente para a produção desse mesmo dano e só se tornou condição dele em virtude da ocorrência de circunstâncias extraordinárias.
Deste modo, o nexo de causalidade entre o facto e o dano desempenha uma dupla função de pressuposto da responsabilidade civil e de medida de obrigacão de indemnizar (conf. Almeida Costa, in "Direito das Obrigações ", 9ª ed., pág 555).
Neste âmbito reporta-se o nº 1 do artº 564º do C. Civil aos chamados danos emergentes - os prejuízos sofridos, ou seja a diminuição do património (já existente) do lesado - e aos chamados lucros cessantes, isto é aos ganhos que se frustraram, aos prejuízos que lhe advieram por não ter aumentado, em consequência da lesão, o seu património - conf. Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol I, 4ª ed., pág 579.
O artº 566° nº 3 do C. Civil ao estatuir que "se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos (o tribunal) julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados, apenas pretende regular os casos em que exista impossibilidade absoluta de averiguar o valor «exacto» dos danos e não os de falta de elementos para fixação do respectivo «quantum», caso em que é de aplicar a regra do artº 661°, n° 2, do CPC - relegação para o incidente de liquidação na acção executiva a fixação desse «quantum» (se não houver elementos para que tal se faça na acção declarativa).
Na esteira, entre outros, do Ac do STJ de 10-7-97 in BMJ nº 469º, pág 524 "na hipótese de obrigação de indemnização, estando acertada a existência de um dano indemnizável, mas não o montante exacto do prejuízo, o tribunal só deverá deixar de recorrer à equidade para fixar o montante da indemnização se nem sequer lhe for possível, por total carência de elementos, determinar os limites dentro dos quais se deva fazer a fixação".
O recurso à equidade contemplado no nº 3 do artº 566º do C. Civil reclama, por isso, que se encontre apurado nos autos, por um lado, um mínimo de elementos sobre a natureza dos danos e sobre a sua extensão que permita ao julgador computá-los em valores próximos daqueles que realmente lhe correspondam, e por outro, que não se torne viável averiguar o valor exacto (matemático) dos danos.
Ora, ficaram demonstrados danos passíveis da obrigação de indemnizar e de quantificação com recurso ao prudente arbítrio do julgador, isto é segundo critérios de equidade. Assim:
- o veículo sinistrado, de matrícula DC - um «furgão» com 1697 cm3 de cilindrada - encontra-se ainda por reparar por inércia da Ré seguradora, a qual não providenciou oportunamente, quer pela peritagem/vistoria, quer pela sua substituição por outro veículo apesar de para tanto instada pela A;
- a A. dedica-se ao comércio de retalho, desenvolvendo a actividade de mercearia, utilizando o veículo sinistrado para se abastecer de produtos e víveres que depois revendia no seu estabelecimento, deslocando-se, para o efeito, a mercados abastecedores e centros grossistas com essa viatura, com a qual procedia a entregas e fornecimentos a clientes;
- a A. desde a data do acidente tem sentido dificuldades de abastecimento e fornecimentos que prejudicam o seu giro comercial;
- tem-se a A. socorrido de transportes alternativos para o exercício dessas suas actividades.
Deste modo, não se mostra exagerado, antes se mostrando criteriosa e equilibrada, a fixação (pela Relação) em 3.000$00 diários, da indemnização por estes danos (lucros cessantes por não ter mantido o seu próprio veículo em circulação) contados os mesmos desde a data do acidente até efectivo e integral pagamento.
Com o que improcedem, nesta parte, a revista da A. e a revista subordinada da Ré.
13. Decisão:
Em face do exposto, decidem:
- conceder parcialmente a revista da A, revogando, em consequência, o acórdão recorrido na parte em que tal aresto limitou as despesas de aparcamento da viatura sinistrada até à data do relatório pericial datado de 18-4-00, assim julgando subsistente a decisão de 1ª instância quanto ao respectivo cômputo indemnizatório parcelar;
- negar as revistas da A. e (subordinada) da Ré quanto ao valor indemnizatório atribuído pela Relação a título de lucros cessantes por privação do uso do veículo.
Custas pela A. e pela Ré, no Supremo e nas instâncias, em função das respectivas sucumbências.

Lisboa, 16 de Outubro de 2003
Ferreira de Almeida
Abílio Vasconcelos
Duarte Soares