Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
26118/10.3T2SNT.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GREGÓRIO SILVA JESUS
Descritores: DOAÇÃO
ACEITAÇÃO DE DOAÇÃO
TRADIÇÃO DA COISA
FORMA ESCRITA
CONTA CONJUNTA
CONTA SOLIDÁRIA
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 06/25/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / CONTRATOS EM ESPECIAL / DOAÇÃO.
Doutrina:
- Antunes Varela, in RLJ, Ano 103.º, pág. 91; in RLJ, Ano 116.º, pág. 61.
- Baptista Lopes, Das Doações, Almedina, 1970, págs. 27/28, 44.
- Cunha Gonçalves, no Tratado de Direito Civil, VIII, pág. 52
- Menezes Cordeiro, A Posse: perspectivas dogmáticas actuais, Almedina, 2000, pág. 107.
- Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III – Contratos em Especial, 7.ª ed., págs. 193/196, 207/209.
- Oliveira Ascensão, Direitos Reais, Almedina, 1978, págs. 235/238, 257.
- Penha Gonçalves, Curso de Direitos Reais, 2ª ed., pág. 273.
- Pessoa Jorge, in BMJ 124.º, págs. 238, 330/331.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, Vol. II, 4ª ed., págs. 240, 246/247, 257, 269
- Santos Justo, Direitos Reais, Coimbra Editora, 4ª ed., pág. 197/198.
- Vaz Serra, na RLJ, Ano 110.º, págs. 207, 208 e 211/214
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 220.º, 1.ª PARTE, 342.º, N.º2, 408.º, 410.º, N.º2, 483.º, 805.º, 940.º, N.º1, 946.º, 947.º, N.º2, 945.º, 951.º, N.º2, 954.º, AL. B), 963.º, 1263.º, AL. B).
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGO 5.º, N.º3.
LEI N.º 41/2013, DE 26/06: - ARTIGO 7.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 16/07/81, 21/11/06, PROC. Nº 06A3608, 29/06/10, PROC. Nº 476/99 P1.S1 E DE 1/07/10, PROC. Nº 8091/04.9TBMAI.S1, NO IGFEJ.
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ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA Nº 7/97, DE 25/02/97, PUBLICADO NO DR Nº 83/97, SÉRIE I-A, DE 9/04/97.
Sumário :
I - O contrato de doação constitui um negócio jurídico bilateral receptício, que só fica perfeito, ressalvada a situação prevista no n.º 2 do art. 951.º do CC, com a aceitação pelo donatário. Até essa aceitação não existe senão uma mera proposta de doação.

II - A aceitação não tem de ser expressa, pode ser tácita, sendo como tal havida a “tradição” para o donatário, em qualquer momento, da coisa móvel doada, ou do seu título representativo, o que é imperioso é que ocorra durante a vida do doador.

III - Não havendo “tradição”, a doação está sujeita a forma escrita, forma ad substantiam, necessária à validade do negócio de acordo com o princípio geral contido no art. 220.º, 1.ª parte do CC.

IV - A “tradição” é uma forma de conferir a alguém a posse de determinado bem, o antigo possuidor demite-se da sua situação e entrega a coisa ao novo possuidor, ao adquirente, constituindo-o na situação de facto própria da posse. Desdobra-se, como tal, em dois momentos, na cessação da relação material com a coisa por parte do primeiro possuidor e no seu empossamento por parte do segundo (accipiens) (art. 1263.º, al. b), do CC).

V - O simples facto de existirem contas bancárias conjuntas, na modalidade de solidárias, que se caracterizam por poder ser livremente movimentadas por qualquer dos seus titulares, não significa, só por si, que tenha havido “tradição” das respectivas quantias entre os seus contitulares. Importa apurar se foi intenção do titular que depositou o dinheiro que este passasse a ser propriedade do contitular, podendo dele dispor como entendesse.

VI - Tendo-se provado que a falecida destinava o montante, sua propriedade, depositado em conta bancária conjunta a ser gasto quando precisasse para fazer face às suas necessidades, e só, depois, o que restasse e não fosse necessário dava à ré, é óbvio que não partilhou desde logo a propriedade dessa verba com a outra titular, não se mostra que tenha sido o “animus donandi” que conduziu à abertura das contas colectivas e solidárias.

VII - Não pode ter o significado de “entrega” a mera transferência da verba depositada no banco para a conta pessoal da recorrente e do marido, sem que se tenha apurado haver correspondido tal movimento bancário a determinação e execução material da falecida RV, ou execução da recorrente por ordem daquela, quando se sabe que a recorrente como titular solidária da conta liquidada a poderia ter movimentado só por si.

VIII - Assim sendo, da factualidade provada o que resulta é ter a RV feito uma promessa de doação verbal à recorrente/ré.

IX - Tendo o autor logrado provar que todo o dinheiro existente nas contas solidárias de que eram titulares a falecida RV e a recorrente/ré era pertença daquela, incumbia à recorrente provar que a transferência e levantamento de dinheiro ocorreram de acordo com a vontade da falecida, ou seja, por ela realizados ou por si a mando dela (art. 342.º, n.º 2), ónus que a recorrente não logrou satisfazer.

X - Destarte, a recorrente não fez prova da doação a seu favor, porquanto não chegou a ocorrer “tradição” da coisa, nem ter revestido a forma escrita.
Decisão Texto Integral:

                    Revista nº26118/10.3T2SNT.L1.S1[1]



    Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


           I— RELATÓRIO    

AA, residente na Rua ..., nº …, …, ..., instaurou a presente acção com processo ordinário contra BB, residente na Rua ..., nº …, ...º andar, ..., pedindo que se reconheça o autor como único herdeiro de CC, e, consequentemente, único proprietário das quantias depositadas na conta bancária nº ... aberta na agência da C.. de ..., e a ré condenada a repor ao acervo hereditário a quantia que levantou acrescida de juros à taxa legal.

Alegou, em síntese, que em 7/10/2009 faleceu CC, casada em 2ªs núpcias com o autor, fazendo parte do acervo hereditário a conta bancária acima identificada, cujo saldo à data do óbito era de 1.250,66€.

Em 2005, na sequência da venda de um imóvel a falecida havia depositado na referida conta bancária a quantia de 72.623,50€, e na mesma conta era depositada mensalmente a pensão de reforma que auferia no montante de 340,00€.

Atento o seu estado de saúde, em Junho de 2008, o autor instalou a esposa num lar, onde permaneceu até ao seu falecimento, sendo que à data da sua entrada para o lar a referida conta bancária apresentava um saldo de 78.838,70€.

A ré, que era a 2ª titular da conta, na sequência de pedido da CC, sua tia, de Junho de 2008 a Setembro de 2009 levantou várias quantias num total de 22.300,00€ para prover às necessidades daquela, pelo que à data da sua morte deveria existir na conta um saldo de cerca de 56.538,74€, inexistente por a ré o ter levantado.

O dinheiro levantado pertence à herança da falecida CC, devendo a ré restitui-lo.

Contestou a ré por excepção, invocando ser parte ilegítima na acção, por estar desacompanhada do marido, existir erro na forma de processo por ao pedido corresponder processo especial de inventário, e ter ocorrido uma doação da falecida à ré, pelo que à data do óbito aquele dinheiro já não estava na titularidade da falecida. Por impugnação, alegou ter com esse dinheiro pago várias despesas da CC e nunca ter levantado dinheiro contra a vontade da mesma, concluindo por pedir o “indeferimento liminar” da acção, ou, assim não se entendendo, a sua improcedência e a condenação do autor como litigante de má fé, em indemnização a favor da ré no montante de 25.000,00€.

O autor replicou controvertendo as excepções invocadas e pugnando pela absolvição do pedido de condenação como litigante de má fé.

No despacho saneador foram julgadas improcedentes as excepções de ilegitimidade e de erro na forma do processo, e procedeu-se à selecção da matéria de facto assente e da base instrutória, com reclamação da ré que não foi atendida.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu o autor do pedido de condenação como litigante de má fé.

Inconformado, o autor apelou dessa decisão de improcedência, com êxito, uma vez que o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 17/12/14, por unanimidade, revogou a decisão recorrida e julgou a acção parcialmente procedente, condenando a ré a restituir ao acervo hereditário de CC a quantia de 54.618,36€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde 7/10/2009 e vincendos até integral pagamento.

Foi a vez da ré mostrar o seu desacordo recorrendo de revista. Nas alegações que apresentou formula as seguintes conclusões:

A) Nestes autos vem o A. pedir que seja reconhecido como herdeiro de CC e ainda que seja a R. condenada a restituir-lhe a quantia de 56.538,74€ por ser um bem da herança daquela.

B) A R. contestou a restituição de qualquer montante pecuniário porque não o tem, tendo sido usado pela tia CC e ainda porque a referida Tia lhe doou o dinheiro que tinha nas contas 601 e 500 que tinha na C…..

C) A primeira instância declarou improcedente o pedido e absolveu a R. daquele por ter sido provado que houve efectivamente uma doação da Tia CC à sua sobrinha, aqui R., que se consubstanciou numa primeira fase na co-titularidade de contas bancárias solidárias e, após o casamento da tia CC com o aqui A. e o internamento desta no Lar da Santa Casa da Misericórdia esse dinheiro foi levantado, doado e gerido pela R., que pagou todas as despesas da Tia.

D) A primeira instância considerou ainda que se a posse do dinheiro por parte da R durante aqueles 16 meses, tivesse sido contra a vontade da tia CC, esse facto teria de ser provado pelo A. O que não foi feito.

E) Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa foi proferido acórdão que, pese embora não altere a matéria de facto, declara procedente a acção e condena a R. a restituir os 54.618,36€, acrescido de juros de mora à taxa legal, vencidos desde 07/10/2009.

F) Entende o Tribunal recorrido que não se verifica uma verdadeira doação por análise do regime jurídico das contas solidárias e ainda porque não estando determinado o montante da doação, esta terá sido uma promessa-doação que não chegou a ser concretizada por não ter existido tradição.

G) Com o que a R., aqui recorrente, se não conforma e apresenta o presente recurso.

H) À data da morte da falecida CC (07/10/2009), esta era apenas co-titular de uma conta (500 da C…) com o saldo de 625,33€, solidária com a R. BB (29 dos Factos Assentes).

I) Tinha existido, em tempos, uma conta que fora liquidada, 16 meses antes do óbito (Junho de 2008), e que teria então cerca de 54.000,00€ e de que era co-titular em regime de conta solidária a R. e a tia CC (conta 161 da C…).

J) O A. pede a restituição daquele montante por ser herdeiro da falecida co-titular. É à data do óbito que se abre a sucessão. Pelo que, e nos termos do art. 2.031.° do C.C., o A. não tem direito a qualquer valor pretérito.

L) Não está provado qual o montante que a R. tenha ficado para si, nem como foi usado o dinheiro.

M) A R. geriu o referido dinheiro em proveito da tia, durante aqueles 16 meses anteriores à morte, entregando à tia e ao marido, aqui A., tudo o que lhe era solicitado.

N) Está provado e aceite pelo A. que durante os 16 meses em que a tia esteve no Lar da Misericórdia foi entregue pelo menos 22.300,00€ (13 dos Factos Assentes).

O) Foi dado por provado pela 1ª Instância que o referido dinheiro foi dado à aqui R. BB pela Tia CC, que sempre a preferiu e ajudou em vida.

P) A 2ª Instância, sem apreciar as provas produzidas, nem novas provas, altera a matéria de facto concluindo que existe um contrato promessa de doação sem que haja factos que sustentem tal entendimento.

Q) O acórdão recorrido alega não ter existido tradição do bem doado, quando está provado que o dinheiro estava totalmente na posse da donatária desde Junho de 2008, isto é, 16 meses antes do óbito da Tia CC.

R) O acórdão recorrido omite que durante 16 meses a R. entregou, daquele dinheiro, vários milhares de euros (pelo menos 23.600,00 €) à doadora e seu marido, aqui A.. O A. sabia da vontade da Tia CC naquela doação.

S) O acórdão recorrido entende que, por não estar determinado o valor doado (sujeito às necessidades da doadora), estamos perante uma promessa. O que é um critério errado face à lei, e à doutrina, que reconhecem a doação sujeita a termo (art. 963.° do C.C.) como doação.

T) Está provado na matéria de facto assente que a tia CC, em vida, doou à BB (A.) o dinheiro que tinha naquelas contas bancárias, que foi usado para proveito da própria doadora e caso existisse restante seria para a BB.

U) Não se provou que a R. tivesse usado ou movimentado o dinheiro contra vontade da tia.

V) O acórdão recorrido condena na restituição de montante que não está provado ter ficado na posse da R. BB.

X) O acórdão recorrido condena no pagamento de juros de mora, sem que a putativa devedora tivesse sido interpelada ou, o montante em dívida liquidado (art. 805.° do C.C.).

Z) Ao decidir pela procedência da acção e condenando a R. no pagamento de 54.618,36 € acrescida de juros de mora à taxa legal desde 07/10/2009, o Tribunal "a quo" violou o disposto nos artºs 2.031.°, 940.°, 945.°, 947.°, 954.°, 805.° e 342.° todos dos Código Civil e ainda o disposto no art. 662.° do C.P.C.

A autora juntou um Parecer publicado na Revista da Ordem dos Advogados.

O recorrido contra-alegou pugnando pela manutenção do decidido.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.



O objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, salvo as questões de conhecimento oficioso, nos termos dos artigos 635.º, nº 4 e 639.º, nº 1, do Novo Código de Processo Civil[2] – por diante NCPC. São as seguintes as questões suscitadas:

a) Se houve doação;

b) Se é devida a condenação em juros de mora, e desde quando.



                                             II-FUNDAMENTAÇÃO

DE FACTO

No Acórdão recorrido vem tida por assente a seguinte matéria de facto:

1. No dia 7 de Outubro de 2009, faleceu CC, com última residência habitual na Rua ... nº …, em ..., no estado de casada com o Autor AA (certidão de fls. 13- 16). (alínea A dos factos assentes)

2. Faleceu sem deixar descendentes, nem ascendentes e sem testamento ou outra disposição de última vontade, tendo deixado como único e universal herdeiro o seu cônjuge, ora Autor (certidão de fls. 17-20). (alínea B dos factos assentes)

3. Em 12 de Abril de 2005, a referida CC, então no estado de viúva de DD, e EE, esta por si e na qualidade de procuradora e em representação de FF, declararam vender pelo preço de noventa e dois mil e quinhentos euros, o prédio urbano sito no lugar do ..., freguesia e Concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, e descrito na Conservatória de Registo Predial de ... sob o número seis mil quinhentos e vinte, que pertencia à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do referido DD (certidão de fls. 22-29 e documento de fls. 30-32). (alínea C dos factos assentes)

4. A referida CC era pensionista e auferia uma reforma de cerca de 340€. (alínea D dos factos assentes)

5. O Autor, à data da propositura da acção, tinha 84 anos de idade e, em Abril de 2005, tinha cerca de 80 anos de idade (certidão de fls. 94-96). (alínea E dos factos assentes)

6. O Autor havia casado civilmente com a referida CC em 17 de Abril de 2008, no regime imperativo da separação de bens (documentos de fls. 30-32 e 94- 96). (alínea F dos factos assentes)

7. Nessa data e desde há largos anos, o Autor e a referida CC já viviam juntos como se de marido e mulher se tratassem. (alínea G dos factos assentes)

8. À data, a referida CC já se encontrava muito doente. (alínea H dos factos assentes)

9. Estando quase sempre acamada e impossibilitada de se deslocar, apesar de ainda lúcida. (alínea I dos factos assentes)

10. O estado de saúde da falecida foi-se agravando e como o autor não podia cuidar daquela em condições, instalou-a no Lar da Santa Casa da Misericórdia de .... (alínea J dos factos assentes)

11. A referida CC entrou no Lar em Junho de 2008 e esteve aí durante 16 meses, até à data do seu falecimento. (alínea L dos factos assentes)

12. Tempo durante o qual a Ré levantava mensalmente uma quantia, de conta bancária solidária de que era titular com a CC, para fazer face às despesas desta. (alínea M dos factos assentes)

13. A Ré levantou dessa conta um total de 22.300€, designadamente:

- em Junho de 2008, 1.500€;

- em Julho de 2008, 1.500€;

- em Agosto de 2008, 2.000€;

- em Setembro de 2008, 1.400€;

- em Outubro de 2008, 1.600€;

- em Novembro de 2008, 1.200€;

- em Dezembro de 2008, 1.200€;

- em Janeiro de 2009, 1.100€;

- em Fevereiro de 2009, 1.100€;

- em Março de 2009, 1.200€;

- em Abril de 2009, 1.200€;

- em Maio de 2009, 1.400€;

- em Junho de 2009, 1.400€;

- em Julho de 2009, 1.400€;

- em Agosto de 2009, 1.700€;

- em Setembro de 2009, 1.400€. (alínea N dos factos assentes)

14. Um dia depois da data da escritura referida em C), CC depositou na conta da Caixa … nº … um cheque no montante de 72.623,50 €. (art. 1.º da base instrutória)

15. Após o falecimento da sua irmã (mãe da ré) CC colocou a ré como 2ª titular de duas contas solidárias – conta nº … e nº …, ambas da Caixa …., balcão de .... (art. 2.º da base instrutória)

16. As referidas contas eram solidárias. (art. 3.º da base instrutória)

17. Mensalmente era depositada na conta nº … a pensão de reforma da referida CC. (art. 4.º da base instrutória)

18. A Ré anuiu a ser 2.ª titular dessa mesma conta. (art. 5.º da base instrutória)

19. A 17 de Abril de 2008 CC casou com o autor. (art. 7.º da base instrutória)

20. Em Junho de 2008 a ré detinha as cadernetas das referidas contas da Caixa … (conta nº … e …), através da qual levantava mensalmente as quantias necessárias ao pagamento do Lar e de outras despesas necessárias de CC. (art. 8.º da base instrutória)

21. Em 9/06/2008 a conta nº … apresentava um saldo de 353,29 € e a conta nº …, em 1/06/2008, um saldo de 76.918,36 €. (art. 9.º da base instrutória)

22. A conta nº … em 1/06/2008 apresentava um saldo de 76.918,36 € e em 21/06/2008 um saldo de 0,0 €. (art. 10.º da base instrutória)

23. Em 12/06/2008 a conta nº … foi totalmente liquidada. (art. 11.º da base instrutória)

24. Todo o dinheiro existente na conta havia sido depositado pela falecida CC e era sua propriedade. (art. 12.º da base instrutória)

25. Entre 12/06/2008 e 23/09/2009 a ré levantou um total de 26.000€ da conta nº … (Caixa …., balcão da ...) da qual era titular juntamente com o seu marido GG. (art. 13.º da base instrutória)

26. A Ré sempre foi a sobrinha preferida da referida CC, que a via como filha e a quem ajudava muitas vezes. (art. 16.º da base instrutória)

27. O dinheiro que CC depositou na conta referida em 15 seria para ser gasto quando precisasse e o que não fosse necessário dava-o à Ré. (art. 18.º da base instrutória)

28. Em 12/06/2008, por transferência, foi creditada na conta nº …. da qual era titular a ré e o seu marido GG a quantia de 26.000 € e a conta nº … foi totalmente liquidada. (art. 19.º da base instrutória)

29. A única conta solidária existente, à data do óbito da CC, era a referida conta n.º … da C…, com o saldo de 625,33€. (art. 22.º da base instrutória)

30. Foi a ré quem procedeu ao pagamento das despesas do funeral de CC. (art. 23.º da base instrutória).

                               

DE DIREITO

A) Se houve doação

É pacífico, que o autor/recorrido é o único herdeiro da falecida CC, bem como ser esta proprietária única de todo o dinheiro existente nas contas que detinha na Caixa …, de que a ré/recorrente era 2ª titular.
Assim sendo, dispõe o nº 1 do art. 940.º do Código Civil (a que pertencerão os normativos por diante citados sem expressa menção de origem) que: “doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício de outro contraente”.
São, pois, três os requisitos exigidos para que exista uma doação: atribuição patrimonial sem correspectivo; diminuição do património do doador; espírito de liberalidade.
Como contrato que é, exige o concurso e acordo de duas vontades: a do proponente-doador e a do aceitante-donatário. A esse propósito, o art. 945.º estatui que:
1. A proposta de doação caduca, se não for aceita em vida do doador.
2. A tradição para o donatário, em qualquer momento, da coisa móvel doada, ou do seu título representativo, é havida como aceitação.
3. Se a proposta não for aceita no próprio acto ou não se verificar a tradição nos termos do número anterior, a aceitação deve obedecer à forma prescrita no artigo 947.º e ser declarada ao doador, sob pena de não produzir os seus efeitos”.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, “Para que se conclua o processo constitutivo do negócio jurídico, é necessária a aceitação do donatário. Antes dela, poderá existir uma simples proposta de doação, mas não uma doação, pois o acordo de vontades é sempre elemento essencial, nos termos do art. 232.º, da formação de qualquer contrato.
(…) A aceitação deve ter lugar, sob pena de caducidade da proposta, durante a vida do doador, não sendo necessário, porém, que ocorra no mesmo momento em que é feita a declaração do doador (…)”[3].
Temos, pois, que o contrato de doação constitui um negócio jurídico bilateral receptício, que só fica perfeito, ressalvada a situação prevista no nº 2 do art. 951.º, com a aceitação pelo donatário. Até essa aceitação não existe senão uma mera proposta de doação.
Aceitação essa que não tem de ser expressa, pode ser tácita, sendo como tal havida a “tradição” para o donatário, em qualquer momento, da coisa móvel doada, ou do seu título representativo, o que é imperioso é que ocorra durante a vida do doador.
A “tradição” pode ser feita pelo doador ou por seu representante, mandatário ou comissário[4].
Por seu turno, relativamente à doação de coisas móveis, dispõe o nº 2 do art. 947.º que “não depende de formalidade alguma externa, quando acompanhada da tradição da coisa doada; não sendo acompanhada da tradição da coisa, só pode ser feita por escrito”.
Significa tal que a lei não se satisfaz com as meras declarações verbais dos contraentes. Ou há “tradição”, ou, não havendo esta, a doação está sujeita a forma escrita, forma ad substantiam, necessária à validade do negócio de acordo com o princípio geral contido no art. 220.º, 1ª parte.
Ora, a “tradição” é uma forma de conferir a alguém a posse de determinado bem, o antigo possuidor demite-se da sua situação e entrega a coisa ao novo possuidor, ao adquirente, constituindo-o na situação de facto própria da posse. Desdobra-se a mesma em dois momentos, na cessação da relação material com a coisa por parte do primeiro possuidor e no seu empossamento por parte do segundo (accipiens) (cfr. art. 1263.º alínea b))[5].
Diz este preceito que a “tradição” tanto pode ser material como simbólica, pressupondo a primeira a execução de actos de entregar e receber que conferem de imediato a disposição do bem, ao passo que na simbólica não ocorre directa interferência no controlo material da coisa, a posse advém de um acto que apenas a torna possível, de um acto simbolizador da coisa (ex. entrega da chave de uma casa vendida)[6].
O que releva em qualquer delas é ser o acto de entrega que torna efectivo o apossamento da coisa.
Esta exigência especial de forma visa essencialmente proteger o doador contra si próprio, evitando que se tenha por declaração definitiva de doar o que não passa ainda de um projecto de liberalidade, procurando sobretudo impedir que o declarante doador seja vítima dos seus arrebatamentos impulsivos, das suas inclinações precipitadas, dos seus sentimentos de ocasião, de atitudes imponderadas que posterior e serena reflexão poderia motivá-lo a deplorar.
Esclarece Vaz Serra que a lei não se contenta com o acordo das partes, exigindo a “tradição” da coisa ou um escrito, fundando-se essa exigência “na circunstância de a doação poder ser perigosa se não houver um facto que chame especialmente a atenção das partes para a gravidade dos actos[7], o que se assegura com a “traditio”, acrescentando Pessoa Jorge que “ a doação, na medida em que determina uma diminuição patrimonial sem contrapartida, é um acto perigoso, não só para o próprio doador, como também para terceiros. O regime da pura consensualidade presta-se a fraudes susceptíveis de acarretar sérios prejuízos, por exemplo, aos credores do doador, que não poderiam atacar a doação ainda que fictícia, se o devedor conseguisse demonstrar que aquela fora anterior à constituição do crédito, não obstante as coisas doadas continuarem na sua posse[8].
À luz destes princípios, é hora de regressarmos à factualidade provada, onde temos que:

- a ré sempre foi a sobrinha preferida da referida CC, que a via como filha e a quem ajudava muitas vezes (26 dos factos provados);

- após o falecimento da sua irmã (mãe da ré), a CC colocou a ré como 2ª titular de duas contas solidárias – conta nº … e nº …[9], ambas da Caixa Geral de Depósitos, balcão de ... (15 dos factos provados);

- o dinheiro que a CC tinha depositado nas contas referidas seria para ser gasto quando precisasse e o que não fosse necessário dava-o à ré (27 dos factos provados);

- em Junho de 2008 a ré detinha as cadernetas das referidas contas da Caixa … (conta nº … e …), através das quais levantava mensalmente as quantias necessárias ao pagamento do Lar e de outras despesas necessárias de CC (20 dos factos provados);

- em 12/06/2008, por transferência, foi creditada na conta nº … da qual era titular a ré e o seu marido GG a quantia de 26.000 € e a conta nº … foi totalmente liquidada (23 e 28 dos factos provados);

- foi a ré quem procedeu ao pagamento das despesas do funeral de CC (30 dos factos provados).

Como antes se disse, todo o dinheiro existente nas contas bancárias era propriedade da falecida CC (cfr. nº 24 dos factos provados). Estamos perante contas conjuntas, na modalidade de solidárias, que se caracterizam por poder ser livremente movimentadas por qualquer dos seus titulares, e o simples facto de existirem não significa, só por si, que tenha havido “tradição” das respectivas quantias entre os seus contitulares. O proprietário pode permitir que outrem disponha de coisa sua, sem que necessariamente queira com isso significar que lha dá.

Observam Pires de Lima e Antunes Varela que “ a mera constituição de um depósito bancário em nome conjunto do doador e de uma ou mais pessoas, para que funcionem como depositantes solidários, não representa necessariamente uma doação, enquanto se não conhecer a intenção do dono do dinheiro depositado. Em si mesma, a operação negocial é uma atribuição incolor que tanto pode assentar sobre um empréstimo ou uma doação, como sobre um puro mandato, etc. (cf. ac. do Sup. Trib. de Just, de 8 de maio de 1973, no Bol.Min. Just., n.º 227, pág. 133)[10].

Diferente poderá ser se, na realidade, foi intenção do titular que depositou o dinheiro que este passasse a ser propriedade do outro contitular, podendo dele dispor como entendesse. Nesta circunstância, então, estamos, de facto, face a uma doação acompanhada de “tradição” do bem doado, pois que a conta conjunta funciona como meio idóneo para tornar efectivo o apossamento das quantias depositadas.

Não foi o caso dos autos, dado que, como vem provado, a falecida CC destinava esse seu pecúlio a ser gasto quando precisasse, ou seja, para fazer face às suas necessidades, e só, depois, o que não fosse necessário dava à ré. Quer dizer, a CC não partilhou desde logo com a recorrente a propriedade dessas verbas, não se mostra que tenha sido o “animus donandi” que conduziu à abertura das contas colectivas e solidárias.

Mas, argumenta a recorrente que essa partilha veio a ocorrer posteriormente, afirmando que “verifica-se uma verdadeira doação, que se traduziu na entrega do dinheiro pela tia à sobrinha (...) feita em vida e confirmada ao longo de 16 meses (...). A doação dá-se no momento em que a Tia CC se despoja do dinheiro, dando ordem à sobrinha BB (aqui R.) para que proceda ao levantamento daquele e o deposite em conta de que seja a única titular[11] (pontos 22 e 24 das alegações, a fls. 339/340 dos autos).

Situa a doação, não aquando da sua colocação como 2ª titular das contas bancárias, mas em momento ulterior correspondente ao do levantamento do dinheiro e subsequente depósito na sua conta e do marido, mais precisamente em 12/06/2008.

Ora, a realidade evidenciada pelo acervo factual apurado é bem menos exuberante e expressiva do que aquela que apresenta a recorrente, uma vez que do acima descrito não resulta como provado que a transferência operada no dia 12/06/2008, creditando na conta pessoal da recorrente e do seu marido, com o nº …, a quantia de 26.000,00 €, e liquidando a conta nº …, tivesse sido realizada pela CC ou por ordem sua (cfr. resposta restritiva aos quesitos 19.º e 20.º e nºs 23 e 28 dos factos provados)[12].
É certo que após tal movimentação, a recorrente/ré fez face às despesas da tia até à sua morte, bem como às despesas do seu funeral, mas, ao invés do que pretende a recorrente, sendo as contas bancárias em causa solidárias, podendo qualquer das suas titulares, isoladamente, proceder à sua mobilização, e não se podendo afirmar que a transferência ocorrida em 12/06/2008 tenha sido concretizada ou realizada por ordem da titular CC, não é possível concluir que esta lhe “entregou” o dinheiro, isto é, se operou a sua “tradição” no sentido estabelecido no art. 947.º, nº 2.
A “tradição”, um dos efeitos essenciais da doação (art. 954.º, al. b)), tem de se evidenciar, ou suportar, num acto de entrega ou transferência do bem móvel doado, ou do seu título representativo, exercido pelo doador ou seu representante. É que a doação é um contrato de eficácia real (quod effectum), no sentido de que a transferência da propriedade ou da titularidade do direito se verifica em consequência do próprio contrato (cfr. art. 408.º), e dele nasce, consequentemente, para o doador, a obrigação de entregar a coisa doada[13].
Essa “entrega” não se provou. Não pode ter esse significado a mera transferência da verba depositada no banco para a conta pessoal da recorrente e do marido, sem que se tenha apurado haver correspondido a determinação e execução material da CC, ou da recorrente por ordem daquela, quando se sabe que a recorrente como titular solidária da conta liquidada a poderia ter movimentado só por si. Por isso, a recorrente labora em manifesta confusão conceptual quando defende a existência da “tradição” pelo facto de estar “provado que o dinheiro estava totalmente na posse da donatária desde Junho de 2008, isto é, 16 meses antes do óbito da Tia CC (conclusão Q)). Primordial era apurar se tal transferência bancária correspondera à vontade desta, a seu acto voluntário, ou de outrem por ordem sua. 
Destarte, não tendo sido acompanhada de “tradição”, a doação apenas poderia ser feita mediante escrito (nº 2 do art. 947.º), exigência de que igualmente não há notícia nos autos. Assim sendo, falta o necessário “índice exterior de seriedade e firmeza da intenção de doar”, no dizer de Antunes Varela[14].
Como se concluiu na decisão recorrida, da factualidade provada o que resulta é ter a CC feito uma promessa de doação verbal à recorrente/ré. Do que esta discorda argumentando que “a 2ª Instância, sem apreciar as provas produzidas, nem novas provas, altera a matéria de facto concluindo que existe um contrato promessa de doação sem que haja factos que sustentem tal entendimento” (conclusão P)), defendendo que se trataria de uma doação com encargos, consagrada legalmente no art. 963.º, pois “A doação teve um encargo - prover as necessidades da Tia até à morte desta” (cfr. ponto 39 das alegações e conclusão S)).

A recorrente aparenta ignorar que o julgador não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cfr. art. 5.º, nº 3 do NCPC, equivalente ao art. 664.º do revogado CPC).

A questão da admissibilidade da promessa de doação tem suscitado na doutrina muitas dúvidas. Seguindo opinião contrária à de Cunha Gonçalves, no Tratado de Direito Civil, VIII, pág. 52, defensor da invalidade da promessa de doar[15], sobre ela, escreveu Antunes Varela que “dentro do texto e do espírito da lei (art. 940.º, 1 do Cód. Civil) cabe, manifestamente, tanto o caso de alguém assumir (a título gratuito) a dívida (já existente) do devedor em face de terceiro (beneficiando o devedor), como o de alguém assumir (a título gratuito) uma obrigação (inteiramente) nova para com o outro contraente.
Exemplo típico desta última variante será precisamente o de alguém se obrigar a doar (rectius: a transmitir gratuitamente) alguma coisa ou direito ao outro contraente.
A lei considerou assim, um pouco paradoxalmente, a promessa de doação como verdadeira doação.
(...) A transmissão posteriormente efectuada, em cumprimento da obrigação contraída ou assumida pelo disponente, não constitui uma segunda doação. É, como von Thur justamente observa, uma atribuição solvendi causa, mas que nem por isso deixa de representar uma disposição gratuita. A libertação da dívida, resultante do acto de cumprimento, é um efeito deste cumprimento, mas não uma contraprestação ou correspectivo do acto de cumprimento.
Quer isto significar, por outras palavras, que a promessa de doação constitui, no nosso sistema, à semelhança do que ocorre na lei civil alemã (§ 518), um contrato (válido) de doação, em atenção ao efeito económico-jurídico que dele promana. ”[16].
Na jurisprudência deste Supremo Tribunal são conhecidos no mesmo sentido os Acs. de 16/07/81, a que se reporta o comentário de Antunes Varela antes transcrito, 21/11/06, Proc. nº 06A3608, 29/06/10, Proc. nº 476/99 P1.S1 e de 1/07/10, Proc. nº 8091/04.9TBMAI.S1, no IGFEJ.
Assim, e deste modo, à promessa de doar se aplica, quanto à forma, a regra do nº 2 do art. 410.º, e em consonância com o nº 2 do art. 947.º, sendo um bem móvel, sem tradição da coisa, com exigência de documento escrito, que pode ser de qualquer natureza [17], mas aqui inexistente como se disse.

Em suma, o recorrido/autor logrou provar que todo o dinheiro existente nas contas solidárias de que eram titulares a falecida CC e a recorrente/ré era pertença daquela, e que em 12/06/2008, por transferência, foi creditada na conta nº …, da qual era titular a ré e o seu marido, a quantia de 26.000,00€, e a conta solidária despojada com o nº … foi totalmente liquidada, o que, obviamente, significa que nessa mesma data toda a restante quantia foi levantada[18] (28 dos factos provados).

Perante tais factos, imputa o autor à recorrente/ré a apropriação indevida do dinheiro da CC, contrapondo ela a existência de uma doação a seu favor e o levantamento da totalidade desse dinheiro pela tia (cfr., sobretudo, os arts. 23.º, 24.º e 30.º da contestação). Doação que como tal lhe incumbia provar, mais rigorosamente provar que essa transferência e levantamento de dinheiro ocorreram de acordo com a vontade de sua tia, ou seja, por ela realizados ou por si a mando dela (art. 342.º, nº 2). Ónus que a recorrente não logrou satisfazer.

Destarte, a recorrente não fez prova da doação a seu favor, porquanto não chegou a ocorrer “tradição” da coisa, nem ter revestido a forma escrita.
Não se podendo considerar a doação, fica desprovido de sentido dizer o que quer que seja acerca  da doação com cláusula modal, como a recorrente pretende se qualifique.
Ainda assim, dir-se-á que a doação modal prevista no art. 963.º caracteriza-se por uma restrição imposta ao beneficiário da liberalidade que o obriga à realização de determinada prestação no interesse do autor da liberalidade, de terceiro, ou do próprio beneficiário, isto é, por acarretar a imposição de um dever jurídico ao donatário[19]/[20], o que não acontece no caso em apreço.

Neste caso concreto, o capital depositado destinava-se a ser gasto, em primeira linha, pela 1ª titular, quando e enquanto precisasse, ou, como refere a recorrente, para “prover as necessidades da Tia até à morte desta”. Assim, a doação só abrangeria o dinheiro que, porventura, sobrasse, depois de asseguradas as despesas necessárias à subsistência da CC, após a sua morte[21], e não a totalidade da quantia depositada, como pretende a recorrente. Ora, sobre essa eventual verba disponível, sobre essa eventual liberalidade, não fez a doadora impender sobre a recorrente algum encargo. Vale isto por dizer que se restasse algum pecúlio ficaria para a ré, mas sem ficar vinculada a alguma prestação a despender.
Parece não oferecer dúvidas não se estar perante tal figura, mas antes, bem vistas as coisas, bem mais próxima até de uma doação por morte, pois que, rigorosamente, só iria produzir os seus efeitos por morte da doadora. Doação essa que sempre seria nula por inobservância das formalidades dos testamentos (cfr. art. 946.º).

Concluindo, não tendo provado a doação invocada para fundamentar o levantamento e a deslocação do dinheiro da conta bancária de que era titular com a tia para a sua esfera pessoal, carecem tais operações bancárias de fundamento, devendo ser restituídas à herança as correspondentes quantias.

B) Se é devida a condenação em juros de mora, e desde quando

Acusa a recorrente o acórdão recorrido de a condenar no pagamento de juros de mora, desde 7/10/2009, data do óbito de CC, sem que tivesse sido interpelada ou o montante em dívida liquidado, em violação do disposto no art. 805.°.

Também aqui não lhe assiste razão.

Sendo os juros de mora a compensação prevista para indemnizar o prejuízo da mora nas obrigações pecuniárias, dispõe o nº 1 do art. 805.º que o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir, estabelecendo-se no nº 2 algumas excepções a essa regra, casos em que a dívida se vence e o devedor se considera como constituído em mora, sem necessidade de ser interpelado para cumprir.

A segunda dessas excepções é a de a obrigação provir de facto ilícito (al. b)). Com a apropriação indevida do montante em causa, pertencente ao acervo hereditário, a recorrente cometeu um acto ilícito (art. 483.º), pelo que deve indemnizar o lesado desde o momento dessa violação, e não de qualquer acto posterior.

Improcedem as conclusões recursivas.



Resta sumariar (art. 663.º, nº 7 do CPC):

I - O contrato de doação constitui um negócio jurídico bilateral receptício, que só fica perfeito, ressalvada a situação prevista no nº 2 do art. 951.º do Código Civil, com a aceitação pelo donatário. Até essa aceitação não existe senão uma mera proposta de doação;

II - A aceitação não tem de ser expressa, pode ser tácita, sendo como tal havida a “tradição” para o donatário, em qualquer momento, da coisa móvel doada, ou do seu título representativo, o que é imperioso é que ocorra durante a vida do doador:

III - Não havendo “tradição” a doação está sujeita a forma escrita, forma ad substantiam, necessária à validade do negócio de acordo com o princípio geral contido no art. 220.º, 1ª parte do Código Civil;

IV - A “tradição” é uma forma de conferir a alguém a posse de determinado bem, o antigo possuidor demite-se da sua situação e entrega a coisa ao novo possuidor, ao adquirente, constituindo-o na situação de facto própria da posse. Desdobra-se como tal em dois momentos, na cessação da relação material com a coisa por parte do primeiro possuidor e no seu empossamento por parte do segundo (accipiens) (art. 1263.º alínea b) do Código Civil);

V - O simples facto de existirem contas bancárias conjuntas, na modalidade de solidárias, que se caracterizam por poder ser livremente movimentadas por qualquer dos seus titulares, não significa, só por si, que tenha havido “tradição” das respectivas quantias entre os seus contitulares. Importa apurar se foi intenção do titular que depositou o dinheiro que este passasse a ser propriedade do contitular, podendo dele dispor como entendesse;

VI - Tendo-se provado que a falecida destinava o montante, sua propriedade, depositado em conta bancária conjunta a ser gasto quando precisasse para fazer face às suas necessidades, e só, depois, o que restasse e não fosse necessário dava à ré, é óbvio que não partilhou desde logo a propriedade dessa verba com a outra titular, não se mostra que tenha sido o “animus donandi” que conduziu à abertura das contas colectivas e solidárias;
VII - Não pode ter o significado de “entrega” a mera transferência da verba depositada no banco para a conta pessoal da recorrente e do marido, sem que se tenha apurado haver correspondido tal movimento bancário a determinação e execução material da falecida CC, ou execução da recorrente por ordem daquela, quando se sabe que a recorrente como titular solidária da conta liquidada a poderia ter movimentado só por si;
VIII - Assim sendo, da factualidade provada o que resulta é ter a CC feito uma promessa de doação verbal à recorrente/ré;

IX - Tendo o autor logrado provar que todo o dinheiro existente nas contas solidárias de que eram titulares a falecida CC e a recorrente/ré era pertença daquela, incumbia à recorrente provar que a transferência e levantamento de dinheiro ocorreram de acordo com a vontade da falecida, ou seja, por ela realizados ou por si a mando dela (art. 342.º, nº 2), ónus que a recorrente não logrou satisfazer;

X - Destarte, a recorrente não fez prova da doação a seu favor, porquanto não chegou a ocorrer “tradição” da coisa nem ter revestido a forma escrita.


III – DECISÃO

Pelo exposto, confirmando o acórdão recorrido, nega-se a revista.

Custas pela recorrente.                                                        

    

      Lisboa, 25/06/15

Gregório Silva Jesus (Relator)

Martins de Sousa

Gabriel Catarino

___________________
[1] Relator: Gregório Silva Jesus - Adjuntos: Conselheiros Martins de Sousa e Gabriel Catarino.
[2] Aqui aplicável atentas as datas de instauração da acção, 25/11/10, e do acórdão recorrido, 17/12/2014 (cfr. art. 7.º, nº 1 da Lei nº 41/2013 de 26/06).
[3] In Código Civil Anotado, Vol. II, 4ª ed., págs. 246/247.
[4] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, loc. cit., pág. 247.
[5] Cf. Oliveira Ascensão, Direitos Reais, Almedina, 1978, pág. 257 e Penha Gonçalves, Curso de Direitos Reais 2ª ed., pág. 273.
[6] Para maior desenvolvimento, veja-se Oliveira Ascensão, ob. cit., págs. 235/238, Menezes Cordeiro, A Posse: perspectivas dogmáticas actuais, Almedina, 2000, pág. 107 e Santos Justo, Direitos Reais, Coimbra Editora, 4ª ed., pág. 197/198, Ainda os Acs. do STJ de 3/03/2005, Proc. nº  04B3711 e de 6/10/2005, Proc. nº 04B2753, no IGFEJ.
[7] Na RLJ, Ano 110.º, pág. 212.
[8] No BMJ 124.º, pág. 330/331.
[9] Os docs. juntos pela recorrente/ré com a contestação, de fls. 59 a 63, e o de fls. 165 constitutivo de informação prestada pela C…, não impugnados, demonstram que a recorrente foi associada como 2ª titular da conta nº … desde a sua abertura em 21/07/1997, e da conta nº … em 18/06/2003.
[10] In ob. cit., pág. 238.
[11] Sublinhado nosso.
[12] Na motivação da decisão da matéria de facto faz-se constar o seguinte: “nenhuma das testemunhas inquiridas soube dizer, em concreto, quem é que no dia 12/06/2008 decidiu liquidar a conta nº … e porque motivo o fez nesse dia. Fica a dúvida se a movimentação de dinheiro ocorrida nesse dia terá correspondido ou não a uma ordem de CC.
(...) Dúvidas também não nos ficam de que foi a ré quem sempre procedeu o levantamento das quantias que eram necessárias para fazer face às despesas de CC até ao dia da sua morte...”.
[13] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, loc. cit., pág. 257; no mesmo sentido se afirma no Parecer oferecido, a fls. 372/373.
[14] Na RLJ, Ano 103.º, pág. 91.
[15] Igualmente Baptista Lopes, Das Doações, Almedina, 1970, págs. 27/28.
[16] Na RLJ, Ano 116.º, pág. 61; veja-se, no mesmo sentido, Vaz Serra, na RLJ, Ano 110.º, págs. 207, 208 e 211/214; Pires de Lima e Antunes Varela ob. cit., pág. 240; Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III – Contratos em Especial, 7.ª ed., págs. 193/196; também o Parecer junto pela recorrente se pronuncia em termos favoráveis dando conta de outros autores (fls. 376/378).
[17] Cfr. neste sentido Vaz Serra, loc. cit., págs. 212/213, Baptista Lopes, ob. cit., pág. 44 .e Menezes Leitão, loc. cit., pág. 196.
[18] Recorda-se que o último controlo que se tem do montante depositado nessa conta denuncia que poucos dias antes, em 1/06/2008, tinha um saldo de 76.918,36 €.
[19] Cfr, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 269 e Menezes Leitão, ob. cit., págs. 207/209.
[20] Pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 7/97, de 25/02/97, publicado no DR nº 83/97, Série I-A, de 9/04/97, “a cláusula modal a que se refere o artigo 963.º do Código Civil abrange todos os casos em que é imposto ao donatário o dever de efectuar uma prestação, quer seja suportada pelas forças do bem doado, quer o seja pelos restantes bens do seu património”.
[21] Recorda-se que já se encontrava muito doente, quase sempre acamada e impossibilitada de se deslocar, apesar de ainda lúcida, e que o seu estado de saúde foi-se agravando falecendo pouco tempo depois (1, 8, 9 e 10 dos factos provados).