Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
805/07.1TTBCL.P1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: PINTO HESPANHOL
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Data do Acordão: 01/25/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1.  Discutindo-se a qualificação da relação jurídica estabelecida entre as partes, desde 5 de Novembro de 2001 até 15 de Janeiro de 2007, portanto, constituída antes da entrada em vigor do Código do Trabalho de 2003 e que subsistiu após o início da vigência deste Código (dia 1 de Dezembro de 2003), e não se extraindo da matéria de facto provada que as partes tivessem alterado, a partir de 1 de Dezembro de 2003, os termos dessa relação, há que atender ao Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, anexo ao Decreto‑Lei n.º 49.408 de 24 de Novembro de 1969, não tendo aqui aplicação a presunção contida no artigo 12.º daquele Código.

2.  Provando-se a vinculação do autor a um horário de trabalho estipulado pela ré, que o mesmo trabalhava exclusivamente para a ré, que lhe disponibilizava os seus instrumentos de trabalho, e que auferia uma retribuição média mensal que, não sendo sempre a mesma, era praticamente regular, usando cartão de prestador da ré e o mesmo uniforme que os demais terapeutas, actividade prestada durante mais de cinco anos, sem hiatos, configura-se a integração do trabalhador na estrutura organizativa da empregadora.

3.  Neste contexto, atento o conjunto dos factos provados, é de concluir que o autor logrou provar, como lhe competia, que a relação contratual que vigorou entre as partes revestiu a natureza de contrato de trabalho.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

                                                    I

1. Em 16 de Novembro de 2007, no Tribunal do Trabalho de Barcelos, Secção Única, AA intentou acção declarativa de condenação, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho contra SANTA CASA DA MISERICÓRDIA BB– HOSPITAL [E LAR] …, pedindo que a ré fosse condenada a reconhecer a ilicitude do seu despedimento e a pagar-lhe € 15.750, a título de indemnização por antiguidade, € 9.000, referentes a subsídios de Natal não pagos, € 9.000, relativos a subsídios de férias não pagos, € 4.500, correspondentes a férias não gozadas, «a quantia de € 1.500 de retribuição referente aos 30 dias anteriores à propositura da presente acção, bem como as que se vencerem até ao trânsito em julgado da presente acção», juros legais e € 13.500, respeitantes à compensação pela violação do direito a férias.

Alegou, em resumo, ter sido admitido pela ré, em 5 de Novembro de 2001, como terapeuta, funções que desempenhou até 15 de Janeiro de 2007, data em que a ré prescindiu dos seus serviços, sem prévia instauração de processo disciplinar e sem causa justificativa, sendo que, apesar de emitir recibo verde referente à remuneração auferida, na realidade, estava integrado na estrutura organizativa e funcional da ré, existindo entre ambos um verdadeiro contrato de trabalho.

Mais aduziu nunca lhe terem sido pagos subsídios de férias e de Natal, que apenas lhe era permitido gozar duas semanas de férias por ano e que se configurava um despedimento ilícito, tendo direito ao pagamento das quantias acima indicadas.

A ré apresentou contestação, alegando que sempre o autor trabalhou como profissional liberal, sendo pago à hora, contra recibo verde, aliás, propôs-lhe exercer as respectivas funções em regime de subordinação jurídica, o que este recusou.

Acrescentou que as férias eram gozadas de acordo com as conveniências do autor, que prescindiu dos serviços do autor face à diminuição do número de doentes no departamento de fisioterapia, que a presente acção constitui um verdadeiro abuso de direito, agindo o autor com evidente má-fé, e que sempre o direito à acção e aos créditos reclamados se acham já caducados e prescritos, respectivamente.

O autor respondeu, refutando a existência das aludidas excepções, mantendo a posição defendida na petição inicial.

Subsequentemente, foi exarado despacho saneador, em que se consignou não existirem nulidades, excepções, questões prévias ou incidentais de que cumprisse conhecer e que obstassem ao conhecimento do mérito da causa.

Realizado o julgamento, foi proferido despacho a fixar a matéria de facto provada e não provada (fls. 170-178), após o que se exarou a decisão seguinte:

                   «Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, decide-se julgar a presente acção parcialmente procedente, por provada, e consequentemente:
                   1. Declara-se ilícito o despedimento do autor perpetrado pela ré a 15/01/07;
                   2. Condena-se a ré a pagar ao autor os seguintes montantes:
                   a) 11.700 € de indemnização por antiguidade, sem prejuízo da que resultar à data do trânsito da presente decisão;
                   b) 8.450 € de retribuições que deixou de auferir;
                   c) 20.289,09 € de férias, subsídio de férias e de Natal referentes ao tempo que durou o vínculo laboral;
                   d) Os legais juros de mora;
                   3. Absolve-se a ré dos demais pedidos contra a mesma formulados.»

2. Inconformada, a ré apelou para o Tribunal da Relação do Porto, o qual julgou improcedente o recurso de apelação, sendo contra esta decisão que a ré agora se insurge, mediante recurso de revista, ao abrigo das conclusões seguintes:

               «1 –   A inexistência de subordinação jurídica ou de autonomia por parte do Recorrido leva a que se classifique o contrato como sendo de prestação de serviços[;]
                   2 – Por outro lado, para determinar a natureza e conteúdo das relações estabelecidas entre as partes, há que averiguar qual a vontade revelada pelas partes e jamais (rectius: até à petição inicial...) o recorrido concebeu estar vinculado por contrato de trabalho;
                   3 – O recorrido tinha total autonomia, não tinha salário fixo, não recebia férias e/ou subsídios de férias, não fazia parte do quadro de pessoal da instituição, não lhe eram feitos descontos salariais, emitindo este os conhecidos “recibos verdes” e a sua nota de “retenção na fonte”, por si sempre assinada, dizia claramente rendimentos de “Trabalho Independente”;
                   4 – Portanto, o A./recorrido não demonstrou que na relação entre si e Recorrente, estivesse subordinado a esta e cabia a ele o ónus da prova da existência de tal contrato[;]
                   5 – O recorrido não beneficia da presunção do art. 12.º do CT já que o contrato tem data anterior à entrada em vigor desse normativo[;]
                   6 – O Recorrido não foi recrutado pelo carácter específico e pessoal, enquanto profissional concreto, mas sim enquanto prestador de serviços de fisioterapia: na verdade, a Recorrente nunca quis que o Recorrido prestasse os seus serviços... a Recorrente queria aqueles serviços que ele, ou qualquer outro, prestassem;
                   7 – Posto isto, haverá que relevar algo que está inerente a todo o caso sub judice: o Recorrido prestou a sua colaboração, ao longo de mais de cinco anos, ininterruptamente — sem notícia de qualquer desacordo sobre o seu estatuto de prestador de serviços;
                   8 – Sobre este período não alegou — porque não podia — um facto sequer, demonstrativo de que não se conformava com uma situação em que não lhe eram pagos os seus alegados direitos de trabalhador, ou seja, remuneração de férias, subsídio de férias, de Natal ou descontos na Segurança Social e sempre aceitou esta situação;
                   9 – E o seu comportamento só se alterou quando a Recorrente prescindiu dos seus serviços, aí sim, a sua situação jurídica careceu de nova qualificação, pois a liberdade a autonomia, a independência de que sempre dispôs não foram suficientes para aplacar a vontade de dar azo a uma pequena vendetta pessoal, o que deverá ser considerado uma nítida e concreta situação de abuso d[o] direito, art. 334.º do C.Civil;
               10 –  Posto isto, a douta decisão violou o disposto no art.s 11.º, 12.º do Cód. do Trabalho e 1152.º e 1155.º do C.Civil, por considerar por verificados os requisitos da existência de uma relação laboral, invocad[a] com claro abuso d[o] direito (art. 334.º do C.Civil) quando, na verdade, estamos perante uma prestação de serviços.»

Termina concluindo que o presente recurso deve ser julgado procedente, «devendo a decisão recorrida ser substituída por outra que absolva a Recorrente».

O autor contra-alegou, suscitando a questão prévia da deserção do recurso, por falta de tempestiva alegação da recorrente e, assim não se entendendo, que fosse mantido o aresto recorrido, tendo o relator julgado improcedente tal questão prévia, por despacho de 21 de Junho de 2011, o qual não foi objecto de impugnação.

Subsequentemente, a Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta sustentou que o recurso devia improceder, parecer que, notificado às partes, não suscitou resposta.

3. No caso vertente, as questões suscitadas são as que se passam a enunciar, segundo a ordem lógica que entre as mesmas intercede:

                Qual a natureza da relação jurídica estabelecida entre o autor e a ré, se consubstancia um contrato de prestação de serviço ou um contrato de trabalho subordinado [conclusões 1) a 6) e 10), na parte atinente, da alegação do recurso de revista];
              –   Se a invocação dos direitos que o autor pretende fazer valer na presente acção configura um abuso do direito [conclusões 7) a 9) e 10), na parte atinente, da alegação do recurso de revista].

Corridos os «vistos», cumpre decidir.

                                                    II

1. O tribunal recorrido deu como provada a seguinte matéria de facto:
1) Por acordo verbal celebrado a 05/11/01, o autor foi admitido pela ré para exercer funções como terapeuta ocupacional;
2) O autor exerceu essas funções até ao dia 15 de Janeiro de 2007, data a partir da qual a administração da ré prescindiu dos seus serviços;
3) O autor picava sempre o ponto;
4) O autor tinha um horário de 7h/diárias, de 2.ª a 6.ª feira, das 9h às 12h30m e das 13h30m às 17h;
5) O autor não trabalhava em mais nenhum local que não a ré;
6) Os instrumentos de trabalho do autor eram fornecidos pela ré;
7) O autor não beneficiava de férias remuneradas, as quais eram gozadas em Agosto, ou seja, durante o período no qual o departamento de fisioterapia da ré encerrava;
8) Nunca recebeu subsídios de férias e de Natal;
9) A ré emitiu as declarações que se encontram juntas aos autos a fls. 6, 7 e 8, para as quais se remete e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
10) No ano de 2001, o autor auferiu remunerações num montante global de € 2.184,74, ou seja, uma média mensal de € 1.092,37;
11) No ano de 2002, o autor auferiu remunerações num montante global de € 14.514,61, ou seja, uma média mensal de € 1.209,55;
12) No ano de 2003, o autor auferiu remunerações num montante global de € 14.075,78, ou seja, uma média mensal de € 1.172,98;
13) No ano de 2004, o autor auferiu remunerações num montante global de € 16.233,82, ou seja, uma média mensal de € 1.352,82;
14) No ano de 2005, o autor auferiu remunerações num montante global de € 16.579,11, ou seja, uma média mensal de € 1.381,59;
15) No ano de 2006, o autor auferiu remunerações num montante global de € 17.070, ou seja, uma média mensal de € 1.422,5;
16) No mês de Janeiro de 2007, o autor recebeu € 680;
17) Aquando da sua contratação pela ré, o autor foi substituir uma fisioterapeuta que entrou de licença de parto;
18) O autor recebia consoante o número de horas que prestava, sendo pago contra recibo-verde, no final de cada mês;
19) O autor era portador de um cartão de prestador da ré e usava o mesmo uniforme que os demais terapeutas;
20) O autor não fazia parte do mapa de pessoal da ré, não sendo igualmente efectuados os competentes descontos para a Segurança Social;
21) O autor apenas efectuava os tratamentos aos pacientes depois de aqueles terem sido prescritos pelos médicos fisiatras (seja da ré, seja externos à mesma);
22) Uma [vez] obtida a lista de pacientes que a ré lhe fornecia, o autor geria o seu tempo e trabalho;
23) O autor encontra-se a trabalhar para uma terceira entidade desde, pelo menos, Maio de 2008;
24) Em Maio de 2007, a ré admitiu ao seu serviço mais dois fisioterapeutas.

Para melhor elucidação, registe-se que foram dados como «Não Provados» os factos alegados nos artigos 9.º, 11.º, 37.º, 38.º, 39.º, 40.º, 41.º, 42.º, 43.º e 44.º da contestação, com o teor seguinte (decisão sobre a matéria de facto — fls. 172):

                No artigo 9.º da contestação, aduziu-se que «[a]liás, deve-se esclarecer que a R. pretendeu integrar o A. no seu quadro de pessoal, passando a exercer a sua actividade mediante contrato individual de trabalho, mas o A. recusou a sugestão»;
                No artigo 11.º da contestação, referindo-se à forma como o autor prestava o seu serviço (cf. artigo 10.º da contestação), aduziu-se que «[n]ão sobre as ordens ou direcção da R., mas antes de harmonia com a receita que o doente ou utente apresentava do seu médico-fisiatra»;
                No artigo 37.º da contestação, aduziu-se, «[s]ó que o único que chegou a ser convidado para ser integrado nos quadros da R. foi o A., que, como se deixou dito, recusou frontalmente»;
                No artigo 38.º da contestação, aduziu-se que «[a]tento o exposto, nunca o A., em algum momento, foi subordinado economicamente da R.»;
                No artigo 39.º da contestação, aduziu-se que «[n]ão teve qualquer trabalhador ou auxiliar da R. a colaborar com o A.»;
                No artigo 40.º da contestação, aduziu-se que «[o]s seus lucros dependiam do trabalho que prestava»;
                No artigo 41.º da contestação, aduziu-se que «[n]ão estava subordinado a qualquer contrato ou convenção de trabalho»;
                No artigo 42.º da contestação, aduziu-se que «[e]ra o A. que respondia pelo risco do seu trabalho»;
                No artigo 43.º da contestação, aduziu-se que «[n]ão tinha a R. qualquer poder ou interferência na execução dos serviços do A.»;
                No artigo 44.º da contestação, aduziu-se que «[l]imitando-se, isso sim, a controlar o tempo de serviço, para apuramento do valor a pagar».

Os factos materiais fixados pelo tribunal recorrido não foram objecto de impugnação pelas partes, nem se vislumbra qualquer das situações referidas no n.º 3 do artigo 729.º do Código de Processo Civil, pelo que será com base nesses factos que há-de ser resolvida a questão suscitada no recurso.

2. Em primeiro lugar, importa determinar qual a natureza da relação jurídica estabelecida entre as partes, em síntese, se assumiu a configuração de um contrato de prestação de serviço ou de um contrato de trabalho subordinado.

O acórdão recorrido, em consonância com a sentença proferida pelo tribunal de primeira instância, decidiu que, perante os factos provados, «é inquestionável que entre [o autor] e a ré existiu um contrato de trabalho e jamais um contrato de prestação de [serviço] tal como vem pretendido pela ré».

A ré alega, no entanto, que «[a] inexistência de subordinação jurídica ou de autonomia por parte do Recorrido leva a que se classifique o contrato como sendo de prestação de serviços», que «para determinar a natureza e conteúdo das relações estabelecidas entre as partes, há que averiguar qual a vontade revelada pelas partes e jamais (rectius: até à petição inicial...) o recorrido concebeu estar vinculado por contrato de trabalho» e que «[o] recorrido tinha total autonomia, não tinha salário fixo, não recebia férias e/ou subsídios de férias, não fazia parte do quadro de pessoal da instituição, não lhe eram feitos descontos salariais, emitindo este os conhecidos “recibos verdes” e a sua nota de “retenção na fonte”, por si sempre assinada, dizia claramente rendimentos de “Trabalho Independente”».

E acrescenta que «o A./recorrido não demonstrou que na relação entre si e Recorrente estivesse subordinado a esta e cabia a ele o ónus da prova da existência de tal contrato», que «[o] recorrido não beneficia da presunção do art. 12.º do CT, já que o contrato tem data anterior à entrada em vigor desse normativo», e que «não foi recrutado pelo carácter específico e pessoal, enquanto profissional concreto, mas sim enquanto prestador de serviços de fisioterapia: na verdade, a Recorrente nunca quis que o Recorrido prestasse os seus serviços… a Recorrente queria aqueles serviços que ele, ou qualquer outro, prestassem».

2.1. Discutindo-se a qualificação da relação jurídica estabelecida entre as partes, desde 5 de Novembro de 2001 até 15 de Janeiro de 2007, portanto, constituída antes da entrada em vigor do Código do Trabalho de 2003 e que subsistiu após o início da vigência deste Código (dia 1 de Dezembro de 2003 — n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto), cessando depois da entrada em vigor da Lei n.º 9/2006, de 20 de Março, que alterou a redacção de vários preceitos do mencionado Código, e não se extraindo da matéria de facto provada que as partes tivessem alterado, a partir de 1 de Dezembro de 2003, os termos dessa relação, aplica-se o Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, anexo ao Decreto‑Lei n.º 49.408 de 24 de Novembro de 1969, adiante designado por LCT, não tendo aqui aplicação a presunção estipulada no artigo 12.º do Código do Trabalho de 2003.

Com efeito, o mencionado artigo 12.º estabelece a presunção de que as partes celebraram um contrato de trabalho assente no preenchimento cumulativo de cinco requisitos, o que se traduz numa valoração dos factos que importam o reconhecimento dessa presunção, donde, só se aplica aos factos novos, às relações jurídicas constituídas após o início da sua vigência, em 1 de Dezembro de 2003 (cf., sobre esta matéria, os Acórdãos deste Supremo Tribunal, de 13 de Fevereiro de 2008, Processo n.º 356/07, e de 10 de Julho de 2008, Processo n.º 1426/08, da 4.ª Secção).

2.2. Os contratos referidos têm a sua definição na lei.

Segundo o artigo 1152.º do Código Civil, cuja expressão literal viria a ser reproduzida no artigo 1.º da LCT, contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta.

Por seu lado, o artigo 1154.º do Código Civil estabelece que contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.

Ora, a prestação de serviço é uma figura próxima do contrato de trabalho, não sendo sempre fácil distingui-los com nitidez; porém, duma maneira geral, tem-se entendido que é na existência ou inexistência da subordinação jurídica que se deve encontrar o critério de distinção.

Assim, o contrato de trabalho caracteriza-se, essencialmente, pelo estado de dependência jurídica em que o trabalhador se coloca face à entidade patronal, sendo que o laço de subordinação jurídica resulta da circunstância do trabalhador se encontrar submetido à autoridade e direcção do empregador que lhe dá ordens, e na prestação de serviço não se verifica essa subordinação, considerando-se apenas o resultado da actividade.

A subordinação jurídica que caracteriza o contrato de trabalho decorre precisamente daquele poder de direcção que a lei confere à entidade empregadora (n.º 1 do artigo 39.º da LCT) a que corresponde um dever de obediência por parte do trabalhador [alínea c) do n.º 1 do artigo 20.º da LCT].

Todavia, como vem sendo repetidamente afirmado, a extrema variabilidade das situações concretas dificulta muitas vezes a subsunção dos factos na noção de trabalho subordinado, implicando a necessidade de, frequentemente, se recorrer a métodos aproximativos, baseados na interpretação de indícios.

É o que acontece nos casos em que o trabalho é prestado com grande autonomia técnica do trabalhador, nomeadamente quando se trate de actividades que tradicionalmente são prestadas em regime de profissão liberal.

Nos casos limite, a doutrina e a jurisprudência aceitam a necessidade de fazer intervir indícios reveladores dos elementos que caracterizam a subordinação jurídica, os chamados indícios negociais internos (a designação dada ao contrato, o local onde é exercida a actividade, a existência de horário de trabalho fixo, a utilização de bens ou utensílios fornecidos pelo destinatário da actividade, a fixação da remuneração em função do resultado do trabalho ou em função do tempo de trabalho, direito a férias, pagamento de subsídios de férias e de Natal, incidência do risco da execução do trabalho sobre o trabalhador ou por conta do empregador, inserção do trabalhador na organização produtiva, recurso a colaboradores por parte do prestador da actividade, existência de controlo externo do modo de prestação da actividade laboral, obediência a ordens, sujeição à disciplina da empresa) e indícios negociais externos (o número de beneficiários a quem a actividade é prestada, o tipo de imposto pago pelo prestador da actividade, a inscrição do prestador da actividade na Segurança Social e a sua sindicalização).
           
Cada um daqueles indícios tem naturalmente um valor muito relativo e, por isso, o juízo a fazer é sempre um juízo de globalidade (MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, 12.ª edição, Almedina, Coimbra, 2004, p. 145), a ser formulado com base na totalidade dos elementos de informação disponíveis, a partir de uma maior ou menor correspondência com o conceito-tipo.

Sublinhe-se que incumbe ao trabalhador, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil, fazer a prova dos elementos constitutivos do contrato de trabalho, nomeadamente, que desenvolve uma actividade remunerada para outrem, sob a autoridade e direcção do beneficiário da actividade, demonstrando que se integrou na estrutura empresarial do empregador.

2.3. No caso vertente, tal como se extrai da matéria de facto provada, o autor foi admitido pela ré para desempenhar as funções de terapeuta ocupacional, mediante acordo verbal, celebrado em 5 de Novembro de 2001, tendo exercido essas funções até 15 de Janeiro de 2007, data a partir da qual a administração da ré prescindiu dos seus serviços [factos provados 1) e 2)].

Quanto ao horário de trabalho, demonstrou-se que «[o] autor picava sempre o ponto» e que «tinha um horário de 7h/diárias, de 2.ª a 6.ª feira, das 9h às 12h30m e das 13h30m às 17h» [factos provados 3) e 4)], o que evidencia o cumprimento e a imposição de um horário de trabalho por parte da entidade empregadora.

Mais se apurou que o autor «não trabalhava em mais nenhum local que não a ré», por conseguinte, trabalhava exclusivamente para a ré, e que «[o]s instrumentos de trabalho do autor eram fornecidos pela ré» [factos provados 5) e 6)].

No que concerne à retribuição do autor, este auferiu, no ano de 2001, «uma média mensal de € 1.092,37», no ano de 2002, «uma média mensal de € 1.209,55», no ano de 2003, «uma média mensal de € 1.172,98», no ano de 2004, «uma média mensal de € 1.352,82», no ano de 2005, «uma média mensal de € 1.381,59», no ano de 2006, «uma média mensal de € 1.422,5», e no mês de Janeiro de 2007, pela actividade prestada até ao dia 15 desse mês, «recebeu € 680» [factos provados 10) a 16)], pelo que, tal como se salientou na sentença do tribunal de primeira instância, «tinha uma remuneração média mensal que, apesar de não ser sempre a mesma, era praticamente regular — média de cerca de € 1.300 mensais (apenas variando caso o autor trabalhasse mais horas para além do seu horário — factos 10.º a 16.º e18.º)».

Acresce que «[o] autor era portador de um cartão de prestador da ré e usava o mesmo uniforme que os demais terapeutas», «apenas efectuava os tratamentos aos pacientes depois de aqueles terem sido prescritos pelos médicos fisiatras (seja da ré, seja externos à mesma)» e mediante uma lista de pacientes que lhe era fornecida pela ré [factos provados 19), 21) e 22)], actividade prestada durante mais de cinco anos, sem hiatos, o que evidencia a integração do autor na estrutura organizativa da ré.

Neste quadro fáctico, não assume qualquer relevo jurídico significativo o formalismo observado no pagamento da contrapartida pela actividade prestada, isto é, a emissão de recibos verdes [facto provado 18)], nem que o autor não beneficiasse de férias remuneradas [facto provado 7)], nunca tivesse recebido subsídios de férias e de Natal [facto provado 8)] e não fizesse «parte do mapa de pessoal da ré, não sendo igualmente efectuados os competentes descontos para a Segurança Social» [facto provado 20)], procedimentos que decorriam, naturalmente, da configuração que a ré pretendia dar à relação jurídica como contrato de prestação de serviço.
Refira-se, por último que o facto de se ter provado que, «[a]quando da sua contratação pela ré, o autor foi substituir uma fisioterapeuta que entrou de licença de parto» [facto provado 17)], não significa, como parece pretender a recorrente, que o autor «não foi recrutado pelo carácter específico e pessoal, enquanto profissional concreto, mas sim enquanto prestador de serviços de fisioterapia: na verdade, a Recorrente nunca quis que o Recorrido prestasse os seus serviços... a Recorrente queria aqueles serviços que ele, ou qualquer outro, prestassem» [conclusão 6) da alegação do recurso de revista], já que tal substituição, feita pela ré, não demonstra a  fungibilidade da prestação do autor, nem a inexistência do contrato de trabalho.

Perante o acervo factual enunciado, impõe-se concluir que a relação jurídica estabelecida entre as partes configura, substancialmente, um contrato de trabalho e não o ajuste de um contrato de prestação de serviço, não tendo o acórdão recorrido violado o preceituado nos artigos 11.º e 12.º do Código do Trabalho de 2003, 1152.º e 1155.º do Código Civil.

Nesta conformidade, improcedem as conclusões 1) a 6) e 10), na parte atinente, da alegação do recurso de revista.

3. A ré alega, ainda, que «o Recorrido prestou a sua colaboração, ao longo de mais de cinco anos, ininterruptamente — sem notícia de qualquer desacordo sobre o seu estatuto de prestador de serviços», que, no referente a este período, «não alegou — porque não podia — um facto sequer, demonstrativo de que não se conformava com uma situação em que não lhe eram pagos os seus alegados direitos de trabalhador, ou seja, remuneração de férias, subsídio de férias, de Natal ou descontos na Segurança Social e sempre aceitou esta situação», e que «o seu comportamento só se alterou quando a Recorrente prescindiu dos seus serviços, aí sim, a sua situação jurídica careceu de nova qualificação, pois a liberdade a autonomia, a independência de que sempre dispôs não foram suficientes para aplacar a vontade de dar azo a uma pequena vendetta pessoal, o que deverá ser considerado uma nítida e concreta situação de abuso d[o] direito, art. 334.º do C.Civil».

O abuso do direito, conforme decorre do artigo 334.º do Código Civil, traduz-se no exercício ilegítimo de determinado direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular, ao exercê-lo, exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Não basta, pois, que o titular do direito exceda os limites referidos naquele preceito, é necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório da boa fé, dos bons costumes ou do fim social ou económico do direito que é exercido.

Doutra parte, não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo, ou seja, não é necessário que tenha a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, basta que na realidade (objectivamente) esses limites tenham sido excedidos de forma nítida e intolerável, pois, como é sabido, o ordenamento jurídico acolheu a concepção objectiva do abuso do direito (cf., por todos, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. I, Coimbra Editora, 1967, p. 217).

A proibição do venire contra factum proprium, aludida na decisão proferida no tribunal de primeira instância, é uma das modalidades que o abuso de direito pode revestir, caracterizando-se pelo «exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente» (cf. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, Almedina, Coimbra, 2005, p. 275) e, no dizer de BAPTISTA MACHADO («Tutela da Confiança e Venire contra factum proprium», in Obra dispersa, vol. I, p. 416, e in RLJ, n.º 3726 e seguintes), o ponto de partida do venire é «uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira», podendo «tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico-negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico».

«Todavia, para que o venire se verifique não basta a existência de condutas contraditórias. É necessário que a conduta anterior tenha criado na contraparte uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que com base nessa situação de confiança a contraparte tenha tomado disposições ou organizado planos de vida de que lhe surgirão danos irreversíveis, isto é, que tenha investido nessa situação de confiança e que esse investimento não possa ser desfeito sem prejuízos inadmissíveis» (Acórdão deste Supremo Tribunal, de 30 de Março de 2006, Revista n.º 3921/05 da 4.ª Secção).

Ora, incumbe àquele que invoca o abuso de direito demonstrar os factos em que assenta a conclusão de que existiu uma actuação manifestamente violadora da boa fé, dos bons costumes ou do fim social ou económico do direito (n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil), sendo certo que, atenta a matéria de facto provada, esse ónus, no caso em apreciação, não se mostra cumprido.

Com efeito, da factualidade acima discriminada não resulta provado que o autor tenha assumido qualquer actuação que, objectivamente considerada, fosse passível de constituir uma ofensa grave e patente das regras da boa fé e do fim social e económico do direito, designadamente que tivesse garantido que não invocaria a natureza laboral do vínculo estabelecido com a ré, facto que seria fundamental para gerar na recorrente uma situação de confiança justificada de que, no futuro, o autor não exerceria os seus direitos laborais, para retirar vantagens jurídicas.

Não se verifica, por isso, o alegado abuso do direito, pelo que improcedem as conclusões 7) a 9) e 10), na parte atinente, da alegação do recurso de revista.
                                             III

Pelo exposto, decide-se negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Sem custas, por delas estar isenta a recorrente, nos termos do preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º do Código das Custas Judiciais, na redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2012

Pinto Hespanhol (Relator)

Fernandes da Silva

Gonçalves Rocha