Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7044/20.4T9LSB.L1-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
VIOLAÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA OU DE TELECOMUNICAÇÕES
IDENTIDADE DE FACTOS
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 02/15/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :
I - No acórdão recorrido é o facto do conteúdo da carta aberta, junta no processo em referência, ter sido divulgado anteriormente noutros três processos judiciais, pelos quais os arguidos foram condenados, que o leva a decidir pela não violação do sigilo de correspondência e, idêntica situação de facto não ocorreu no acórdão fundamento, pois o conteúdo da carta que fora já aberta ainda não tinha sido divulgado antes de junta à ação de divórcio.
II - As soluções divergentes no acórdão recorrido e acórdão fundamento, decidindo aquele revogar o despacho de pronúncia, por considerar que os factos indiciados não são suscetíveis de integrar a prática de um crime de violação de correspondência, p. e p. pelo n.º 3 do art. 194.º do CP e, este, negando provimento ao recurso interposto pelo arguido e mantendo integralmente a sentença condenatória do arguido pela prática de um crime de violação de correspondência , p. e p. pelo n.º 3 do art.194.º do mesmo Código, assentam em situações de facto diversas.
III - Assentando em situações de facto diversas, as soluções divergentes, tomadas nos arrestos em confronto, não se verifica o requisito de oposição de julgados.
Decisão Texto Integral:

Proc. n.º 7044/20.4T9LSB.L1-A.S1


Recurso extraordinário para fixação de jurisprudência


*


Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I- Relatório


1. A assistente AA, inconformada com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27 de junho de 2023, proferido no proc. n.º 7044/20.4T9LSB.L1, transitado em julgado, vem interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, para o Supremo Tribunal de Justiça, por entender que aquele acórdão ao conceder provimento aos recursos interpostos pelos arguidos, revogando o despacho que pronunciou os arguidos pela prática de um crime de violação de correspondência, p. e p. pelo art.194.º, n.º 3 do Código Penal, se encontra em oposição com o decidido no acórdão do Tribunal da Relação Guimarães, de 28 de junho de 2004, proferido no processo n.º 718/04-2, publicado em www.dgsi.pt.


2. São do seguinte teor as conclusões que a assistente AA, extrai da motivação do recurso que apresentou (transcrição)1:


79. Nos presentes autos está em causa a divulgação não consentida de um extrato bancário pertencente à ofendida que lhe foi remetido pelo seu banco para a sua morada particular.


80. O primeiro Arguido foi condenado com trânsito em julgado no âmbito de um primeiro processo pelo crime de violação de correspondência.


81. Por sua vez, ambos os Arguidos foram condenados num segundo processo crime, este com o n.º 7745/17.4..., pela divulgação não consentida do mesmo extrato bancário em três processos cíveis que opuseram a Ofendida, aqui Assistente, ao primeiro Arguido sempre patrocinado pelo segundo Arguido.


82. No seguimento deste comportamento ilícito, os Arguidos decidiram divulgar novamente, agora no Proc. 175/12.6TBVRM do J... . do Juízo de Execução de ..., o referido extrato bancário da ofendida, bem sabendo que o faziam sem o seu consentimento e com a sua firme oposição.


83. Nos presentes autos, após um primeiro despacho de arquivamento do Ministério Público, foram os Arguidos doutamente pronunciados pelo crime de violação de correspondência p. e p. pelo art. 194º n.º 3 do CP.


84. Inconformados, recorreram os Arguidos do mencionado despacho de pronúncia para a Veneranda Relação de Lisboa, a qual, sinteticamente, decidiu revogar o despacho de pronúncia.


85. O Acórdão Recorrido, que revogou o despacho de pronúncia, refere na parte dispositiva, a fls. 31 que “(…), a junção de um escrito contido numa carta que já tinha sido aberta e cujo conteúdo já tinha sido divulgado anteriormente em outros processos judiciais, não consubstancia a prática do crime tipificado no n.º 3 do art. 194º do CP. Não existe nesse comportamento qualquer violação do sigilo da correspondência, que é o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora.”.“Não está em causa” prossegue o Acórdão Recorrido, “o facto de o escrito em questão ter natureza privada, nem o seu conteúdo, mas antes o facto de ser divulgado sem o consentimento, do seu titular, um escrito que se encontrava fechado e, como tal, sigiloso e inacessível a terceiros.”. Conclui o Acórdão Recorrido que, “se o escrito já se encontrava aberto e já havia sido divulgado, não vemos como possa essa conduta ter violado o sigilo da correspondência e caber na previsão do n.º 3 do art. 194º do C. Penal.”.


86. Este entendimento que se entende errado na sua formulação, fundamentação e conclusão não pode ser aceite pois constitui ilegítimo esvaziamento do alcance da norma introduzia pelo DL 48/95 de 15/03, já que desvaloriza a ação de divulgar escritos particulares sem consentimento, subsumindo o tipo de crime do n.º 3 do art. 194º, no tipo legal do n.º 1 do mesmo artigo.


87. Ou seja, o entendimento do Acórdão Recorrido levaria a que apenas quem violasse e abrisse correspondência fechada poderia ser condenado pelo tipo legal do n.º 3 do art. 194º se e quando simultaneamente divulgasse o conteúdo do mesmo escrito. – Nada mais errado!


88. Não foi este, seguramente, o fundamento da alteração introduzida pelo DL 48/95 de 15/03, quando autonomizou como ilícito crime o que anteriormente era apenas mera agravação da pena do crime de violação de correspondência pela abertura de carta ou escrito fechado.


89. Em oposição direta ao entendimento do Acórdão Recorrido, decidiu o Acórdão Fundamento da Veneranda Relação de Guimarães que os elementos, gramatical, sistemático, histórico e teleológico não autorizam nem legitimam a interpretação que o Acórdão Recorrido faz do preceito, antes reclamam e impõem a interpretação agora defendida e que vai de encontro ao enquadramento jurídico dado aos factos pela Assistente. Inequivocamente, os arguidos ao juntarem ao processo, sem consentimento da ofendida, uma carta que a esta tinha sido dirigida para a sua morada, divulgaram ilicitamente o seu conteúdo, ainda que num universo restrito de pessoas, pelo que esse seu comportamento, integra o tipo legal de crime previsto no n.º 3 do artigo 194º do CP.


90. A oposição entre ambos os Acórdão é manifesta pois, onde a Veneranda Relação de Lisboa não vê a prática de qualquer crime, já a Veneranda Relação de Guimarães o reclama notoriamente, afirmando, sem margem para dúvidas, a ilicitude criminal da divulgação do conteúdo de uma carta efetuada sem consentimento da sua destinatária, aqui ofendida.


91. É neste sentido que deve e se requer, seja fixada jurisprudência, ou seja, que a divulgação pelos Arguidos, de carta dirigida em nome e para a morada da ofendida, sem o seu consentimento, constitui ilícita divulgação do seu conteúdo e integra o tipo legal de crime previsto no n.º 3 do art. 194º do CP. Apesar de a correspondência em causa só ter sido aberta uma vez, não é por isso que passa a ser permitida a sua divulgação.


92. De acordo com o entendimento que se extrai do Douto Acórdão Fundamento, pode-se concluir que “a circunstância de a carta ter sido anteriormente aberta pelo primeiro Arguido e divulgada em três outros processos não determina que se considere que a missiva tenha saído da esfera de disponibilidade fáctica da ofendida, nem legitima os Arguidos a considerá-la como sua.


93. Nos termos do art.438º n.º 2 do CPP, identifica-se como Acórdão Fundamento, com o qual o Acórdão Recorrido está em franca oposição, o Acórdão do Venerando Tribunal de Guimarães de 28/06/2004, Processo n.º 718/04-2 em que foi Relator o Desembargador Heitor Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt., onde foi publicado.


94. O conflito de jurisprudência evidente, deriva da oposição de ambos os julgados na medida em que o Acórdão Recorrido afirma que o preenchimento do tipo do crime p. e p. pelo n.º 3 do Art.194º do CP não se basta com a mera divulgação não consentida de missiva dirigida à ofendida enquanto que, o Acórdão Fundamento afirma a respetiva ilicitude da divulgação não consentida do conteúdo de missiva.


95. É esta a oposição de julgados que importa dirimir, defendendo a Assistente o entendimento do Acórdão Fundamento proferido pela Relação de Guimarães, ou seja, que a junção ou divulgação judicial de documentos ou cartas dirigidas para a morada da ofendida, constitui divulgação ilícita do seu conteúdo, ainda que num universo restrito de pessoas, integrando tal comportamento, o tipo legal do crime p. e p. pelo n.º 3 do art. 194º do CP.


96. A “teoria da carta aberta” defendida pela Decisão A Quo, não colhe, (…), “não é por ter sido divulgada (…) e pelo conteúdo deixar de estar apenas na esfera da ofendida que o referido tipo legal de crime deixa de se verificar.”. (…) “é verdade que a correspondência em causa só foi aberta uma vez, contudo, não é por isso que passa a ser permitida a sua divulgação. Na verdade, a divulgação do conteúdo da comunicação integra a modalidade de conduta típica em causa. Deste modo, pese embora os Arguidos passassem a ter livre acesso a tal documento, em virtude do desvalor da ação que praticaram, não o podiam divulgar como o fizeram.”


97. Mal andou, assim, o Tribunal A Quo ao revogar o Despacho de Pronúncia dos Arguidos, com o que violou por erro de interpretação o artigo 194º Nr.3 do CP e os artigos 283º Nrs.1 e 3, alíneas b) e c), 286º e 308º Nr.1 do CPP, em oposição ao Douto Acórdão Fundamento da Relação de Guimarães, devendo consequentemente ser Fixada Jurisprudência no sentido de que a junção ou divulgação judicial de documentos ou cartas dirigidas para a morada da ofendida, constitui divulgação ilícita do seu conteúdo, ainda que num universo restrito de pessoas, integrando tal comportamento, o tipo legal do crime p. e p. pelo n.º 3 do art. 194º do CP, julgando-se, assim, procedente o presente recurso, revogando-se o Douto Acórdão Recorrido e ordenando-se o prosseguimentos dos Autos com a consequente submissão dos arguidos a julgamento, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.


NESTES TERMOS, DEVE O PRESENTE RECURSO MERECER ADEQUADO PROVIMENTO, SUBSTITUINDO-SE A DECISÃO A QUO POR OUTRA QUE, MANTENDO A PRONÚNCIA DOS ARGUIDOS, MANDE PROSSEGUIR OS AUTOS PARA JULGAMENTO, FIXANDO-SE JURISPRUDÊNCIA NO SENTIDO DE QUE A DIVULGAÇÃO NÃO CONSENTIDA DE DOCUMENTOS OU CARTAS DIRIGIDAS PARA A MORADA DA OFENDIDA, CONSTITUI DIVULGAÇÃO ILÍCITA DO SEU CONTEÚDO, APESAR DE A CORRESPONDÊNCIA SÓ TER SIDO ABERTA UMA VEZ, POIS NÃO É POR ISSO, QUE PASSA A SER PERMITIDA A SUA DIVULGAÇÃO.


SEMELHANTE DIVULGAÇÃO NÃO CONSENTIDA DE UM ESCRITO PARTICULAR, INTEGRA O TIPO LEGAL DO CRIME P. E P. PELO N.º 3 DO ART. 194º DO CP, CONFORME É DO DIREITO E DA JUSTIÇA.


3. O Ministério Público, junto do Tribunal da Relação de Lisboa, respondeu ao recurso extraordinário, concluindo (transcrição):


1. A recorrente fundamenta o recurso na existência de oposição de julgados entre o acórdão recorrido proferido em 27 de junho de 2023, pela 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, no Processo 7044/20.4T9LSB.L1, e o acórdão fundamento proferido em 28 de junho de 2004, pela 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães, no Processo 718/04-2, publicado em www.dgsi.pt, ambos transitados em julgado, não sendo possível recurso ordinário daquele.


2. O Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão recorrido, pronunciou-se sobre a questão de saber se a junção de um escrito contido numa carta aberta, cujo conteúdo tinha sido anteriormente divulgado noutros processos judiciais, preenche o tipo de crime de violação de correspondência, p. e p. pelo n.º 3 do art.194.º, do Código Penal.


3. Decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa que essa junção não consubstancia a prática deste crime por não existir qualquer violação do sigilo da correspondência, uma vez que o escrito se


encontrava aberto e o seu conteúdo tinha sido divulgado anteriormente e a norma incriminadora se referir à divulgação de escritos que se encontram fechados, sem o consentimento do seu titular.


4. No acórdão fundamento, a questão jurídica sobre a qual o Tribunal da Relação de Guimarães se pronunciou foi a de saber se o preenchimento deste tipo legal de crime exige que o agente tenha aberto a missiva sem consentimento do destinatário, não se bastando com a sua mera divulgação.


5. Decidiu o Tribunal da Relação de Guimarães que, perante este circunstancialismo fático, o comportamento do arguido integrava o tipo de crime de violação de correspondência, p. e p. pelo n.º 3 do art. 194.º, do Código Penal.


6. São diferentes as situações de facto na origem da questão jurídica sobre a qual se debruçou cada um dos acórdãos.


7. Não existe, por isso, oposição de julgados para os efeitos do art.437.º, n.ºs 1 e 2, do CPP.


8. Tal, constitui motivo de rejeição do recurso, por inadmissibilidade legal, nos termos conjugados dos arts. 414.º, n.º 2, 420.º, n.º 1, al. b), e 437.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPP.


3. Decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa que essa junção não consubstancia a prática deste crime por não existir qualquer violação do sigilo da correspondência, uma vez que o escrito se


encontrava aberto e o seu conteúdo tinha sido divulgado anteriormente e a norma incriminadora se referir à divulgação de escritos que se encontram fechados, sem o consentimento do seu titular.


4. No acórdão fundamento, a questão jurídica sobre a qual o Tribunal da Relação de Guimarães se pronunciou foi a de saber se o preenchimento deste tipo legal de crime exige que o agente tenha aberto a missiva sem consentimento do destinatário, não se bastando com a sua mera divulgação.


5. Decidiu o Tribunal da Relação de Guimarães que, perante este circunstancialismo fático, o comportamento do arguido integrava o tipo de crime de violação de correspondência, p. e p. pelo n.º 3 do art.194.º, do Código Penal.


6. São diferentes as situações de facto na origem da questão jurídica sobre a qual se debruçou cada um dos acórdãos.


7. Não existe, por isso, oposição de julgados para os efeitos do art.437.º, n.ºs 1 e 2, do CPP.


8. Tal, constitui motivo de rejeição do recurso, por inadmissibilidade legal, nos termos conjugados dos arts. 414.º, n.º 2, 420.º, n.º 1, al.b), e 437.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPP.


4. O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto, no Supremo Tribunal de Justiça, pronunciou-se no sentido do não prosseguimento do recurso extraordinário interposto, por entender que não se verifica o requisito de oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, dada a inexistência de identidade de situação de facto nos dois acórdãos.


5. No exercício do contraditório relativamente à posição assumida pelo Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça, respondeu a assistente, reiterando o seu entendimento de que existe oposição entre os dois acórdãos por si indicados.


6. Realizado o exame preliminar a que alude o art.440.º, n.º1 do Código de Processo Penal, e colhidos os vistos, cumpre decidir em Conferência, nos termos do art.440.º, n.º4 do Código de Processo Penal.


II - Fundamentação


7. A questão objeto do recurso, nos termos em que a recorrente a configura nas conclusões da motivação, consiste em saber se existe oposição de julgados entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido, a respeito do preenchimento do n.º3 do art.194.º do Código Penal, quando o arguido, sem consentimento do destinatário de carta, junta o conteúdo desta em processo judicial.


8. A apreciação da questão impõe, antes do mais, a fixação do regime legal que lhe subjaz.


O Código de Processo Penal, no Capítulo II, epigrafado «Da fixação de jurisprudência» - do Título II «Dos recursos extraordinários», do Livro IX «Dos recursos» -, estabelece um conjunto de normas sobre a finalidade, objeto, fundamentos e eficácia da fixação de jurisprudência (artigos 437.º a 448.º).


Integra-se este recurso no âmago da competência do Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista que vela pela correta aplicação da lei por todos os tribunais judiciais.


Submetidas à mesma rúbrica estão três especiais de recursos, cada um com as suas especificidades:


- recurso de fixação de jurisprudência propriamente dito (artigos 437.º a 445.º);


- recurso de decisões proferidas contra jurisprudência fixada (art.446.º); e


- recursos interpostos no interesse da unidade do direito (art.447.º).


A finalidade do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência é a interpretação uniforme da lei, evitando contradições entre acórdãos dos tribunais superiores.


Como observa o Prof. Alberto dos Reis, justificando o recurso de fixação de jurisprudência propriamente dito, no exercício da sua atividade de interpretação da regra formulada pelo legislador “…há-de assegurar-se ao magistrado plena independência e completa liberdade; o juiz deve ter o poder de interpretar a lei segundo os ditames da sua consciência, sem estar sujeito a pressões nem a influências exteriores. Só assim se obterá Justiça, que mereça respeito e inspire confiança.”. Porém, existe o reverso da medalha, podendo o princípio da liberdade de interpretação conduzir a resultados indesejáveis: “A máxima constitucional – a lei é igual para todos – fica reduzida a fórmula vã, se, em consequência da liberdade de interpretação jurisdicional, a casos concretos rigorosamente iguais corresponderem soluções jurídicas antagónicas ou divergentes. O que importa essencialmente, para efeitos práticos é a atuação concreta da lei, e não a sua formulação abstrata.


Sente-se, pois, a necessidade de conciliar o princípio da liberdade de interpretação da lei com o princípio da igualdade da lei para todos os indivíduos. Quer dizer, reconhece-se a conveniência de tomar providências tendentes a assegurar, quanto possível, a uniformidade da jurisprudência.”.2


O que está em causa não é, pois, a reapreciação da decisão de aplicação do direito ao caso no acórdão recorrido, transitado em julgado, mas verificar, partindo de uma factualidade equivalente, se a posição tomada no acórdão recorrido, quanto a certa questão de direito, seria a que o mesmo julgador tomaria, se tivesse que decidir no mesmo momento essa questão, no acórdão fundamento, e vice-versa. 3


O recurso fundado em oposição de acórdãos, tem vocação «normativa», ou de fixação de uma quase-norma, com efeito de generalidade, tendencialmente destinada a ter validade geral, que exprime a posição do S.TJ através do pleno das respetivas secções.4


8.1. A oposição de julgados suscetível de fazer seguir o recurso para fixação de jurisprudência pressupõe a verificação de determinados requisitos que, em termos gerais, constam dos artigos 437.º e 438.º do Código de Processo Penal.


O objeto do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, previsto nestas normas, são as decisões colegais contraditórias, “acórdãos”, proferidas em qualquer tipo de recurso, pelos Tribunais Superiores e, como fundamento de uma concreta oposição, só pode invocar-se um único acórdão anterior, transitado em julgado, pois só assim se delimita com precisão a questão ou questões a decidir.


Para além dos requisitos resultantes diretamente destas normas, como a fulcral verificação de oposição de julgados, no domínio da mesma legislação, acrescentou a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, desde há muito tempo, dois outros requisitos: a) a identidade dos factos contemplados nas duas decisões em conflito (dado que só assim é possível estabelecer uma comparação que permita concluir que relativamente à mesma questão de direito existem soluções opostas); e b) a decisão expressa sobre a questão objeto de termos contraditórios (ou seja, as soluções em oposição têm que ser expressamente proferidas em cada uma das decisões).5


8.2. A admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência implica, pois, a observância de determinados requisitos ou pressupostos, uns de ordem formal e outros de ordem substancial.


A) Os requisitos formais de admissibilidade do recurso de fixação da jurisprudência são:


(i) A legitimidade do recorrente; (ii) A interposição do recurso no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar; (iii) Invocação no recurso do acórdão fundamento do recurso, com junção de cópia do mesmo ou do lugar da sua publicação; (iv) O trânsito em julgado dos dois acórdãos; e (v) Justificação da oposição que origina o conflito de jurisprudência.


B) São requisitos substanciais de admissibilidade, deste recurso extraordinário, por sua vez: (i) A existência de julgamentos, da mesma questão de direito, entre dois acórdãos da Relação (o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento); (ii) Os acórdãos assentam em soluções opostas, de modo expresso e a partir de situações de facto idênticas; e (iii) São ambos proferidos no domínio da mesma legislação.


Sendo a fixação de jurisprudência um recurso “extraordinário” devem ser rigorosamente apreciados os respetivos requisitos, já que a sua interposição coloca em crise o caso julgado formado sobre um acórdão, no caso, da Relação.


Como bem expende o acórdão deste Supremo Tribunal, de 19/04/2017, “Do carácter excecional deste recurso extraordinário decorre necessariamente um grau de exigência na apreciação da respetiva admissibilidade, compatível com tal incomum forma de impugnação, em ordem a evitar a vulgarização, a banalização dos recursos extraordinários”, obstando a que possa transformar-se em mais um recurso ordinário, contra decisões transitadas em julgado.”. 6


8.2. Retomando o caso concreto.


8.2.1. No que respeita aos requisitos formais de admissibilidade do recurso de fixação da jurisprudência, entendemos poder adiantar, desde já, que se mostram verificados.


Efetivamente:


(i) A recorrente, na qualidade de assistente contra quem foi proferido o acórdão recorrido, revogando o despacho de pronúncia dos arguidos, tem legitimidade para interpor o recurso (artigos 437.º, n.º5 do C.P.P.);


(ii) O recurso é tempestivo, uma vez que foi interposto no prazo de 30 dias, a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.


Com efeito, resulta dos elementos juntos ao presente recurso, que o acórdão recorrido, proferido a 27 de junho de 2023, transitou em julgado em 13 de julho de 2023. Assim, a interposição do recurso em 15 de setembro de 2023, ocorreu no prazo de 30 dias, a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido, proferido em último lugar.


(iii) O recorrente invocou no recurso o acórdão fundamento e indicou o local onde se encontra publicado, pelo que foi ordenada e junta aos presentes autos certidão do acórdão com nota de trânsito.


(iv) O acórdão fundamento transitou em julgado em 13 de julho de 2004, pelo que transitaram em julgado os dois acórdãos.


(v) Justificou, ainda, o recorrente a oposição de julgados que, no seu entender, origina o conflito de jurisprudência.


8.2.2. Vejamos, seguidamente, se também se mostram verificados os requisitos substanciais de admissibilidade, deste recurso extraordinário.


No que respeita ao requisito (i), suprarreferido, anotamos a existência nos autos de dois acórdãos do Tribunal da Relação, com julgamento da mesma questão de direito, que era saber se a conduta dos arguidos preenchia o tipo constante do n.º 3 do art.194.º do Código Penal.


Os acórdãos do Tribunal da Relação proferidos em 27 de junho de 2023 e em 28 de junho de 2004, foram proferidos no domínio da mesma legislação, como é exigência do requisito substancial a que já se aludiu (iii), pois durante o intervalo da sua prolação, manteve a mesma redação.


Mais problemática é a existência de oposição de julgados, no sentido de que os acórdãos assentam em soluções opostas, de modo expresso e a partir de situações de facto idênticas.


A verificação deste requisito substancial (ii) exige que se clarifique, em primeiro lugar, o essencial das decisões proferidas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento sobre a questão objeto de recurso.


Só comparando as duas decisões se pode, num segundo momento, optar pela existência de oposição, ou não, de julgados e consequente prosseguimento ou rejeição do recurso.


A) Acórdão recorrido


O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27 de junho 2023, que concedeu provimento aos recursos interpostos pelos arguidos e, em consequência, revogou o despacho recorrido que havia pronunciado os arguidos pela prática de um crime de violação de correspondência, p. e p. pelo art.194.º, n.º3 do Código Penal, consignou, com relevo para a decisão do presente recurso extraordinário (transcrição parcial):


“(…)


Os factos que constam do requerimento de abertura de instrução e são imputados aos arguidos são os seguintes: (transcrição)


«1o. Em data não concretamente apurada do mês de abril de 2013, o ArguidoBB apropriou-se do extrato de conta da ofendida AA no Banque Privée E..... .. ........., no ..., referente ao mês de março de 2012, que havia sido remetido para a morada desta sita na Rua ..., em ....


2o. Estes extratos, foram remetidos, via postal, pela dita instituição financeira, para a ofendida e assistente AA.


3o. A Denúncia da referida apropriação, foi apresentada pela ofendida, em 03 de junho de 2013 e mereceu o Nr.4179/13.3... da ...Secção do MP, sendo posteriormente remetida para julgamento pelo então J... . do Tribunal de Instância Local Criminal de ..., onde o Arguido BB, foi ali condenado, já com trânsito em julgado, além do mais, pela prática de dois crimes de violação de correspondência, na pena de 95 dias de multa por cada um.


4o. O Arguido CC, por sua vez, constituiu-se, mandatário do Primeiro, tomando direto conhecimento da mencionada apropriação não consentida da correspondência da ofendida, por parte do arguido BB e da proibição que impendia sobre o mesmo, na divulgação ou uso da correspondência ilicitamente apropriada e que lhe mereceu uma condenação penal com trânsito em julgado.


5o.Posteriormente ao trânsito em julgado desta condenação, os Arguidos BB e CC, o primeiro enquanto mandante e o segundo na qualidade de seu advogado e mandatário, apresentaram em 3 outros processos, requerimentos aos quais juntaram os mesmos extratos bancários da Assistente, ilicitamente apropriados pelo Arguido BB, da caixa de correio da ofendida, cujo ato, determinou a condenação penal do primeiro.


6.° Pela utilização e divulgação dos extratos bancários da ofendida c assistente, nos processos: 9505/12. ..., do J... .. do Juízo Local Criminal do Tribunal Judicial da Comarca …; 169/16.2..., do J... . do Juízo Local Criminal do Tribunal Judicial da Comarca …; e 9372/13.6..., do J... . do Juízo de Execução do Tribunal Judicial da Comarca …, foi apresentada a competente Denúncia Crime, agora pelo tipo do Artigo 194° Nr. 3 do Código Penal, que mereceu o Nr.7745/17.4..., denúncia essa que culminou na prolação da Sentença de condenação de ambos os Arguidos, pela prática, como coatores materiais de três crimes de violação de correspondência, previstos e punidos pelo artigo 194° Nr.3 do código penal, agora pelo J... . do Juízo Local Criminal de....


7o. No dia 28 de maio de 2020, os Arguidos, o primeiro como mandante e o segundo enquanto seu advogado e mandatário, juntaram novamente, agora ao Processo 175/12.6TBVRM do J... . do Juízo de Execução de ..., sem que para tal estivessem autorizados pela ofendida e assistente, cópia dos mesmos extratos bancários ilicitamente retirados da caixa de correio desta.


8o. Mais uma vez, este documento, junto ao Processo 175/12.3TBVRM pelos Arguidos, consiste numa cópia do extrato bancário da ofendida referido no ponto 1 desta acusação.


9o. Os Arguidos juntaram as cópias do extrato bancário da ofendida ao processo acima mencionado, sem a sua autorização e contra a sua vontade.


10°. Autorização esta que sabiam necessária, até porque o Arguido BB foi condenado no âmbito do processo 4179/13.3..., por sentença transitada em julgado em 16.11.2015, pela prática, além do mais, de dois crimes de violação de correspondência, precisamente por se ter apropriado e usado o referido extrato bancário da ofendida. Neste processo, o Arguido CC foi o defensor do Arguido BB, em sede de recurso.


11°. Bem sabiam os Arguidos que não podiam juntar ao sobredito processo o extrato bancário da ofendida, sem a autorização desta, por se tratar de correspondência a ela exclusivamente dirigida e, ainda assim, decidiram fazê-lo


12°. Os Arguidos sabiam que atuavam contra a vontade da ofendida e que, ao divulgarem a correspondência desta, praticavam ato que sabiam era proibido.


13°. Os Arguido tinham perfeita consciência da ilicitude dos seus atos, conformando-se com os resultados dos mesmos e prejudicando deliberadamente os legítimos interesses da ofendida.


14°. Revelando, assim, o comportamento dos Arguidos uma atuação grave, abusiva e dolosa, praticada com o reprovável fim de lesar os interesses da ofendida.


15°. Os Arguidos agiram consciente e voluntariamente, em conjugação de esforços, bem sabendo que os factos por si praticados eram previstos e punidos por lei e tinham a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.


16°. Não existem circunstâncias atenuantes que, de alguma forma, possam diminuir a culpa do Arguido.».


Nenhum dos recorrentes coloca em causa os factos objectivos indiciados, mas questionam se os mesmos podem integrar o crime que lhes é imputado, p. e p. peio artigo 194.°, n.°3 do Código Penal.


Estabelece o artigo 194.° do Código Penal:


Violação de correspondência ou de telecomunicações


1- Quem, sem consentimento, abrir encomenda, carta ou qualquer outro escrito que se encontre fechado e lhe não seja dirigido, ou tomar conhecimento, por processos técnicos, do seu conteúdo, ou impedir, por qualquer modo, que seja recebido pelo destinatário, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias.


2- Na mesma pena incorre quem, sem consentimento, se intrometer no conteúdo de telecomunicação ou dele tomar conhecimento.


3- Quem, sem consentimento, divulgar o conteúdo de cartas, encomendas, escritos fechados, ou telecomunicações a que se referem os números anteriores, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias.


(…).


A assistente imputa aos arguidos a prática de um crime de violação de correspondência, na modalidade prevista no n.°3 do artigo 194.°, n.º3, do Código Penal, por, em síntese, eles terem juntado a um processo judicial, sem o seu consentimento, um extracto de uma conta bancária da mesma de que o primeiro arguido se tinha ilicitamente apoderado, conduta esta que esteve na base da sua condenação, num outro processo-crime, por um crime de violação de correspondência, desta feita p. e p. pelo n.º1 daquele mesmo preceito legal.


Não importa, para este efeito, saber se, no processo civil, é ou não admissível a junção de um tal documento de que o arguido se tinha ilicitamente apoderado. O que para aqui releva é saber se esta conduta tem relevância criminal, em especial se ela preenche o tipo incriminador constante do n.º3 do indicado artigo 194.° do Código Penal.


Da análise do artigo 194.º, facilmente verificamos que o objecto da acção descrita no tipo incriminador contido no n.º3 do artigo 194.° é o mesmo que o objecto dos tipos incriminadores constantes dos n.ºs 1 e 2 desse mesmo preceito. É uma encomenda, uma carta ou qualquer outro escrito que se encontre fechado e não seja dirigido ao agente ou o conteúdo de uma telecomunicação a que o agente não tenha legalmente direito de aceder.


Como refere Costa Andrade em anotação ao artigo 194.° do Código Penal (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, p.758), «Para constituírem objecto típico da infracção, os escritos têm de estar fechados., uma exigência que se reveste de particular relevo em se tratando de cartas . Como assinala o BGH alemão: "é ao fechar a carta que se dá expressão visível ao desejo de confidencialidade "(JZ 1990 754) E precisamente este facto - estar fechada - que define a fronteira da tutela penal do sigilo de correspondência e dos escritos em geral».


Assim sendo, a junção de um escrito contido numa carta que já tinha sido aberta e cujo conteúdo já tinha sido divulgado anteriormente em outros processos judiciais não consubstancia a prática do crime tipificado no n.º 3 do artigo 194.° do Código Penal. Não existe nesse comportamento qualquer violação do sigilo da correspondência, que é o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora.


Não está aqui em causa o facto de o escrito em questão ter natureza privada, nem o seu conteúdo mas antes o facto de ser divulgado, sem o consentimento, do seu titular, um escrito que se encontrava fechado c como tal sigiloso e inacessível a terceiros. Ora, se o escrito já se encontrava aberto e já havia sido divulgado, não vemos como possa essa conduta ter violado o sigilo da correspondência e caber na previsão do n.°3 do artigo 194.° do Código Penal.


Termos em que, se conclui, que os factos indiciados não são susceptíveis de integrar o tipo legal de crime do n.°3 do artigo 194.° do Código Penal, pelo qual os arguidos foram pronunciados, o que determina a procedência dos recursos.”.


B) Acórdão fundamento


O acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 28 de junho de 2004, que negou provimento ao recurso interposto pelo arguido e manteve integralmente a sentença que condenou o arguido pela prática de um crime de violação de correspondência , p. e p. pelo art.194.º, n.º3 do Código Penal, consignou por sua vez e com relevo para a decisão do presente recurso extraordinário (transcrição parcial):


“E- Factos que o tribunal recorrido julgou como provados:

• No âmbito da acção de divórcio litigioso com o n.º 250/2001 a correr termos no Tribunal de Família e Menores …, na qual figura como Autora DD e Réu o arguido, este juntou com a contestação e como doe. n.º3 a carta cuja cópia consta de fls. 12 dos autos.

• Tal carta foi indicada como meio de prova do facto alegado no artigo 15° da daquela peça processual, onde o Réu alega "querer (a autora) ir viver com outro homem, (...) abandonar o lar conjugal, abandonando, assim, o Réu e a criança", conforme consta da cópia de fls. 8-lldestes autos, cujo teor se dá por reproduzido.

• A missiva tinha como destinatária DD e por remetente uma irmã desta, EE, residente em ….

• Na mesma missiva EE criticava severamente a conduta de DD, designadamente no que concerne a um eventual abandono do menor filho de EE, que aquela DD criara e tinha ao seu cuidado, conforme cópia de fls. 12 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.

• A referida carta datada de 25 de Maio de 2000 fora enviada pelo correio para a residência do casal, sita no Bairro..., ....


DD havia abandonado a residência conjugal em data anterior ao envio da referida carta, não tendo recebido a mesma missiva.


- Ao juntar a referida carta na acção de divórcio, após ter conhecimento do seu conteúdo, o arguido quis utilizá-la em proveito próprio, divulgando-o o conteúdo de tal missiva sem autorização e contra a vontade da pessoa a quem se destinava, pretendendo assim que terceiros tivessem acesso ao conteúdo da referida missiva, lesando a intimidade e privacidade da Autora naquela acção.


-Agiu livre, deliberada e conscientemente, com perfeito conhecimento de que ao actuar da forma descrita afectava a confiança da comunidade no sigilo da correspondência, bem sabendo que a sua conduta era proibida.


(…)


F- Colhidos os vistos, cumpre decidir.


O recorrente começa por manifestar a sua discordância quanto ao enquadramento jurídico dos factos provados na previsão do n°3, do artigo 194°, do Código Penal. Na sua perspectiva, o preenchimento desse tipo legal de crime exige que o agente tenha aberto a missiva sem consentimento do destinatário, não se bastando, como incorrectamente entendeu o tribunal recorrido, com a sua mera divulgação.


Vejamos o que estabelece o preceito legal:


(…)


O texto deste artigo resulta da revisão operada pelo Decreto Lei 48/95, de 15 de Março, e uma das novidades foi, precisamente, o de autonomizar como ilícito crime o que anteriormente constituía apenas uma agravação da pena prevista para o crime de violação de correspondência, pela abertura de encomenda, carta ou outro escrito fechado, sem consentimento (cfr. artigo 182°, do Código Penal aprovado pelo DL 400/82, de 23.09).


Ou seja, a partir dessa revisão, a divulgação do conteúdo de uma carta ou qualquer outro escrito, sem consentimento, passou a merecer uma incriminação directa e autónoma, sendo indiferente saber se foi ilícito o processo da sua obtenção, o que, no dizer de Manuel da Costa Andrade (Comentário Conimbricense ao Código Penal, Vol. I, pag. 763), está "em consonância com a estrutura normal dos crimes de devassa que, em princípio, tanto compreendem a intromissão indevida na área de reserva como o alargamento indevido no universo de pessoas a tomar conhecimento".


Aliás, como também resulta do preâmbulo do DL 48/95, de 15.03, o legislador, para protecção dos últimos redutos da privacidade a que todos têm, e na sequência da norma de conteúdo programático do então n°2, do artigo 33°, da Constituição da República Portuguesa, quis claramente definir outros específicos tipos legais de crime, como foi o caso do tipo legal do n°3, do artigo 194°, do CP, o qual passou a concorrer com o previsto no nºl, do mesmo preceito legal, embora ambos se reconduzam, ao fim e ao cabo, à protecção de um mesmo bem jurídico.


Assim, os elementos gramatical, sistemático, histórico e teleológico não autorizam nem legitimam a interpretação que o recorrente faz do preceito, antes reclamam e impõem a interpretação dada pelo Ministério Público, na 1a e 2a instâncias, que vai de encontro ao enquadramento jurídico dado aos factos pelo tribunal recorrido. Inequivocamente, o arguido, ao juntar ao processo de divórcio, sem consentimento da ofendida, uma carta que a esta tinha sido dirigida para a sua morada, divulgou ilicitamente o seu conteúdo, ainda que num universo restrito de pessoas, pelo que esse seu comportamento integra o tipo legal de crime previsto no n°3, do artigo 194°, mesmo não se tendo provado ter sido ele autor da violação dessa correspondência. A circunstância de a carta ter sido recebida na casa de morada de família que a destinatária anteriormente tinha abandonado, não obsta a que se considere que a missiva tenha entrado na esfera de disponibilidade fáctica da ofendida, nem legitima o arguido a considerá-la como sua.


(…)


Pelo exposto, improcedem todas as conclusões de recurso.”.


-


Comparando estas duas decisões, verificamos:


O acórdão recorrido, para considerar que os factos indiciados não são suscetíveis de integrar a prática de um crime de violação de correspondência, p. e p. pelo n.º 3 do art.194.º, do Código Penal, e revogar o despacho recorrido, de pronúncia, fundou-se na seguinte ideia fundamental:


(i) o tipo penal exige para o seu preenchimento que a correspondência - carta, encomenda ou qualquer outro escrito -, se encontre fechada, e não seja dirigida ao agente;


(ii) a tutela penal do sigilo de correspondência e dos escritos em geral, assenta no facto da correspondência estar fechada e como tal estar sigilosa e inacessível a terceiros; se a correspondência já se encontra aberta e o seu conteúdo divulgado, ainda que sem o consentimento do seu titular, não existe violação da tutela penal;


(iii) O extrato de uma conta bancária da assistente, contido numa carta de que um dos arguidos se apropriou ilicitamente, e que os arguidos juntaram ao proc. n.º 7044/20.4T9LSB sem o consentimento da assistente, já tinha sido divulgado anteriormente em outros processos judiciais, pelo que a conduta dos arguidos não viola o sigilo da correspondência.


O acórdão fundamento, para negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e manter a sentença condenatória do arguido pela prática de um crime de violação de correspondência, p. e p. pelo art.194.º, n.º3 do Código Penal, partiu, por sua vez da seguinte ideia central:


(i) Com a revisão do texto do art.194.º do Código Penal, levada a cabo pelo DL n.º48/95, de 15 de março, a divulgação do conteúdo de uma carta ou qualquer outro escrito, sem consentimento, passou a merecer uma incriminação direta e autónoma, sendo indiferente saber se foi ilícito o processo da sua obtenção;


(ii) Os elementos de interpretação da lei não autorizam a interpretação que o arguido faz do n.º 3 do art.194.º do Código Penal, no sentido de que o tipo legal “exige que o agente tenha aberto a missiva sem consentimento do destinatário, não se bastando, como incorretamente entendeu o tribunal recorrido, com a sua mera divulgação”; (iii) O arguido ao juntar ao processo de divórcio, sem consentimento da ofendida, uma carta que a esta tinha sido dirigida para a sua morada, divulgou ilicitamente o seu conteúdo, ainda que num universo restrito de pessoas, e mesmo não se tendo provado ter sido ele autor da violação dessa correspondência, integrou o tipo legal de crime previsto no n°3, do artigo 194°, do Código Penal.


É medianamente claro do acórdão recorrido, que é o facto do conteúdo da carta aberta, junta no processo em referência, ter sido divulgado anteriormente - noutros três processos judiciais, pelos quais os arguidos foram condenados (pontos n.ºs 5 e 6 dos factos provados) - que determina o Tribunal da Relação de Lisboa a decidir-se pela não violação do sigilo de correspondência e, idêntica situação de facto não ocorreu no acórdão fundamento, pois o conteúdo da carta que fora já aberta ainda não tinha sido divulgado antes de junta à ação de divórcio.


O texto do acórdão recorrido não exclui que o Tribunal da Relação de Lisboa pudesse decidir da mesma maneira que o acórdão fundamento decidiu, se o extrato bancário contido na carta aberta pertencente à assistente, tivesse sido divulgado apenas com a sua junção no processo judicial que dá lugar à instauração do processo criminal por crime de violação de correspondência.


Em contrário do entendimento da recorrente expresso no art.92 das conclusões da sua motivação, face ao texto do acórdão fundamento, nada obstaria até que o Tribunal da Relação de Guimarães optasse pela absolvição do arguido se tivesse de decidir da existência do crime de violação de correspondência numa situação em que o conteúdo da carta aberta junta à ação de divórcio, tivesse já sido divulgada pelo arguido noutros processos judiciais, através da sua junção aos mesmos.


Do exposto, resulta que as soluções divergentes no acórdão recorrido e acórdão fundamento, decidindo aquele revogar o despacho de pronúncia, por considerar que os factos indiciados não são suscetíveis de integrar a prática de um crime de violação de correspondência, p. e p. pelo n.º 3 do art.194.º, do Código Penal e, este, negando provimento ao recurso interposto pelo arguido e mantendo integralmente a sentença condenatória do arguido pela prática de um crime de violação de correspondência , p. e p. pelo .º 3 do art.194.º, do mesmo Código, assentam em situações de facto diversas.


Assentando em situações de facto diversas, as soluções divergentes, tomadas nos arrestos em confronto, não se verifica o requisito de oposição de julgados.


Não se verificando o requisito substancial da oposição de julgados exigido pelo art.437.º, n.º1 do Código de Processo Penal, mais não resta que rejeitar o presente recurso para fixação de jurisprudência, nos termos dos artigos 440.º, n.º 4 e 441.º, n° 1, do mesmo Código.


III. Decisão


Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes desta Secção do Supremo Tribunal de Justiça em:


a) rejeitar o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pela assistente AA, nos termos do disposto no art.441.º, n.º 1 do Código de Processo Penal; e


b) condenar a mesma recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UCs (artigos 513.º, n.ºs 1 e 3 do C.P.P. e 8.º, n.º 9 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais).


*


(Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.P.).

Lisboa, 15 de fevereiro de 2024

Orlando Gonçalves (Juiz Conselheiro Relator)


Jorge Gonçalves (Juiz Conselheiro Adjunto)


Vasques Osório (Juiz Conselheiro Adjunto)


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1. Sem apresentar os sublinhados e palavras a negrito.↩︎

2. Cf. “Código de Processo Civil anotado”, Coimbra Ed., 1981, Vol. VI, pág. 234.↩︎

3. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de janeiro de 2021, proc. n.º 454/17.6T9LMG-E.C1-A.S1- 3.ª Secção., in www.gdsi.pt↩︎

4. Cf. Pereira Madeira e Henriques Gaspar, in “Código de Processo Penal Comentado” de Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Medes, Pereira Madeira e Pires da Graça, 2016. Almedina - edição 2014, páginas 1554 e 132, respetivamente.↩︎

5. Cf., entre muitos, os acórdãos de 21-2-1969, in BMJ n.º184, pág. 249 e de 04-02-2021, proc. n.º 68/15.5IDFUN .L1-A.S1- 5.ª Secção, in www.dgsi.pt.↩︎

6. Proc. n.º 175/14.1GTBRG.G1-A.S1, in www.dgsi.pt.↩︎