Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02A818
Nº Convencional: JSTJ00002048
Relator: LOPES PINTO
Descritores: FALÊNCIA
APREENSÃO
EMBARGOS DE TERCEIRO
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: SJ200204230008181
Data do Acordão: 04/23/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 1198/01
Data: 11/12/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR PROC CIV - PROC ESP.
DIR CONST.
Legislação Nacional: CPEREF98 ARTIGO 10 N1 ARTIGO 128 N1 C ARTIGO 129 ARTIGO 175 N1 ARTIGO 176 N1 ARTIGO 179 N2 N3 ARTIGO 201 ARTIGO 203 ARTIGO 205.
CPC95 ARTIGO 351 N2 ARTIGO 359 N1 ARTIGO 722 N1 ARTIGO 754 N2.
Sumário : I - Não forma caso julgado formal o despacho que, em embargos de terceiro, ordena a produção da prova e os recebe.
II - Se no recurso de revista for também arguida violação de Lei Processual, mas em que desta não era admissível recurso, não há que conhecer desse segmento decisório.
III - A norma do n. 2 do art. 351 CPC. é especial, não é excepcional, por ela se deixando a porta aberta para a defesa de terceiros ser regulada em diploma próprio do Instituto Falimentar.
IV - Em Processo Falimentar não são admissíveis embargos de terceiro com função preventiva, o que não é inconstitucional.
V - Nesse processo, apreendidos os bens, o terceiro que se arrogue com direito real sobre eles tem de se servir dos meios específicos que o CPEREF contempla, o que não obstaculiza a iniciativa do liquidatário desde que obtenha parecer favorável da comissão de credores.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A", deduziu embargos de terceiro, com função preventiva, por apenso ao processo de falência de B, a fim de ser, designadamente, «suspensa de imediato a apreensão ordenada» «de todos os bens que se encontrem na sede da falida, nomeadamente os que são detidos pela» embargante.
Produzida a prova informatória, foi ordenada a suspensão da apreensão e a notificação da falida embargada, na pessoa do seu liquidatário.
Este, contestando, excepcionou o erro na forma do processo e a ilegitimidade da falida, e impugnou.
A embargante, apenas por julgar ser de atribuir carácter urgente a este processo de embargos, requereu o desentranhamento da contestação, por extemporaneidade.
Replicou por ter como admissível a dedução de embargos preventivos.
Instruído o processo com diversos documentos, foi proferido despacho saneador onde foi tida por tempestiva a apresentação da contestação, desatendido o erro na forma do processo e julgados improcedentes os embargos.
Apelou, sem êxito, a embargante.
Novamente inconformada, pediu revista concluindo, em suma e no essencial, em suas alegações:
- o despacho de recebimento dos embargos de terceiro com função preventiva formou caso julgado,
- pelo que não podiam as instâncias voltar a pronunciar-se sobre a questão processual;
- além de tal constituir violação de caso julgado formal, o acórdão padece de nulidade por os seus fundamentos estarem em oposição com a decisão proferida;
- a norma do art. 351 n. 2 CPC é excepcional, não se aplicando aos embargos de terceiro com função preventiva nem comportando aplicação analógica;
- o CPEREF permite o recurso a estes embargos no processo especial de recuperação da empresa e de falência,
- os quais têm carácter de urgência, pelo que a contestação não é tempestiva e devia ter sido desentranhada;
- é inconstitucional, por conduzir a regulação arbitrária, discriminatória e a intolerável desigualdade, a interpretação dos arts. 359 n. 1 e 351 n. 2 CPC, no sentido da impossibilidade de dedução de embargos de terceiro com função preventiva;
- violado o disposto nos arts. 10 e 14 CPEREF, 144, 145, 351, 354, 359, 668 n. 1 c), 671 e 672 CPC e 13 e 62 CRPort.
Contraalegando, pugnou a embargada pela confirmação do julgado.
Colhidos os vistos.
Ao abrigo do disposto no art. 713 n. 6 CPC, remete-se a descrição da matéria de facto para o acórdão recorrido, sendo que, fundamentalmente, é suficiente para conhecer do objecto do recurso a contida no relatório supra.

Decidindo:

1 - Deduzidos os embargos, o sr. Juiz proferiu despacho a ordenar a produção de prova e recebeu-os.
Defende a embargante que tal decisão é susceptível de caso julgado, pelo que se impõe ainda que, porventura, não gozasse de apoio legal.
Antecede tal despacho a produção de prova meramente perfunctória. Para a prolacção do despacho nem sequer é ouvida a parte contrária o que, desde logo, inviabiliza que se lho possa opor com força de caso julgado.
Pode, assim, a parte contrária opor-lhe todas as questões que, em seu entender, deviam ter conduzido a que fosse proferido em sentido diferente.
Além disso, que em si é suficiente para demonstrar o infundado da argumentação da embargante, são a finalidade em si do despacho e o seu carácter provisório a contrariarem-na também.
Em princípio, o sr. Juiz parece ter-se preocupado apenas com a prova (informatória) da existência da posse e da qualificação de terceiro.
E, porque no despacho nada decidiu sobre a admissibilidade destes embargos, relegou (e não é preciso dizê-lo expressamente) o conhecimento e decisão do problema para momento posterior, o que lhe era permitido.
Tratando-se de um despacho com natureza de liminar, o conhecimento de questões que nele poderiam ter sido decididas não ficou precludido.
Por outro lado, além de proferido sem audição da parte contrária, há que ter em conta o carácter genérico da pronúncia, não havendo um debruçar directo e concreto da questão muito embora ela seja de conhecimento oficioso (invocável aqui, a argumentação, hoje pacífica, para não conferir força de caso julgado ao despacho saneador sobre excepções dilatórias quando de carácter genérico).
2 - A embargante continua a defender a extemporaneidade da contestação atribuindo a este processo de embargos de terceiro carácter urgente.
Desde logo, é inviável o conhecimento de tal questão (independentemente, o disposto no art. 10 n. 1 CPEREF não consente tal interpretação).
«Sendo o recurso de revista o próprio, pode o recorrente alegar, além da violação de lei substantiva, a violação de lei de processo, quando desta for admissível o recurso, nos termos do nº 2 do art. 754, de modo a interpor do mesmo acórdão um único recurso» (CPC art. 722,n. 1).
Os embargos foram propostos em 00.06.08.
O despacho saneador ao negar procedência à arguição não pôs termo ao processo.
A Relação, conhecendo, no acórdão recorrido, desta decisão, confirmou-a, sem voto de vencido.
Porque deste segmento decisório não era admissível agravo para o STJ, não se conhece da respectiva alegação da embargante - não lhe era lícito produzi-la.
3 - Pugna pela admissibilidade dos embargos de terceiro com função preventiva.
As instâncias negam-na.
«Não é admitida a dedução de embargos de terceiro relativamente à apreensão de bens realizada no processo especial de recuperação e de falência» (CPC art. 351, n. 2).
No entender da embargante, apenas se aplica se tiver havido efectiva apreensão (aqui sim porque previstos no CPEREF 201, 203 e 205). Atribuindo carácter excepcional à norma, considera inaplicável o disposto no art. 359 n. 1 CPC.
A norma contida nesse n. 2 é especial por ela se deixando a porta aberta para a defesa de terceiros ser regulada em diploma próprio do instituto falimentar. Estabelecendo-a, pretendeu-se com ela acautelar a especificidade daquele instituto e que a restituição e separação de bens tivesse lugar em sede própria e a sua regulamentação, já de si reveladora de particularidades muito próprias, não andasse dispersa, antes fosse compendiada num só diploma. Não se criou qualquer norma excepcional.
Assim, não seria pelo seu carácter que a norma do nº 1 do art. 359 CPC deixaria de ser aplicada.
A resolução da questão não passa pela controvérsia que a embargante quis suscitar.
A lei, como se disse, quis compendiar num só Código a legislação relativa ao processo falimentar, nele regulando exaustivamente todos os seus aspectos, incluindo o relativo aos meios para se reagir à apreensão de bens. Entre estes não consagrou a possibilidade de a reacção ser desencadeada contra o despacho que a ordenou - não o quis fazer quer pelo propósito de codificação quer por não ter como subsidiária à mesma o CPC (onde o é, expressamente para ele se remete) quer por a protecção que quis dispensar e o equilíbrio de interesses que procurou encontrar o desaconselharem.
Se em lugar de visualizarmos o «despacho», olharmos ao que a lei refere - a apreensão é decretada na sentença de declaração de falência (CPEREF 128, n. 1 c)); contra esta reage-se embargando (art. 129; não é impugnável através de recurso - este só caberá da sentença sobre os embargos, art. 228); proferida a sentença procede-se à imediata apreensão (art. 175 n. 1), resultando da declaração de falência o poder de apreensão (art. 176 n. 1) - observa-se que, embora negando a quem se arrogue a propriedade ou a compropriedade de bens apreendidos a possibilidade de embargar, não lhe desacautelou a defesa do que julgue ser seu direito. A acção de reivindicação, o pedido de restituição ou de separação de bens são os meios que a lei colocou ao seu alcance (CPEREF 201, 203, 205 e 179 n. 2 e 3); mais, a separação pode, inclusive, ser requerida pelo liquidatário (art. 201 n. 2).
À requerente não lhe assistia, portanto, o direito de embargar.

4 - Defende a embargante a inconstitucionalidade por se ter socorrido «do único meio que tem ao seu dispor para defesa preventiva da propriedade dos seus bens», «sendo ... que, em qualquer outro tipo de processo o terceiro pode recorrer a este meio de garantia do seu direito à propriedade privada, quando colocado numa situação em tudo semelhante»; «tal interpretação exclusiva dos embargos de terceiro com função preventiva insurge-se em contradição com todo o sistema jurídico subjacente ao Código de Processo Civil e ao CPEREF».
De um modo sintético e sem pretensão de se ser exaustivo dir-se-á que o igual deve ser tratado como igual e o desigual como desigual.
Enquanto a execução é singular (abrindo-se, mais tarde, uma fase a certos outros - não a todos, portanto - credores), a falência e respectiva liquidação tem carácter universal. A falência é um regime que respeita à liquidação universal do património das empresas inviáveis.
Logo por aí, uma desigualdade - e fundamental - de situações, pelo que não requer o mesmo tratamento.
Um dos objectivos essenciais, comum à recuperação das empresas e à falência, é a salvaguarda dos interesses dos credores, aos quais a lei reconhece independência da sua posição face quer à empresa quer ao gestor judicial quer ao liquidatário mesmo no que respeita à actuação processual em geral (daí que, inclusivamente quanto os meios específicos de oposição à apreensão de bens de terceiro a sua posição não possa em nada ser dispensada) - é o chamado princípio da autonomia de actuação dos credores.
Na falência, os credores - todos eles - podem ser afectados pelos actos que da massa falida excluam ou pretendam excluir certos bens, são todos interessados, quando a apreensão ocorre ou pode ocorrer em processo sem carácter universal, os actos de exclusão de bens merecem uma repercussão restrita.
O instituto falimentar tem de se organizar procurando um equilíbrio entre os interesses de todos quantos nele possam ou devam intervir - falido, credores, promitentes, titulares de direitos reais de gozo sobre os bens, terceiros coobrigados, terceiros garantes da obrigação, etc.
Diversamente quando o acto que possa constituir agressão de direito real de gozo se insira em processo sem aquela natureza universal.
É na sentença que a apreensão é decretada, procedendo-se de imediato à apreensão dos bens. Não há um despacho autónomo e posterior à sentença.
Apreendidos os bens, se eles pertencerem a terceiro, tem este de se servir dos meios específicos que o CPEREF consagra, o que não obstaculiza a iniciativa do liquidatário desde que obtenha parecer favorável da comissão de credores.
Reclamando a restituição ou a separação de bens, o seu dono funda o seu pedido na relação de domínio (art. 201 n. 1 a)) e o terceiro na titularidade de direito real de gozo sobre bens de que o falido não tinha sequer a posse (art. 201 n. 1 c)).
A reclamação tem assim de assumir a natureza de acção reivindicatória.
A reclamação e a reivindicação são os meios próprios para se fazer valer o direito real de gozo sobre os bens apreendidos em processo de falência e a lei não prevê - porque não quis concedê-la - qualquer providência cautelar a instaurar por quem se arroga ou virá a arrogar-se como reclamante ou reivindicante.
Nem tinha a lei que tratar como igual aquilo que é desigual nem devia descurar quer o carácter do processo de falência quer o equilíbrio entre os vários interesses que aí se debatem.
Desnecessária é qualquer outra fundamentação pois a expendida pela embargante não o exige.
Termos em que se nega a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 23 de Abril de 2002
Lopes Pinto.
Ribeiro Coelho.
Garcia Marques.