Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
298/18.8GDVFR-A.P1-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: LEONOR FURTADO
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
PRESSUPOSTOS
ACORDÃO FUNDAMENTO
TRÂNSITO EM JULGADO
PRAZO
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 02/15/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :
I - Nos termos do arts. 437.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, a oposição de julgados justificativa dos recursos para fixação de jurisprudência pressupõe que os acórdãos em confronto hajam decidido a mesma questão jurídica fundamental em sentidos reciprocamente contrários ou contraditórios – pois a contrariedade e a contradição são as únicas espécies possíveis de oposição entre proposições de um qualquer tipo.
II - Não se mostram preenchidos os pressupostos de natureza formal para recorrer, conforme o disposto nos arts.. 438.º, n.º 1 e 437.º, n.º 4, do CPP, nem se verifica a oposição de julgados, conforme art. 440.º, n.º 3 e 441.º, n.º 1, ambos do CPP, quando se verifica que o acórdão fundamento, não só, não é cronologicamente anterior ao acórdão recorrido, pois, ambos foram proferidos na mesma data, como, também, transitou em julgado depois deste.
III - No caso, falta um dos pressupostos fundamentais de admissibilidade do recurso para fixação de jurisprudência – a invocação de acórdão anterior transitado em julgado –, o que equivale a dizer que não se verifica fundamento para o recurso.
Decisão Texto Integral:

Recurso Fixação de Jurisprudência


Processo: 298/18.8GDVFR-A.P1-A.S1


5ª Secção Criminal


Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça


I – RELATÓRIO

1. O MINISTÉRIO PÚBLICO, junto do Tribunal da Relação do Porto interpôs recurso extraordinário, para fixação de jurisprudência, com o fundamento de que o acórdão proferido, em 12/07/2023, nestes autos, pelo Tribunal da Relação do Porto uma vez que, no domínio da mesma legislação, se encontra em oposição com outro acórdão desse mesmo Tribunal da Relação, proferido no próprio dia 12/07/2023, no âmbito do Processo n.º 90/19.2T9VLC-A.PI, considerando que, em seu entendimento, se está perante a mesma questão controvertida de saber “(…) se a apresentação em juízo de um arguido num tribunal estrangeiro, solicitada por carta rogatória, com vista a ser pessoalmente notificado de uma acusação - com subsequente prestação de Termo de Identidade e Residência -, é suscetível de fazer cessar a contumácia de um arguido residente no estrangeiro”.


Para tanto apresentou alegações concluindo:


1. No acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 12.07.2023 no processo n.º 290/18.8GDVFR-A.PI, foi decidido que a apresentação em juízo de um arguido num tribunal estrangeiro, no âmbito da cooperação judiciária internacional, com vista à sua notificação pessoal da acusação contra si deduzida, é suscetível de fazer cessar a contumácia de um arguido residente no estrangeiro, nos termos do disposto no artigo 336. n.º 1 do Código de Processo Penal.


2. Bem como se decidiu que "a carta rogatória a expedir destina-se, antes de mais, à apresentação do arguido em juízo. Por isso, deverá esclarecer que se pretende, em primeiro lugar, a notificação pessoal da acusação ao arguido no tribunal (com o que se dá essa sua apresentação em juízo). Subsequentemente, deverá ele prestar termo de identidade e residência".


3. No acórdão fundamento, também do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 12.07.2023, no Processo n.º 90/19.2T9VLC-A.PI, 4ª Secção Criminal, relatado pela Juíza Desembargadora Maria dos Prazeres Silva, decidiu-se que a notificação da arguida da acusação da data para realização da audiência de discussão e julgamento ), por contacto pessoal efetuado por autoridade judiciária estrangeira. solicitada por carta rogatória, não tem equivalência aos meios legais previstos para a caducidade da contumácia, nomeadamente, não é equiparável, em termos jurídico-normativos, ao conceito de "se apresentar", contido na norma do artigo 336.º. n.º 1, do Código Processo Penal.


4. Ou seja, entendeu-se no acórdão fundamento que "a notificação da arguida, por meio de carta rogatória, não equivale ao contacto pessoal da arguida com o tribunal, por um dos meios previstos na lei..." e que "a pretensão do Ministério Público não tem acolhimento legal, sendo contrária ao sentido da jurisprudência fixada..." no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2014. de 26 de março de 2014.


5. Dos acórdãos recorrido e fundamento não é admissível recurso ordinário, tendo ambos já transitado em julgado.


6. Ambos os acórdãos foram proferidos no domínio da mesma legislação e baseiam-se, no essencial, em diferentes interpretações do disposto no artigo 336, n.º 1 do Código de Processo Penal.


7. A questão controvertida é a de saber se a apresentação em juízo de um arguido num tribunal estrangeiro, solicitada por carta rogatória com vista a ser pessoalmente notificado de uma acusação - e subsequente prestação de Termo de Identidade e Residência -, é suscetível de fazer cessar a contumácia de um arguido residente no estrangeiro.


8. Requer-se, assim, que se reconheça a existência de oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, relativamente à interpretação da norma prevista no artigo 336.º, n.º 1, do Código Processo Penal,


9. Propondo-se que a questão controvertida seja decidida de acordo com o decidido no acórdão recorrido, por ser o entendimento que mais se coaduna com os princípios que regem a contumácia e a cooperação judiciária internacional.


Nos termos expostos, deve o presente recurso ser julgado procedente e fixar-se jurisprudência no sentido sugerido.”.

2. Por despacho de 11/10/2023, o TRP admitiu o presente recurso, sendo certo que tal despacho não vincula este tribunal superior – art.º 414.º, n.º 3, do CPP.

3. O Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto, neste Supremo Tribunal de Justiça, emitiu parecer, no qual se pronuncia no sentido da rejeição do recurso, com o fundamento de que os acórdãos recorrido e fundamento foram proferidos na mesma data e o acórdão recorrido transitou em julgado antes do acórdão fundamento, verificando-se no caso faltar um dos fundamentos do recurso, conforme exigido nos termos do art.º 437.º, n.º 4, do CPP. Para tanto apresentou alegações, concluindo nos seguintes termos:


“Concluindo:

• Não poderá o presente recurso prosseguir, porquanto:

• Sendo qualificado, como vem, como recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, verifica-se faltar um dos requisitos básicos exigidos pelo artº 437º do CPP (nº 3), pois que o acórdão fundamento apresentado não é anterior ao acórdão recorrido, mas sim seu contemporâneo;

• Tendo até transitado em julgado em momento posterior ao recorrido;

• Mesmo a não se entender pela falta de verificação daquele requisito (anterioridade do acórdão fundamento), certo é que não existe verdadeira oposição de julgados;

• Antes no acórdão recorrido – e muito embora tal seja ali expressamente negado - o que ocorreu foi o proferir de decisão que contrariou jurisprudência fixada, no caso, o Acórdão de fixação de jurisprudência nº 5/2014, de 26.03.2014, deste Supremo Tribunal de Justiça;

• Pelo que o recurso que deveria ter sido interposto seria, em abstrato, o extraordinário mencionado no artº 446º do CPP – recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada;

• Para tal devendo ser convolado o presente recurso, com base no disposto no artº 193º do Código de Processo Civil, aplicável ‘ex vi’ do artº 4º do CPP;

• Sendo que, no entanto, deverá acabar por ser rejeitado;

• Pois que a decisão recorrida não afastou a aplicação da jurisprudência fixada, o que seria imprescindível para se poder prosseguir o recurso nos moldes previstos no artº 446º;

• Antes erradamente entendeu que a situação não se enquadrava naquela, quando isso efetivamente sucedia;”.

4. No exame preliminar o relator verifica a admissibilidade e o regime do recurso e a existência de oposição entre os julgados, conforme art.º 440.º, n.º 3, do CPP, pelo que, interessa, pois, saber se estão verificados os pressupostos de admissibilidade do recurso de fixação de jurisprudência, considerando que os acórdãos em confronto foram proferidos na mesma data e o acórdão fundamento transitou em data posterior à do trânsito da decisão recorrida e, só depois, apurar se chegaram a soluções antagónicas sobre a mesma questão fundamental de direito.

5. Colhidos os vistos cumpre decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Enquadramento jurídico


O recurso para fixação de jurisprudência tem como objectivo a uniformização da jurisprudência.


Nos termos do art.ºs 437.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, a oposição de julgados justificativa dos recursos para fixação de jurisprudência pressupõe que os acórdãos em confronto hajam decidido a mesma questão jurídica fundamental em sentidos reciprocamente contrários ou contraditórios – pois a contrariedade e a contradição são as únicas espécies possíveis de oposição entre proposições de um qualquer tipo.


Note-se ainda que a identidade da questão jurídica depende: i) da essencial permanência da legislação aplicada nos dois arestos – art.º 437.º, n.º 3, do CPP; ii) que a questão só se mostra fundamental – e não meramente argumentativa e, por isso, acessória – quando a sua resolução decisivamente determinou algum dos comandos decisórios dos acórdãos; iii) e que, nas hipóteses em que o confronto se faça entre acórdãos das Relações, o recurso extraordinário do presente tipo não será admissível se a pronúncia do acórdão recorrido for conforme à jurisprudência anteriormente fixada pelo STJ – art.º 437.º, n.º 2, do CPP.


Assim, para se averiguar da ocorrência de uma oposição entre dois julgados, há que abstrair, da globalidade dos discursos de cada um deles, as proposições jurídicas que traduzam o essencial das suas pronúncias decisórias no ponto conflitual indicado pelo recorrente; e, adquirido que tais proposições são constituídas por termos com o mesmo sentido lógico, importa, em seguida, cotejá-las para ver se elas são reciprocamente opostas – o que sucederá se, detendo ao menos uma delas carácter geral, pudermos asseverar que só uma é necessariamente correcta ou verdadeira ou que a correcção ou verdade de uma implica a incorrecção ou falsidade da outra.

2. Da verificação dos pressupostos formais:


No caso, como bem demonstra no seu parecer o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, junto deste STJ, o recorrente interpôs o presente recurso para fixação de jurisprudência em 09/10/2023, Ref.ª Cítius ....33, pelo que, se verifica que a interposição do recurso ocorreu no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido.


O recorrente, tem legitimidade – art.º 437.º, n.º 5 do CPP – , tendo indicado o acórdão fundamento relativamente ao qual entende que o acórdão recorrido se encontra em oposição.


Todavia há que ver que, nos termos da certidão Ref.ª n.º ....96, o acórdão recorrido, proferido nestes autos, transitou em 19/09/2023 – conforme refere o MP, junto deste STJ, no seu parecer, “(…) o trânsito em julgado do acórdão recorrido terá ocorrido no dia 19.09.2023 (a certidão indica a data de notificação de 12.07.2023, pelo que, somando os 3 iniciais dias e os subsequentes 10 para invocar nulidades da decisão, o trânsito verificou-se naquele dia 19.09, por se ter suspendido no decurso das férias judiciais entre 16.07 e 31.08.2023)” –; enquanto que o acórdão fundamento, proferido no Proc. n.º 90/19.2T9VLC-A.P1, transitou depois daquele outro, em 02/10/2023, conforme certidão, Ref.ª Cítius n.º ....82.

1. Porém, não se mostram preenchidos os pressupostos de natureza formal para recorrer, conforme o disposto nos art.ºs. 438.º, n.º 1 e 437.º, n.º 4, do CPP, nem se verifica a oposição de julgados, conforme art.º 440.º, n.º 3 e 441.º, n.º 1, ambos do CPP.


Com efeito, neste recurso de fixação de jurisprudência, verifica-se que o acórdão recorrido e o acórdão fundamento foram prolatados na mesma data, concretamente no dia 12/07/2023, sendo certo que, o trânsito em julgado do acórdão recorrido, proferido nestes autos, ocorreu em 19/09/2023 e, o do acórdão fundamento, proferido no Proc. n.º 90/19.2T9VLC-A.P1, transitou em julgado em 02/10/2023, ou seja, depois daquele outro.


Assim sendo, não restam dúvidas de que o acórdão fundamento, não só, não é cronologicamente anterior ao acórdão recorrido, pois, ambos foram proferidos na mesma data, como, também, transitou em julgado depois deste, o que equivale à inexistência legal de oposição de julgados, no sentido em que faz parte do conceito de oposição que a divergência tenha ocorrido. Efectivamente, dispõe o n.º 4, do art.º 437.º, do CPP, que, “Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.” – sublinhado nosso. Neste sentido vd. Ac. do STJ de 25-06-2009, Proc. n.º 107/09.9YFLSB, em www.dgsi.pt.

3. Termos em que, no caso, se verifica que falta um dos pressupostos fundamentais de admissibilidade do recurso para fixação de jurisprudência – a invocação de acórdão anterior transitado em julgado –, pois que o recorrente invocou um acórdão proferido na mesma data da decisão recorrida, mas transitado em julgado depois daquele outro, o que equivale a dizer que não se verifica fundamento para o recurso, que é a invocação do acórdão fundamento transitado em julgado.


Com efeito, a divergência que se verifica é entre o acórdão recorrido transitado em julgado, e um acórdão que, tendo sido proferido na mesma data daquele, e, por isso, não lhe é anterior, e que, não tinha transitado em julgado. Assim sendo, não se verificando a existência de acórdão anterior transitado em julgado que possa ser invocado como fundamento para o recurso, não existe oposição relevante, conforme art.º 437.º, n.º 4, do CPP.

4. Por isso, conforme dispõe o art.º 441.º, n.º 1, do CPP, não pode admitir-se o recurso por faltar um requisito formal fundamental, e, em consequência, deve o mesmo ser rejeitado, o que se decide, ficando prejudicado o peticionado.


III – DECISÃO


Termos em que, acordando, se decide:

a. Rejeitar o recurso, conforme o disposto nos artigos 437.º, n.º 4 e 441.º, n.º 1, do CPP.

b. Sem custas.


Lisboa, 15 de Fevereiro de 2024 (processado e revisto pelo relator)


Leonor Furtado (Relator)


Heitor Vasques Osório (Adjunto)


Orlando Gonçalves (Adjunto)