Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2971/07.7TBAGD-A.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: SOCIEDADES COMERCIAIS
GERÊNCIA PLURAL
VINCULAÇÃO DE PESSOA COLECTIVA
TÍTULO CAMBIÁRIO
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
ÓNUS DA PROVA
DOCUMENTO PARTICULAR
IMPUGNAÇÃO DA ASSINATURA
PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/09/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :

1. A limitação dos poderes representativos dos administradores de sociedades comerciais, estabelecida em cláusula do contrato de sociedade, não resultante do objecto social – como é o caso de cláusula que exija a assinatura de dois administradores para obrigar a sociedade para com terceiros – não é oponível a terceiros.

2. O ónus da prova dos factos invocados como fundamento da oposição à execução rege-se inteiramente pelas regras gerais estabelecidas, desde logo, no art. 342º do CC, cabendo ao executado que deduz oposição a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos que, mediante defesa por excepção, opõe à pretensão do exequente e a este a prova dos factos constitutivos do direito exequendo, impugnados pelo executado, em termos de abalar a força probatória de primeira aparência que dimanava do título executivo.

3. A aplicação das regras substantivas, definidas para a prova documental no art. 374º do CC, conduz a que – impugnando o executado/opoente a assinatura do documento particular não reconhecido notarialmente, sustentando que ela lhe não pertence ou que – quando tal assinatura lhe não seja imputada - não sabe se é verdadeira , passe a recair sobre o apresentante de tal documento – ou seja, sobre o exequente – o ónus de prova da veracidade da assinatura impugnada.

4. Nos termos do art. 729º, nº3, do CPC, o processo volta ao tribunal recorrido quando o Supremo, ao julgar a revista, entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, de modo a serem considerados factos articulados – e, portanto, processualmente adquiridos, já que a sua não inclusão na base instrutória não produz qualquer efeito preclusivo – que as instâncias não consideraram, apesar da sua inquestionável relevância para a solução jurídica do pleito - e definindo-se, sempre que possível, antes do novo julgamento da causa, o direito aplicável, de acordo com o preceituado no art. 730º.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. AA deduziu oposição à execução contra si movida - na qualidade de aceitante da letra de câmbio que serve de título executivo - por BB, alegando que a exequente não é legítima portadora da referida letra, que lhe fora endossada pelo sacador – a sociedade por quotas PVC....... - já que desconhece a autoria da rubrica feita por pretenso representante legal de tal sociedade, aposta no lugar do endossante, apenas constando o carimbo da gerência da referida sociedade sacadora/endossante, - e sempre se revelando necessárias, pelo pacto social, as assinaturas dos dois sócios-gerentes, caso o endosso se tivesse concretizado antes de 25.11.06, data em que um dos sócios renunciou à gerência.
Contestou a exequente, acentuando que o presente litígio se situa no plano das relações mediatas entre os interessados no título, sustentando estar cumprido o requisito de forma do endosso da letra exequenda, mostrando-se o endosso assinado pelo sócio/gerente CC, sendo sua convicção de que bastaria a assinatura deste para vincular a sociedade.
Saneada e condensada a lide, realizou-se o julgamento , sendo proferida sentença a julgar improcedente a oposição e ordenar o prosseguimento dos termos da execução.

Inconformado, apelou o executado/opoente, tendo, porém, a Relação julgado improcedente a apelação.


2. É deste acórdão que vem interposta a presente revista, que o recorrente encerra com as seguintes conclusões, que lhe definem o objecto:

I- A presente apelação visa a alteração da decisão proferida pelo Tribunal da Relação que confirmou a decisão proferida na l.ª Instância, como consequência, salvo melhor opinião, de uma errada interpretação da matéria de facto considerada provada e consequente errada aplicação do direito a esses factos.
II- A oposição à execução foi deduzida pelo ora recorrente, na qualidade de aceitante de uma letra de câmbio, contra BB, na veste de endossada da referida letra.
III- Entende o recorrente que a referida BB, exequente, não é portadora legítima da letra de câmbio que serviu de título executivo aos presentes autos de execução, embora seja a verdadeira respectiva titular.
IV- De facto, independentemente da data em que a letra foi endossada à exequente, a sociedade a favor de quem o ora recorrente aceitou a letra sempre se obrigou com a assinatura do sócio gerente DD.
V- Isto é, a sociedade sempre precisou da assinatura do sócio gerente DD para se obrigar.
VI- E a simples aposição, no verso da letra, do carimbo da gerência da sociedade - que qualquer pessoa pode mandar executar - com uma rubrica aposta, cuja autoria se provou desconhecer, mas com a certeza de que não pertence ao sócio gerente DD, é insuficiente para, por si só, transmitir os direitos incorporados no título.
VII- Defende-se que, a exequente só adquiriria o direito sobre a letra, podendo exigir o respectivo pagamento, se, em face dos princípios gerais, tivesse adquirido a letra de quem tinha legitimidade para a transmitir.
VIII- Ora, sendo a recorrida proprietária da letra, mas não a sua portadora legítima pode, entre outras faculdades, exigir indemnizações de quem a entregou sem ter legitimidade para o efeito, mas não exigir o seu pagamento!
IX- O fundamento principal utilizado no douto acórdão que se recorre é que o desrespeito pelas regras de vinculação da sociedade não pode ser invocado por terceiro, como o ora recorrente, para efeitos de excluir a validade do endosso por este efectuado, uma vez que, atendendo ao disposto no artigo 260.° do Código das Sociedades
Comerciais, a violação das regras estatutárias de vinculação da sociedade não pode afectar juridicamente a posição daqueles terceiros que, confiando nos poderes do representante legal da sociedade, celebraram com esta um negócio jurídico.
X- Conforme resultou provado, desconhece-se a quem pertence a rubrica aposta no verso do título, sendo certo que a mesma não pertence ao representante legal da PVC...... LDA.. que no respectivo depoimento referiu que é sócio gerente da sociedade endossante e que "não se recorda sequer do título de crédito em causa (-..)". bem como nunca existiu qualquer relação comercial entre o ora apelante e a sociedade PVC...... LDA. que justificasse a aceitação por aquele de uma letra do montante de EUR 40.000.00!!! (sublinhado meu)
XI - Para o referido representante legal da sociedade, que sempre exerceu de facto e de direito a gerência da sociedade endossante, a letra em discussão nunca pertenceu à sociedade!
XII - Não se sabendo quem entregou a letra à exequente, o Tribunal a quo nunca poderia afirmar que a exequente confiou nos poderes do representante legal da sociedade ao aceitar a letra!?
XII- A isto acresce o facto da portadora da letra não poder opor a sua posição, mesmo que formalmente legítima, se agiu com negligência no acto da respectiva aquição.
XIII- Isto é, se a falta de legitimidade do transmitente da letra era perceptível para um participante no tráfico mesmo que abaixo do medianamente sagaz, informado e diligente - Neste sentido vai Ferrer Correia. Lições III. pág. 79; P. Pais de Vasconcelos. Direito Comercial. Títulos de Crédito, pág. 23 e ainda Filipe Cassiano dos Santos. Direito Comercial Português. Volume I. página 242 e 250.
XVI- Da sentença que se apela existiu uma clara violação da disposição legal, certamente esquecida pelo Tribunal a quo, prevista no artigo 17.° da LULL - a excepção do preenchimento abusivo da letra não pode ser aposta ao portador (terceiro), salvo se este terceiro agiu com culpa grave.
XVII- De facto, a ora recorrida, no momento em que adquiriu a letra, que serve de fundamento aos presentes autos, atendendo ao avultado montante da mesma - EUR 40.000,00! - e existindo publicidade da forma de obrigar a sociedade, através do respectivo registo comercial, de fácil e rápido acesso - contrariamente ao que resulta do acórdão de que se recorre -, revelou um comportamento desleixado, negligente.
XVIII- Essa falta de cuidado em relações comerciais de avultados montantes, como a que se analisa, não pode ser-lhe desculpável.
XIX- Entende-se, pois, que existiu culpa grave da exequente/endossada quando ignorou algo que não podia: quem EVENTUALMENTE lhe transmitiu o endosso não tinha poderes para conferir regularidade legal ao mesmo!

Nestes termos e nos mais de direito, apela-se a v. Ex.as se dignem reconsiderar a decisão proferida pelo Tribunal da Relação, julgando o presente recurso de revista totalmente procedente e, consequentemente, a oposição à execução contra si requerida, seguindo-se os demais termos legais.

3. As instâncias fizeram assentar a solução jurídica do pleito na seguinte matéria de facto:

1- Mostra-se junto aos autos de execução a que os presentes se encontram apensos, um documento com o n° 0000000000000000, contendo as seguintes inscrições: no seu vencimento pagarão V.Exªs por esta única via de letra a nós ou à nossa ordem a quantia de quarenta mil euros; data de emissão: 2/11/2006; local de emissão Fermentelos; contendo uma rubrica no local destinado à aposição da assinatura do sacador e um carimbo com a designação «PVC.....»; no local destinado ao nome e morada do sacado consta AA, Rua da .........., n°......, Fermentelos,........, Fermentelos; no local destinado à inscrição do nome e morada ou carimbo do sacador contém a inscrição «PVC.....», Lugar .........., 3770 B.........; encontram-se também preenchidos os espaços com os números de contribuinte do sacado e sacador; nada consta no local destinado ao pagamento/domiciliação; encontra-se inscrita uma assinatura no local destinado ao aceite; no verso encontram-se apostos dois carimbos com a menção «PVC.....» e uma rubrica.

2- A «PVC.....» é uma sociedade por quotas, cuja forma de obrigar, em 2006/11/02, consistia na assinatura conjunta dos dois então gerentes, DD e CC.

3- Em 25 de Novembro de 2006, o sócio CC renunciou à gerência da referida sociedade, passando a «PV........... -Caixilharia de Alumínios, Ldª», a obrigar-se apenas com a assinatura do sócio-gerente DD.

4- A assinatura/rubrica constante do verso do documento referido em 1- não pertence a DD.

4. O presente litígio centra-se em torno da questão da invalidade substancial do acto de endosso da letra que serve de título executivo na causa em que se insere a presente oposição, que decorreria da ilegitimidade substantiva de quem, na veste de pretenso representante da sociedade comercial sacadora e endossante, teria aposto a sua assinatura no título , em sobreposição ao carimbo da respectiva gerência : na verdade, tal sociedade teria, como gerentes, até à data de renúncia de um deles (CC), ocorrida em 25/11/06, os sócios CC e DD, vinculando-se, nessa altura, nos termos do pacto social, mediante assinatura conjunta de ambos os gerentes ; a partir da data da renúncia, passou a ser único gerente daquela sociedade o sócio DD, pelo que naturalmente, se o endosso fosse posterior à referida data, só a sua assinatura poderia vincular a pessoa colectiva.
A prova produzida apenas permitiu apurar que a assinatura/rubrica constante do verso da letra não pertence ao referido DD, desconhecendo-se totalmente a data em que o endosso em que se funda a qualidade de legítima portadora do título, invocada pela exequente, teria tido lugar (cfr. resposta negativa ao único facto incluído na base instrutória, a fls. 84).

Neste contexto, não merece qualquer crítica a decisão das instâncias segundo a qual a cláusula do pacto social que impunha, até 25/11/06, a assinatura conjunta de ambos os então gerentes como forma de vinculação da sociedade não poderia, em regra, ser oposta a terceiros, nos termos previstos no art. 260º, nº1, do Cód. das Sociedades Comerciais – fundando-se no entendimento de que a sociedade sempre ficaria vinculada, apesar de os actos praticados excederem as limitações aos poderes representativos dos gerentes constantes do pacto, salvo se o interessado demonstrasse que o outro interveniente no negócio sabia que o acto desrespeitava tais limitações.

Como se decidiu, por exemplo, no ac. de 13/2/07, proferido pelo STJ no p. 06A4617, a limitação dos poderes representativos dos administradores de sociedades comerciais, estabelecida em cláusula do contrato de sociedade, não resultante do objecto social – como é o caso de cláusula que exija a assinatura de dois administradores para obrigar a sociedade para com terceiros – não é oponível a terceiros.

Ou seja: o estabelecimento no pacto social de um regime de legitimidade plural cumulativa para a representação societária não é oponível a terceiros de boa fé, que ignorem as limitações aos normais poderes do gerente para assumir plenamente a representação da sociedade : e, nesta perspectiva, - que se tem por correcta, adequada e particularmente justificada num domínio, o dos negócios cambiários , em que as exigências do comércio jurídico dificilmente se poderiam conciliar com a indispensabilidade da feitura pelas partes de indagações aprofundadas acerca do conteúdo dos estatutos de cada sociedade que neles outorga, através de algum seu legítimo representante legal, - é evidente que a circunstância de o acto de endosso não ter sido praticado ( se realizado antes de 25/11/06) com intervenção de ambos os sócios gerentes da sociedade endossante em nada afecta a validade substancial de tal negócio cambiário, tornando nesta sede inaplicável o regime prescrito nos arts. 7º e 8º da LULL (tendo-se por vinculado apenas quem, desprovido de legitimidade material para obrigar a pessoa cuja representação se arrogava, apôs a sua assinatura na letra , sem que tal afecte, porém, as obrigações assumidas pelos outros signatários do título )– e, portanto, em nada afectando a qualidade invocada pela exequente de legítima portadora do título, com base em endosso válido a seu favor.

5. Sucede, porém, que o litígio não se esgota na resolução desta questão, já que não ficou sequer apurado se a rubrica/assinatura que corporiza o endosso é da autoria do outro sócio que, até 26/11/06, exercia poderes de gerência – obrigando naturalmente tal indeterminação factual a convocar as regras atinentes à repartição entre as partes do ónus probatório : é que,
se a validade substancial do endosso não é efectivamente afectada pelo estabelecimento no pacto social de uma cláusula impondo a legitimidade plural cumulativa dos gerentes para vincularem a sociedade – inoponível, como se viu, a terceiros de boa fé – é claro que já depende decisivamente de tal assinatura provir de algum representante legítimo da sociedade, não sendo seguramente válido e eficaz em relação ao ente colectivo o acto de endosso que fosse praticado por que não dispunha de qualquer poder representativo da entidade detentora da letra.

E tal questão mostra-se decidida no Acórdão recorrido nos seguintes termos:

Resulta dos factos coligidos, que estamos perante um “endosso em branco” e que à data de emissão da letra – 2.11.06 – a sociedade por quotas «PVC.....» ficava obrigada com a assinatura conjunta dos dois então sócios, DD e CC. No verso da letra encontram-se apostos dois carimbos com a menção «PVC.....» e uma rubrica que não pertence ao sócio DD, nem se apurou se foi aposta pelo menos depois de 25.11.06, altura em que o sócio CC renunciou à gerência.
Sendo assim, fica a dúvida sobre a autoria da rubrica: se fosse depois daquela data não seria do sócio renunciante, e do outro sócio provou-se que não era.
Com efeito, mereceu resposta de “não provado” o único quesito formulado onde se perguntava se “a assinatura/rubrica constante do verso do documento referido em A) foi aposta pelo menos depois de 25.11.06”. Isto significa apenas que nada se provou a respeito do que vinha perguntado, e não que tenha ficado provado o contrário.
Ora, era ao opoente que cabia provar, para efeitos de exclusão da validade do endosso, que a assinatura abreviada junto aos dois carimbos da firma sacadora também não pertencia ao ex-sócio CC (neste caso, nenhum dos sócios tinha tido intervenção no negócio cambiário), já que não alegou sequer a falsidade da assinatura. Não tem, por isso, cabimento a afirmação agora feita de que a aposição de uma assinatura cuja autoria se desconhece é insuficiente para transmitir direitos incorporados no título.
Certo é que no verso da letra está aposta uma assinatura que, na ausência de prova em contrário, se presume feita por quem tinha legitimidade para isso.
6. Como é sabido, fundando-se a presente execução em título executivo negocial – documento particular/título cambiário – pode a oposição à execução basear-se na invocação pelo opoente de qualquer causa que lhe fosse lícito deduzir como defesa no processo de declaração, nos termos previstos no art. 816º do CPC – sendo, assim, possível ao executado/opoente alegar na oposição matéria de impugnação ou de excepção relativamente à pretensão executória contra si formulada pelo credor com base no título executivo.
Como se afirma, por exemplo no ac. deste Supremo de 14/7/09, proferido no p.379/09.9YFLSB, tratando-se de oposição à execução baseada em título executivo extrajudicial, pode o oponente invocar, sem qualquer limite temporal, todas as causas impeditivas, modificativas ou extintivas do direito do exequente, e até, por vezes, negar os factos constitutivos do mesmo direito, achando-se na mesma posição em que se encontraria perante a petição inicial de uma acção declarativa.

No que se refere ao ónus da prova dos factos invocados como fundamento da oposição à execução, valem inteiramente as regras gerais estabelecidas no CC, cabendo ao executado que deduz oposição a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos que opõe à pretensão do exequente e a este a prova dos factos constitutivos do direito exequendo, por força do preceituado no art. 342º do CC.

Na verdade, a peculiar natureza procedimental da oposição à execução que – por um lado – poderia sem esforço configurar-se como verdadeira acção de simples apreciação negativa do crédito exequendo e, por outro, assume a função processual de «contestação» da pretensão do exequente, assente desde logo no título executivo que a suporta , não deve determinar a aplicação da regra especial vigente naquelas acções, por força do disposto no nº1 do art. 343º do CC ( veja-se , por ex., o ac. do STJ de 2/6/99, proferido no p. 99B319): é que, ao contrário do que ocorre naquelas acções de mero «accertamento», o exequente/requerido na oposição já tratou de fundamentar o seu direito no momento em que apresentou o requerimento executivo e juntou o título que suporta a execução e faz presumir o direito exequendo, nessa medida cumprindo antecipadamente ao momento da dedução da oposição pelo executado o ónus de alegação e prova a seu cargo, quanto aos elementos constitutivos do crédito que pretende realizar coercivamente.

Ora, da aplicação das regras gerais sobre o ónus da prova, contidas no referido art.342º, decorre que nem sempre recai sobre o opoente à execução o ónus de provar todos os fundamentos da oposição que deduz : será efectivamente assim quando o executado estruture a sua oposição numa defesa por excepção, invocando como suporte desta factos «novos», de natureza impeditiva, modificativa ou extintiva que lhe cumprirá naturalmente provar, - mas já não quando se limite estritamente a impugnar os factos constitutivos do crédito do exequente, documentado pelo título executivo, eventualmente completado pela alegação constante do requerimento executivo.
Tal defesa por impugnação – e não por excepção – poderá, desde logo, ter como objecto os factos complementares ao título executivo, que, por deste não constarem, o exequente tenha alegado no requerimento executivo, nos termos previstos na al. b) do nº3 do art. 810º do CPC : sendo estes negados pelo opoente/executado – e não estando obviamente cobertos pela força probatória que dimana do título executivo - é evidente que recairá inteiramente sobre o exequente o respectivo ónus probatório, enquanto elementos constitutivos do direito que pretende realizar coercivamente, impugnados pela parte contrária.
Para além disto, pode evidentemente o opoente deduzir impugnação que abale a força probatória de primeira aparência de que gozava o título executivo em que se fazia assentar a própria execução – e que, ao menos nos títulos desprovidos de natureza judicial, tem de ser naturalmente atacável pelo executado, ficando afectada quando este consiga abalar com a sua oposição o grau de certeza quanto à existência do crédito exequendo que normalmente lhes subjaz, passando, consequentemente, a incidir sobre o exequente/requerido na oposição- destruída que esteja a presunção de existência do direito que decorreria do título dado à execução - o ónus de prova de factos constitutivos do crédito exequendo.
Assim – e particularmente no que se refere a determinados títulos executivos administrativos – importa acentuar que o respectivo valor probatório pode não implicar uma certificação de responsabilidades imputadas a terceiros, no confronto da entidade pública emitente do título, cedendo a «presunção» de titularidade do direito que deles decorreria perante a mera impugnação deduzida pelos executados, questionando a responsabilidade que se lhes pretendia imputar – e implicando tal impugnação que sobre a entidade exequente passe , sem mais, a recair inteiramente o ónus probatório, no que concerne aos pressupostos da responsabilidade civil invocada : é por isto que, conforme entendimento reiterado, as certidões de dívida a instituições ou serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde, regidas pelo DL194/92, não dispensavam a entidade exequente de alegar e provar os factos constitutivos do seu direito, uma vez deduzida a oposição do executado/ pretenso responsável pelo acidente que gerou a prestação de serviços clínicos ao lesado (cfr., v.g., o ac. de 13/10/98, proferido pelo STJ no p. 98A658).

E, sendo o título executivo um documento particular, não reconhecido notarialmente, pode o executado/opoente impugnar a genuinidade do documento que serve de base à execução – impugnando, desde logo, a letra ou a assinatura, nos termos previstos no art. 374º do CC, ou, por exemplo (veja-se o caso sobre que incidiu o ac. de 14/7/09, proferido pelo STJ no p. 379/09, atrás citado), sustentando que a assinatura aposta no título, em seu nome, por pretenso representante, o não vincula, por se tratar, em última análise, de representação sem poderes, que apenas poderia obrigar aquele que, afinal, teria actuado em nome próprio.

Assim, se o título executivo for – como ocorre no caso dos autos - um mero documento particular assinado, é, desde logo, aplicável a norma substantiva constante do art. 374º do CC, da qual decorre que :

- a letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular só se consideram, em regra, verdadeiras quando não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado;
- se a parte contra quem o documento foi apresentado impugnar a veracidade da letra ou da assinatura, ou declarar que não sabe se são verdadeiras, não lhe sendo elas imputadas, incumbe à parte que apresentar o documento a prova da sua veracidade;

- só o documento particular cuja autoria seja reconhecida nestes termos faz prova plena das declarações atribuídas ao seu autor, (sem prejuízo da possibilidade de este excepcionar a falsidade do documento) –só então servindo de efectivo meio de demonstração dos factos constitutivos do crédito exequendo, impugnado pelo executado/opoente.

Deste modo, a aplicação das referidas regras substantivas, atinentes à repartição do ónus da prova no âmbito do enxerto declaratório de oposição à execução, leva a concluir que – impugnando o executado/opoente a assinatura do documento particular não reconhecido notarialmente, sustentando que ela lhe não pertence ou que – quando tal assinatura lhe não seja imputada - não sabe se é verdadeira , determina que passe a recair sobre o apresentante de tal documento – ou seja, sobre o exequente – o ónus de prova da veracidade da assinatura impugnada (cfr., por ex., entre muitos outros os acs. do STJ de 8/10/02 e de 15/3/05 e de 16/6/05, proferidos, respectivamente, nos p. 02A2588 , 05A513 e 04B660).

Transpondo estas considerações gerais para o caso «sub juditio», verificamos que:

- confrontado com a letra que servia de título executivo, o executado/opoente veio alegar que desconhecia a autoria da rubrica aposta sobre o carimbo da sociedade que a teria endossado à exequente (art4º do requerimento de oposição);

- na contestação deduzida à oposição, sustentou a exequente que tal endosso teria sido subscrito por CC, como gerente da sociedade ( art. 7º);

- apesar da controvérsia manifestamente existente entre as partes sobre tal facto – ser ou não a rubrica aposta da autoria do gerente CC – e da sua relevância para a correcta composição do litígio, ele não foi incluído na base instrutória : na verdade, ficou assente que a dita assinatura/rubrica, aposta na letra, não pertencia ao outro sócio da sociedade endossante, DD, apenas se quesitando um único ponto de facto, atinente à data em que tal assinatura teria sido aposta na letra, com relevo para solucionar a questão conexionada com a perda definitiva de poderes e gerência do sócio exonerado, o referido CC;

- a desconsideração da relevância do facto consubstanciado na real autoria da assinatura/rubrica parece ter assentado no entendimento explanado na sentença acerca da repartição do ónus probatório entre os litigantes , a fls. 93, ao afirmar-se : inversamente, se o endosso tivesse sido efectuado antes daquela data (25/11/06), não tendo sido alegada a falsidade a assinatura ou a falta de intervenção no endosso do outro gerente (CC) –sendo certo que o ónus de alegação de tal facto cabia ao executado/opoente – não poderá excluir-se que a rubrica e o carimbo constantes do verso da sociedade pertencem a este.

Porém, e como atrás se demonstrou, não é exacta esta concepção acerca da repartição do ónus probatório entre as partes, bastando ao executado/opoente alegar o desconhecimento da autoria da assinatura/rubrica, cuja autoria obviamente lhe não era imputada, pondo, assim, em causa a conclusão de que a letra teria sido endossada por um dos representantes da sociedade que a detinha – e cabendo, neste caso, ao exequente – confrontado com tal impugnação – provar a autoria da assinatura, aliás, em conformidade com o que alegou na contestação à oposição, imputando-a ao sócio gerente CC.

Considera-se, deste modo, que a matéria de facto em que as instâncias assentaram a decisão da causa é insuficiente para permitir o correcto enquadramento jurídico do pleito, impondo-se apurar se a rubrica/assinatura aposta sobre o carimbo da sociedade pertence ou não ao sócio gerente CC, cabendo ao exequente o ónus de provar tal facto, impugnado pelo executado na oposição que deduziu à execução , ao alegar que «desconhecia» a quem pertencia tal assinatura, cuja autoria lhe não era imputada : é que, como é evidente, se tal ónus probatório vier a ser cumprido, apurando-se que a letra foi efectivamente endossada pelo referido sujeito, como gerente da sociedade, o endosso é substancialmente válido e a exequente é a legítima portadora do título que deu à execução ; se, pelo contrário, a exequente não lograr fazer prova bastante da autoria da assinatura impugnada, permanecendo a situação de dúvida insanável sobre tal matéria, está irremediavelmente afectada a validade substancial do endosso em que a exequente fazia assentar o seu direito, tendo, em consequência, a oposição de ser procedente.

6. Nos termos do art. 729º, nº3, do CPC, o processo volta ao tribunal recorrido quando o Supremo, ao julgar a revista, entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, de modo a serem considerados factos articulados – e, portanto, processualmente adquiridos, já que a sua não inclusão na base instrutória não produz qualquer efeito preclusivo – que as instâncias não consideraram, apesar da sua inquestionável relevância para a solução jurídica do pleito - e definindo-se, sempre que possível, antes do novo julgamento da causa, o direito aplicável, de acordo com o preceituado no art. 730º.

Assim, em conformidade com tal regime normativo, concedendo parcial provimento à revista:
- define-se, desde já, o regime jurídico aplicável à solução do litígio nos seguintes termos: impugnada pelo executado/opoente a assinatura, pretensamente aposta por gerente, agindo em representação da sociedade endossante da letra que constitui título executivo, através da alegação de que se desconhece a autoria de tal rubrica, que não era imputada ao executado, incumbe ao exequente, como apresentante do documento, provar a autoria e veracidade da assinatura, demonstrando que a mesma foi efectivamente aposta pelo sócio gerente da sociedade endossante, como condição de validade substancial do endosso e, consequentemente, da posição da exequente como legítima portadora da letra ;
- determina-se a ampliação da decisão da matéria de facto, em ordem a apurar se a rubrica/assinatura aposta no título é ou não da autoria do gerente CC.
Custas por recorrente e recorrido, conforme a solução final do pleito.

Lisboa, 9 de Fevereiro de 2011

Lopes do Rego (Relator)
Orlando Afonso
Cunha Barbosa