Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1816/06.OTBFUN.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÂO
Relator: JOÃO CAMILO
Descritores: NULIDADE PROCESSUAL
SANAÇÃO DA NULIDADE
USUCAPIÃO
LOTEAMENTO CLANDESTINO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário : I. Caso a sentença de 1ª instância conceda providência diversa do pedido formulado, verifica-se a causa de nulidade da sentença prevista na al. e) do nº 1 do art. 668º do Cód. de Proc. Civil.
II. Não sendo esta nulidade invocada no recurso de apelação interposto daquela sentença, fica a mesma nulidade sanada, nos termos do nº 3 do citado art. 668º.
III. Logo não pode já tal nulidade ser invocada nas alegações do recurso de revista interposto do acórdão que julgou improcedente a apelação.
IV. O instituto da usucapião não pode ultrapassar as restrições legais colocadas ao fraccionamento dos prédios em normas imperativas que regulam o loteamento de terrenos, nomeadamente, as previstas no Decreto-Lei nº 559/99 de 16/12.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
AA intentou acção com processo sumário – depois, em virtude da reconvenção, mandado seguir a forma ordinária -, no 1º Juízo Cível do Funchal, contra BB, CC e DD, alegando ter celebrado um contrato promessa de compra e venda de 400m2, parte de um prédio, sito em …, …, Funchal, tendo os réus ficado responsáveis por proceder ao destaque do prédio urbano, o que nunca sucedeu, bem como não informaram do preço pago por m2 pela remição do terreno.
Concluíu pedindo a condenação dos réus a:
- Indicarem o valor pago no processo de remição da terra e das obras de interesse comum que lhes estejam afectas;
- Proceder ao destaque do prédio urbano conjuntamente com a área de 400m2;
- Pagar a quantia de € 10.000,00, a título de indemnização pelo não cumprimento do contrato.
Citados os réus deduziram defesa por excepção, por impugnação, bem como, deduziram ainda pedido reconvencional.
Por excepção arguiram a ilegitimidade dos réus, CC e DD dado não terem outorgado o documento que fundamenta a acção e que, tratando-se de uma declaração de natureza obrigacional, sempre estaria prescrita.
Por impugnação alegaram que o documento não se refere ao prédio misto dos autos e que não fizeram a remição do prédio nº.2576 e não ser possível o seu destaque.
Em reconvenção pediram a declaração de serem os únicos e exclusivos proprietários do prédio misto referido e a condenação do autor a não perturbarem o gozo do seu direito de propriedade.
Na réplica o autor refutou as excepções alegadas, impugnou a matéria da excepção e ampliou o pedido, requerendo o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o referido prédio urbano com 400 metros quadrados de área, tendo sido admitida a ampliação a fls. 85 dos autos.
No despacho saneador julgou-se improcedente a excepção da ilegitimidade dos réus, prosseguindo os autos para julgamento.
No final veio a ser proferida sentença com o seguinte teor decisório:
«1°- Julgar parcialmente procedente por provada a presente acção e declarar que o Autor é dono e legítimo proprietário de uma faixa de terreno adjacente às suas benfeitorias urbanas, situada no …, …, freguesia de Santo …, por a ter adquirido por usucapião e cuja área deverá ser determinada em execução de sentença;
2°- Condenar os Réus a reconhecerem o direito de propriedade do Autor sobre a faixa de terreno referida no número anterior;
3°- Julgar improcedente por não provada a reconvenção deduzida pelos Réus e, em consequência, absolver o Autor dos pedidos reconvencionais».
Inconformados recorreram os réus, tendo a apelação sido julgada improcedente.
Mais uma vez inconformados os réus, vieram interpor a presente revista, tendo, nas suas alegações, formulado conclusões que por falta de concisão não serão aqui transcritas e das quais se deduz que aqueles, para conhecer neste recurso, levantam as seguintes questões:
a) O acórdão recorrido é nulo, nos termos da al. e) do nº 1 do art. 668º do Cód. de Proc. Civil, porque declarou que o autor adquiriu uma determinada parcela de terreno por usucapião, quando apenas lhe havia sido pedido o reconhecimento da propriedade de um prédio urbano inscrito na matriz com a área de 400 metros quadrados ?
b) E ainda é nulo, nos termos da al. b) do citado nº 1 do art. 668º, por reconhecer um direito de propriedade sobre uma parcela de terreno adjacente a uma construção urbana, sem especificar a área da mesma ?
c) O autor não alegou ou provou factos materiais que consubstanciassem o instituto da usucapião, nomeadamente, não é admissível legalmente a usucapião que tenha por consequência a formação de imóveis novos, sem que haja a autorização administrativa, nos caso de áreas urbanas, autorização essa necessária para o efeito?
Contra-alegou o recorrido, defendendo a manutenção do decidido.
Corridos os vistos legais, urge apreciar e decidir.
Como é sabido – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, na redacção anterior ao Decreto-Lei nº 303/2007 de 24/08, aqui aplicável, e a que pertencerão todas as disposições a citar sem indicação de origem -, o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões dos recorrentes.
Já vimos as concretas questões levantadas pelos recorrentes como objecto deste recurso.
Mas antes de mais, há que especificar a matéria de facto que as instâncias deram por provada e que é a seguinte:
1°- O Réu CC, na qualidade de procurador de seus sogros, BB e EE, duma parte e o Autor AA, de outra parte, subscreveram, em 15 de Julho de 1981, o documento junto a fls. 84 dos autos cujo teor se dá por integalmente reproduzido.
2°- No Serviço de Finanças, Funchal 1, encontra-se descrito em nome do Autor um prédio urbano de dois pavimentos coberto de laje tendo na cave 2 lojas e no r/c 3 quartos e cozinha, casa de banho, corredor e marquise, com 75m2 de construção e 325m2 de logradouro.
3°- Tal prédio foi inscrito em 1990, em nome do Autor, sob o artigo matricial 4971 e localiza-se ao …, …, Funchal.
4°- Encontra-se registado a favor dos Réus, pela inscrição ..., Apresentação 1 de 9 de Julho de 1997, o prédio misto, localizado ao …, Sítio…, freguesia de Santo…, concelho do Funchal, inscrito na matriz predial respectiva, a parte urbana sob o artigo 675 e a parte rústica sob o artigo 76/1 da Secção "AF", descrito na Conservatória do Registo predial do Funchal, sob o n.° 2576/19990709.
5°- O prédio a que alude o documento 1 junto com a petição inicial tinha sido adquirido pelo Réu BB, na sequência de licitação das benfeitorias rústicas situadas no …, descritas a fls.47 dos autos de inventário obrigatório que correu os seus termos na 2° Secção do 2° Juízo do Tribunal judicial do Funchal, sob o n° 16/80.
6°- O prédio urbano inscrito na matriz predial, em nome do Autor, sob o n° 4971 foi construído sobre as benfeitorias referidas no número anterior.
7°- Até à presente data, os Réus não efectuaram o destaque a que alude o documento 1 junto com a petição inicial.
8º- Os Réus não informaram qual o preço por m2 para a remição do terreno.
9°- O prédio em questão não se situa junto a uma estrada.
10°- O Autor, há mais de 20 anos, sempre cultivou uma faixa de terreno adjacente às suas benfeitorias urbanas, cuja área não ficou apurada.
11°- Os Réus nunca se opuseram a que o Autor cultivasse a área de terreno referida no quesito 12°.
Vejamos agora as questões acima mencionadas como objecto deste recurso.
a) A primeira questão levantada pelos recorrentes consiste em saber se o acórdão recorrido é nulo por haver conhecido de objecto diverso do que havia sido peticionado, nos termos da al. e) do nº 1 do art. 668º.
Facilmente se vê que os recorrentes não têm razão.
O acórdão recorrido limitou-se a confirmar a decisão da 1ª instância, pelo que a ter sido praticada essa nulidade, teria sido a sentença de 1ª instância que a cometeu.
E não tendo sido arguida no recurso de apelação essa eventual nulidade -como deveria ter sido, nos termos do art. 668º , nº 3 - , a mesma ficou sanada e não pode aqui ser levantada, pois o acórdão recorrido conheceu do que havia sido colocado pelos recorrentes, ou seja, a improcedência do pedido reconhecido na sentença de 1ª instância sem que pudesse conhecer da questão de tal reconhecimento haver excedido ou extravasado do pedido peticionado, por falta de arguição atempada da respectiva nulidade.
Soçobra, assim, este fundamento do recurso.
b) Nesta segunda questão, os recorrentes defendem que o acórdão é nulo, nos termos da al. b) do nº 1 do art. 668º por haver reconhecido um direito de propriedade de uma parcela de terreno adjacente a uma construção urbana, sem especificar a área.
Também aqui os recorrentes carecem de razão na pretensão.
Com efeito, a al. b) em causa estipula a nulidade da sentença quando a mesma não especifique os fundamentos de facto ou de direito que justifiquem a decisão.
Ora tendo o acórdão recorrido se limitado a confirmar a sentença de 1ª instância, a verificar-se a aludida causa de nulidade essa teria sido praticada naquela sentença e não foi tal nulidade arguida nas conclusões das alegações de apelação, pelo que tal eventual nulidade teria sido sanada.
Além disso, analisando o acórdão recorrido não detectamos a falta de fundamentação de facto ou de direito do que ali foi deciddio.
Tal como é pacificamente aceite, a presente causa de nulidade apenas se verifica quando houver uma omissão total de fundamentação de facto ou de direito.
A mera “fundamentação incompleta ou deficiente apenas afecta o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade”- J.A. dos Reis, in Cód. de Proc. Civil, vol. 5º, pág. 140.
O facto consistente em o objecto do direito de propriedade reconhecido ao autor não ter área determinada, não preenche qualquer vício processual.
Improcede, desta forma, mais este fundamento do recurso.
c) Resta conhecer da pretensão dos recorrentes no sentido de que o autor não alegou ou provou os requesitos legais necessários ao preenchimento da usucapião e nomeadamente que a usucapião não pode levar a constituir imóvel novo e sem a respectiva licença legal.
Aqui já os recorrentes têm razão.
A usucapião prevista no art. 1287º do Cód. Civil, assenta numa relação possessória que tanto pode ser constituída “ex novo” pelo sujeito a quem aproveita como pode derivar de transmissão, a favor do sujeito, de posse anterior.
A posse, nos termos do art. 1251º do Cód. Civil consiste no poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
É pacificamente aceite que a posse conducente à usucapião reveste dois elementos. “ o corpus” e o “animus”. O primeiro consiste no exercício, ou a sua possibilidade, de um poder directo e imediato sobre a coisa ou direito, enquanto o “animus” traduz-se na intenção de o exercer no seu próprio interesse.
Para ocorrer a referida usucapião, além da verificação dos actos de posse, é necessário a duração destes durante prazo mais ou menos longo e devendo a prática daqueles actos ser ininterrupta, pública e pacífica, relevando a boa ou má fé e a existência ou inexistência de título ou de registo deste apenas para efeito de fixação do prazo necessário para a usucapião se dar.
Tratando-se no caso de aquisição de imóveis, e na ausência de justo título e de registo da posse, o prazo é de quinze anos ou de vinte anos, respectivamente, havendo boa ou má fé do possuidor, nos termos do art. 1296º do Cód. Civil.
O legislador por entender que a prova do elemento intelectual da posse é, por vezes, difícil, estabeleceu, no nº 2 do art. 1252º do Cód. Civil, uma presunção no sentido de que se presume a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do nº 2 do art. 1257º do mesmo código.
Este preceito já constava no § 1º do art. 481º do Cód. de Seabra.
Desta forma, vem este Supremo decidindo de forma pacífica no sentido de que o detentor da coisa, ou seja, o que tem o poder de facto, ou o “corpus” está dispensado de provar que possui com intenção de agir como titular do direito real correspondente – cfr. Ac. STJ de 3-12-98, no recurso nº 1121/98 – 1ª secção.
Sendo a posse um pressuposto indispensável, não se mostra fácil a sua delimitação relativamente às situações de mera detenção previstas no art. 1252º.
O art. 1263º do Cód. Civil prevê os vários modos de aquisição da posse.
Segundo este dispositivo a posse pode ser adquirido pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito; pela tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuidor; por constituto possessório ou pela inversão do título de posse.
Tendo em conta que resultou provado que o autor era co-herdeiro da herança a que pertencia o imóvel onde estava integrada a parcela cuja aquisição é aqui objecto do pedido, incumbia-lhe alegar e provar a intenção com que exercia os actos materiais de posse, ou seja, o seu corpus.
É que o exercício de actos de fruição como co-herdeiro, ou seja, com intenção de exercer o direito de co-herdeiro, conjuntamente com os demais herdeiros, é diversa da mesma fruição exclusiva com a intenção de exercer um direito de propriedade e só esta leva à usucapião aqui pretendida.
Ora o aqui autor não alegou tal intenção e nem tal se mostra provada, pelo que falece um dos elementos essenciais de que depende a procedência do pedido de reconhecimento do direito de propriedade com base na usucapião.
Também não resulta provado que a fruição do autor tenha sido exclusiva sobre a mesma parcela de terreno, o que corroborado com a circunstância de haver sido o autor co-herdeiro do imóvel conjuntamente com o réu BB, afecta também o preenchimento dos alegados requisitos da posse necessários à usucapião.
Além disso, também se não provou o carácter pacífico da mesma fruição, pois apenas se provou que os réus nunca se opuseram aos actos de fruição do autor, mas nada se alegou ou provou sobre a natureza pacífica em relação à generalidade das pessoas.
Finalmente e sobretudo, há outro obstáculo à procedência do pedido do autor em apreço.
Este visa obter a autonomização de uma parcela de terreno integrado num conjunto predial rústico e urbano, sem que se tenham observado as prescrições que, para o efeito, as regras legais de urbanismo exigem.
Com efeito, o Decreto-Lei nº 559/99 de 16/12 – art. 2º al. I), 4º -, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto–Lei nº 177/2001 de 4/06, exige para a operação de destaque referida a licença administrativa que se não provou existir no caso.
Também pode o referido destaque estar isento de licença, nos termos do art. 6º do mesmo diploma legal, mas carecendo de ser provada isenção, nos termos do nº 9 do citado art. 6º.
Entre estes últimos termos legais, consta a necessidade de a parcela em causa confinar com arruamento público, estando, porém, provado nos autos que a parcela aqui em apreço não se situa junto a estrada, o que desde logo afasta a referida isenção.
Por isso, as alegadas exigências legais não estão comprovadas no caso dos autos.
Vedando o disposto no art. 49º do citado Decreto-Lei nº 555/99 a celebração de negócio jurídico que tenham por efeito, directo ou indirecto, a formação de lotes urbanos sem a existência da referida licença ou da prova da sua isenção, também não podem os interessados obter a mesma finalidade através de uma acção judicial.
Logo, não pode o recorrido obter o referido destaque através do instituo de usucapião, pois de outro modo, permitir-se-ia ao tribunal substituir as autoridades administrativas no que concerne à autorização de loteamentos ou de verificação da legalidade dos destaques prediais que é prévia à emissão da pertinente certidão comprovativa.
Este entendimento tem sido adoptado por jurisprudência vária deste Supremo Tribunal de Justiça, citando-se como exemplo, o acórdão de 19-10-2004, processo 04B3293.
Assim, também por este fundamento não é aqui admissível a usucapião por violar normas urbanísticas imperativas que regulam o fraccionamento dos prédios.
Procede, desta forma, este fundamento do recurso.
Pelo exposto, concede-se a revista pedida e, por isso, se absolvem os réus do pedido que ainda estava em apreço.
As custas da revista e da apelação ficam a cargo do recorrido, como vencido.
As custas da 1ª instância ficam a cargo do autor em relação aos seus pedidos e oneram os réus em relação ao pedido reconvencional.

Lisboa, 2 de Fevereiro de 2010

João Camilo (Relator)
Fonseca Ramos
Cardoso de Albuquerque