Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P2032
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: CARMONA DA MOTA
Descritores: PROIBIÇÃO DE PROVA
PROVAS
AGENTE INFORMADOR
AGENTE PROVOCADOR
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE DIREITO
REENVIO DO PROCESSO
Nº do Documento: SJ200310300020325
Data do Acordão: 10/30/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 8605/02
Data: 07/15/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário : I - Se as instâncias, ao decidirem a matéria de facto - incorrem no vício de «insuficiência da matéria de facto» -, colocam o Supremo na impossibilidade de decidir, em recurso, «do direito» que aos recorrentes pudesse ou possa assistir.
II - «Mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito», (como é o caso: art. 434º do CPP), «é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.2 do CPP» (assento 7/95 de 19Out, DR I-A, 28Dez95 e BMJ 450-72).
III - Em caso de utilização de «métodos proibidos de prova», a fixação dos factos materiais da causa pode ser objecto de recurso de revista (cfr. art.s 126.º do CPP e 722º., nº 2, e 729º, nº 2, do CPC).
IV - O processo volta ao tribunal recorrido quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito (art.s 729º, nº 3, do CPC, e 434º, e 410º, nº 2, do CPP).
Decisão Texto Integral: Acórdão no Supremo Tribunal de Justiça:

Arguidos/recorrentes: A (1) e B (2)


1. OS FACTOS (3)

No dia 14.5.1999, pelas 16 horas, nas imediações das bombas de gasolina "Galp - da Avenida do Porto, sentido Sul - Norte, em Lisboa, os arguidos detinham 2.066,237 gramas líquidos de cocaína, que transportavam no automóvel Renault Clio HM, e que destinavam à venda a terceiro indivíduo, por eles conhecido como C. A cocaína em causa fora adquirida, em data anterior, pelo arguido A, em Espanha, a indivíduo não identificado, e por aquele transportada para Portugal. Abordados por agentes da Polícia Judiciária, que se identificaram, os arguidos esboçaram a fuga, embatendo mesmo com o veículo noutra viatura, tendo o arguido B em seu poder, também, uma pistola semi-automática, calibre 7,65 mm, Browning, FN, 1910, com o número de série 22377, carregada com seis munições, uma das quais na câmara, outro carregador com mais seis munições e um porta - carregador, e arguido A um telemóvel "Ericsson" e 1.500$. Cada um dos arguidos, ao agir como descrito, fê-lo consciente e voluntariamente, agindo em conjugação, e comunhão, de esforços, após prévio acordo, conhecendo, com actualidade, as características estupefacientes da cocaína, e sabendo proibidas tais condutas. O dinheiro, pistola, telemóveis e objectos apreendidos, descritos a fls. 17 e 30/32, transportados pelos arguidos na viatura, estavam relacionados com a descrita actividade, relativa a estupefacientes. - O arguido A confessou deter aquela cocaína, tê-la trazido de Espanha para venda, e ter negociado a sua entrega a um indivíduo que conhecia por C. Residia, à data dos factos, em Espanha, onde exercia actividades ocasionais várias. O arguido B, reformado da Direcção Geral das Alfândegas, residia, à data dos factos, fora de Lisboa. O arguido A tem antecedentes criminais (CRC de fls. 102 a 103 e acórdão de fls. 116 a 140) (4). O arguido B não tem registados antecedentes criminais.

2. A CONDENAÇÃO

Com base nestes factos, a 2.ª Vara Criminal de Lisboa (5), em 15Jul02, condenou A e B, como autores de um crime de tráfico de estupefacientes, nas penas, respectivamente, de 5,5 anos de prisão e 4,66 anos de prisão:

A matéria de facto provada integra a prática, em autoria material ou imediata pelos arguidos A e B, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.1 do Decreto-Lei 15/93 de 22Jan (...). À unidade de facto em referência corresponde - considerada isoladamente - uma acção, aqui tida em sentido final, isto é, nos diversos crimes em causa prefiguram-se condutas de um processo casual, seja por nexo mecânico de causa-efeito, seja por nexo lógico de condições, para um fim determinado. O crime referenciado é, assim, consequência típica, normal e previsível das condutas de cada um daqueles arguidos, a quem, respectivamente, é imputado, na forma descrita, tudo isto segundo as regras da experiência comum e as circunstâncias particulares de cada caso - o que sempre se pode aferir por um juízo de prognose póstuma. Em sede dos elementos objectivos dos tipos, as mencionadas previsões estão preenchidas, dando lugar à imputação, uma vez que as condutas dos mencionados arguidos, quanto ao crime que cada um deles cometeu, provocaram os resultados previstos na descrição dos factos. Os arguidos, ao agirem como descrito, representaram perfeitamente a realidade fáctica que provocaram, conhecendo, com actualidade, os elementos objectivos dos tipos: normativos, descritivos e previsão do processo causal apto a atingir os resultados representados. Cada um dos arguidos, além de conhecerem os elementos essenciais da já descrita factualidade típica, a si referida, actuou com a intenção de provocar a sua realização e, querendo esse resultado, pôs em marcha o processo causal adequado. Agiu, pois, cada um, e nessa medida, com dolo directo - cfr. n.º 1 do art. 14º do Código Penal. A provada acção típica, referida, nos termos expostos, a cada um dos arguidos, é reveladora de ilicitude, dado que não se provou, por forma a excluir esta, qualquer circunstância susceptível de, integrando, colocar tais acções (ou algumas delas) a coberto de uma causa de justificação legal, das previstas nos art.s 31º e ss. do Código Penal. A ilicitude é, em primeiro lugar uma qualidade do facto - cfr. art.s 28º, n.º 1, e 31º do Código Penal - e, em segundo lugar, a contrariedade do facto à ordem jurídica na sua totalidade (art. 31º do mesmo diploma). A fundamentação da responsabilidade penal em que cada um dos arguidos incorreu assenta, assim, uma vez que se caracteriza a ilicitude como qualidade do facto, nas realidades descritas integráveis nas diversas condutas a eles referidas. A qualidade do comportamento dos arguidos é, assim, e nos aludidos termos, de provado desvalor das respectivas acções típicas, se o estupefaciente tivesse entrado no circuito do consumo. Os arguidos, tendo a possibilidade de conhecer a ilicitude dos factos que praticavam, decidiram livremente a sua actuação. Por outro lado, eram os arguidos, quanto às aludidas condutas, portadores da necessária inteligência e liberdade para se conduzirem, possuindo o conjunto de qualidades pessoais que são necessárias para serem passíveis de um juízo de censura por não terem agido de outra maneira - cfr. art.s 19º e 20º do Código Penal. Os arguidos não podem, sequer, em termos da sua atitude anterior, ver-lhes ser considerada uma particular estrutura psico-biólogica, se não em termos de sempre serem censurados e punidos por não terem orientado a modelação do seu modo de ser de maneira a poderem motivar-se como os indivíduos do tipo médio. A culpa jurídico-penal de cada arguido prefigura-se como uma violação do dever de conformar, respectivamente, o seu existir, de modo a que, no seu viver do dia a dia, não sejam violados ou postos em crise valores tutelados pela ordem jurídica. A culpa, neste sentido, conquanto formalmente referida à factualidade da lei, deve materialmente dirigir-se à personalidade que a fundamentou. O concreto agir é o ponto de partida para a avaliação do concreto ente que agiu, materialização a que se não pode fugir, pela sua própria natureza. Não se esgotará, ainda, aí, a operação de determinação do grau de culpabilidade, devendo-se, também, procurar atingir a devida gradação valorativa, posta em causa, e o "quantum" do sujeito que foi envolvido nessa desconformidade ética e social. Fundamento da determinação da pena é a significação do delito para a ordem jurídica, e a gravidade de reprovação que se há-de fazer ao agente (conteúdo do injusto e da culpabilidade). Neste equilíbrio, entre factores objectivos e subjectivos, se buscará a resultante de um juízo de reprobabilidade sobre as condutas e a personalidade, de modo a alcançar-se a justa medida da pena (v., a propósito, Mir Puig, Introducción a las bases del Derecho Penal, Barcelona, 1976 e Figueiredo Dias, Liberdade, Culpa, Direito Penal, 1983). A matéria de facto reflecte distanciamento, em termos de ultrapassagem das contra-motivações éticas, entre uma determinação normal pelos valores e a dos arguidos, reflecte uma atitude reveladora de motivos rejeitados pela sociedade, bem como reflecte, ainda, censurabilidade especial da motivação pela própria violação da norma - procura de satisfação na violação desta, traduzindo, assim, total "inimizade" pelas regras ético-sociais básicas e pela ordem jurídica vigente. De acordo com o disposto no artigo 71º do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados por lei, será feita em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção e de todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra o arguido. Culpa e prevenção são, por conseguinte, os dois termos do binómio com o auxilio do qual se há-de construir a medida da pena. A culpa jurídico-penal vem a traduzir-se, como escrito, num juízo de censura, que funciona, ao mesmo tempo, como um fundamento e limite inultrapassável da medida da pena (cfr. Figueiredo Dias, "Direito Penal Português - Das Consequências Jurídicas do Crime", p. 215). O limite superior da pena corresponde ao máximo grau de culpa e o limite mínimo à referência abaixo da qual se frustram as expectativas da comunidade, devendo tal pena situar-se ao nível que melhor corresponda aos componentes aludidos (e a todas as circunstâncias que deponham a favor ou contra o agente, como se referiu). Com o recurso à prevenção geral procura dar-se satisfação à necessidade comunitária de punição do caso concreto, tendo-se em consideração, de igual modo, a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos. Com o recurso à prevenção especial, almeja-se responder às exigências de socialização do agente, com vista à sua integração na comunidade. Dando concretização aos mencionados vectores, o n° 2 do art. 71º do Código Penal enumera, exemplificativamente, uma série de circunstâncias - atendíveis - para a graduação da pena, que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente.

3. O RECURSO PARA A RELAÇÃO

3.1. Inconformados, os arguidos recorreram em 23Set03 à Relação:

O colectivo não apreciou os factos na sua globalidade. Ignorou ostensivamente a matéria da acção provocada pelo plano de agente infiltrado desenvolvida pela Polícia Judiciária. Ignorou a alegação de que a Polícia Judiciária sabia - a contumácia do arguido tinha sido publicada no Diário da República - que A tinha contra si um mandato de captura emitido por um tribunal português. Mesmo que não fosse publicada a contumácia no D. República, sempre seria inverosímil que uma polícia não tivesse o registo criminal do visado num acção planeada! Os autos mostram que até à fase do debate instrutório a PJ encobriu o plano de agente infiltrado, relatando parcelarmente os factos e deturpando-os inclusive. Foi o arguido A quem acabou por descobrir a situação, sendo certo que no teatro dos factos (estação da Galp). Em audiência só uma testemunha veio a relatar como os factos se passaram... e as restantes testemunhas alegaram que nem no local estiveram. Não há registo de prova da audiência, porque a questão nem sequer foi suscitada pelo presidente do colectivo, em sede de conveniência nem inconveniência da mesma. Não se ignora que com a actual jurisprudência que vem a considerar este registo uma mera irregularidade muito se vai - aparentemente - ganhar em tempo nos julgamentos, mas com sacrifício injustificado da segurança e recolha da verdade (n.º 3 do art.º 410° do CPP), sobretudo sempre que se tratar de crimes cuja pena abstracta aplicável ao crime indiciado seja realmente elevada. Mas não deixa de se alegar o prejuízo para a defesa da falta desses elementos sonoros. Os vícios essenciais do acórdão recorrido são assim os que resultam de omissão de pronúncia sobre matérias essenciais à boa decisão da causa; de graves contradições da prova; de insuficiência da matéria provada para boa apreciação da prova; de desconsiderar em matéria de dolo o contributo da acção provocada pelo agente infiltrado (art.º 14° do C. Penal); de não pesar em sede de aplicação da pena a efectiva e concreta culpa do agente como elemento essencial para a sua responsabilização criminal (art.º 40º n.º 2 do C. Penal); de não ter tido em conta qualquer relatório social sobre a personalidade do arguido. Assim decidindo foram violados os preceitos consignados nas alíneas a), b) e c) do n.º 2 e no n° 3 do art.º 410° do CPP.

O arguido B desde o primeiro momento sempre expôs com verdade a sua intervenção neste episódio. Ofereceu boleia a um primo que tinha vindo a Lisboa. Encontrou-se com ele num dia em que veio tratar do processo de divórcio com seu advogado e, a pedido de A, deu-lhe boleia até ao Areeiro. Depois, anda a pedido de A, deu-lhe boleia até à estação da Galp no RALIS. Ignorava o que A transportava no embrulho tipo presente. Não é possível estabelecer nenhuma ligação ou plano conjunto entre os dois arguidos. Não é possível estabelecer qualquer intenção de cometer o crime. É verdade que as testemunhas o viram dentro do carro no Areeiro. E daí? Que se pode concluir? E verdade que ele conduziu o carro até à Galp. Uma vez mais: e daí? A factualidade dos autos é absolutamente insuficiente para legitimar e fundamentar uma condenação em tais circunstâncias. Foram violadas as garantias de defesa... consubstanciadas na preterição das medidas e providências de recolha e tratamento da prova para crimes graves, como é o caso - no sentido de que todos os cidadãos têm direito a um julgamento justo e equitativo. Esta preterição, sem fundamentação expressa dos motivos atendíveis, deve ser considerada nulidade relevante para anular o processo - n° 3 do art.º 410 do CPP. Na aplicação da pena, não foi tido em conta nem a personalidade nem a circunstância de ser uma acção provocada pela Polícia Judiciária, nem a culpa efectiva do arguido... sendo violado o artigo 40° n° 2 do C. Penal.

3.2. Porém, a Relação de Lisboa (6), em 06Mar03, negou provimento aos recursos:

Do recurso interlocutório. O despacho é o seguinte: «Quanto às requeridas diligências junto da PJ, e independentemente do que as testemunhas disseram em audiência, a questão suscitada foi objecto de decisão judicial a fls. 589 a 590 (7), não sendo pois, questão nova ou não apreciada. As contestações dos arguidos, por outro lado, não fazem referência a esses meios de prova (8), e seria aí o momento para que tal fosse, eventualmente, requerido. Quanto à requerida acareação, independentemente de se entender que os depoimentos em causa não são, entre si, contraditórios, a não ser na medida em que o arguido B nega a prática de qualquer dos factos que lhe são imputados, e a testemunha em causa aduz elementos que lhe atribuem essa mesma autoria, tal figura processual apenas tem relevância, e acolhimento legal, na medida em que possa fornecer ao Tribunal Colectivo mais do que a soma dos depoimentos em apreço (independentemente do valor que a cada um deles possa ser dado). Por outro lado a acareação estaria sempre inquinada pela circunstância dos arguidos tem o estatuto processual que têm, designadamente não prestando juramento». Decidindo. Quanto à dispensa de depor da testemunha D verifica-se que não foi interposto recurso deste despacho; no entanto, porque foi referido pelo mandatário do recorrente na audiência, sempre se dirá que D foi constituído arguido nos presentes autos e acusado juntamente com os restantes co-arguidos, até ao despacho que o despronunciou. Posteriormente foi indicado como testemunha de defesa dos arguidos. Dada a impossibilidade de transportar a testemunha à sala de audiência por o mesmo se encontrar gravemente doente (doença essa justificada pelo médico do EP) o tribunal deslocou-se a uma sala onde a testemunha se encontrava deitada numa maca. Pela testemunha foi dito não querer prestar declarações, nos termos do n.º 2 do art.º 132.º, n.º 2, do CPP, por das suas respostas poder resultar a sua responsabilização penal. O n.º 2 do art.º 132.º do CPP, preceitua que: "A testemunha não é obrigada a responder a perguntas quando alegar que das respostas resulta a sua responsabilização penal". Ora, D fora durante o decurso do processo indiciado como arguido, só vindo a sair dessa situação processual, pouco tempo antes, quando foi proferido o despacho de pronúncia dos outros dois arguidos, sendo ele despronunciado. O dever de as testemunhas responderem com verdade às perguntas que lhes forem e dirigidas é excluído quando alegarem que das respostas resulta sua responsabilidade penal. Efectivamente qualquer pergunta que lhe fosse feita no âmbito do processo poderia comprometê-lo penalmente. Justifica-se, assim a recusa em responder a perguntas no âmbito do processo. Em face disso, ao juiz "a quo" só lhe restava acatar a vontade da testemunha. Não foi, assim cometida qualquer ilegalidade. Relativamente à questão referida pelo recorrente A (agente infiltrado), tal questão foi apreciada no despacho do juiz de instrução: «Com efeito, resulta da matéria de facto apurada que os arguidos A e B se disponibilizaram a vender a cocaína, por solicitação de um agente da PJ que, usando anonimato, se fez passar por comprador. Será que essa solicitação à realização de um negócio ilícito constitui um meio enganoso de obtenção de prova, proibido pelos artigos 32.º, n.º 6, da CRP e 126.º, n.º 2, do Código de Processo Penal? Entendemos que a resposta é negativa. A actividade criminosa já estava em curso e os arguidos já estavam predeterminados a proceder à venda de produtos estupefacientes a terceiros que lhe aparecessem. Não se verifica pois o vício da nulidade das provas obtidas a través da intervenção do agente da PJ». Este despacho, integrando o despacho de pronúncia, foi notificado aos arguidos e não obteve qualquer reacção. Assim, não se tratava de matéria nova, até porque, nas suas contestações de fls. 607 a 609, não é feita qualquer referência a esta questão. Quanto à solicitação à PJ dos elementos que lhe permitiriam o não comprimento de mandado de captura que recaía sobre o referido, a diligência foi indeferida. Efectivamente não havia conhecimento de a PJ ter retido um mandato de captura contra o recorrente A, pelo que não era de solicitar a razão do incumprimento. Quanto à pretendida acareação, refere o art.º 146.º n.º 1 do CPP que "é admissível a acareação entre co-arguidos, entre o arguido e o assistente, entre testemunhas ou entre estas, o arguido e o assistente sempre que houver contradição entre as suas declarações e a diligência se afigurar útil à descoberta da verdade". O juiz indeferiu a pretensão, referindo que os depoimentos em causa (do arguido e da testemunha) só são contraditórios na medida em que o arguido B nega a prática dos factos, enquanto a testemunha em causa aduz elementos que lhe atribui essa mesma autoria. Ora, é sabido que subjacente à acareação está o princípio da descoberta da verdade material. É de proceder à acareação quando face as contradições dos depoimentos dos referidos seja de prever que da sua realização possa surtir o esclarecimento da verdade. E como refere Marques Ferreira (citado no CPP de Simas Santos e Leal Henriques, p. 787), "raramente se extraem resultados directos da acareação quanto à indagação da verdade revelando esta mais pelas indicações que pode fornecer no âmbito da razão de ciência dos acareados e da forma mais ou menos desapaixonada com que depõem e pela importância que, futuramente, poderá revestir na fundamentação da convicção do tribunal". Ora no caso, tal acareação não se mostrava de utilidade para a descoberta da verdade, pois o arguido, que não está vinculado a juramento, não alteraria a sua posição (efectivamente não a alterou posteriormente) e a testemunha que prestou juramento não modificaria o seu depoimento (como o não modificou posteriormente). Assim, nada a censurar ao indeferimento da diligência referida. Recurso da decisão final. Os arguidos impugnaram a decisão recorrida quanto a matéria de facto e de direito. O julgamento decorreu perante o tribunal colectivo. Não foram documentados os actos da audiência. Assim, esta Relação conhecerá apenas da matéria de direito, sem prejuízo do disposto no art.º 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, como decorre do art.º 428.º do mesmo diploma legal. Ora, mesmo quando Relação não conhece da matéria de facto, isso não impede a possibilidade de este tribunal usar da faculdade conferida pelo referido preceito, o que de certo modo implica apreciação da matéria de facto, mas que não cabe rigorosamente na previsão do art.º 428.º acima referido. Na hipótese de a Relação detectar vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do art.º 410.º e deva conhecer de facto e de direito (art.º 430.º, n° 1, do CPP) procederá à renovação da prova se se afigurar que a renovação perante ela permite evitar o reenvio do processo para novo julgamento, visto a renovação da prova na Relação só ser admitida quando este tribunal conheça rigorosamente de facto e de direito. Qualquer dos vícios do mencionado n.º 2 do art.º 410.º do CPP tem de resultar da própria sentença, por si só ou ainda conjugada com as regras da experiência comum. Uma decisão incorre no vício de insuficiência para a decisão de facto quando os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão proferida, ou quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência a aplicação do direito ao caso que foi submetido a julgamento. É claro que este vício respeita apenas à insuficiência dos factos dados como provados para a decisão constante da sentença recorrida, e não para outra eventual decisão. Existe contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, quando sobre a mesma questão há posições antagónicas e inconciliáveis, sendo tal contradição insanável. Verifica-se erro notório na apreciação da prova quando se constata erro de tal forma patente que não escapa à observação do homem de formação média, o que deve ser demonstrado a partir do texto da decisão recorrida, por si, ou conjugada com as regras da experiência comum. Analisando o acórdão recorrido não se vislumbra que padeça de qualquer dos vícios acima referidos. Os recorrentes referem que na aplicação das penas não foi tido em conta, nem a circunstância de se tratar de uma acção provocada, nem a culpa dos arguidos. Quanto à primeira questão (acção provocada), há a referir que se trata de matéria de facto, e como tal já acima tratada neste recurso. Quanto à não observância do disposto no art.º 40.º do CP, e a falta de relatório social, o art.º 40.º do CP preceitua que a aplicação de penas e de medidas de segurança, visa a protecção a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. O acórdão recorrido teve em consideração na determinação das penas aos arguidos os critérios referidos no art.º 71.º do CP, e o preceituado no art.º 40.º, n.º 1. A medida abstracta da pena para o crime praticado pelos arguidos é de 4 a 12 anos de prisão. Na aplicação das penas, de 5 anos e 6 meses ao arguido A, e de 4 anos e 8 meses ao arguido B, foi tido em a culpa de cada um dos arguidos, e as exigências de reprovação e prevenção quer especial quer geral para crimes desta natureza, que causam um malefício enorme à sociedade, actualmente. Tais penas, que pouco se afastam do mínimo legal, acham-se justas e equilibradas, tendo em vista a conduta dos arguidos. Quanto à falta do Relatório Social, com a alteração operada ao CPP Lei 59/98 de 25/8, a junção do relatório pré-sentencial deixou de ser obrigatório, aliás ele só era obrigatório quando estavam em causa arguidos menores de 21 anos. O art.º 370.º n.º 1 do CPP refere que o tribunal pode solicitar o relatório social, logo que em função da prova, o considere necessário à correcta determinação da sanção que possa vir a ser aplicada. O tribunal "a quo" não considerou que tal relatório fosse essencial para a determinação das penas aos arguidos. Não há pois qualquer nulidade. A decisão recorrida não merece censura.

4. O RECURSO PARA O SUPREMO

4.1. Ainda inconformados, os arguidos (9) recorreram em 19Mar03 ao STJ, pedindo «mais e melhor justiça»:

A dispensa de uma testemunha sem proporcionar à parte que a apresentou a possibilidade de a interrogar prejudica as garantias de defesa e viola o alcance dos artigos 132.2 do CPP com quebra dos direitos de defesa (art. 32° do CRP). O sentido que a defesa invoca para a boa interpretação do art. 132.2 do CPP é que não está na disponibilidade da testemunha a recusa de depoimento "em abstracto", mas a recusa de resposta a pergunta que "em concreto" ponha em causa a responsabilidade criminal da testemunha. A não ser assim, esvazia-se de conteúdo o disposto no art. 323.a e f e afecta-se o direito de defesa e do contraditório, constitucionalmente consagrados. Os obstáculos ao esclarecimento das condições da investigação do crime, recusando o requerido pela defesa em sede de produção de prova e apreciação da mesma em audiência, por via da dúvida sobre a legalidade da acção de agente infiltrado, nem são conformes aos ditames das exigências de uma sã política de prevenção e repressão criminal. Nem criam a suficiente segurança e certeza sobre a avaliação do comportamento do arguido A, ficando sem se saber por que não foi preso ao ser estabelecido o contacto da polícia quatro meses antes da prisão pelo cometimento dos factos narrados nos autos, nem permitem avaliar da "culpa" que o mesmo teve na concepção e execução do crime, designadamente no plano da sua livre iniciativa.

4.2. O Ministério Público (10), na sua resposta de 06Mai03, pronunciou-se pela confirmação integral do acórdão recorrido:

No que se refere à primeira questão, cabe dizer que os recorrentes continuam a esquecer, deliberadamente, que não foi interposto qualquer recurso ou invocada qualquer nulidade, atempadamente, sobre o (não) depoimento da testemunha D. Com efeito, na acta de fls. 674 e segs. resulta que o único recurso (interlocutório) interposto tem a ver o despacho (fls. 676) que indefere pedido de realização de diligências junto da PJ e de uma acareação entre o arguido B e a testemunha E. De resto, também já o acórdão recorrido deixara bem claro que não fora interposto recurso do despacho que dispensara a testemunha D de depor. Nessa medida, a questão em referência não pode ser reapreciada por não ter sido impugnada. Quanto à segunda questão suscitada pelos recorrentes e que no essencial se reportava à legalidade, ou não, de certas provas obtidas através da intervenção da P.J., também se repete aqui que se não tratava de uma questão nova, antes pelo contrário já existia decisão judicial (fls. 607 a 609) que sobre ela se debruçara e decidira sem que fosse objecto de qualquer impugnação tempestiva por parte dos recorrentes. Logo, a existir qualquer nulidade ou irregularidade estaria sanada e coberta pelo caso julgado. Finalmente, os recorrentes, no que chamam recurso da decisão final, pretendem submeter ao STJ "a reapreciação da legalidade do juízo de censura ao cidadão em tais circunstâncias", mas as circunstâncias em causa são outras que não as dadas como provadas e assentes. Ou seja, partem da consideração de uma factualidade que nada tem a ver com a dada como assente no acórdão impugnado, procurando, mais uma vez, fazer valer a versão dos factos apresentada pelo arguido A quando é certo que a discussão sobre tal ponto está encerrada, por o STJ, em princípio, só conhecer de direito. Como se vê no acórdão da 1ª instância, confirmado pelo acórdão ora recorrido, foram tidas em atenção as circunstâncias directamente relacionadas com os arguidos dadas como provadas para, em face da gravidade da sua conduta e do elevado grau de ilicitude dos factos, se graduarem as suas penas em quantitativos que se reputam de equilibrados, proporcionados e justos.

5. QUESTÃO PRÉVIA

A hierarquia do Ministério Público foi do parecer de que o recurso seria inadmissível, mas o Supremo Tribunal de Justiça, em conferência (05Set03), considerou «recorrível o acórdão de 06Mar03 da Relação de Lisboa que, em recurso, confirmou o acórdão da 2.ª Vara Criminal de Lisboa que, em 15Jul02, condenou A e B, como autores de um crime de tráfico de estupefacientes (art. 21.º do Decreto-Lei 15/93), nas penas, respectivamente, de 5,5 anos de prisão e 4,66 anos de prisão, e, por isso, admissível o recurso por eles interposto, em19Mar03, para o Supremo Tribunal de Justiça».

6. MÉTODOS PROIBIDOS DE PROVA

6.1. Segundo o n.º 1 do artigo 126.º do CPP («Métodos proibidos de prova») «são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante (...) ofensa da integridade (...) moral das pessoas». O n.º 2 reputa «ofensivas da integridade moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante (...) perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de (...) utilização de meios (...) enganosos».

6.2. «A coberto dos métodos proibidos de prova proscreve a lei processual os atentados mais drásticos à dignidade humana, mais capazes de comprometer a identidade e a representação do processo penal como processo de um Estado de Direito e, por vias disso, abalar os fundamentos daquela Rechtskultur sobre que assenta a moderna consciência democrática» (Manuel Da Costa Andrade, «Sobre As Proibições De Prova Em Processo Penal», Coimbra Editora, 1992, p. 209).

6.3. «Não que se questione a possibilidade (sequer a frequência) de também aqui (do lado dos meios enganosos) ocorrerem situações de manipulação e degradação das pessoas em termos de pertinência (ou, pelo menos, de continuidade) ao núcleo duro de que releva a proibição da tortura. Tal sucederá, concretamente, nos casos em que os meios enganosos desencadeiam mecanismos de coacção e configuram, por isso, formas invencíveis de extorsão da confissão. Só que isso não poderá afirmar-se, de plano e sem mais, em relação a todas as (e multímodas) formas de produção ou exploração fraudulenta do erro. Desde as manifestações mais ardilosas e gravosas de indução dolosa e activa do erro, ao aproveitamento de erro já subsistente, à mera omissão do esclarecimento destinado a dissipar o erro. Uma extensa e diversificada fenomenologia onde não deixarão de abundar os casos marginais de produção ou aproveitamento do erro, recondutíveis à normal e admissível «táctica» de interrogatório. Daí que os autores propendam decididamente para uma interpretação restritiva das proibições de prova atinentes aos meios enganosos» (p. 211).

6.4. «Como pertinentemente assinala PETERS, de forma mais ou menos explícita, todos os métodos proibidos por um dispositivo como o artigo 126.º do CPP configuram atentados à liberdade de formação e actualização da vontade de declaração. Só que «há métodos proibidos de forma absoluta e face aos quais aquele sacrifício se presume de antemão (perigo abstracto de sacrifício). (...) Já em relação a outros haverá, pelo contrário, de indagar se, em concreto, eles redundam ou não em sacrifício da liberdade de formação e actualização da vontade, da capacidade de memória ou de valoração (atentados concretos à liberdade de declaração)» (p. 212).

6.5. Por isso, não se duvida que «a heterogeneidade dos métodos proibidos e, consequentemente, a diferenciação e graduação das suas valorações normativas, minam de dificuldades a interpretação e aplicação do artigo 126.º do CPP» (p. 213).

6.6. A este respeito, uma das questões mais debatidas na doutrina e na jurisprudência alemã e norte-americana é, na aquisição da prova, a da intervenção dos chamados homens de confiança, em cujo conceito extensivo (MEYER) cabem não só «as testemunhas que colaboram com as instâncias formais da perseguição penal, tendo como contrapartida a promessa da confidencialidade da sua identidade e actividade», como «os particulares (pertencentes ou não ao submundo da criminalidade)» e «os agentes das instâncias formais, nomeadamente da polícia (Untergrundfahnder. undercover agent, agentes encobertos ou infiltrados), que disfarçadamente se introduzem naquele submundo ou com ele entram em contacto». E «quer eles se limitem à recolha de informações (Polizeispitzel, detection), quer vão ao ponto de provocar eles próprios a prática do crime (polizeiliche Lockspitzel, agent provocateur; entrapment)» (p. 220).

6.7. «Esta súbita e frequente presença do homem de confiança na praxis jurídico-processual veio despertar uma série de problemas e de aporias do foro ético e jurídico-normativo, cuja equacionação e superação ensaiam ainda os primeiros passos. (...) É o que impressivamente revela (...) a profundidade invulgar das linhas de clivagem e dissonância que, a este propósito, têm afastado entre si as diversas secções (Senate) do BGH germânico» (p. 221).

6.8. «As dificuldades começam logo a ganhar relevo quando se questiona a legitimidade ético-jurídica do procedimento, maxime nas formas mais expostas de Lockspitzel. Isto é, em que o homem de confiança se converte em agent provocateur, precipitando de algum modo o crime: instigando-o, induzindo-o, nomeadamente, aparecendo como comprador ou fornecedor de bens ou serviços ilícitos» (p. 221).

6.9. «É, na verdade, cada vez mais forte o coro de vozes que, tanto no direito alemão como americano, contestam abertamente a solvabilidade ético-jurídica desta prática. Aponta-se para tanto a imoralidade do Estado que com uma mão favorece o crime que quer punir com a outra, acabando, não raro, por atrair pessoas que de outro modo ficariam imunes à delinquência e potenciando os factores da extorsão, da violência e do crime em geral (...)» (p. 221).

6.10. Tudo preocupações a que não têm ficado alheios os tribunais superiores dos E.U. ou da Alemanha. Como, no contexto do caso Herman v. United States (1958), refere o Supreme Court americano, «thus the government plays on the weakness of an innocent party and beguiles him into committing crimes which he otherwise would not have attempted, Law enforcement does not require methods such as this» (ps. 222).

6.11. «Tanto na jurisprudência como na doutrina é hoje consensual o reconhecimento de hipóteses em que a intervenção do Lockspitzel deve determinar a exclusão da responsabilidade do provocado ou, pelo menos, a sua redução. É pacífico o entendimento de que devem existir limites para além dos quais o recurso à V-Leute é, de todo em todo, inadmissível. Tal sucederá, nomeadamente, quando, aquela prática ultrapasse os «limites do permitido em termos de Estado de Direito» (p. 224).

6.12. «A partir de 1980, o BGH começou a pronunciar-se sistematicamente contra a responsabilização penal do agente induzido ao crime pelo Polizeispitzel. (...) De acordo com esta orientação do BGH, poderia seguramente falar-se de caducidade da pretensão punitiva do Estado sempre que estivesse em causa um arguido sem precedentes criminais dependente da droga ou quando as solicitações se revelassem em concreto particularmente fortes e praticamente irresistíveis. Inversamente, já nada precludiria a efectivação da responsabilidade criminal em casos em que é o arguido que espontaneamente se dirige ao Spitzel e procura a droga (...)» (p. 225).

6.13. Todavia, «a partir de 1984 - mais concretamente a partir da decisão proferida em 23.5.1984 pela 1.a secção do BGH -, assistir-se-ia a uma viragem da jurisprudência do tribunal supremo alemão. Que se traduziria no abandono expresso da figura do obstáculo processual, convertendo o problema do Lockspitzel em problema de direito substantivo, mais precisamente em problema de medida da pena. A partir de 1984, o BGH vem recusando abertamente pertinência de ideias como a Verwirkung da pretensão punitiva. Além do mais porquanto, argumenta, «os bens jurídicos confiados à tutela do Estado não podem ficar na disponibilidade dos Lockspitzeln da polícia» (p. 226).

6.14. «A tese da solução em sede de medida da pena - relativamente consolidada do lado da jurisprudência, colhendo hoje o aplauso as rias secções do BGH - é contestada pela generalidade dos autores. (...) Trata-se, em síntese, conclui o autor, de uma solução que «numa perspectiva prático-jurídica, dá pedras em vez de pão, tendo, por isso, de ser recusada». (...) A convergência dos autores na rejeição da solução assente no momento da medida da pena não tem, todavia, correspondência (...) na defesa de um princípio comum de solução e enquadramento. A par de vozes a advogarem a solução processual do obstáculo processual (TASCHKE), não faltam outras a privilegiar o plano substantivo, só que agora a título de dispensa de pena. Segundo SEELMANN, por exemplo, o agente provocado beneficiará de «uma causa pessoal de exclusão da pena naqueles casos extremados de provocação em que se pode falar de uma perda da função do direito penal». Enquanto isto, vem um conjunto significativo de autores propugnando por uma solução no contexto das proibições de prova. Uma construção que assenta na consideração de que o recurso ao Lockspitzel, que em casos extremados poderá representar uma situação de coacção, configurará sempre uma manifestação de engano (Täuschung) e, como tal, também proibido (...). De acordo com LÜDERSSEN, um dos mais destacados defensores da conversão do problema em questão de tema proibido de prova, «há seguramente Täuschung sempre que o homem de confiança leva o suspeito à prática de um novo crime. Pois, se o suspeito soubesse exactamente o que o homem de confiança verdadeiramente queria, não teria de forma alguma correspondido aos seus desígnios. Há, por isso, aqui um atentado à liberdade de formação e realização da vontade» (p. 227).

6.15. «Dignos ainda de menção os esforços entretanto empreendidos pela doutrina e tribunais americanos no sentido de melhor precisar e moderar o âmbito de eficácia da plea of entrapment. Que tenderá, por vias disso, a circunscrever-se às hipóteses em que o agente provocador desencadeia efectivamente o crime, não se limitando a revelar uma já subsistente propensão para o seu cometimento. A defense of entrapment não aproveitará, assim, ao arguido who was predisposed to commit the crime» (p. 228).

6.16. «Como SCHÜNEMANN precisa, a discussão terá de «se concentrar sobre aquele ambiente (Umfeld) criminoso para cujo esclarecimento se recorre aos métodos ocultos de investigação e face ao qual os crimes provocados aparecem como meros epifenómenos secundários e periféricos, muitas vezes mesmo indesejáveis se bem que inevitáveis do ponto de vista criminalístico». Posto o problema com esta amplitude, estão em minoria as vozes que propendem para a afirmação generalizada da proibição de prova. Uma solução que determinaria, além do mais, a inadmissibilidade do recurso ao homem de confiança, sem mais. Isto atento o seu qualificado lastro de «deslealdade» e por ser, como tal, susceptível de «pôr em causa a dignidade, a cultura jurídica e a legitimação do processo penal» (WOLTER)» (p. 229).

6.17. «Só que a generalidade dos autores e, sobretudo, a jurisprudência, continuam a encarar o Polizeispitzel como expediente indispensável duma resposta eficaz às manifestações mais ameaçadoras da criminalidade, enquanto, de forma mais ou menos explícita e assumida, vão considerando a sua legitimidade de princípio como aproblemática. Neste contexto, o consenso tende a circunscrever-se às constelações extremadas como a da colocação na cela de um recluso em prisão preventiva de outro recluso incumbido pelas instâncias formais de obter do primeiro informações sobre os crimes por que vem acusado» (ps. 229 e 230).

7. síntese

Assim colocados os dados da questão, a expensas de Costa Andrade, será possível, a propósito, genericamente relevar (porventura nem sempre (11) com o beneplácito do Mestre e da Obra a que se arrimou), em síntese, o seguinte:

7.1. O Polizeispitzel foi, é e continua a dever considerar-se «um expediente indispensável duma resposta eficaz às manifestações mais ameaçadoras da criminalidade»;

7.2. Neste âmbito, há que circunscrever os métodos proibidos de prova «aos atentados mais drásticos à dignidade humana, mais capazes de comprometer a identidade e a representação do processo penal como processo de um Estado de Direito e, por vias disso, abalar os fundamentos daquela Rechtskultur sobre que assenta a moderna consciência democrática»;

7.3. «Uma extensa e diversificada fenomenologia onde não deixarão de abundar os casos marginais de produção ou aproveitamento do erro, recondutíveis à normal e admissível «táctica» de interrogatório» (12) aconselha «uma interpretação restritiva (13) das proibições de prova atinentes aos meios enganosos»;

7.4. Ilegítima, todavia, será já a conduta do homem de confiança que, não se limitando a trazer à superfície crimes subterrâneos, vá ao ponto de, mais que precipitar, provocar/produzir crimes que sem essa determinante e decisiva (14) intervenção não teriam lugar e a «atrair pessoas que de outro modo ficariam imunes à delinquência», ou, por outras palavras (15), a servir-se da debilidade («weakness«) de um inocente («innocent party») para o induzir («beguiles him into») a cometer crimes que de outro modo não teriam sido cometidos («committing crimes which he otherwise would not have attempted»);

7.5. Importa também «precisar e moderar o âmbito de eficácia da plea of entrapment», circunscrevendo-o, tendencialmente, «às hipóteses em que o agente provocador desencadeia efectivamente o crime, não se limitando a revelar uma já subsistente propensão para o seu cometimento»;

7.6. A «defense of entrapment» não aproveitará, assim, ao arguido «who was predisposed to commit the crime»;

7.7. O mesmo se dirá dos casos em que os «crimes provocados» por tais «métodos ocultos de investigação» aparecem como «meros epifenómenos secundários e periféricos».

8. A LEALDADE PROCESSUAL E O AGENTE INFILTRADO

«A lealdade é um princípio inerente à estrutura do processo penal. A lealdade pretende imprimir a priori toda uma atitude de respeito pela dignidade das pessoas e da Justiça e nessa perspectiva é fundamento de proibição de prova. Nesta perspectiva parece-me que o recurso a agentes informadores e agentes infiltrados viola o princípio da lealdade e pode acarretar como consequência a proibição de provas obtidas por essa via. A questão dos agentes informadores e infiltrados não tem, porém, a mesma tensão da dos agentes provocadores; estes são sempre inadmissíveis, porque agentes do próprio crime, e em circunstância alguma se pode admitir que a Justiça actue por meios ilícitos e que o combate à criminalidade se possa fazer por meios criminosos; os agentes informadores e infiltrados não participam na prática do crime, a sua actividade não é constitutiva do crime, mas apenas informativa, e, por isso, é de admitir que, no limite, se possa recorrer a estes meios de investigação (...). Dizemos no limite, ou seja, quando a inteligência dos agentes da justiça ou os meios sejam insuficientes para afrontar com sucesso a actividade dos criminosos e a criminalidade ponha gravemente em causa os valores fundamentais que à Justiça criminal cabe tutelar. E que uma sociedade organizada na base do respeito pelos valores da dignidade humana, que respeite e promova os valores da amizade e da solidariedade, que vise a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno (cf. Preâmbulo da Constituição da República Portuguesa), não pode consentir que o exercício de uma função soberana possa constituir a causa da quebra da solidariedade entre os seus membros, possa ser motivo de desconfiança no próximo, conduzir ao egoísmo e ao isolamento. A sociedade que assim se organize, que consinta a delação organizada e a estimule, tem na sua própria estrutura os gérmenes da sua destruição» (16).
9. O REGIME JURÍDICO PORTUGUÊS

9.1. Dispunha o art. 52.º do dec. lei 430/83, sob a epígrafe "Conduta não punível": «1. Não é punível a conduta do funcionário de investigação criminal que, para fins de inquérito preliminar e sem revelação da sua qualidade e identidade, aceitar directamente ou por intermédio de terceiro a entrega de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas. 2. O relato de tais factos é junto ao processo no prazo máximo de 24 horas».

9.2. Segundo Lourenço Martins (Droga - Prevenção e Tratamento, 1984, ps. 154-155), «o que este artigo parece prever é a hipótese de a um agente ou funcionário infiltrado no "milieu" da droga ser oferecida qualquer das substâncias previstas nas tabelas, sendo tomado por um consumidor ou, pelo menos, por comprador. A aceitação e pagamento sem o entendimento de que se tratava de uma apreensão (17), se fosse punível (...), implicaria a impossibilidade de prosseguir na descoberta da rede de tráfico e, por outro lado, a "denúncia" da qualidade de polícia com a ineficácia em acções futuras (...). A lei vem salvaguardar este meio de investigação (18), declarando a impunibilidade do funcionário. Deve, porém, ser interpretada nos seus precisos termos».

9.3. Também Ferreira Ramos (Droga, Decisões de 1.ª Instância, 1994, Comentários, p. 166) (19) sustentou que o legislador, com esta disposição, apenas quis «consagrar aquela primeira figura [a do agente infiltrado ou encoberto] e nos precisos termos que a norma define», «não sendo permitida a "infiltração" fora deste quadro normativo».

9.4. O Decreto-Lei 430/83 foi entretanto revogado, em bloco, pelo Decreto-Lei 15/93, mas, não obstante, «o legislador português entendeu não alterar a disciplina anterior sobre a matéria, antes reproduzindo textualmente, no art. 59.º, e também sob a mesma epígrafe, o disposto no revogado art. 52.º, assim mantendo o enquadramento legal da figura do agente infiltrado» (Ferreira Ramos, ob. cit., p. 167) (20). Continuou a estar fora de causa «a actuação do polícia que vende droga para identificar os compradores, em geral considerada ilícita. Seria verdadeiramente um agente provocador. A discussão roda sim à volta do polícia que, por si ou com recurso a outrem, se infiltra no milieu, simulando-se comprador de droga. Então o que sucede é que geralmente a detenção de droga com intenção de a traficar já existe; o agente não actua para dar vida ao delito, mas apenas para colocar a descoberto os canais de tráfico» (Lourenço Martins (Nova Lei Anti-Droga - Um Equilíbrio Instável, GPCCD, Lisboa,1994, ps. 58-59).

9.5. Em 1996, a Lei 45/96 de 3Set deu ao art. 59.º do Decreto-Lei 15/93 uma nova redacção que, por um lado, equiparou à «conduta do funcionário de investigação criminal» a de «terceiro actuando sob controlo da PJ» e - fazendo-a, porém, «depender de prévia autorização [por prazo determinado] da autoridade judiciária competente» (n.º 2) - alargou o âmbito da «conduta não punível» (que da «aceitação» se alargou à detenção, guarda e transporte e, até, desde que em sequência e a solicitação de quem se dedique a essas actividades, à própria entrega): «Não é punível a conduta do funcionário de investigação criminal ou de terceiro actuando sob controlo da PJ que, para fins de prevenção ou repressão criminal, com ocultação da sua qualidade e identidade, aceitar, detiver, guardar, transportar ou, em sequência e a solicitação de quem se dedique a essas actividades, entregar estupefacientes, substâncias psicotrópicas, precursores e outros produtos químicos susceptíveis de desvio para o fabrico ilícito de droga ou percursor» (n.º 1).

9.6. De qualquer modo, só em 2001 (muito depois, portanto, da investigação do crime sub judice) é que a lei - cfr. Lei 101/2001 de 25Ago (21) - veio enfim estabelecer (22), «para fins de prevenção e investigação criminal» (de determinados crimes, neles se incluindo «os relativos ao tráfico de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas»), o regime das acções encobertas, definindo-as («aquelas que sejam desenvolvidas por funcionários de investigação criminal ou por terceiro actuando sob o controlo da PJ para prevenção ou repressão» de determinados crimes), determinando-lhe os requisitos (adequação aos fins de prevenção e repressão identificados em concreto, nomeadamente a descoberta de material probatório; proporcionalidade àquelas finalidades e à gravidade do crime em investigação; dependência de prévia autorização do Ministério Público e posterior validação do juiz de instrução; admissibilidade de identidade fictícia) e isentando de responsabilidade a conduta do agente encoberto («no âmbito de uma acção encoberta que consubstancie a prática de actos preparatórios ou de execução de uma infracção em qualquer forma de comparticipação diversa da instigação e da autoria mediata»).

10. CONCRETA APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS

10.1. Provou-se em julgamento que «no dia 14.5.1999, pelas 16 horas, nas imediações das bombas de gasolina "Galp" da Avenida do Porto, sentido Sul - Norte, em Lisboa, os arguidos detinham 2.066,237 g líquidos de cocaína, que (...) destinavam à venda a terceiro indivíduo, por eles conhecido como C».

10.2. Porém, o despacho de pronúncia pressupusera - e nessa medida recebera e mandara seguir a acusação («pronunciando o arguido pelos factos respectivos» - art. 308.1 CPP) (23) - que «C» não passava de um agente «disfarçado» da Polícia Judiciária.

10.3. Com efeito, o juiz de instrução - ao pronunciar os arguidos pelos factos de que recolhera indícios suficientes de se terem verificado - inferira, «da prova documental, pericial e testemunhal carreada para os autos no decurso do inquérito e na fase de instrução», que «a PJ, na investigação de actos relacionados com o tráfico de droga, tivera conhecimento de que o arguido A se dedicava à venda de quantidades avultadas de cocaína e assim, com vista à sua intercepção, contactara D, na altura preso no EP de Monsanto e que conhecia A», que, sob seu controlo, veio a «marcar um encontro com o arguido A no Largo do Areeiro, em Lisboa, encontro a que compareceu um inspector da PJ, apresentado por Da A, como comprador de cocaína, com a falsa identidade de C».

10.4. Sendo esse, pois, um «dado adquirido» do inquérito e da instrução (24), surpreende que o tribunal colectivo não tenha dado como provado, sem qualquer outra explicitação, «que o arguido A tenha sido "aliciado" por agentes da PJ à prática do crime».

10.5. Tanto mais que, na pronúncia, já se assentara em que «após terem conversado, A se disponibilizara a vender cocaína a "C" pelo preço de 4.500 ou 5.000 contos, mais ficando acordado que, logo que obtivesse o produto, lhe telefonaria». E, ainda, que «decorridos alguns dias, A lhe telefonou, informando-o de que já tinha a droga e que se poderiam encontrar, tendo sido então marcado um novo encontro na mesma pastelaria, encontro em que ficou acordado que, se a cocaína fosse de boa qualidade, "C" a compraria pelo preço de 4.200 contos e, posteriormente, que a cocaína seria entregue a Santos nas bombas de gasolina Galp».

10.6. E daí que, nesse encontro, o aguardassem - não o falso "C" - mas «agentes da PJ», que, identificando-se, o detiveram e lhe apreenderam a mercadoria.

10.7. O que estava em causa, no julgamento, não era, pois, tão só a materialidade da conduta do(s) arguido(s) - a detenção, por um deles ou por ambos, de dois quilos de cocaína para venda a terceiros [uma evidência, aliás sempre admitida e «confessada» pelo arguido A] - mas sobretudo as circunstâncias em que a PJ, por intermédio de um seu inspector e de um «terceiro actuando sob o [seu] controlo», haviam actuado, descobrindo-a ou, mesmo, desencadeando-a.

10.8. Ou, por outras palavras, se essa «acção encoberta» da PJ havia sido «determinante» da conduta do arguido (acção provocada e, por isso, insusceptível de «prova») ou, simplesmente, se destinara a «descobrir [um] crime já praticados, coligindo informações ou recolhendo provas» (acção de descoberta e, por isso, legítima).

10.9. E isso porque o juiz de instrução, ao pronunciar o(s) arguido(s), fizera respaldar «a admissão da actuação do chamado agente infiltrado» na presunção - a confirmar (ou não) em julgamento - de que «a actividade criminosa já estava em curso» e de que «os arguidos já estavam predeterminados a proceder à venda de produtos estupefacientes a terceiros que lhes aparecessem».

10.10. Porém, a sentença de 1.ª instância - ao desprezar (25) um dos pressupostos (26) em que assentara a pronúncia (o de que a prometida venda de droga ao falso "C" surgira na decorrência de uma "acção encoberta" da PJ) - também não concretizou (nem se interessou em concretizar), incorrendo no vício - que transmitiu à decisão da relação, que a confirmou - da «insuficiência, para a decisão [de direito], da matéria de facto provada» (art. 410.2.a do Código de Processo Penal):

a) se o arguido A, quando contactado pelo agente encoberto "C", já havia fornecido [como o próprio arguido, aliás, admitia na contestação] ao também agente encoberto D (27), a pedido deste, 450 g de cocaína (por ele desencaminhada ou entregue à PJ, que, nessa acção igualmente encoberta, o «controlava»);
b) se o arguido A se vinha dedicando - como constava à PJ quando desencadeou a sua acção encoberta - «à venda de quantidades avultadas de cocaína»;
c) se o arguido A - quando contactado pelo agente encoberto - já detinha a droga que veio a prometer vender-lhe (isto é, se, nas palavras do juiz de instrução, «a actividade criminosa já estava em curso»);
d) ou se - quando desse contacto - o arguido A (como veio a alegar na sua contestação e o juiz de instrução veio a apurar no decurso da instrução) (28) só depois do «encontro no Areeiro» «cedeu à tentação de se deslocar de Madrid a Lisboa para trazer a droga».

10.11. E a verdade é que dependia (e continua a depender) da resposta a estes quesitos a validade ou a proibição da prova (art. 126.1 e 2.a do Código de Processo Penal) (29) decorrente da correspondente acção encoberta: válida se o agente (que «por si ou com recurso a outrem, se infiltrou no milieu, simulando-se comprador de droga») não actuou para dar vida ao delito mas apenas para colocar a descoberto os canais de tráfico (no caso, designadamente, de «a detenção de droga com intenção de a traficar já existir») e inválida se o agente encoberto, ao actuar, o provocou, dando-lhe vida (que será o caso, por exemplo, de o arguido, ao tempo da provocação, ainda não deter, não ter à sua disposição ou não puder dispor da droga «encomendada»).

11. CONCLUSÕES

11.1. As instâncias, ao decidirem viciadamente a matéria de facto, colocaram o Supremo na impossibilidade - por «insuficiência da matéria de facto» (30) - de decidirem, em recurso, «do direito» que aos recorrentes pudesse ou possa assistir.

11.2. «Mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito» (como é o caso: art. 434.º do Código de Processo Penal), «é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.2 do Código de Processo Penal» (assento 7/95 de 19Out, DR I-A, 28Dez95 e BMJ 450-72).

11.3. Em caso de utilização de «métodos proibidos de prova», a fixação dos factos materiais da causa pode ser objecto de recurso de revista (cfr. art.s 126.º do Código de Processo Penal e 722.2 e 729.2 do Código de Processo Civil).

11.4. O processo volta ao tribunal recorrido quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito (art.s 729.3 do Código de Processo Civil e 434.º e 410.2 do Código de Processo Penal).

12. DECISÃO

Tudo visto, o Supremo Tribunal de Justiça - no entendimento de que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito (cfr., supra, 10.4) e que a decisão de facto pode e deve ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito (cfr., supra, 10.10) - determina que a Relação (se possível pelos mesmos juízes) julgue novamente a causa de harmonia com o regime jurídico ora definido (art. 730.º do Código de Processo Civil).

Lisboa, 30 de Outubro de 2003
Carmona da Mota
Pereira Madeira
Simas Santos
Costa Mortágua
-----------------------------------
(1) Preso em cumprimento de pena à ordem do processo n.º 2798/02 do 1.º Juízo Criminal de Santarém até 23Jun03 e, desde então, à ordem do 1.º Juízo do Cartaxo (processo 4/2000.3JELSB) para cumprimento da pena de 5 anos de prisão.
(2) Ausente no Brasil, apesar das obrigações assumidas em termo de identidade e residência (em Vila Chã de Ourique) de fls. 593 (cfr. certificado de fls. 779 do Consulado de Portugal em Curitiba/Brasil [de 30Jan03]: «O cidadão português...vive actualmente neste país, em Santa Catarina»).
(3) «Não se provaram quaisquer outros factos; e, designadamente, não se provou: - que o arguido B se tenha limitado a dar uma boleia ao arguido A, ignorando o conteúdo do saco que ele transportava; - que o arguido B tenha empunhado a arma no momento da detenção por ter tido a sensação, ao chegar à Galp, que ia ser assaltado; - que os agentes da P.J. não se tivessem identificado como polícias; - que o mesmo arguido B, ao verificar que se tratava de agentes policiais, tivesse entregue a arma; - que o arguido Atenha sido "aliciado" por agentes da Polícia Judiciária à prática do crime; - que o mesmo A não estivesse em contacto com a droga há vários anos; - que o arguido A tivesse sido, primeiramente, aliciado pelo ex-coarguido D e, por isso, se tivesse deslocado a Madrid, e entregue a D uma primeira quantidade de droga (cerca de 450 gramas) que este recebeu e a que deu o destino que entendeu; - que o tal D tenha entregue esta droga aos agentes da PJ; - que o arguido A tivesse agido por ter grandes necessidades económicas; - que a Polícia Judiciária soubesse que o arguido A tinha um mandado de captura pendente de cumprimento, e, apesar disso, tivesse fomentado a operação, em vez de deter o arguido; - que o tal D tivesse agido por "vindicta", eventualmente por ter ficado furioso com o encontro que o arguido A teve com a esposa dele, enquanto esteve preso; - que os arguidos visassem obter, com a transacção, valor não inferior a 8.300.000$; - que os arguidos se preparassem para abandonar o local, por não ter aparecido o "cliente", após terem aguardado alguns minutos; - e que os agentes da P.J. ali estivessem desde as 15 horas, em vigilância, na sequência de denúncia»
(4) Em 08Jun94, foi condenado (no processo hoje com o n.º 2798/02) pelo Tribunal Judicial de Santarém (1.º Juízo Criminal), como autor de um crime de art. 21.º do Decreto-Lei 15/93, na pena - confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 18Mai95 (recurso 47868) - na pena de cinco anos de prisão (um dos quais «perdoado» ao abrigo da Lei 15/94). Destes autos consta («certificado de fls. 136») que o arguido já havia sido condenado «por factos de semelhante natureza». Entretanto, no 1.º Juízo do Cartaxo, foi condenado, no âmbito do comum colectivo 4/2000.3JELSB, na pena de cinco anos de prisão: CRIME - Tráfico de droga no meio prisional; DATA - 29Dez99; LOCAL - EP de Alcoentre; CONDENAÇÃO - 10Jan02; RECURSO - rejeitado em 02Out02 por «manifestamente improcedente»; TRÂNSITO - 22Out02.
(5) Juízes Guilherme Castanheira, Cláudio Ximenes e João Carrola.
(6) Desembargadores Silveira Ventura, Nuno Gomes da Silva, Cid Geraldo e Antunes Grancho.
(7) «Da prova documental, pericial e testemunhal carreada para os autos no decurso do inquérito e na fase de instrução resultam suficientemente indiciados os seguintes factos: A PJ, na investigação de actos relacionados com o tráfico de droga, teve conhecimento de que o arguido A se dedicava à venda de quantidades avultadas de cocaína. Assim, com vista à sua intercepção, a PJ contactou D, na altura preso no EP de Monsanto e que conhecia A. Em 1999, em data anterior a 14 de Maio, D marcou um encontro com o arguido A no Largo do Areeiro, em Lisboa. A esse encontro, compareceu um inspector da PJ, que foi apresentado por D a A como comprador de cocaína e com a falsa identidade de C. Após terem conversado, A disponibilizou-se a vender cocaína a C pelo preço de 4.500 ou 5.000 contos. Mais ficou acordado que, logo que obtivesse o produto, lhe telefonaria. Decorridos alguns dias, A telefonou-lhe, informando-o de que já tinha a droga e que se poderiam encontrar. Foi então marcado um novo encontro na mesma pastelaria. Nesse encontro ficou acordado que, se a cocaína fosse de boa qualidade, C a compraria pelo preço de 4.200 contos. Posteriormente, foi acordado que a cocaína seria entregue a Santos nas bombas de gasolina Galp (...). Resulta da matéria de facto apurada que os arguidos A e B se disponibilizaram a vender a cocaína, por solicitação de um agente da PJ que, usando de anonimato, se fez passar por comprador do estupefaciente. Será que essa solicitação à realização do negócio ilícito constitui um meio enganoso de obtenção de prova, proibido pelos art.s 32.6 da Constituição e 126.2 do CPP, que determinará a invalidade da prova recolhida, nos termos do art. 122.º do CPP? A resposta terá que ser negativa. Razões de eficácia criminal, em períodos de insegurança social, podem justificar a admissão da actuação do chamado agente infiltrado quando a actividade criminosa já está em curso como é o caso dos autos, em que os arguidos já estavam predeterminados a proceder à venda de produtos estupefacientes a terceiros que lhes aparecessem (...). Assim sendo e uma vez que não se verifica o vício de nulidade das provas obtidas através da intervenção do agente da PG, julgo válidas as referidas provas» (despacho de pronúncia de 26Fev02).
(8) «Contestação de A: O arguido insiste na posição de que foi aliciado por agentes da PJ à prática do crime; sucede que, aliciado pelo ex-coarguido D, o arguido se deslocou a Madrid e entregou a D 450 g de droga, que este recebeu (...); D terá encaminhado a droga para o mercado ou então entregou-a à PJ, tese que é ocultada no processo; D, qualquer que fosse a colaboração dada à PJ, deveria esclarecer o destino da droga; foi em acordo com o comprador, que agora veio confessar ser inspector da PJ, que o arguido decidiu proceder à entrega da droga apreendida; este agente, depois de um encontro no Areeiro, marcou encontro nas bombas da Galp. O arguido cedeu à tentação de participar na operação de se deslocar de Madrid a Lisboa para trazer droga; a PJ sabia que o arguido tinha um mandado de captura pendente e, apesar disso, fomentou a operação em vez de deter o arguido; a resolução à prática do crime não foi da iniciativa do arguido; o arguido foi contactado por D, que contactou a polícia ou por ela foi contactado; o arguido foi aliciado para um negócio preparado provocadoramente por D e, segundo as palavras deles, pela própria polícia; um arguido nestas condições é um joguete e não tem o pleno domínio dos factos; se a polícia tivesse prendido o arguido, mal o localizou, cumprindo o mandado de captura, não teria havido crime (...). Junta o seguinte rol de testemunhas: 1.º - D (...)»
(9) Adv. Avelino Silva.
(10) P-G Adj. Fernando Carneiro.
(11) «Importará pôr a descoberto alguns tópicos de equacionação e superação do problema no contexto do ordenamento processual penal português: a) Para tanto, um dado como ponto de partida: o recurso ao homem de confiança configurará normalmente um meio enganoso, sendo, como tal, recondutível à categoria dos métodos proibidos pelo artigo 126.°, n.° 2, al. a), do CPP (...); b) Não significa isto que o recurso ao homem de confiança esteja, sempre e sem mais, a coberto de proibição de prova (...). Cremos, por exemplo, ser de sustentar a inadmissibilidade e, por isso, a coberto de estrita proibição de prova, da intervenção do homem de confiança que se limita a provocar uma pessoa ao consumo v. g, de estupefacientes com o fim exclusivo de, como tal, - sc., como mero consumidor - o perseguir penalmente. O mesmo tenderá a valer, em geral, para os demais casos de intervenção de homens de confiança com propósitos e para fins unicamente repressivos: isto é, exclusivamente preordenada à repressão de crimes já consumados, em homenagem nomeadamente à ideia duma administração eficaz da justiça penal. O tratamento já poderá ser diverso sempre que o homem de confiança prossiga finalidades exclusiva ou prevalentemente preventivas. Será, concretamente assim sempre que a perseguição de eventuais agentes, lograda através do homem de confiança, se integre em programas de repressão e desmantelamento do terrorismo, da criminalidade violenta ou altamente organizada. De outra forma, deixar-se-ia a sociedade desarmada face a manifestações tão drásticas e intoleráveis de criminalidade» (ob. cit., ps. 231 e 232).
(12) Havendo que «distinguir entre o engano (Täuschung) proibido e a astúcia (List) permitida» (SCHLÜCHTER).
(13) Só «uma interpretação cuidadosamente restritiva pode evitar aqui resultados susceptíveis de paralisar a actividade de investigação das instâncias de perseguição penal» (EB. SCHMIDT).
(14) Mediante, por exemplo, «solicitações» que «em concreto se revelem particularmente fortes e praticamente irresistíveis».
(15) As do Supreme Court americano no caso Herman v.United States, 1958.
(16) Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Verbo, 1999.
(17) «A droga aceite nas circunstâncias a que o artigo se refere considerar-se-á imediatamente na situação de apreendida, para todos os efeitos legais, sendo vedada a sua utilização a qualquer título, nomeadamente para repartir com outros consumidores ou compradores»
(18) «O agente infiltrado apenas procura descobrir crimes já praticados, coligindo informações ou recolhendo provas»
(19) Acompanhando quase textualmente o parecer 50/94 da PGR de 22Jul95, de que foi relator.
(20) «O ordenamento jurídico vigente entre nós não prevê a figura do agente provocador, mas reconhece e aceita a figura do agente infiltrado, nos precisos termos que o art. 59.º do Decreto-Lei 15/93 especifica»
(21) Revogando - no seu art. 7.º - os art.s 59.º e 59.º-A do Decreto-Lei 15/93.
(22) Se bem que já desde 1994 (Lei 36/94 de 29Set) se admitissem «acções de prevenção» [por iniciativa da PJ ou do Ministério Público] e «actos de colaboração e instrumentais» [com vista à obtenção de provas em fase de inquérito, mas sempre com dependência da prévia autorização da autoridade judiciária competente] em matéria de «combate à corrupção e criminalidade económica e financeira».
(23) E assim lhe determinando, no âmbito do «caso jurídico concreto», o «objecto» e a «intencionalidade» (nota do relator).
(24) Tendo a «pronúncia» (que nesse pressuposto e nessa medida recebeu e mandou seguir a acusação) assente em tal «dado adquirido», não se poderia aceitar - senão como «contradição insanável da fundamentação» (art. 410.2.b do Código de Processo Penal) - que, em julgamento, o tribunal colectivo («traindo», em desfavor da defesa e da lealdade processual que num due process of law lhe era devida, esse pressuposto da pronúncia)- não tivesse dado como provado, sem qualquer outra explicitação, «que o arguido A fora "aliciado" por agentes da PJ à prática do crime» (nota do relator).
(25) Deslealmente e, por isso, ilegitimamente (nota do relator).
(26) Favorável aos arguidos e, por isso, definitivo (nota do relator).
(27) Hoje preso à ordem do processo 329/01.0TELSB do 1.º Juízo Criminal de Cascais.
(28) «Decorridos alguns dias, A telefonou-lhe, informando-o de que já tinha a droga e que se poderiam encontrar, tendo sido então marcado um novo encontro na mesma pastelaria, encontro em que ficou acordado que, se a cocaína fosse de boa qualidade, "C" a compraria pelo preço de 4.200 contos»
(29) «São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante (...) ofensa da integridade (...) moral das pessoas», designadamente, «perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através (....) de utilização de meios (...) enganosos».
(30) E «contradição insanável da [sua] fundamentação» (nota do relator).