Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
434/14.3T8VFX-C.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA DOLOSA
REQUISITOS
Data do Acordão: 10/29/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – INCIDENTES DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA / INCIDENTE PLENO DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA.
Doutrina:
- Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ªed., p.681.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE) – ARTIGOS 186.º N.ºS 2 ALÍNEAS C) E G) E 3 ALÍNEA A) E 189.º N.ºS 2 E 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 06-10-2011, PROCESSO NÚMERO 46/07.8TBSVC-O.L1.S1;
- DE 24-11-2015, PROCESSO NÚMERO 661/13.0TBPFR-F.P1.S1.
Sumário :

I. A insolvência culposa tem consequências gravosas, previstas nos n.2 e 3 do art.189º do CIRE, traduzidas em inibições várias, às quais é conferida publicidade, por via da inscrição no registo civil e no registo comercial. Por isso, deve a matéria de facto provada fornecer uma inequívoca demonstração do preenchimento dos requisitos exigidos pelas diversas hipóteses do art.186º do CIRE.

II. A matéria factual assente, no caso concreto, não contém suficiência probatória para demonstrar o preenchimento das presunções de insolvência culposa previstas nas alíneas c) e g) do n.2 do art.186º do CIRE. A informação de que o volume das compras é superior ao volume das vendas, constante da Informação Empresarial Simplificada, respeitante a um concreto exercício anual, não permite, por si só, concluir pelo preenchimento da previsão normativa do art.186º, n.2, alínea c) do CIRE. Por outro lado, para efeitos da alínea g), não basta que se prossiga, durante algum tempo, uma atividade deficitária para se concluir que tal serve o interesse próprio ou de terceiro; é necessário demonstrar que o devedor ou os seus administradores sabiam, ou tinham a obrigação de saber, que, agindo desse modo, estavam no caminho da insolvência, pois há que distinguir entre a situação tipicamente prevista na alínea g) e aquela outra em que o devedor ou os seus administradores persistem numa atividade não lucrativa porque acreditam, fundadamente, que conseguirão superar um período deficitário e voltar a uma atividade rentável.

III. Também não se demonstrou a existência de nexo de causalidade entre a falta de cumprimento atempado do dever de requerer a declaração de insolvência e a criação ou agravamento dessa situação, pelo que, no caso concreto, não se preenche a alínea a) do n.3 do art.186º do CIRE.

Decisão Texto Integral:

I. RELATÓRIO

1. No âmbito do incidente de qualificação de insolvência, apenso ao processo no qual foi declarada insolvente “AA, Ldª”, o administrador da insolvência elaborou parecer no sentido de dever presumir-se a insolvência culposa, nos termos da alínea h) do n. 2 e da al. a) do n.3 do art. 186° do CIRE.

O Ministério Público concordou com a qualificação da insolvência como culposa.

O legal representante da insolvente, BB, deduziu oposição, dizendo não aceitar a qualificação da insolvência como culposa por falta de indícios e prova, concluindo que devia ser declarada fortuita.

A credora “CC, SA” pronunciou-se no sentido de a insolvência ser qualificada como culposa.

2. Em 14.05.2018, foi proferida sentença que qualificou a insolvência como fortuita.

3. O Ministério Público interpôs recurso de apelação, defendendo a alteração do julgamento da matéria de facto, bem como a qualificação da insolvência como culposa.

O representante da insolvente, BB, apresentou contra-alegações, defendendo a confirmação da decisão da primeira instância.

4. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 08.11.2018, julgou procedente a apelação, alterando o julgamento da matéria de facto e revogando a sentença, que havia considerado a insolvência fortuita, decidiu:

a) qualificar a insolvência de AA, Ld.ª como culposa;

b) declarar afetado por essa qualificação o gerente BB, decretando a inibição deste para administrar patrimónios de terceiros, pelo período de 2 (dois) anos, e para exercer o comércio durante 2 (dois) anos, bem como para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;

c) condenar o gerente BB a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos até às forças do seu património.

5. Inconformado, BB interpôs recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:

     «a.   O presente Recurso tem por objecto o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que qualificou a insolvência da sociedade AA Lda. como culposa e declarou afectado por essa qualificação o gerente BB.

b.  Requer-se a aplicação de efeito suspensivo ao presente recurso, pois o valor da causa
fixado foi de € 30.000.01, nos termos do artigo 303° n.1 do CPC.

c.   O recurso de revista só tem efeito suspensivo em questões sobre o estado das
pessoas, que é este o caso em concreto (artigo 676° n.1 do CPC).

d.         O incidente de qualificação de insolvência e a sentença de qualificação proferida a final afetam diretamente direitos, liberdades e garantias, ou direitos de natureza
análoga, que gozam de um especial regime de proteção, conforme artigo 18.° da CRP.

e.   Caso assim não se entenda, sempre se dirá que a aplicação de efeito meramente
devolutivo do recurso, seria condenar o ora Recorrente, desde já, a indemnizar os
credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos e a inibi-lo do exercício
de actos de comércio.


f.   O Recorrente é comerciante em nome individual, vive com bastantes dificuldades
económicas e necessita do trabalho para sobreviver, pelo que o ora Recorrente viveria
na penúria o tempo necessário para assistir à pronúncia do Supremo Tribunal de Justiça,

g.   A atribuição do efeito meramente devolutivo é claramente prejudicial aos interesses
e causadora de prejuízos consideráveis ao ora Recorrente, que de imediato fica privado
de temporariamente exercer a sua actividade, podendo ver os credores da insolvente a
reclamar de imediato e sobre si os créditos não satisfeitos, sendo que em caso de
procedência do presente recurso, o mesmo perderia o seu efeito útil face aos
pagamentos entretanto efectuados aos credores.

h. De acordo com o art. 647 n. 4 CPC, “(...) o recorrente pode requerer, ao interpor recurso, que a apelação tenha efeito suspensivo quando a execução da decisão lhe cause prejuízo considerável e se ofereça para prestar caução (...)".

i. O ora Recorrente não tem possibilidades económicas para prestar caução, pelo que requer que não lhe seja aplicada qualquer caução, mas caso assim não se entenda, disponibiliza-se a prestar a caução, de forma a evitar o considerável prejuízo que advém da execução imediata da presente sentença, aqui recorrida.

 j. No que respeita ao Acórdão Recorrido, o Tribunal Recorrido alterou a matéria de facto dada como provada e retirou dos factos não provados a alínea b) da sentença "Que a insolvente, através do seu administrador, BB, tivesse comprado bens e mercadorias a crédito, revertendo-as ou entregando-as antes de satisfeita a obrigação”, considerando que se trata de uma conclusão a extrair de factos provados. Mas não fundamenta porque considera que se trata de uma conclusão a extrair dos factos provados e porque eliminou a alínea b) da rubrica V. “Factos não provados", e porque considera tal alínea ser uma conclusão e não um facto.

k. O Acórdão Recorrido padece, assim, de falta de fundamentação.
l. A exigência legal de motivação da decisão sobre a matéria de facto não se satisfaz com a referência aos factos que o julgador considerou decisivos para a formação da sua convicção, devendo   indicar   as   razões   que, na   sua   análise   crítica, relevaram para   a formação da sua convicção, expondo o processo lógico e racional que seguiu.

m.  O Tribunal Recorrido limita-se a transcrever a alegação do então Recorrente Ministério Público, e parcialmente a alegação do Recorrido, aqui Recorrente, sendo certo que este   alegou   muito   mais   do   que   foi   transcrito, tendo   alegado   factos   que importava considerar.

n.   O artigo 615° n.1 al.b) do CPC, aplicável por remissão do artigo 17° do CIRE, estabelece que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, pelo que o Acórdão recorrido é, assim, nulo por falta de fundamentação, nos termos do artigo 615o n.1 al. b) e 647° n.1 al. c) do CPC.

o.   Acresce que o Tribunal Recorrido não se pronuncia sobre todas as questões que devia apreciar, pelo que também por este motivo o acórdão é nulo, nos termos do artigo 615° n. 1 al. d) e 674° n. 1 al. c) do CPC,

p.   Pois, não reapreciou, como devia, todas as  provas  apresentadas e todos os documentos juntos aos autos, como o email da mandatária do Recorrente de 9.03.2015, a fls. do incidente, cujo teor  se deu por integralmente reproduzido na sentença do Tribunal de Primeira Instância e que consta como ponto 9. dos factos provados.

q.  O referido email da mandatária refere a existência de problemas com o sistema informático da contabilidade da sociedade insolvente e juntou comprovativos de entrega de IVA de 2013, com correcções efectuadas designadamente a nível de valor na rubrica "transmissões de bens e prestações de serviços", que corrigem da IES de 2013, e cujo valor é muito superior a 22.164,79 € constante da IES de 2013, provando mesmo que existem problemas com o IES de 2013 apresentado e que entram em   perfeita contradição com o mesmo.

r.   O Tribunal Recorrido não  apreciou   tais  documentos,  sendo que  os devia ter considerado, pois a sentença da Primeira Instância os reproduz (ponto 14 dos factos provados) e também   eles se reportam a elementos elaborados pela Insolvente e entregues junto da Administração Tributária e Aduaneira, beneficiando de igual força probatória às IES e que comprovam que os elementos do IES estão errados.

s.     Não tendo o Tribunal Recorrido apreciado os mesmos, violou a força probatória daquela prova documental, cuja autoria não foi impugnada e, por isso reconhecida, fazendo prova plena quanto as declarações atribuídas ao seu autor, nos termos do artigo 376° do C.C.

t.     Foram desrespeitadas normas que regulam a força probatória dos diversos meios de prova admitidos a juízo considerando os documentos juntos aos autos pela mandatária da Insolvente e que colocam em causa a IES de 2013.

u.  Os documentos juntos pelo Recorrente provam que os dados constantes daquela IES não são verdadeiros  e  não  podem   determinar  a  qualificação   da insolvência  como culposa.

v.   Não pode o Recorrente, com   base   em prova   documental, ser condenado sem o Administrador de Insolvência apurar e analisar as declarações de IVA em contradição com o IES de 2013 entregue.

w. Não foi ouvida contabilista - testemunha arrolada - porque o Tribunal a quo não esperou que a mesma regressasse de baixa médica.

x.   Foi explicado ao Administrador de Insolvência o problema verificado na sua contabilidade que comprovava que o IES de 2013 estava errado, através das declarações de IVA de 2013 juntas aos autos e que estão entregues na administração tributária e o Administrador de Insolvência não analisou, nem apurou essa questão, mesmo depois de ter sido notificado pelo próprio Tribunal para esse mesmo fim.


y.    O Recorrente não podia fazer prova contrária, se o próprio Tribunal a quo não lhe permitiu e o próprio Administrador de Insolvência nada apurou em contrário ao alegado pelo Recorrente.


z.    Os    factos    provados    não    são    suficientes    para    fazer    operar    a qualificação    da insolvência, desde logo, não poderá servir como elemento caracterizador da situação de insolvência, única e exclusivamente, a situação patrimonial líquida negativa dessas entidades.

aa.  É necessário que a situação patrimonial líquida negativa impeça a devedora de cumprir as obrigações assumidas.

bb. Uma entidade com passivo contabilisticamente superior ao activo não está necessariamente insolvente, uma vez que nessa situação nenhuma empresa tentaria recuperar e obter estabilidade económica em caso de dificuldades, nem tão pouco nessa situação se possa considerar que essa insolvência seja culposa, logo os IES são insuficientes para se concluir da culpabilidade do ora Recorrente.

cc. Não foi analisada qualquer outra documentação contabilística ou sinais de riqueza que permitissem aferir que o administrador da insolvente tivesse prosseguido uma exploração deficitária no seu interesse pessoal ou de terceiro ou que tivesse mantido uma contabilidade fictícia ou que tivesse incumprido o dever de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.2 do artigo 188° do CIRE, como também não foram analisados os documentos supra referido enviados com o email da mandatária do ora Recorrente.

dd. Dos factos provados, designadamente das IES, não resulta o preenchimento de nenhuma das alíneas do n.2 do artigo 186° do CIRE, designadamente das alíneas c) e g), nem o preenchimento da alínea a) do n. 3 do mesmo artigo, verificando-se erro de julgamento gerador da violação de lei substantiva, um erro de aplicação da norma, que constitui fundamento específico de revista, por força do preceituado na alínea a) do n. 1 do art.674° do CPC.

ee.  Não resulta dos autos, nem dos factos provados, qualquer compra de mercadoria a crédito e muito menos à credora CC durante o ano de 2013, nem a revenda das mesmas ou a sua entrega por preço sensivelmente inferior ao corrente.

ff. Existe uma redução das vendas porque as pessoas deixaram de comprar.

gg.   Se as vendas tiveram uma redução, é porque as pessoas deixaram de comprar.

hh. A lei prevê a qualificação da insolvência como culposa quando os administradores tenham prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência, o que não se verifica no presente caso concreto.

ii. O preenchimento dessa previsão legal pressupõe o prosseguimento de uma determinada   actividade, cuja exploração se   revele   deficitária   e pressupõe   que   tal aconteça em benefício e no interesse do administrador, não resultando de quaisquer factos provados o interesse e o benefício do ora Recorrente, bem como o nexo de causalidade entre a alegada exploração deficitária e aquele.

jj. Do parecer do Administrador de Insolvência a fls..  dos autos, e da sentença do Tribunal de Primeira Instância, resulta que não foram observados sinais exteriores de riqueza que    permitissem concluir que o ora  Recorrido tenha prosseguido uma exploração deficitária no seu interesse pessoal ou de terceiro.

kk. Não resulta dos pontos de factos provados o interesse do ora Recorrente na manutenção de uma empresa cuja actividade é deficitária.

ll.  O incumprimento dos créditos, por si só, não conduz à conclusão que se tenha verificado incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência.

mm. Considerando os valores em dívida (não muito elevados) e o facto de a insolvente ter sido   constituída em 1976 pelo ora Recorrente, levaram a que este tivesse a expectativa de conseguir retomar o cumprimento/pagamento das dívidas da Insolvente, designadamente e de manter a actividade da sociedade constituída desde 1976.

nn. Não resulta, assim, dos factos resultados, a impossibilidade de continuar a satisfazer a generalidade dos seus créditos, concluindo-se que não foi violada a alínea a) do n. 3 do artigo 186° do CIRE nem, se verifica nenhuma das alíneas dos ns.2 e 3 do artigo 186° do CIRE, a insolvência não deve ser qualificada como culposa.

oo.    Para se verificar o incumprimento da alínea a) do n.3 do artigo 186.° do CIRE, era necessário que se demonstrasse o nexo de causalidade entre a conduta do Recorrente e a criação ou    agravamento   da   situação    de   insolvência,   não    sendo legitimo   o entendimento   de   que   do   simples   atraso   na   apresentação   à insolvência   decorram automaticamente prejuízos.

pp.  Não é bastante, a mera constatação de acumulação de juros ou, tão pouco, o surgimento de   mais   passivo, numa fase anterior ao momento  em que, verificada   a situação de insolvência, o devedor deva requerê-la, nesse sentido de que do simples atraso na apresentação à  insolvência não  pode concluir-se  que  decorrem automaticamente prejuízos para os credores.

qq.    Não resulta dos factos provados a existência de prejuízos concretos, e ainda que os mesmos existem, não foi provado o nexo de causalidade. 

rr. Não pode o Douto Tribunal da Relação condenar o ora Recorrente com base em prova documental IES de 2013 que é contrariado pelas declarações de IVA do ano de 2013, em que os valores são completamente diferentes, sendo que foi pedido ao Administrador de Insolvência para apurar e analisar esses documentos todos (da contabilidade da Insolvente) e este - Administrador de Insolvência - não o efectuou.

ss. Se o Administrador não se pronunciou sobre as declarações de IVA referentes a 2013 apresentadas, nem apurou a divergência das mesmas em relação ao IES de 2013, tendo aceite como correcto o alegado pelo Recorrente - quando simplesmente se remete ao silêncio, mesmo depois de ter sido interpelado pelo Tribunal para esse mesmo efeito - como pode o Tribunal da Relação apurar ou concluir pela validade do IES de 2013 em relação às declarações de IVA também entregues, fazendo conclusões para além do que o próprio Administrador de Insolvência e do Tribunal a quo conseguiram fazer e não ouve a testemunha arrolada, contabilista.

tt. O Administrador de Insolvência não analisou, nem apurou essa questão, mesmo depois de ter sido notificado pelo próprio Tribunal para esse mesmo fim.

uu.  Coloca-se assim a questão como poderia o Recorrente fazer prova contrária, se o próprio Tribunal a quo não lhe permitiu e o próprio Administrador de Insolvência nada apurou em contrário ao alegado pelo Recorrente, mesmo depois de interpelado pelo Tribunal para esse mesmo efeito.

w. Só se pode concluir pelos factos apurados que não era exigível ao Recorrente fazer mais qualquer tipo de prova do problema detectado na contabilidade e da incorreção do IES de 2013, documento que o Tribunal da Relação privilegia em detrimento de tudo, sem qualquer tipo de justificação.

Nestes termos e nos melhores de direito que V.a Exa. doutamente suprirá, deverá ser declarada a nulidade do douto Acórdão recorrido por falta de fundamentação e por falta de pronúncia sobre questões que este devia apreciar,

para além de não ter procedido a uma aplicação correcta das normas em relação aos factos considerados provados e ao ónus da prova, nos termos das alíneas b) e d) do n. 1 do artigo 615° e 647 e alínea c) do n.1 do artigo 674° do CPC, aplicáveis ex vi artigo 17° do CIRE e ser declarado revogado e substituído por outro que julgue procedente a Revista e consequentemente, seja qualificada a insolvência da sociedade AA, Lda. como fortuita. E assim se fazendo a sábia e a costumada Justiça

6. Foram apresentadas contra-alegações pelo Ministério Público, o qual concluiu: «que deverá negar-se provimento ao presente recurso de revista, confirmando-se o douto acórdão recorrido já que o mesmo foi proferido respeitando e aplicando estritamente as normas legais pertinentes»

7. Também a credora “CC – …, SA” apresentou contra-alegações, defendendo, em síntese, a total improcedência do recurso.  


*

II. ADMISSIBILIDADE DO RECURSO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS

1. Amissibilidade do recurso:

Ao presente apenso de qualificação da insolvência aplicam-se as regras gerais sobre recursos, ex vi do art.17º do CIRE, o que se concluiu a contrario do art.14º do CIRE. Assim, tendo o acórdão recorrido revogado a decisão da primeira instância, o recurso é admissível nos termos do art.671º do CPC.

2. Objeto do recurso:

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, são as seguintes as questões a conhecer:

- saber se existe nulidade do acórdão por falta de fundamentação ou por omissão de pronúncia;

- Saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação da lei quando qualificou a insolvência como culposa (revogando a decisão da primeira instância).

3. Factualidade relevante:

3.1. A primeira instância deu como assente o que se transcreve:

«1. A sociedade AA, Ld.a apresentou-se à insolvência em 17/10/2014.

2. A sociedade AA, Ldª, pessoa colectiva com o NIPC n. ..., com sede no ......, Loja …, ... e …, ......, foi declarada insolvente por sentença de 31 de Outubro de 2014, transitada em julgado.

3. A sociedade AA, Ldª tem, como objecto social, a actividade comercial de talho de carne de vaca e seus derivados e apresenta o capital social de € 5.000,00.

4. A sociedade AA, Ldª foi constituída em 16/01/1976, tendo como gerentes BB e DD.

5. Em 03/10/2014, DD renunciou ao cargo de gerente, passando, desde então, a sociedade a ter como único gerente BB.

6. O Sr. Administrador da Insolvência juntou o relatório previsto no art.155.° do CIRE em 03/03/2015, pronunciando-se no sentido de que a insolvência deverá presumir-se como culposa e que o processo deverá ser encerrado por insuficiência da massa insolvente.

7. O Sr. Administrador da Insolvência emitiu parecer junto, em 11/04/2016, no sentido de a insolvência ser qualificada como culposa.

8. Foram apreendidos bens no valor de € 3.000,00.

9. Em 06/06/2016, foi proferido despacho nos autos principais de insolvência de encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente, rectificado por despacho de 16/09/2016, o qual considerou que, tendo sido declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência, este prosseguirá com carácter limitado.

10. Por sentença proferida em 03/09/2015 no apenso B de Reclamação de Créditos, foram reconhecidos créditos de três credores no valor total de € 82.983,61.

11. Na Informação Especial Simplificada (IES) do ano de 2012 consta na rubrica vendas e serviços prestados a quantia de € 136.618,19 e na rubrica custos das mercadorias e matérias a quantia de € 128.205,89.

12. Na Informação Especial Simplificada (IES) do ano de 2013 consta que a insolvente teve o resultado líquido negativo de € 127.475,36, o activo no valor de € 12.850,01 e o passivo no valor de € 154.482,67.

13. Na Informação Especial Simplificada (IES) do ano de 2013 consta na rubrica vendas e serviços prestados a quantia de € 22.164,79 e na rubrica custos das mercadorias e matérias a quantia de € 141.384,22.

14. A mandatária do administrador da insolvente enviou email em 09/03/2015, junto a fls. 62, ao Sr. Administrador da Insolvência para o email ai.....pt, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, invocando que a questão suscitada com a contabilidade da devedora se deveu ao facto de ter havido um problema com o sistema informático de contabilidade e disponibilizando-se para quaisquer esclarecimentos adicionais.

15. Perante os requerimentos juntos pela mandatária da insolvente e do administrador da insolvente em 23/03/2015 e em 05/10/2015 aos autos principais, em que invoca que prestou esclarecimentos junto do Sr. Administrador de Insolvência, foram proferidos os despachos de 20/10/2015 e de 07/12/2015 no sentido de o mesmo pronunciar-se, os quais não mereceram qualquer resposta da parte do Sr. Administrador de Insolvência.

16. A insolvente iniciou o incumprimento aos credores CC - ..., SA, em 2006, totalizando à data da apresentação € 35.259,63, à Segurança Social em 2002, totalizando à data da apresentação € 23.668,88, e à Autoridade Tributária em 2006, totalizando à data da apresentação € 24.055,10.

17. A insolvente continua a exercer a actividade de talho de portas abertas ao público.

18. O estabelecimento comercial onde é exercida a actividade é arrendado à Junta de Freguesia de ... mediante o pagamento da renda de € 87,00 mensais.

19. A insolvente não tem qualquer trabalhador ao serviço, sendo apenas o gerente que continua a laborar como forma de garantir a sua sobrevivência.

20. A actividade da insolvente não gera qualquer lucro, não conseguindo fazer face às despesas associadas à manutenção do negócio.

Pela primeira instância foram considerados factos não provados os seguintes:

«a) Que a insolvente, através do seu administrador, BB, tivesse ocultado ou feito desaparecer parte do seu património.

b) Que a insolvente, através do seu administrador, BB, tivesse comprado bens e mercadorias a crédito, revertendo-as[1] ou entregando-as antes de satisfeita a obrigação.

c) Que a insolvente, através do seu administrador, BB, nada tivesse respondido à solicitação do Sr. Administrador da Insolvência no sentido de prestar esclarecimentos sobre o teor das IES de 2011, 2012 e 2013.»

3.2. A segunda instância alterou o julgamento da matéria de facto, modificando os pontos 11, 12 e 13, dos quais passou a constar a Informação Empresarial Simplificada [IES] de 2011 e foi acrescentada informação que consta das IES de 2012 e de 2013, nos termos que se transcrevem:

««11. Na Informação Especial Simplificada (IES) do ano de 2011 consta:

- na rubrica «vendas e serviços prestados»: 104.971,89 €,

- na rubrica custo das mercadorias vendidas e das matérias consumidas: 99.513,84 €;

- na rubrica «fornecimentos e serviços externos»: 366,89 €,

- na rubrica «gastos com o pessoal»: 7.001 €,

- na rubrica «resultado líquido do período: - 1.910,24 €

- na rubrica «total do passivo»: 18.707,97 €.

«12. Na Informação Especial Simplificada (IES) do ano de 2012 consta:

- na rubrica «vendas e serviços prestados»: 136.628,19 €,

- na rubrica custo das mercadorias vendidas e das matérias consumidas: 128.205,89 €,

- na rubrica «fornecimentos e serviços externos»: 1.204,14 €,

- na rubrica «gastos com o pessoal»: 7.379,65 €,

- na rubrica «resultado líquido do período: - 171,49 €

- na rubrica «total do passivo»: 21.652,05 €.»

«13. Na Informação Especial Simplificada (IES) do ano de 2013 consta:

-na rubrica «vendas e serviços prestados»: 22.164,79 €,

- na rubrica custo das mercadorias vendidas e das matérias consumidas: 141.384,22 €,

-na rubrica «fornecimentos e serviços externos»: 1.049,95 €,

- na rubrica «gastos com o pessoal»: 7.202,28 €,

- na rubrica «resultado líquido do período»: -127.475,36 €

- na rubrica «total do passivo»: 154.482,67 €.»

           

A decisão recorrida decidiu ainda eliminar a alínea b) dos “Factos não provados”[2].

4. O direito aplicável:

4.1. Quanto à invocada nulidade do acórdão recorrido:

Alega a recorrente que o acórdão é nulo por falta de fundamentação e porque não se pronuncia sobre questões que devia ter apreciado.

Diz a recorrente que a decisão recorrida retirou dos “Factos não provados” a alínea b), mas não justificou a razão pela qual assim procedeu.

Ora, daí não resulta qualquer nulidade sindicável por este tribunal. Tal inscreve-se no domínio da livre apreciação das provas constantes dos autos.

Neste sentido, vd. o que se afirma no Acórdão do STJ, de 24.11.2015, no processo n. 661/13.0TBPFR-F.P1.S1 (relatora Ana Paula Boularot):
«O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista, a não ser nas duas hipóteses previstas no n. 3 do art. 674º do NCPC (2013): (i) quando haja ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou (ii) haja violação de norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova.
            Enquanto segundo o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre, o julgador tem plena liberdade de apreciação das provas, de acordo com o princípio de prova legal ou vinculada, aquele tem de sujeitar a apreciação das provas às regras ditadas pela lei que lhes designam o valor e a força probatória, designadamente, no caso da prova por confissão, da prova por documentos autênticos ou autenticados e particulares devidamente reconhecidos (arts. 358.º, 364.º e 393.º do CC).
Os poderes correctivos do STJ, quanto à decisão da matéria de facto, circunscrevem-se em verificar se estes princípios legais foram, ou não, no caso concreto, violados, não lhe competindo averiguar se a convicção firmada pelos julgadores nas instâncias em relação a determinado facto, em prova de livre apreciação, se fez no sentido mais adequado.
Se a alteração da matéria de facto levada a cabo pelo tribunal da Relação, decorreu, não por recurso a presunções judiciais, mas mediante apreciação da prova segundo critérios de valoração racional e lógica dos julgadores, não tem o STJ poder de correcção, o que não sucederia se fosse caso da primeira hipótese, por não poderem as presunções incidir sobre os factos concretos sujeitos e objecto de prova a produzir pelas partes»

Por outro lado, afirma a recorrente que a decisão recorrida não se pronunciou sobre todas as questões sobre as quais se devia ter pronunciado porque não reapreciou elementos de prova, nomeadamente documentos constantes dos autos. Ora, também neste ponto não assiste razão à recorrente. Não se pronunciar sobre certos documentos não é o mesmo que não conhecer de questões. Aliás, a recorrente não individualiza de forma detalhada quais as concretas questões a que o exame de tais documentos respeitaria.

Acresce que o tribunal tem de se pronunciar sobre as questões que integram o objeto do recurso. E sobre essas não há qualquer omissão de pronúncia.

Conclui-se, assim, que, nos termos do art.615º do CPC, o acórdão recorrido não sofre de qualquer nulidade.

4.2. Quanto à qualificação da insolvência como culposa:

A insolvência foi qualificada como culposa porque a decisão recorrida entendeu que se encontravam preenchidas as previsões normativas do art. 186º, n.2, alíneas c) e g); e 186º, n.3, al. a) do CIRE.

É o seguinte o teor das normas em equação:

«2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:

a) (...)

b) (...)

c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;

d) (...)

e) (...)

f) (-)

g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;

(…)

3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;

(…)»

            Vejamos se foi feita a correta aplicação da lei aos factos provados:

 4.2.1. Quanto ao art. 186º, n.2, alíneas c):

A decisão recorrida ao eliminar a alínea b) dos “Factos não provados”[3] e ao atender à IES de 2013, da qual consta um custo total de mercadorias e matérias consumidas de €141.384,11 e um valor total de vendas de €22.164,79, concluiu que se encontrava inequivocamente preenchida a alínea c) do n.2 do art.168º, ao afirmar: «(…) só podemos concluir dos factos provados que no ano de 2013 a insolvente comprou mercadorias a crédito à sua fornecedora CC e revendeu-as por preço sensivelmente inferior ao  corrente, antes de satisfazer a sua obrigação para com aquela. Verificada está a previsão daquela alínea c)

Não se nos afigura que a presunção estabelecida na alínea c) do n.2 do art.168º do CIRE possa considerar-se verificada, porquanto a matéria de facto tida em conta para esse efeito, que foi a informação constante da IES de 2013, não permite, por si só, chegar a tal conclusão.

Não releva, agora, considerar a alegação da recorrente nos termos da qual os valores constantes da IES de 2013 não estariam corretos, e que, entretanto, teriam sido corrigidos junto do serviço de finanças, porque não chegou a ser feita prova nesse sentido. E ao STJ cabe aplicar o direito aos factos provados, como decorre do art.682º do CPC.

Todavia, da factualidade provada não se pode concluir que as mercadorias compradas em 2013 foram vendidas a baixo do custo, como se afirma na decisão recorrida. Não existe informação para responder às seguintes questões: todas as mercadorias compradas nesse ano foram vendidas? Ou existiu perecimento de mercadorias? Qual o preço corrente pelo qual deviam ter sido vendidas? Sem resposta a estas questões não se pode concluir que as mercadorias foram vendidas a preço inferior ao corrente. A expressão “preço sensivelmente inferior ao corrente” é um conceito indeterminado que exige demonstração casuística[4]. E no caso concreto essa demonstração probatória não foi feita.

 Conclui-se, assim, que a presunção de insolvência culposa constante da alínea c) do n.2 do art.186º não se encontra preenchida.

4.2.2. Quanto à alínea g) do n.2 do art.186º:

A decisão recorrida entendeu que se verificava esta hipótese, com o seguinte fundamento: «(…) é inevitável concluir que o gerente da insolvente, com tantos anos de experiência, conscientemente continuou a obter rendimentos para a sua sobrevivência, mantendo a actividade da insolvente sem lucro, acumulando prejuízos e sem conseguir solver os compromissos com os credores, e apesar disso quis prosseguir essa exploração deficitária no seu interesse pessoal, percebendo que era muito provável vir a ser declarada a insolvência. Por isso, também verificada está a previsão da alínea g).»

A alínea g) tem subjacente uma ideia de continuidade ou de prática reiterada de uma exploração deficitária, que o devedor ou os seus administradores sabem perfeitamente, ou têm a obrigação de saber, que conduzirá, com grande probabilidade, a uma situação de insolvência, mas nela persistem para satisfazer o seu interesse ou o interesse de terceiro.

Na prática, nem sempre será fácil distinguir entre a situação tipicamente prevista na alínea g) e aquela outra em que o devedor ou os seus administradores persistem numa atividade não lucrativa porque acreditam que conseguirão superar um período deficitário e voltar a uma atividade rentável.

Para efeitos da alínea g), não basta que se prossiga durante algum tempo uma atividade deficitária; é necessário demonstrar que o devedor ou os seus administradores sabiam, ou tinham a obrigação de saber, que, agindo desse modo, estavam no caminho da insolvência.

Ora, da factualidade provada não resulta que essa demonstração possa ser feita no caso concreto.

O facto de o gerente da insolvente ter muitos anos de experiência na atividade de venda de carnes, pois constituiu a empresa (declarada insolvente) em 1976, não permite concluir, por si só, que ele percebeu, necessariamente, que era muito provável vir a ser declarada a insolvência, como se entendeu no acórdão recorrido. Trata-se de uma simples suposição.

Entrando no campo das suposições, também se poderia pensar que, precisamente pelo facto de o gerente da insolvente ter muitos anos de experiência naquela atividade (e, eventualmente, já ter passado por algumas dificuldades) tal lhe poderia dar a confiança para acreditar que seria possível reverter a situação deficitária. Até porque os valores em dívida não são elevados (veja-se o ponto 16 da matéria de facto provada), caso se tome como padrão a generalidade das empresas insolventes, sendo a totalidade dos créditos reclamados de € 82.983,61 (ponto 10 dos factos provados).

Quanto ao relevo do interesse próprio na prossecução da exploração deficitária, não é despiciendo notar que a remuneração do gerente (também afetado pela declaração de insolvência culposa) é de pouco mais de € 7.000,00 anuais (como consta da factualidade provada nos pontos 11, 12 e 13, com a redação que lhes foi dada após a alteração operada pela 2ª instância), não tendo a empresa qualquer outro trabalhador ao seu serviço. Acresce que, como resulta do relatório do administrador da insolvência, e se encontra referido na decisão da primeira instância, o administrador da insolvência não identificou sinais exteriores de riqueza do gerente da insolvente.

Conclui-se, assim, que a factualidade provada não fornece elementos probatórios suficientes para demonstrar o preenchimento da hipótese prevista na alínea g).

4.2.3. Quanto ao n.3 do art.186º:

Afirma-se na decisão recorrida: «(…) Cabia pois ao apelante ilidir a presunção de culpa grave mediante prova de factos que demonstrassem o contrário.

Prova essa que não logrou fazer, pois nenhum facto provado demonstra que a   gerência da insolvente envidou esforços para inverter o rumo deficitário e que até à data em que se apresentou à insolvência sempre acreditou, fundadamente, que conseguiria pagar as dívidas e salvar a sociedade que fundou.

Assim, não se mostra ilidida a presunção de culpa grave consagrada na alínea a) do n. 3 do art. 186° do CIRE.

Impõe-se agora determinar se a culpa grave na actuação do apelante criou ou agravou a situação de insolvência nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (cfr. n.1 do art.186º do CIRE).

E a resposta é positiva, pois basta ver que o protelar da apresentação à insolvência se traduziu num grande aumento do passivo a par do aumento dos valores das compras de mercadorias.»

No que respeita à presunção de culpa grave, prevista no artigo 186º, n. 3, alínea a), do CIRE, não se pode extrair da factualidade provada que exista um inequívoco nexo de causalidade entre a omissão do dever de requerer atempadamente a declaração de insolvência e a criação ou agravamento desta situação.

Como consta da factualidade provada, a insolvente apresentou-se à insolvência em 17.10.2014. Assim, embora se presuma que o devedor teve conhecimento da situação de insolvência pelo menos três meses após o incumprimento generalizado de obrigações tributárias e perante a Segurança Social (art.18.º, n.3 do CIRE), e que tinha o dever de requerer a declaração da sua insolvência nos 30 dias seguintes a tal conhecimento (art.18º, n.1), tal não significa que, ultrapassados tais prazos, se deva concluir automaticamente que essa omissão criou ou agravou a situação de insolvência.

Veja-se, neste sentido, o decidido no acórdão do STJ, de 06.10.2011, no processo n.46/07.8TBSVC-O.L1.S1 (Relator Serra Baptista):

«O n.3 do art. 186º estabelece (…) presunções ilidíveis, que admitem prova em contrário, dando-se por verificada a culpa grave quando ocorram as situações aí previstas.

Não se dispensando neste n. 3 a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência. Sendo, pois, necessário, nessas situações, verificar se os aí descritos comportamentos omissivos criaram ou agravaram a situação de insolvência, pelo que não basta a simples demonstração da sua existência e a consequente presunção de culpa que sobre os administradores recai. Não abrangendo tais presunções ilidíveis a do nexo causal entre tais actuações omissivas e a situação da verificação da insolvência ou do seu agravamento.»

Como consta dos pontos 11, 12 e 13 da factualidade provada, com a redação dada após a alteração da matéria de facto pela segunda instância, as IES de 2011, 2012 e 2013 revelam que apenas em 2013 o volume de vendas foi inferior ao valor das compras, e não existem factos que permitam concluir que tal foi o resultado do “protelar da apresentação à insolvência”, como se afirma na decisão recorrida.

            4.2.4. A insolvência culposa, que afeta diretamente pessoas singulares ou enquanto administradores de pessoas coletivas, acarreta consequências gravosas, previstas nos n.2 e 3 do art.189º do CIRE, traduzidas em inibições várias, às quais é conferida publicidade, por via da inscrição no registo civil e no registo comercial.

Por isso, deve a matéria de facto provada em cada caso concreto fornecer uma inequívoca demonstração do preenchimento dos requisitos exigidos pelo art.186º do CIRE, tanto mais que as hipóteses previstas no n.2 constituem presunções de insolvência culposa que não admitem prova em contrário.

No caso em análise, a factualidade provada não permite concluir que se encontre cabalmente preenchida nenhuma das hipóteses de presunção de insolvência culposa em que o acórdão recorrido se baseou. Por outro lado, também não foi feita prova de que se verificasse a hipótese prevista no n.1 do art.186º.

Concluiu-se, assim, que o acórdão recorrido não fez a correta interpretação do disposto no art.186º do CIRE ao qualificar a insolvência como culposa. Assim, na ausência do preenchimento desses requisitos, a insolvência só pode ser considerada como fortuita.

DECISÃO: Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido, devendo a insolvência considerar-se fortuita, como se entendeu na primeira instância.

Custas pelos recorridos (art.303º e 304º do CIRE).

Lisboa, 29 de outubro de 2019

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Raimundo Queirós

Ricardo Costa

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[1] A expressão revertendo-as será um lapso de escrita; e a expressão correta seria “revendendo-as”.
[2] Resultava, dessa alínea, como facto não provado: “Que a insolvente, através do seu administrador, BB, tivesse comprado bens e mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as antes de satisfeita a obrigação”.
[3] Da qual constava como não provado “Que a insolvente, através do seu administrador, BB, tivesse comprado bens e mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as antes de satisfeita a obrigação”.
[4] Como afirmam Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ªed., pág.681.