Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
20526/18.9T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA JOÃO VAZ TOMÉ
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
REGULAMENTO (UE) 1215/2012
PACTO ATRIBUTIVO DE JURISDIÇÃO
SOCIEDADE COMERCIAL
PACTO SOCIAL
ALIENAÇÃO
PARTICIPAÇÃO SOCIAL
REPRESENTAÇÃO SEM PODERES
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DA RELAÇÃO
Data do Acordão: 06/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Os tribunais portugueses só podem conhecer de litígio emergente de uma relação transnacional quando forem internacionalmente competentes. A competência do tribunal afere-se pela natureza da relação jurídica tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido) e os respetivos fundamentos (causa de pedir), independentemente da apreciação do seu acerto substancial. A disciplina interna da competência internacional consagrada no CPC apenas se aplica quando a ação não for abrangida pelo âmbito de aplicação do direito europeu. No que respeita concerne ao critério geral de competência, o Regulamento (UE) N.º 1215/2012, no art. 4.º, n.º 1, estabelece o princípio actor sequitur fórum rei, que visa assegurar a proteção legal das pessoas domiciliadas na União Europeia: o critério de definição da competência é o domicílio do réu. Um pacto privativo de jurisdição (que retira competência a um ou vários tribunais de Estados-membros, atribuindo-a exclusivamente a um ou vários tribunais do Brasil), e não atributivo, não se aplica o art. 25.º do Regulamento (UE) N.º 1215/2012. As partes não se encontram vinculados por um pacto privativo de jurisdição quando não eram, aquando da propositura da ação, nem são atualmente, sócios ou titulares de qualquer órgão social da sociedade em cujo pacto social aquele se integra. O Tribunal da Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se encontrem disponíveis, observando o princípio do dispositivo no que respeita à identificação dos pontos de discórdia.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,



I – Relatório

1. Urbivárzea – Empreendimentos Imobiliários, S.A, e AA intentaram ação contra BB, CC e Octupus – Participações e Investimentos, S.A., pedindo que os Réus fossem condenados a pagar à 1ª Autora a quantia de € 109.194,63, correspondente ao valor de 490.000,00 Reais da quota que a mesma detinha no capital social da sociedade Novo Horizonte – Investimentos Imobiliários e Participações, Lda., e a pagar a ambos os Autores a quantia de € 900.000,00, a título de indemnização pela perda de terrenos que integram o património desta sociedade.

2. Fundamentam o seu pedido na responsabilidade civil por atos ilícitos, praticados pelos Réus, que causaram danos aos Autores (ou à 1ª Autora, conforme alegado).

3. Citados, os Réus contestaram, invocando a incompetência dos Tribunais Portugueses para conhecer deste litígio. Referiram que, tal como alegado pelos Autores, os factos terão sido todos praticados no ….., respeitam a empresas de direito …. e os danos alegados terão também ocorrido naquele território. Mencionam ainda que o facto de os Réus terem domicílio em Portugal, assim como os Autores, não é critério para atribuir competência aos Tribunais Portugueses e que viola o disposto nos arts. 71.º, n.º 2, e 62º, do CPC.

4. Os Autores foram convidados a responder e, fazendo-o, alegaram que os “ilícitos foram orquestrados pelos RR em Portugal, onde todos residem e fazem a sua vida e que as citações e notificações, bem como a inquirição de testemunhas em Portugal tornariam o processo intentado num tribunal …. interminável”.

5. Foi realizada audiência prévia, em que se deu oportunidade às partes para debater esta e outras exceções suscitadas nos autos, e que estas aproveitaram.

6. O Tribunal de 1.ª Instância, por sentença de 4 de outubro de 2019, decidiu o seguinte:

Em face de tudo o exposto, julgo verificada a excepção de incompetência absoluta dos Tribunais Portuguesas (art.96º do CPC) e, consequentemente, absolvo os RR da instância (art.99º do CPC).

Custas pelos AA. Registe. Notifique.

7. Não conformados, Urbivarzea – Empreendimentos Imobiliários, S.A., e AA, interpuseram recurso de apelação.

8. O Tribunal da Relação ….., por acórdão de 7 de fevereiro de 2020, confirmou a decisão do Tribunal de 1.ª Instância.

9. De novo irresignados, Urbivarzea – Empreendimentos Imobiliários, S.A., e AA interpuseram recurso de revista, nos termos dos arts. 629.º, n.º 2, al. a), 671.º, n.º 2, al. a), e 674.º. n.º 1, als. b) e c), do CPC, apresentando as seguintes Conclusões:

“I. É manifesta a admissibilidade e a tempestividade do presente recurso de acordo com as normas invocadas do CPC na fundamentação do mesmo, uma vez que de acordo com os acórdãos anteriormente transcritos do STJ, é claro que as decisões que limitam competência internacional aos tribunais portugueses são sempre recorridas para o STJ, mediante revista.

II. Resulta inequívoco que na leitura da decisão proferida em primeira instância, que esta não fixou nenhuma matéria de facto, aliás, o acórdão ora recorrido fixou apenas 5 pontos da matéria de facto, todos eles relacionados com domicílio das partes,

III. Assim, no entendimento dos ora Recorridos, o acórdão recorrido é nulo, é nulo pois fixou matéria de facto de forma oficiosa quando a norma do art.º 662.º do CPC, não o permite.

IV. Ou seja, de acordo com o art.º 662.º do CPC, caso as partes não tenham requerido nos termos do disposto no art.º 640.º do CPC, alteração da matéria de facto, não pode a Relação fixar oficiosamente sem intervenção das partes, matéria nova, uma vez que se tal sucedesse, ocorreria a fixação da matéria de facto sem intervenção das partes.

V. Ora, ocorrendo fixação da matéria de facto sem intervenção das partes, estaríamos na presença de uma violação do princípio do contraditório, princípio este basilar do Estado de direito.

VI. Com efeito, o art.º 20.º da CRP, estabelece e determina o princípio do contraditório, pelo que, não poderia o acórdão recorrido fixar de novo sem a intervenção das partes a matéria de facto, sendo, pois, a violação das normas do processo um dos fundamentos da revista, nos termos constantes do art.º 674.º do CPC.

VII. Em consequência, o acórdão recorrido é nulo, mesmo que assim não se entenda depressa verificaremos atenta a matéria de facto assente no acórdão recorrido, que esta é omissa quanto ao local de realização do ilício, ou da produção do dano,

VIII. Sendo que nesta eventualidade, caberia ao acórdão recorrido dar cumprimento ao ora exposto no art.º 607.º do CPC, ou seja, decidir a matéria de direito de acordo com os factos assentes.

IX. Ora, o acórdão recorrido apenas dá por assentes de forma inequívoca nos domicílios das partes, ou seja, fatores de conexão todos eles atributivos de competência aos tribunais portugueses.

X. Ora, ao invocar como fator de desconsideração da competência dos tribunais portugueses, um alegado local de produção do dano, ou de realização do ilícito, que não consta da matéria assente, a decisão padece de manifesta nulidade, nos termos do disposto do art.º 615.º do CPC.

XI. Por outro lado, os presentes autos são muito simples, uma sociedade portuguesa detinha uma quota numa sociedade de direito …..

XII. Outra sociedade portuguesa fez sua a referida quota mediante documento falso beneficiando economicamente deste “negocio” nada pagando, fazendo seu sem nada prestar, ou dar em contrapartida, como aliás reconhecem.

XIII. Assim, uma sociedade portuguesa, através de ato ilícito fez sua coisa de outra sociedade portuguesa, sendo que todas elas tem os seus administradores em Portugal, são dirigidas em Portugal e os beneficiários económicos destes factos são todos portugueses.

XIV. Sucede que de acordo com a matéria assente ,nos termos do art.º662.ºdo CPC os tribunais portugueses, seriam inequivocamente os tribunais portugueses,

XV. O acórdão recorrido nega a competência aos tribunais portugueses para conhecer esta matéria, remetendo para os tribunais do estado do …. no …., com fundamento num alegado local de realização do ilícito, local este que não consta da matéria assente, e ignora que o dano produzido ocorreu numa sociedade portuguesa.

XVI. Sociedade esta Autora, a qual empobreceu e a sociedade Ré enriqueceu pois nada pagou por aquilo que fez seu através de ilícito.

XVII. Claro é que o local de produção do dano foi em Portugal, pois a sociedade empobrecida é portuguesa, e o dano correspondeu ao empobrecimento, pelo que, nos termos do n.º 2 do art.º 71.º do CPC, o local de produção do dano é inequívoco, sendo que de acordo com a PI, o ilícito foi planeado e executado a partir de Portugal, não podendo apurar-se com exatidão onde foi realizado, pois não houve lugar a audiência de discussão e julgamento.

XVIII. Aqui chegados verificamos que o acórdão recorrido não aplicou devidamente a matéria de facto que ele próprio deu por assente, e não conheceu que existia fatores de conexão relevantíssimos como seja o domicílio ou o local de produção do dano.

XIX. Por último, de modo a afastar a disposição do al. c) do art.º 62.º do CPC, invocou-se que não constitui uma dificuldade apreciável para sociedades portuguesas, todas com residência em ….. ou domicílio, irem litigar na ……, quando todos residem em …..

XX. Assim, para o acórdão recorrido os custos de deslocação, de hospedagem de contato com ordem jurídica diversa, não constituem uma dificuldade de apreciar, dizendo-se mais que até parece ser simples no estado do …….. do ….., cidadãos portugueses e empresas portuguesas dirimirem litígios de natureza patrimonial, invocando-se, note-se, a excelência do ordenamento do sistema judicial …..

XXI. Sucede, contudo, que a questão é da excelência dos tribunais do estado do ….., nordeste do ….., o que determinou o legislador invoca é que havendo dificuldade apreciável devem os tribunais portugueses, e devem apreciar estas matérias.

XXII. Assim, entendem os Recorrentes que litigar no estado do …., constitui uma dificuldade apreciável, pelos custos, pelos encargos, e pelo desconhecimento do sistema legal …., quer processual, quer substantivo.

XXIII. Por último, esta decisão veta o acesso a efetiva tutela jurisdicional, porquanto, num litígio em que todas as partes são portuguesas, as testemunhas também o são, a decisão recorrida ocorreu no ….., que é manifestamente falso.

XXIV. O dano ocorreu em Portugal, pois o dano correspondeu a uma perda patrimonial da sociedade Autora, e tendo esta sede em ….., o dano produziu-se na sua esfera jurídica, pelo que deverão ser os tribunais portugueses declarados competentes para conhecer esta matéria, porque assim determina a lei.

10. BB, CC e Octupus – Participações e Investimentos, S.A., contra-alegaram, expondo as seguintes Conclusões:

1.°

O Tribunal da Relação ….. confirmou e muito bem a verificada excepção de incompetência absoluta dos Tribunais Portuguesas (art.96º do CPC) pelo Tribunal de primeira instância e, consequentemente, absolveu de forma reiterada os RR. /recorridos da instância (art.99º do CPC)

2.°

De facto e de direito, a competência do tribunal, em geral, deve ser aferida em função do pedido formulado pelo autor e dos fundamentos que aduz e que consubstanciam a causa de pedir que o suportam, ou seja, de acordo com a relação jurídica tal como é configurado pelo autor;

3.°

Mais, a competência internacional pressupõe que o litígio, tal como o autor o configura na acção, apresenta um ou vários elementos de conexão com um ou vários ordenamentos jurídicos distintos do ordenamento do foro;

O novo Código de Processo Cível veio no art. 62.º consagrar um regime mais específico no âmbito da atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses do que aquele que era consagrado no anterior diploma;

5.°

Efectivamente e à luz do art. 65.º n.º 1 alínea a) do antigo CPC, era conferida competência internacional aos tribunais portugueses quando se verificava uma das várias circunstâncias aí previstas e que no caso em concreto até se poderia traduzir na circunstância invocada pelos A A./recorrente nos art.s 6.º a 8.º do seu articulado para sustentar a competência deste Tribunal, isto é, seria competente um tribunal português quando o réu ou alguns dos réus/recorridos tivessem domicílio em território nacional, ressalvando as acções relativas a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis sitos em país estrangeiro;

6.°

No entanto e agora de acordo com o referido artigo 62.º consagrado pelo novo Código de Processo Civil, os tribunais portugueses só são internacionalmente competentes nos casos expressamente previstos neste normativo.

7.°

Contudo e perscrutando a causa de pedir e subsequente pedido aduzido pelos AA./recorrentes não se vislumbra a verificação de um qualquer factor de atribuição de competência internacional postulado pelo normativo acima citado e que seja aplicável no caso em concreto;

8.°

De facto não foi sequer alegado pelos AA./recorrente na sua p.i. ou posteriormente em sede de contraditório qualquer circunstância que permita concluir que o direito invocado por eles não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para os mesmos dificuldade apreciável na propositura da acção no …., assim como não foi sequer alegado qualquer elemento de conexão ponderoso entre o objecto do litígio e o ordenamento jurídico português que sirva para corroborar a atribuição de competência internacional a este Tribunal;

9.°

Os factos que são imputados pelos AA./recorrentes (art.s 9.° ss da sua p.i.) foram todos eles alegadamente perpetrados pelos RR./recorridos e consumados no …..;

10.°

Acresce que os AA./recorrentes com a presente acção pretendem imputar responsabilidade civil extracontratual nos termos do disposto nos arts. 483.° e ss do Código Civil alegadamente com o fundamento de que esses factos que alegadamente foram perpetrados pelos RR./recorridos são ilícitos (conforme podemos surpreender por exemplo do teor dos arts 3.°, 5.°, 6.°, 7.°, 8.° , 31.°, 37.° 39.°, 44.° ,50.°, 56.° 60.°, 62.° , 63.° e no art. 66.° da p.i.);

11.°

Pelo que, a acção também não poderia ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa, atento ao imperativo plasmado no n.° 2 do art. 71.° do novo CPC;

12.°

É que se com a acção se destinar a efectivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito como parece resultar da causa de pedir e do pedido deduzido pelos AA./recorrente, o tribunal competente será o correspondente ao lugar onde o facto ocorreu, isto é, o do ….. e não o português, lugar onde o facto presumivelmente foi idealizado apenas porque os RR./recorridos tem residência neste país.

13.°

Mais resulta profusamente do teor da documentação junta pelos AA./recorrente, designadamente dos contratos sociais juntos e por exemplo do que consta como doc. 3 (cláusula 17.ª do denominado contrato social) que foi fixado o foro da cidade de ….. - Capital do Estado do …, no ……) como sendo o foro competente para o exercício e o cumprimento dos direitos e obrigações resultantes do mesmo e, portanto o foro competente para dirimir inclusive o presente litígio;

14°

De facto, toda a causa de pedir é alicerçada pelos AA./recorrente em alegados actos, alterações de pactos e ou contratos celebrados entre empresas …, devidamente registadas e com contabilidade organizada própria, domiciliadas e registadas no ….. , mais concretamente na Junta Comercial do …., órgão público, que reconheceu a legalidade, validade e eficácia de todos os referidos actos praticados e cuja idoneidade não poderá ser questionada inclusive por um tribunal português;

15.°

Argumento pelo qual a presente acção também por este motivo nunca deveria ter sido proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa, ex vi art. 94 do novo CPC;

16.°

Ora, resulta do disposto na alínea a) in fine do art. 96.º do CPC, assim como do que acima foi alegado que a violação de pacto privativo de jurisdição bem como a infracção às regras de competência internacional determinam inelutavelmente a incompetência absoluta deste Tribunal;

17.°

Fundamento pela qual vieram os RR./recorridos nos termos do disposto nos art.s 96.º e ss CPC arguir a incompetência absoluta, que foi doutamente declarada pelo Tribunal a quo;

18.°

O que implicou e bem nos termos do disposto no n.º 1 do art. 99.º do CPC a absolvição dos RR. da instância;

19.°

O douto acórdão proferido pela Relação … e que foi recorrido pelos AA. não está inquinado da arguida nulidade, com o fundamento de que aquele Tribunal fixou matéria de facto de forma oficiosa quando a norma do art.º 662.º do CPC, não o permite.

20.°

De facto, a Relação …. não fixou oficiosamente sem intervenção das partes, matéria nova.

21.°

Assim como não violou o princípio do contraditório como alega precipitadamente a recorrente com o fundamento de que não poderia o acórdão recorrido fixar de novo sem a intervenção das partes a matéria de facto.

22.°

Conforme ressalta inequivocamente do teor do acórdão recorrido que passamos a citar a Relação …. veio afirmar e bem que “De acordo com o disposto nos artigos 5., 635.º, n.º 3 e 639.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal “ad quem” possa ou deva conhecer oficiosamente”. O sublinhado é nosso.

23.°

Mais afirma que “está este Tribunal da Relação adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso…”

24°

E ainda diz que “Esta limitação objetiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorrer em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, contanto que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf Artigo 5º, n.º 3, do CPC). O sublinhado é nosso

25.°

Por conseguinte o Tribunal da Relação …. limitou-se em afirmar se os tribunais portugueses são ou não internacionalmente competentes para apreciar o litígio em causa, tendo em conta a limitação objectiva da sua actuação que não foi transposta assim como teve em consideração todos os elementos juntos ao processo e que se revelaram suficientes a tal conhecimento, elementos que, aliás, foram todos oferecidos pela própria recorrente e que não foram impugnados pelos RR.

26.°

Consequentemente, o douto acórdão recorrido não está inquinado de qualquer nulidade e não merece qualquer censura e ou reparo.

Termos em que deve ser negado provimento ao recurso de revista interposto pela A., confirmando assim o douto acórdão recorrido, fazendo-se assim a acostumada JUSTIÇA”.

II – Questões a decidir

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.os 1 e 2, do CPC -, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, estão em causa as seguintes questões:

- se o acórdão recorrido é nulo, por haver fixado matéria de facto de forma oficiosa em violação do art. 662.º do CPC;

- se, no caso de fixação da matéria de facto sem intervenção das partes, se verifica a violação do princípio do contraditório (art. 674.º do CPC);

- mesmo que assim se não entenda, se a matéria de facto assente no acórdão recorrido é omissa quanto ao local de realização do ilício, ou da produção do dano e ao invocar-se como fator de desconsideração da competência dos tribunais portugueses um alegado local de produção do dano, ou de realização do ilícito, que não consta da matéria assente, a decisão padece de manifesta nulidade, nos termos do art.º 615.º do CPC;

- se os tribunais portugueses são internacionalmente (in)competentes para apreciar o litígio em apreço.

III – Fundamentação

A) De Facto

Conforme o Tribunal da Relação ….,

Estão provados, com relevo para a apreciação do recurso, os seguintes factos:

1. A 1.ª Autora é uma sociedade de direito português, com sede social em …. - cfr. certidão da Conservatória do Registo Comercial junta como Doc. 1 da Petição Inicial.

2. O 2.° Autor é cidadão português com domicílio em …..

3. 0 1.° Réu é um cidadão Português com domicílio em …..

4. 0 2.° Réu é cidadão português e reside em …..

5. A 3.ª Ré é uma sociedade de direito português, com sede social em … - cfr. certidão da Conservatória do Registo Comercial junta como Doc. 2 da Petição Inicial.

B) De Direito

Questão de saber se os tribunais portugueses são internacionalmente (in)competentes para apreciar o litígio

1. A questão respeita à competência internacional dos tribunais portugueses para julgar uma ação fundada em responsabilidade civil extracontratual.

2. A competência dos Tribunais Portugueses é o primeiro dos pressupostos processuais a apreciar. Faltando, impede a apreciação do mérito da causa, assim como de outras questões.

3. Os tribunais portugueses só podem conhecer de litígio emergente de uma relação transnacional quando forem internacionalmente competentes. A violação das regras de competência internacional legal constitui uma exceção dilatória de conhecimento oficioso (incompetência absoluta) (arts. 96.º, al. a), e 577.º, al. a), do CPC) e a decisão proferida por um tribunal em violação de regras de competência internacional é recorrível (art. 629.º, n.º 2, al. a), do CPC).

4. A incompetência é absoluta quando existe (art. 96.º do CPC) infração das regras de competência internacional

5. Essa incompetência absoluta tem como consequência a absolvição do réu da instância.

6. A “competência internacional designa a fracção do poder jurisdicional atribuída aos tribunais portugueses no seu conjunto, em face dos tribunais estrangeiros, para julgar as acções que tenham algum elemento de conexão com ordens jurídica estrangeiras. Trata-se, no fundo, de definir a jurisdição dos diferentes núcleos de tribunais dentro dos limites territoriais de cada Estado[1].

7. De acordo com a maioria da doutrina, a competência do tribunal afere-se pela natureza da relação jurídica tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido) e os respetivos fundamentos (causa de pedir), independentemente da apreciação do seu acerto substancial[2].

8. Por seu turno, conforme o art. 37.º, n.º 2, da Lei n.º 62/2013, de 26/08, a “lei de processo fixa os fatores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais” e a “competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei” (art. 38.º, n.º 1).

9. Segundo o art. 59.º do CPC, “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º”.

10. Assim, a competência internacional dos tribunais portugueses depende, desde logo, do que resultar de convenções internacionais ou dos regulamentos europeus (verbi gratia, Regulamento (UE) N.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial) e, depois, dos arts. 62.º e 63.º do CPC, sem prejuízo do que possa emergir de pacto atributivo de competência, nos termos do art. 94.º do CPC[3].

11. Coexistem na nossa ordem jurídica regras de competência internacional directa impostas por fontes normativas supranacionais, de direito comunitário da União Europeia – os regulamentos comunitários –, que determinam a competência internacional directa dos diferentes tribunais dos Estados membros. As regras de competência internacional (directa), que constam desses regulamentos comunitários, valem tanto para os tribunais do foro (isto é, para os tribunais de um Estado membro onde, em concreto, a ação foi proposta), como para os tribunais de qualquer outro Estado membro[4]. Muito diferentemente, “as regras que determinam a competência internacional dos tribunais portugueses previstas nos” arts. 62º e 63º do CPC “são unilaterais, pois só fixam a competência (internacional) dos tribunais portugueses; um tribunal estrangeiro nunca se pode sentir condicionado no exercício da sua jurisdição pela existência e validade daquelas regras”[5].

12. Porém, a disciplina interna da competência internacional consagrada no CPC apenas se aplica quando a ação não for abrangida pelo âmbito de aplicação do direito europeu, que é de fonte hierarquicamente superior, tal como também decorre do princípio do primado do direito europeu (art. 288.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia; art. 8.º, n.º 4, da CRP; art. 59.º, 1ª parte, do CPC)[6].

13. O direito europeu constitui um sistema de normas disciplinadoras da vida jurídica da sociedade “europeia”, cuja aplicação se torna diretamente vinculativa na ordem interna dos Estados-Membros[7].

14. Na nossa ordem jurídica vigoram, assim, normas de fonte interna e normas de fonte supra-estadual, relevando para o caso sub judice o Regulamento (UE) N.º 1215/2012.

15. Nos termos do décimo considerando do Regulamento (UE) N.º 1215/2012, o “âmbito de aplicação material do presente regulamento deverá incluir o essencial da matéria civil e comercial, com exceção de certas matérias bem definidas, em particular as obrigações de alimentos, que deverão ser excluídas do âmbito de aplicação do presente regulamento na sequência da adoção do Regulamento (CE) n.º 4/2009 do Conselho, de 18 de dezembro de 2008, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e à execução das decisões e à cooperação em matéria de obrigações alimentares (…)”.

16. No que respeita ao seu âmbito material ou objetivo de aplicação, o art. 1.º, n.º 1 dispõe que este se aplica “em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição. (…)”.

17. Está em causa um litígio internacional, desde logo, porque o facto danoso, traduzido na representação sem poderes dolosa no âmbito de alienação de participação social numa sociedade comercial … - Novo Horizonte Investimentos Imobiliários e Participações  LTDA  -, alegado pelos Recorrentes, terá ocorrido em …, no …… (conforme resulta de documentos que integram os autos).

18. Segundo a jurisprudência do TJUE, para assegurar, na medida do possível, a igualdade e a uniformidade dos direitos e das obrigações que decorrem do referido Regulamento para os Estados‑Membros e para as pessoas interessadas, não se deve interpretar o conceito de “matéria civil e comercial” como uma simples remissão para o direito interno de qualquer Estado. Trata-se antes de um conceito “específico, autónomo e exclusivo” do Regulamento, que tem de ser interpretado com referência, por um lado, aos objetivos e ao sistema do referido Regulamento e, por outro, aos princípios gerais resultantes das ordens jurídicas nacionais no seu conjunto[8].

19. No que concerne ao critério geral de competência, o Regulamento (UE) N.º 1215/2012, no art. 4.º, n.º 1, estabelece que, “sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro” (princípio actor sequitur fórum rei, que visa assegurar a proteção legal das pessoas domiciliadas na União Europeia).

20. Nestes moldes, as pessoas domiciliadas num Estado­membro devem ser demandadas nos tribunais desse Estado, independentemente da sua nacionalidade. O critério de definição da competência é, pois, o domicílio do réu. Sendo o réu uma pessoa física, de acordo com o art. 59.º, compete à lei interna do Estado­membro do foro determinar se o réu tem ou não domicílio nesse Estado. No caso de Portugal, deverá o juiz determiná­lo com base nos arts. 82.º e ss., do CC. Se o réu for uma pessoa coletiva, o art. 63.º, n.º 1, estabelece um conceito autónomo de domicílio, determinando que uma pessoa coletiva tem domicílio no lugar em que tiver a sua sede social, a sua administração central ou o seu estabelecimento principal.

21. Tal como se refere nos considerandos (15) do preâmbulo do Regulamento, as “regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e fundar-se no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido. Os tribunais deverão estar sempre disponíveis nesta base, exceto nalgumas situações bem definidas em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam um critério de conexão diferente”.

22. Todavia, mesmo que o réu tenha o seu domicílio num Estado-Membro da União Europeia, ainda assim poderá ser demandado nos tribunais de um outro Estado-Membro ao abrigo das regras especiais de competência previstas nos arts. 7.º a 25.º do Regulamento.

23. Na verdade, o art. 5.º do Regulamento (UE) N.º 1215/2012 estabelece que:

1. As pessoas domiciliadas num Estado-Membro só podem ser demandadas nos tribunais de outro Estado-Membro nos termos das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo.

2. Em especial, as regras de competência nacionais notificadas pelos Estados-Membros à Comissão nos termos do artigo 76.º, n.º 1, alínea a), não se aplicam às pessoas a que se refere o n.º 1”.

24. Conforme o art. 6.º do Regulamento (UE) N.º 1215/2012, se o requerido não tiver domicílio num Estado-Membro, a competência dos tribunais de cada Estado-Membro é, sem prejuízo do art. 18.º, n.º 1, do art. 21.º, n.º 2, e dos arts. 24.º e 25.º, regida pela lei desse Estado-Membro. Entre nós, a competência internacional será determinada em conformidade com o disposto nos arts. 62.°, 63.° ou 94.° do CPC.

25. Daqui decorre que o Regulamento (UE) N.º 1215/2012 é aplicável sempre que o demandado tenha domicílio num Estado-Membro, ainda que o demandado não seja nacional do Estado em que se encontra domiciliado, nem tenha a nacionalidade de qualquer outro Estado-Membro.

26. Levando em linha de conta o Considerando (16) do preâmbulo do Regulamento, o “foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça. A existência de vínculo estreito deverá assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado-Membro que não seria razoavelmente previsível para ele (…)”.

27. Da conjugação daquela regra geral com as regras especiais de competência estabelecidas no Regulamento (EU) N.º 1215/2012 resulta que “(…) estando simultaneamente preenchida a regra geral do domicílio do réu e uma regra especial de competência, a regra especial não derroga a regra geral. Diversamente, verificando-se, no caso em concreto, algum critério especial de competência, o autor tem a possibilidade de escolher entre propor a ação nos tribunais do Estado-Membro do domicílio do réu ou nos tribunais do Estado-Membro que sejam competentes à luz desse critério especial, ou seja, a competência desses tribunais é alternativa (…). Isto a não ser que, no caso em concreto, se verifique alguma situação de competência exclusiva (art. 24.º) ou convencional (25.°), as quais afastam os critérios gerais e especiais de competência. Ocorrendo essa possibilidade de escolha do foro, estamos perante uma situação de forum shopping”[9].

28. Ou seja, nas situações previstas na Secção 2 (arts. 5.º-9.º) – que estabelece regras especiais que atribuem competência a tribunais de Estados diversos do Estado de residência do réu, mas que não excluem a competência normal dos tribunais do último –, o autor pode optar entre o tribunal do Estado do domicílio do réu e o daquele Estado para que aponta o critério especial. Diversamente, nas situações elencadas nas Secções 3 a 7, a competência internacional é determinada unicamente pelas regras especiais aí estabelecidas.

29. Por conseguinte, observando-se, no caso concreto, algum critério especial de com­petência, o autor pode escolher entre propor a ação nos tribunais do Estado-Membro do domicílio do réu ou nos tribunais do Estado-Membro que sejam competentes à luz desse critério especial – i.e., a competência desses tribu­nais é alternativa -, salvo se, no caso em apreço, se verificar alguma si­tuação de competência exclusiva (art. 24.°) ou convencional (art. 25.°).

30. Consequentemente, o caso em apreço encontra-se dentro do âmbito subjetivo de aplicação do Regulamento (UE) N.º 1215/2012, pois que todos os réus têm domicílio num Estado­membro (Portugal). Para o efeito, bastava que apenas um o tivesse!

31. No que toca ao seu âmbito de aplicação temporal, segundo o art. 81.°, o Regulamento (UE) N.º 1215/2012 aplica-se a partir de 10 de janeiro de 2015, com exceção dos arts. 75.° e 76.°, que passaram a aplicar-se desde 10 de janeiro de 2014. Por seu turno, ao abrigo do art. 66.°, n.° 1, o Regulamento apenas se aplica a ações judiciais intentadas a partir de 10 de janeiro de 2015. A presente ação foi instaurada a 17 de setembro de 2018 e, por isso, depois de 10 de janeiro de 2015.

32. Por sua vez, os Réus/Recorridos invocam um pacto privativo de jurisdição contido na cláusula 17.ª do contrato social da Novo Horizonte Investimentos Imobiliários e Participações LTDA , segundo a qual “Fica eleito o foro da Cidade …., Capital do Estado  ….., para o exercício e o cumprimento dos direitos e obrigações resultantes deste contrato”. As partes convencionaram a jurisdição competente para decidir litígios (atuais ou eventuais) decorrentes da relações jurídico-societárias.

33. Na medida em que se trata de um pacto privativo de jurisdição (que retira competência a um ou vários tribunais de Estados-membros, atribuindo-a exclusivamente a um ou vários tribunais …), e não atributivo, não se aplica o art. 25.º do Regulamento (UE) N.º 1215/2012.

34. Parece claro que os Autores não se encontram vinculados por tal pacto, porquanto não eram, aquando da propositura da ação, nem são atualmente sócios ou titulares de qualquer órgão social da Novo Horizonte Investimentos Imobiliários e Participações LTDA.

35. Por fim, está em causa um litígio, tal como configurado pelos Autores, decorrente de uma representação sem poderes ilícita e dolosa na alienação de participação social de que a Autora era titular na Novo Horizonte Investimentos Imobiliários e Participações LTDA . Não se trata, por isso, “do exercício e cumprimento dos direitos e obrigações” resultantes do respetivo contrato social.

36. Por conseguinte, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para dirimir a presente lide.

Questão de saber se o acórdão recorrido é nulo, por haver fixado matéria de facto de forma oficiosa em violação do art. 662.º do CPC

1. O Tribunal da Relação …. limitou-se a fixar a matéria de facto exclusivamente com base na análise de prova documental (factos provados sob os n.os 1 e 5), cuja falsidade não foi invocada, ou no acordo das partes (factos provados sob os n.os 3 e 4), por falta de impugnação por parte dos Réus.

2. A título oficioso, no seu juízo autónomo, o Tribunal da Relação ….. considerou que os elementos de prova acessíveis já ao Tribunal de 1.ª Instância permitiam a fixação daquela matéria de facto.

3. O Tribunal da Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se encontrem disponíveis, observando o princípio do dispositivo no que respeita à identificação dos pontos de discórdia[10].

4. Com efeito, o Tribunal da Relação ….. não se debruçou oficiosamente sobre a generalidade de meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação do julgador, não realizando como que um novo julgamento.

5. Não era, por isso, necessária, para esse efeito, a iniciativa dos Recorrentes.

6. Recorde-se, de resto, que, na sentença, o Tribunal de 1.ª Instância afirmou expressamente que “É verdade que temos presente a verificação de um elemento ponderoso de conexão: as partes são todas elas de nacionalidade portuguesa”.  

7. Acresce que, as decisões total ou parcialmente deficientes, que podem traduzir-se em falta absoluta de decisão, decisão incompleta ou insuficiente[11], estão sujeitas a apreciação oficiosa do Tribunal da Relação que pode suprir a respetiva deficiência mediante o recurso a elementos que integrem o processo[12].

8. Integram, pois, o processo, todos os elementos probatórios relevantes. Por conseguinte, afigura-se possível sanar uma eventual deficiência da sentença.

9. Já no que respeita ao facto provado sob o n.º 2, não resultando ele nem de documento nem de acordo das partes, uma vez que foi impugnado pelos Réus, na respetiva contestação, poder-se-ia suscitar a questão da inobservância do art. 662.º. Contudo, trata-se de questão sem relevância, pois que o domicílio do autor não constitui critério de determinação da competência internacional dos tribunais. De resto, não é permitida a prática de atos inúteis (art. 130.º do CPC).

Questão de saber se, no caso de fixação da matéria de facto sem intervenção das partes, se verifica a violação do princípio do contraditório (art. 674.º do CPC)

1. Conforme mencionado supra, o Tribunal da Relação ….. fixou a matéria de facto exclusivamente com base na análise de prova documental (factos provados sob os n.os 1 e 5), cuja falsidade não foi invocada, ou no acordo das partes (factos provados sob os n.os 3 e 4), em virtude da falta de impugnação por parte dos Réus.

2. Estão em causa factos alegados pelos Autores, que se encontram consubstanciados em documentos que não foram impugnados pelos Réus. Estes podiam tê-lo feito aquando da apresentação da respetiva contestação.

3. O contraditório - audiatur et altera pars - significa “ouça-se também a outra parte”. O desrespeito pelo princípio do contraditório não se afigura suscetível de ser invocado pela própria parte que alegou – e juntou os documentos que lhes dizem respeito – os factos dados como provados pelo Tribunal da Relação.

Questão de saber se, não se entendendo verificar-se violação do princípio do contraditório, a matéria de facto assente no acórdão recorrido é omissa quanto ao local de realização do ilício, ou da produção do dano e, ao invocar-se como fator de desconsideração da competência dos tribunais portugueses um alegado local de produção do dano, ou de realização do ilícito, que não integra a matéria assente, a decisão padece de manifesta nulidade, nos termos do art.º 615.º do CPC

1. Não se afigura adequado determinar a baixa do processo com vista à ampliação da decisão da matéria de facto, porquanto a matéria de facto respeitante ao local da verificação do facto ilícito ou do dano não se revela essencial para a resolução do litígio pelo Tribunal ad quem (art. 682.º, n.º 3, do CPC). Tal resultaria na prática de um ato inútil, que a lei não permite (art. 130.º do CPC).

2. Considerando a matéria de direito relevante para o caso em apreço, pode concluir-se pela suficiência da matéria de facto considerada como provada.

3. Note-se, por último, que os Autores/Recorrentes não fundamentam sequer a nulidade alegada, não indicando a qual das hipóteses previstas no art. 615.º, n.º 1, do CPC, se subsumiria o vício de que consideram ferido o acórdão recorrido.


IV – Decisão

Nos termos expostos, acorda-se em revogar parcialmente o acórdão recorrido, declarando os tribunais portugueses internacionalmente competentes, de um lado e, de outro, em confirmar, no restante, o mesmo aresto, julgando improcedentes as nulidades alegadas pelos Autores/Recorrentes.

Custas na proporção do decaimento.

           

Lisboa, 8 de maio de 2021.


 Sumário: 1. Os tribunais portugueses só podem conhecer de litígio emergente de uma relação transnacional quando forem internacionalmente competentes. A competência do tribunal afere-se pela natureza da relação jurídica tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido) e os respetivos fundamentos (causa de pedir), independentemente da apreciação do seu acerto substancial. A disciplina interna da competência internacional consagrada no CPC apenas se aplica quando a ação não for abrangida pelo âmbito de aplicação do direito europeu. No que respeita concerne ao critério geral de competência, o Regulamento (UE) N.º 1215/2012, no art. 4.º, n.º 1, estabelece o princípio actor sequitur fórum rei, que visa assegurar a proteção legal das pessoas domiciliadas na União Europeia: o critério de definição da competência é o domicílio do réu. Um pacto privativo de jurisdição (que retira competência a um ou vários tribunais de Estados-membros, atribuindo-a exclusivamente a um ou vários tribunais do Brasil), e não atributivo, não se aplica o art. 25.º do Regulamento (UE) N.º 1215/2012. As partes não se encontram vinculados por um pacto privativo de jurisdição quando não eram, aquando da propositura da ação, nem são atualmente, sócios ou titulares de qualquer órgão social da sociedade em cujo pacto social aquele se integra. O Tribunal da Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se encontrem disponíveis, observando o princípio do dispositivo no que respeita à identificação dos pontos de discórdia.


Este acórdão obteve o voto de conformidade dos Excelentíssimos Senhores Conselheiros Adjuntos António Magalhães e Fernando Dias, a quem o respetivo projeto já havia sido apresentado, e que não o assinam por, em virtude das atuais circunstâncias de pandemia de covid-19, provocada pelo coronavírus Sars-Cov-2, não se encontrarem presentes (art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, que lhe foi aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1 de maio).

Maria João Vaz Tomé (relatora)

______

[1] Cf. Antunes Varela/J. Miguel Bezerra/Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, p. 198.
[2] Cf. José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 1.º, Coimbra, Coimbra Editora, 1945, p. 111; Manuel A. Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, p. 91; Miguel Teixeira de Sousa, A Competência e a Incompetência dos Tribunais Comuns, Lisboa, A.A.F.D.L., 1990, p. 139; José Lebre de Freitas/João Redinha/Rui Pinto, Código do Processo Civil Anotado, Coimbra, volume 1.º, Coimbra Editora, 1999, p. 129; Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Coimbra, Almedina, 2017, p. 92; Mariana França Gouveia, A Causa de Pedir na Acção Declarativa, Coimbra, Almedina, pp. 183-184, 507-508.
[3] Cf. António Santos Abrantes Geraldes/ Luís Pires de Sousa Paulo Pimenta, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2020, p. 91.
[4] Cf. J. P. Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 173.
[5] Cf. J. P. Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 174.
[6] Vide, neste sentido, Acórdão do Tribunal da Justiça da União Europeia de 8.09.2010, no processo C-409/06 (Winner Wetten GmbH contra Bürgermeisterin der Stadt Bergheim), publicado na Colectânea de Jurisprudência 2010-I-08015.
[7] Cf. Rui Moura Ramos, Estudos de Direito Internacional Privado e de Direito Processual Civil Internacional, II, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 146, afirmando que o direito europeu se caracteriza por ser um direito “inclusivo”.
[8] Vide, neste sentido, acórdãos Meletis Apostolides contra David Charles Orams e Linda Elizabeth Orams, C-420/07, EU:C:2009:271, n.° 41 e jurisprudência referida; Cartier parfums — lunettes SAS e Axa Corporate Solutions assurances SA contra Ziegler France SA e o., C-1/13, EU:C:2014:109, n.° 32 e jurisprudência citada; Hi Hotel HCF SARL contra Uwe Spoering, C-387/12, EU:C:2014:215, n.° 24 e jurisprudência mencionada e flyLAL-Lithuanian Airlines AS contra Starptautiskā lidosta Rīga VAS e Air Baltic Corporation AS, C-302/13, ECLI:EU:C:2014:2319.
[9] Cf. Marco Carvalho Fernandes, “Competência Judiciária Europeia”, in Scientia Iuridica, Tomo LXIV, n.º 339, Set/Dez., 2015, p. 417 e ss.
Vide, ainda, Miguel Teixeira de Sousa, in https://blogippc.blogspot.pt/2017/11/jurisprudencia-735.html, de 23/11/2017, refere que o critério do domicílio do demandado (art. 2.º, n.º 1, Reg. 44/2001; art. 4.º, n.º 1, Reg. 1215/2012) é sempre aplicável. Os critérios especiais - como é o caso daquele que se encontra estabelecido no art. 5.º, n.º 1, Reg. 44/2001 ou no art. 7.º, n.º 1, Reg. 1215/2012 - são sempre alternativos em relação àquele critério geral: é o que resulta do disposto no art. 5.º, n.º 1, do Reg. 1215/2012.
[10] Cf. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018, p.287.
[11] Cf. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, Volume IV, Coimbra, Coimbra Editora, 1951, p.528.
[12] Cf. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018, p.306.