Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2638/19.3T8OAZ.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 01/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - A admissibilidade de qualquer recurso é prévia aos fundamentos da revista a que se reporta o disposto nas diversas alíneas do disposto no n.º1 do art.º 674.º CPCiv e mesmo prévia à possibilidade da invocação de nulidades em recurso, no caso, as nulidades que se reportem à própria apreciação feita no julgamento da apelação, pelo que, interposta revista com arguição de qualquer desses vícios do acórdão, apenas se for admissível revista poderão as nulidades de sentença/acórdão ser eventualmente objecto de conhecimento.

II – Se o acórdão recorrido decidiu nos exactos termos, ou semelhantes, aos da decisão proferida em 1.ª instância, quanto às questões pendentes do recurso de apelação, por força da norma do art.º 671.º n.º3 CPCiv, a revista normal não poderá fundar-se na invocação de erros de julgamento ou nulidades.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


                  

Referências

AA e BB instauraram a presente acção, com processo declarativo e forma comum, contra Liberty Seguros – Compañia de Seguros y Reaseguros, S.A. – Sucursal em Portugal.

Formularam o seguinte pedido:

a) a condenação da ré a pagar ao autor o valor necessário à reparação total do veículo do autor e que se estima ser, segundo dados da ré de € 18.224,64.

b) A condenação da ré ao pagamento de um valor a arbitrar pelo Tribunal, mas que não deverá ser inferior a € 97,00 por dia pela privação do uso da viatura do autor, desde a data da privação, 22 de dezembro de 2018, até a cessação da privação, sendo certo que até a momento já se venceram 195 dias, o que tendo em conta o valor diário encontrado, perfaz a quantia de € 18,915,00, a que devem acrescer juros legais.

c) A condenação da ré ao pagamento do Imposto Único de Circulação relativo ao ano de 2019, que se venha a apurar.

d) A condenação da ré ao pagamento dos danos (patrimoniais) resultantes do acidente para a 2.ª A., conforme se propôs pagar a R. no documento Doc. 4, mas na proporção de 100%, sendo este valor de 7,43 €.

e) A condenação da ré ao pagamento de compensação a título de danos não patrimoniais, em montante não inferior a € 2.000,00.

Alegaram que, no dia 22 de Dezembro de 2018, pelas 18h04, a Autora conduzia o veículo de matrícula ..-FH-.., propriedade do Autor, na Avenida ... – Zona Industrial, União de Freguesia ..., concelho ..., distrito ..., no sentido “P...”, Rotunda ...; em sentido oposto, no mesmo local, circulava o veículo de matrícula ..-..-TA, propriedade CC, conduzido por DD e cuja responsabilidade civil por danos causados a terceiros se achava transferida para a Ré mediante a apólice nº ...30; no local a faixa de rodagem compõe-se de duas vias de trânsito de sentido oposto, circulando o veículo FH dentro da via de trânsito correspondente ao seu sentido de marcha; sem que nada o fizesse prever, o veículo TA, que circulava na via de trânsito oposta, saiu da sua via transpondo as linhas longitudinais descontínua, ocupando a via em que circulava o veículo FH, indo colidir contra este; em consequência do embate, o veículo FH sofreu danos cuja reparação orça € 18.224,64, estando desde a data do acidente impossibilitado de circular, sendo o custo médio do aluguer de um veículo de caraterísticas similares às do veículo FH de € 97,00 por dia; em 2019, vencer-se-á o imposto único de circulação, sem que o autor possa usufruir do veículo; em consequência do acidente, a autora sofreu lesões que determinaram o seu transporte ao hospital, tendo resultado na autora um hematoma na zona do peito que demorou três meses a desaparecer e sofreu dores, não conseguindo dormir, ficando com receio de voltar a conduzir, falando constantemente no sinistro.

As despesas suportadas pela Autora para tratamento das lesões decorrentes do acidente foram no montante de € 7,43.

A Ré impugnou a descrição do acidente feita pelos autores, alegando que após o acidente ambos os veículos se encontravam a ocupar a via reservada ao sentido contrário, não sendo possível determinar em qual das vias ocorreu o acidente, razão pela qual a responsabilidade do sinistro é de imputar em partes iguais a cada uma das condutoras dos veículos; o veículo do Autor tinha à data do acidente o valor venal de € 14.500,00, tendo o salvado o valor de € 7.122,00, com IVA incluído, devendo considerar-se existir perda total do veículo do Autor, razão também pela qual a privação do uso desse veículo é eterna e por isso não indemnizável; face aos factos alegados, não é devida qualquer indemnização relativamente ao imposto único de circulação e aos danos não patrimoniais sofridos pela Autora.


As Decisões Judiciais

Foi proferida sentença em 1.ª instância, que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:

a) Condenou a Ré a indemnizar o Autor na quantia de € 7 379,00 (sete mil trezentos e setenta e nove euros).

b) Condenou a Ré a indemnizar o Autor na quantia de 20 € (vinte euros) pela privação do uso da viatura, desde a data da privação de 22 de Dezembro de 2018, até cessação da privação com o pagamento do valor referido em al. a), o que nesta data perfaz a quantia de 20.740,00€ (vinte mil setecentos e quarenta euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, calculados desde a citação e até efetivo e integral pagamento.

c) Condenou a Ré no pagamento à Autora da quantia de 7,43€ (sete euros e quarenta e três cêntimos), a título de indemnização pelos danos (patrimoniais), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, calculados desde a citação e até efetivo e integral pagamento.

d) Condenou a Ré no pagamento à Autora da quantia de 2.000,00 (dois mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais, acrescida de juros legais à taxa legal de 4% ao ano, calculados desde a data da sentença até efetivo e integral pagamento.

e) Absolveu a Ré do demais peticionado.

Tendo o Autor AA recorrido de apelação, a Relação veio a pronunciar-se, julgando parcialmente procedente o recurso de apelação interposto por AA e, em consequência, decidindo revogar a alínea a) da sentença recorrida proferida em 24 de outubro de 2021 que se substituiu pela condenação de Liberty Seguros – Compañia de Seguros y Reaseguros, S.A. – Sucursal em Portugal a pagar a AA a quantia de dezoito mil duzentos e vinte e quatro euros e sessenta e quatro cêntimos, a título de custo da reparação do veículo de matrícula ..-FH-.., mantendo-se, no mais a sentença recorrida.


Inconformado ainda o Autor AA, pretende agora interpor recurso de revista.

A Ré apresentou contra-alegações de revista, sustentando a improcedência da pretensão do Autor e, preliminarmente, a rejeição do recurso de revista.

Invoca que, no caso dos presentes autos, o Acórdão da Relação do Porto, confirmou a sentença recorrida relativamente à questão da privação do uso do veículo do autor e, por outro lado, o recorrente não alega qualquer pressuposto para que seja admitida a revista excepcional, pelo que, salvo o devido respeito por melhor opinião, o recurso de Revista apresentado pelo recorrente deverá ser rejeitado, por não ser admissível ao abrigo do disposto nos preceitos legais acima referidos.


São as seguintes as conclusões de alegação:

A) O Tribunal recorrido ao revogar a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância no que diz respeito à alínea a) e decidindo como decidiu fez uma correcta aplicação do direito aos factos, pelo que não merece qualquer censura.

B) Porém, ao manter o valor pela privação do dano, recusando-se a apreciar a matéria de facto (ponto 3 dos factos não provados), mas ao mesmo tempo mantendo a decisão de 1.ª instância, com um fundamentação essencialmente diferente, o Tribunal recorrido, salvo melhor opinião, para além de ter violado várias disposições legais, entrou em diversas contradições, que constituem nulidades, como se demonstrará.

C) Do constante nas alíneas EE) e FF) das conclusões do recurso de apelação, o A./Recorrente pugnou por o Tribunal recorrido dar como provado o facto constante no ponto 3 dos factos provados, ou, subsidiariamente, pelo valor de 55,00€ como valor/dia pelo dano da privação do uso;

D) Tal matéria foi alegada pelas partes, na P.I., no artigo 26.º, e pela R., no artigo 45.º da sua contestação, pelo que, tendo em conta a matéria controvertida, fez parte do objecto do litígio e dos temas de prova;

E) O valor dos 55,00€/dia resultou de declarações prestadas pela testemunha da R., EE, perito averiguador, a instâncias da R., supra transcritas (gravação efetuada no dia 27.04.2021; com início às 15:01:19 e fim às 15:50:23; e com a duração de 49 minutos e 03 segundos, com especial relevância aos 6m56s a 7m23s);

F) Tais declarações serviram de motivação para o Tribunal de 1.ª instância ter o ponto 3. como factos não provados, sem que, porém, tenha considerado este facto como provado;

G) Pedida a reapreciação deste ponto da matéria de facto dada como não provada, o Tribunal a quo decidiu não fazer a reapreciação da matéria de facto, escudando-se na falha da gravação do depoimento da testemunha EE;

H) O A./Recorrente não pode concordar com esta decisão, desde logo, por duas razões que é próprio Tribunal recorrido que as refere:

“No momento em que se verificou a inaudibilidade do depoimento da testemunha esta estava a ser instada pelo Sr. Advogado dos autores” (realce nosso).

“A recorrente, em função da reapreciação da decisão da matéria de facto por que pugnou e que foi indeferida em virtude desta instância de recurso não ter acesso a toda prova pessoal produzida em parte de uma sessão da audiência final e nomeadamente parte de um depoimento testemunhal indicado pelo recorrente, ainda que a parte por ele referenciada seja audível pugna por que o dano da privação do uso seja fixado no montante de noventa e sete euros diários, ou, subsidiariamente, no montante de cinquenta e cinco euros diários” (realce nosso).

I) Ora, estando em falta apenas a inquirição da testemunha por parte do advogado da parte contrária (advogado do A.), este apenas poderia fazer perguntas sobre os factos que depôs, em instâncias indispensáveis para se completar ou esclarecer o depoimento, conforme prevê o n.º 2 do artigo 516.º do CPC;

J) Pelo que, a falha de gravação para dar como provado o pedido subsidiário apresentado pelo A./Recorrente é inócua, tanto mais que serviu de base para motivar a sentença de 1.ª instância;

K) Pelo exposto, a decisão do Tribunal em não reapreciar a matéria de facto, designadamente, o ponto 3 dos factos não provados, escudando-se numa parte não audível da gravação, mas inócua para a apreciação em causa cometeu a nulidade prevista na alínea d) do artigo 615.º, uma vez que deixou de se pronunciar sobre questões que devia pronunciar-se.

L) No limite, deveria fazer uso da alínea d) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC, uma vez que o Recorrente não tem como saber no prazo de 10 dias a partir da entrega da gravação, nem mesmo na maioria das vezes durante a elaboração do recurso de umas quaisquer falhas de gravação.

M) Nulidade que se arguiu com as suas legais consequências;

N) Não obstante, o Tribunal a quo escusando-se a pronunciar-se sobre tal ponto dos factos não provados, mais à frente, pronunciou-se, ainda que ressalvando a inaudibilidade da gravação, mas audível na parte que interessa;

O) Deste modo, o Tribunal a quo cometeu a nulidade prevista na alínea c) do artigo 615.º do CPC. Nulidade que se arguiu com as suas legais consequências;

P) Na fundamentação de direito, o Tribunal a quo discorreu sobre factos que sustentariam o valor do dano de privação do uso decidido pelo Tribunal de 1.ª instância, nomeadamente, de que o A. não é uma empresa de aluguer de automóvel, pelo que ao valor do dano deveria ser retirado o valor do lucro, bem como, que não tendo o A. automóvel , teve uma poupança nos custos de combustível e desgaste de material;

Q) O A./Recorrente discorda em absoluto de tais considerações, conforme melhor resulta das alegações;

R) Porém, tais factos não foram alegados pela R.com matéria de excepção, nem constam da sentença de 1.ª instância;

S) Deste modo, o Tribunal conheceu questões que não deveria ter conhecimento, excedendo as alegações das partes e o conteúdo da sentença, que a única fundamentação consistente, mas contrária à decisão, foi de que a testemunha EE disse ser possível alugar um veículo de iguais características às do veículo do A. pelo valor de 55,00€;

T) Assim procedendo, cometeu a nulidade prevista na segunda parte

da alínea d) do artigo 615.º do CPC. Nulidade que se arguiu com as suas legais consequências;

Sem prescindir, por mero dever de patrocínio,

U) impugna-se a decisão proferida na parte em que confirmou o valor de 20,00€ diários pelo dano pela privação do uso atribuído pelo Tribunal de 1.ª instância, por este ficar aquém da prova constante nos autos;

V) A fundamentação apresentada é essencialmente diferente da fundamentação apresentada pelo Tribunal de 1.ª instância, não se podendo concordar com tal fundamentação, conforme já foi supra referido;

W) Salvo melhor opinião, o Tribunal recorrido fez um raciocínio enviesado relativamente à indemnização a ser paga pelo lesante e a receber pelo lesado, nomeadamente, por dever ser retirado o lucro da empresa que alega os automóveis, bem como as alegadas poupanças do A./Recorrente, por não ter despesas com combustível e desgaste de material;

X) Conforme resulta da motivação e do exemplo aí dado, não se pode concordar com tal visão;

Y) O A. está privado do uso da sua viatura há mais de quatro anos, por um facto que só é imputável à R./Recorrida, uma vez que se eximiu de assumir as suas responsabilidades: não assumiu a responsabilidade sobre o acidente, nem colocou à disposição do A./Recorrente qualquer viatura;

Z) Tal situação provocou danos ao A., conforme resulta dos factos provados dos pontos 18. a 20.;

AA) Se a R., enquanto se discutia a responsabilidade sobre o acidente, tinha disponibilizado um veículo de iguais características ao A., o seu custo, segundo o seu funcionário, EE, seria de 55,00€/dia;

BB) O que perfazia à data da prolação da sentença de 1.ª instância, o montante de 55.037,00 € (1037 dias);

CC) Porém, veio a ser condenada a R. no pagamento do valor de 20.740,00€ (20,00€/dia);

DD) Tendo em conta que as decisões condenatórias relativamente ao valor da reparação do veículo, 18.224,64€ (após recurso) e do valor que se encontra em discussão relativamente ao dano de privação do uso, que à data da prolação da sentença era de 20.740,00€, a R. ainda fica a “lucrar” no montante de 16.072,36€, pois é esta a diferença entre o valor que teria de pagar à empresa de aluguer de automóveis com quem trabalha e o valor a que foi condenada nos presentes autos, já contando com indemnização para reparação do veículo automóvel do A.;

EE) Realce-se que a R. ofereceu à A. a módica quantia de 7.122,00€ como valor total de que ressarciria o A., razão pela qual este teve de recorrer às vias judiciais;

FF) Ou seja, compensará sempre à R. deixar que casos como os dos autos sigam as vias judiciais, é contra a sensatez e boa aplicação do direito, beneficia o infractor/lesante em detrimento do lesado;

GG) Conforme invocou o A./Recorrente, com interesse para a decisão sobre a determinação do montante a indemnizar pela privação do uso e contrariando a posição expressa pelo Tribunal a quo, já o Supremo Tribunal de Justiça proferiu uma decisão, com a qual o A. dá a sua total concordância, no acórdão de 31/05/2016, processo n.º 741/03.0TBMMN.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt, nomeadamente, no ponto IX do sumário, conforme supra transcrito;

HH) O A. /Recorrente não tem como saber, num prazo de 10 dias, dos eventuais problemas de gravação, nem mesmo aquando está a elaborar o recurso, uma vez que nem toda a matéria tem interesse para a elaboração do recurso;

II) Tendo as mesmas acontecido, as declarações relevantes, quer do A. (gravação efetuada no dia 27.04.2021; com início às 10:08:04 e fim às 10:39:36; e com a duração de 31 minutos e 31 segundos, em especial entre o 9m03s e 23m40s), quer da testemunha EE (gravação efetuada no dia 27.04.2021; com início às 15:01:19 e fim às 15:50:23; e com a duração de 49 minutos e 03 segundos, com especial relevância aos 6m56s a 7m23s), para a reapreciação da matéria constante no ponto 3 dos factos não provados, em nada abalam o valor do quantitativo diário de 55,00€ que, aliás, o Tribunal de 1.ª instância se socorreu na sua motivação;

JJ) Não tendo o Tribunal recorrido sentido necessidade de fazer uso do disposto na alínea d) do n.º do artigo 662.º do CPC, deveria dar como procedente o pedido de aditamento aos factos provados que: “O custo diário de aluguer para a R. de um veículo de iguais características ao do veículo do A. é de 55,00€/dia;

KK) E, em consequência, ser considerado o valor de 55,00€/dia como valor pelo dano de privação do uso, sob pena de beneficiar o infractor/lesante, a R.;

LL) Sem prejuízo do supra exposto, relativamente às nulidades invocadas, o Tribunal recorrido violou as mais diversas disposições legais, nomeadamente, os artigos 562.º, 564.º, 566.º, todos do Código Civil; a alínea d) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC; o n.º 1 do artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa;

Termos em que, e nos melhores de Direito que V. Exas. Mui Doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao recurso apresentado pelo A./Recorrente e, em consequência, deverá ser revogada a decisão proferida, que manteve o quantum diário pelo dano da privação do uso em 20,00€, devendo ser substituída pela decisão em que esse valor seja de 55,00€, conforme supra exposto;

Subsidiariamente, caso assim V. Exas. não entendam, devem ser reconhecidas as nulidades arguidas, com as suas legais consequências.


Factos Apurados

1. AA é proprietário do veículo automóvel de marca BMW, modelo 320D coupé, de 2008, com a matrícula ..-FH-.. (doravante FH).

2. No dia 22 de dezembro de 2018, cerca das 18h04m horas, o veículo FH circulava na Avenida ... – Zona Industrial, União de Freguesias ..., concelho ..., distrito ..., no sentido “P...” – Rotunda ..., conduzido por BB, tendo como passageira, a sua mãe, FF.

3. Em sentido contrário e no mesmo local, circulava o veículo automóvel de marca Mitsubishi, modelo Sedan, de 2002, com a matrícula ..-..-TA (doravante TA), propriedade de CC, conduzido por DD, veículo esse, segurado à data pela ré, através da Apólice n.º ...30.

4. Esse local da Avenida é uma recta que comporta dois sentidos de trânsito, as quais são separadas por uma linha longitudinal descontínua.

5. A faixa de rodagem em asfalto mede 6,45 metros de largura, estando a velocidade no local limitada aos 50 Km/h.

6. O veículo FH circulava, totalmente dentro da via correspondente ao sentido de marcha em que seguia, na faixa de rodagem de duas vias com sentidos opostos.

7. Sem que nada o fizesse prever, o veículo TA que circulava na única via de sentido oposto, saiu da sua via, transpôs as linhas longitudinais descontínuas, ocupando a via em que circulava o veículo FH.

8.  Apesar dos avisos sonoros feitos pela condutora do veículo FH, a condutora de veículo TA, veio a embater no veículo FH dentro da via em que circulava.

9.  Ambos os veículos se encontram a ocupar a via reservada ao sentido contrário, com o esclarecimento que tal se verifica no momento após a posição final após o embate.

10. A GNR foi chamada ao local, tendo elaborado o respetivo auto.

11. O custo estimado de reparação do veículo FH é de € 18.224,64, com o esclarecimento que a estimativa foi feita sem o veículo ser desmontado.

12. A viatura do autor é de marca BMW, modelo Série 3 Versão 320D, do ano de fabrico Fevereiro de 2008, a gasóleo, com 136.086Kms marcados no conta-quilómetros.

13. Tinha, à data do acidente, um valor de mercado de € 14.500,00.

14. O salvado desse veículo após o acidente valia € 7.122,00.

15. Na sequência da peritagem realizada na oficina B... SA, em 03.01.2019, a Ré comunicou ao Autor que ainda não tinha elementos que lhe permitissem assumir ou declinar a responsabilidade, mas independentemente da decisão que viesse a tomar, a viatura não poderia ser reparada, pois o valor dos danos estimados (€ 18.224,64) era substancialmente superior ao valor venal da viatura antes do acidente que ascendia a € 14.500,00.

16. Nessa missiva, a Liberty indicava que o valor do salvado era de € 7.122,00, IVA incluído, bem como o nome da pessoa interessada no salvado.

17.  O Autor vive numa rua afastada do centro da localidade, não tendo perto padarias, mercearias e supermercados, bancos, cafés, entre os demais estabelecimentos comerciais.

18.  Era com o seu veículo automóvel que o Autor se deslocava para fazer as tarefas essenciais ao seu quotidiano, nomeadamente, para o transporte das compras de bens para a sua habitação e deslocações para tratar de assuntos do seu interesse e para o trabalho.

19. A falta do veículo traz cansaço e desconforto ao Autor para a realização das suas tarefas quotidianas.

20. No ano de 2019 vence o Imposto Único de Circulação (IUC).

21. A Autora em resultado do acidente, sofreu dores, não conseguia dormir, ficou com receio de voltar a conduzir, falando constantemente do acidente.

22. A Autora foi transportada ao hospital.

23. Teve um hematoma na zona do peito, que demorou três meses a desaparecer, na sequência do acidente e que a fazia sentir-se mal e, por via disso, escondia o seu corpo e evitava usar roupas de que gostava, mas que deixavam ver tal marca.

24.  A Autora gastou a quantia de € 7,43 em medicamentos em resultado do acidente.


Factos Não Provados

1. O veículo FH aquando do embate encontrava-se totalmente colocado na sua faixa de rodagem.

2. A condutora do TA nada fez, perante os sinais sonoros de aviso.

3.  Um veículo de iguais caraterísticas e qualidades ao do Autor (BMW 3 serie) tem um custo, em 30 dias de aluguer, entre € 2.772,27 e € 3.032,67 (fora dos períodos de férias).

4. O facto de o veículo estar imobilizado priva também o autor de atividades de lazer.


Conhecendo:


I


Em primeiro lugar, vejamos em matéria de recorribilidade do acórdão impugnado.

Não nos encontramos no âmbito de um recurso de revista excepcional, pese embora a alusão a essa modalidade do recurso de revista, na forma como foi recebido na Relação.

As alegações de recurso são claras ao aludirem a que o recurso, na parte em que impugna o decidido em matéria de dano da privação do uso, é permitido porque a fundamentação apresentada é essencialmente diferente da fundamentação apresentada em 1.ª instância (veja-se supra em V), ou seja, porque o recurso não é excepcionado pelo disposto no art.º 671.º n.º3 do CPCiv.

Além do mais, nenhuma referência é feita no recurso à modalidade da revista excepcional, nesse âmbito cabendo, pois, inteira procedência ao invocado por contra-alegações.

Todavia, as fundamentações apresentadas são idênticas, na substância.

Em 1.ª instância fixou-se a indemnização no valor de € 20 diários, atendendo a que a indemnização tem por finalidade o ressarcimento de prejuízos sofridos, não podendo conduzir a um gritante desequilíbrio da prestação relativamente ao dano, sob pena de enriquecimento injusto do lesado; o limite máximo deve assim ser o preço de um veículo novo; consideraram-se as características do veículo, o concreto uso e a forma como foi substituído.

Na Relação, atendeu-se necessariamente ao argumentário de apelação e considerou-se que o Recorrente não provou dispêndio efectivo com o aluguer de veículo similar; a considerar-se um dispêndio efectivo, tal levaria ao enriquecimento injusto do lesado; consideraram-se os valores habitualmente considerados pela jurisprudência e concluiu-se afirmando que “não é merecedora de qualquer censura a decisão do tribunal recorrido”.

Não existe portanto qualquer espécie de “fundamentação essencialmente diferente” (ao contrário da alegação constante de V) supra), nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 671.º n.º3 do CPCiv, razão pela qual, nesta matéria, e na verificação de dupla conforme, não existe qualquer possibilidade de recorrer ao recurso de revista, cabendo do mesmo não conhecer.



II


Em matéria das nulidades apontadas ao acórdão, encontra-se em causa, por um lado, o vício da omissão de pronúncia, por via da forma como ficou fundamentada a resposta “não provado” à matéria de facto supra referenciada em 3.

Por outro lado, diz-se que os fundamentos se encontram em oposição com a decisão (nulidade da sentença – art.º 615.º n.º1 al.c) do CPCiv), pois que, apesar da invocada inaudibilidade da gravação, também se invoca ser a mesma gravação audível “na parte que interessa”.

Alega-se finalmente que o acórdão se pronunciou em excesso (art.º 615.º n.º1 al.d) 2.ª parte do CPCiv), posto que discorreu sobre factos que sustentariam o valor do dano da privação do uso (que o A. não é uma empresa de aluguer de automóveis, que ao valor do dano deveria ser retirado o valor do lucro, que o Autor teve poupança em custos de combustível e desgaste de material), factos esses não alegados no processo, nem constantes da sentença de 1.ª instância.

Destas nulidades se conheceu no acórdão em Conferência proferido na Relação, tendo as mesmas quedado indeferidas.

Como é jurisprudência corrente do Supremo Tribunal de Justiça, a admissibilidade de qualquer recurso é prévia aos fundamentos da revista a que se reporta o disposto nas diversas alíneas do disposto no n.º1 do art.º 674.º CPCiv e mesmo prévia à possibilidade da invocação de nulidades em recurso, no caso, as nulidades que se reportem à própria apreciação feita no julgamento da apelação - ver, entre muitos outros, Acs. S.T.J. de 18/1/2022, p.º 235/14.9T8PVZ.P1.S1 (rel. Jorge Dias), de 2/3/2021, pº 4534/17.0T8LOU.P1.S1 (rel. Graça Mª Amaral), ou de 26/11/20, p.º 11/13.6TCFUN.L2.S1 (rel. Maria da Graça Trigo).

Interposta revista com arguição de qualquer desses vícios do acórdão, integrando os mesmos o objecto do recurso de apelação, o seu percurso fica dependente do que for decidido relativamente ao destino do próprio recurso, ou seja, apenas se este for admissível poderão ser eventualmente objecto de conhecimento por parte do Supremo Tribunal de Justiça.

Ora, o acórdão recorrido decidiu nos exactos termos, ou semelhantes, aos da decisão proferida em 1.ª instância, quanto às questões pendentes do recurso de apelação (como supra sublinhámos), pelo que, e por força da conhecida norma do art.º 671.º n.º3 CPCiv, a revista normal não poderá fundar-se na invocação dos citados erros de julgamento ou nulidades.


Concluindo:

I - A admissibilidade de qualquer recurso é prévia aos fundamentos da revista a que se reporta o disposto nas diversas alíneas do disposto no n.º1 do art.º 674.º CPCiv e mesmo prévia à possibilidade da invocação de nulidades em recurso, no caso, as nulidades que se reportem à própria apreciação feita no julgamento da apelação, pelo que, interposta revista com arguição de qualquer desses vícios do acórdão, apenas se for admissível revista poderão as nulidades de sentença/acórdão ser eventualmente objecto de conhecimento.

II – Se o acórdão recorrido decidiu nos exactos termos, ou semelhantes, aos da decisão proferida em 1.ª instância, quanto às questões pendentes do recurso de apelação, por força da norma do art.º 671.º n.º3 CPCiv, a revista normal não poderá fundar-se na invocação de erros de julgamento ou nulidades.


Decisão:

Não se admite o interposto recurso de revista.

Custas pelo Recorrente.


S.T.J., 19/1/2023

                                                          

Vieira e Cunha (Relator)                                              

Ana Paula Lobo                                              

Afonso Henrique Cabral Ferreira