Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A1984
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AFONSO CORREIA
Descritores: FALÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITO HIPOTECÁRIO
CRÉDITO DA SEGURANÇA SOCIAL
HIPOTECA LEGAL
CRÉDITO LABORAL
Nº do Documento: SJ20061214001984
Data do Acordão: 12/14/2006
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I – As hipotecas legais não se extinguiam com a declaração de falência por não abrangidas na previsão do art. 152.º do CPEREF.
II – Por disposição expressa da al. b) do n.º 3 art. 12.º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, e al. b) do n.º 4 do art. 4.º da Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto, os créditos laborais garantidos por privilégio imobiliário geral são graduados … antes dos créditos devidos à segurança social.
III – Esta prevalência não afecta a segurança jurídica inerente à hipoteca voluntária porque a hipotecas legal da Segurança Social não garante qualquer financiamento feito à falida.
IV - Apesar de garantidos por hipoteca legal, os créditos da Segurança Social aqui em causa e preteridos não deixam de ser créditos devidos à segurança social à frente dos quais o Legislador mandou, expressamente, graduar os créditos laborais, bem sabendo que havia dotado tais créditos com hipoteca legal e outros privilégios mandados caducar em caso de falência do devedor.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

Nos autos para verificação do passivo que correm seus termos por apenso ao processo especial para declaração de falência de "J...– Empresa Têxtil, Ldª", foram reclamados, nos termos dos arts. 188º, n.º 1 e 4, e 191º, n.º 2, do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e Falência (CPEREF), créditos vários, vindo a ser julgados verificados os seguintes:

Na sentença de graduação entendeu-se, na parte agora com interesse, que as hipotecas legais de que beneficiava a Segurança Social se extinguiram com a declaração de falência, nos termos do art. 152º do CPEREF, e que só os créditos dos trabalhadores gozavam de privilégio.
Pelo que se graduou, em primeiro lugar e à frente dos créditos da Segurança Social, os referidos créditos dos trabalhadores.

Apelou a Segurança Social e a Relação de Guimarães deu-lhe razão:

- decidiu que os créditos da Segurança Social, por contribuições e juros de mora, beneficiavam das registadas hipotecas legais e não podiam, por isso, ser considerados créditos comuns; e
- prevaleciam sobre os créditos dos trabalhadores, por estes estarem garantidos por privilégio geral, ainda que imobiliário.

Pelo que, e relativamente aos imóveis apreendidos, graduou, logo depois do crédito do trabalhador AA que beneficiava do privilégio imobiliário especial estabelecido no art. 377.º do Código do Trabalho, o crédito do Centro Distrital de Segurança Social de Braga, coberto pelas hipotecas legais registadas e, a seguir, os créditos dos trabalhadores acima descritos sob os números 29 a 32 e 34 a 67.
Foi a vez de estes trabalhadores pedirem revista para repristinação da sentença, pois os seus créditos gozam do privilégio especial previsto no Código do Trabalho, anda que constituídos antes da sua entrada em vigor, preferem às hipotecas, nos termos das Leis 17/86 e 96/2001, e estas hipotecas extinguiram-se com a declaração de falência.
Como se vê da alegação que coroaram com estas conclusões:

A) - Vem o presente recurso interposto do, aliás, douto acórdão, na parte em que é desfavorável para os recorrentes, ou seja, na parte em que os Meritíssimos Desembargadores entenderam, pelo produtos da venda dos bens imóveis que compõem a massa falida, graduar em terceiro lugar os créditos laborais dos ora recorrentes, após os créditos do Centro Distrital da Segurança Social de Braga, entre os quais os que se encontram garantidos por hipoteca legal;
B) - Para decidir, como decidiram, os ilustres Desembargadores, enten-deram que os créditos laborais dos ora recorrentes gozam do privilégio creditório mobiliário e imobiliário geral, instituído pelo art° 12 da Lei n.° 17/86, de 14 de Junho;
C) - Por outro lado, entende, também, que a hipoteca legal constituída a favor do Centro Distrital da Segurança Social de Braga não se extingue com a declaração de falência;
D) - Perfilhando o entendimento supra descrito, os Ilustres Desembar-gadores entenderam aplicar aos privilégios imobiliários gerais, que gozam segundo ele os créditos laborais, a disciplina consagrada no art° 749° do Código Civil, em detrimento do previsto no art° 751° o do mesmo diploma, fundamen-tando, em síntese, pelo facto de estes privilégios não serem conhecidos aquando do inicio da vigência do actual Código Civil;
E) - Salvo o devido respeito por entendimento diverso, afigura-se que tal decisão não fez a melhor interpretação e aplicação dos textos legais atinentes;
F) - A Lei n° 99/2003, de 27 de Agosto, que aprovou o Código do Trabalho, em vigor desde o dia 01/12/2003, nos termos do seu art° 21°, n.° 1, revoga os diplomas respeitantes às matérias nele reguladas, nomeadamente a já citada lei n° 17/86, de 14 de Junho;
G) - Nos termos do art° 377°, n° 1, aI. b) do Código do Trabalho, ao contrário da anterior legislação em vigor, confere aos créditos laborais o privilégio mobiliário especial sobre os bens imóveis dos empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade;
H) - Dispondo, ainda, o mesmo preceito legal, na al. b) do n° 2 que os créditos com privilégio imobiliário especial é graduado antes dos créditos referidos no art° 748° do Código Civil e, ainda, dos créditos de contribuições devidas à Segurança Social;
I) - Por força do art° 12°, n° 2, 2.ª parte do Código Civil, o disposto no art° 377° do Código do Trabalho aplica-se a todos os créditos dos trabalhadores emergentes do contrato de trabalho e da sua violação e cessação, mesmo que constituídos anteriormente à entrada em vigor do mencionado Código, como sucede, in casu;
J) - Ora, resulta claramente dos autos (designadamente pelo teor das certidões prediais, do auto de apreensão) que os bens imóveis da falida dizem unicamente respeito às suas instalações fabris, local onde os ora recorrentes prestaram a sua actividade até à data da cessação dos respectivos contratos de trabalho;
L) - Assim, nos termos das disposições conjugadas do art° 377° do código do Trabalho e 751 ° do Código Civil, os créditos laborais dos ora recorrentes, por gozarem de privilégio imobiliário especial e consequentemente, prevalecendo sobre os direitos reais de garantia (nomeadamente, a hipoteca legal), devem ser graduados em primeiro lugar pelo produto da venda dos bens imóveis que compõem a massa falida;
M) - Mas mesmo que se considerasse correcto o entendimento perfilhado pelo acórdão recorrido, no sentido de aplicar aos créditos laborais dos ora apelantes o regime jurídico previsto na lei n° 17/86, de 14 de Junho e a Lei n° 96/2001, de 20 de Agosto, o que se não concede, sempre estes prevaleceriam sobre a hipoteca;
N) - Com efeito, de acordo com o preceituado nos supra mencionados diplomas legais, estabelecem que todos os créditos emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação gozam de privilégio mobiliário geral e imobiliário geral;
O) - Apesar do Código Civil ter apenas previsto privilégios imobiliários especiais (cfr. art°s 743° e 744° do Código Civil), perfilham os ora recorrentes o entendimento consagrado nos Acórdãos do STJ de 18/11/1999 (BMJ, n.° 491) e do TRP, de 22/10/2001 e 26/11/2001, nos termos dos quais, na falta de norma específica da lei geral (para o qual remete o art° 1 °, n° 2 da citada lei n° 17/86, de 14/06) impõe-se a aplicação por via analógica do disposto no art° 751° do Código Civil aos privilégios imobiliários gerais;
P) - Tal entendimento encontra-se claramente espelhado nos art° 12°, n° 3 da citada Lei n° 17/86 e do art° 4, n° 3 da Lei n° 96/2001, quando consagra que o privilégio aí concedido prevalece sobre os privilégios imobiliários especiais previsto no art° 748° do Código Civil, sendo certo que estes preferem aos direitos reais de garantia, conforme dispõe o art° 751 ° do Código Civil;
Q) - Reforçando este entendimento pronunciou-se o próprio Tribunal Constitucional, no Acórdão n° 498/2003/T, de 02/10/2003 ao considerar não haver identidade entre os créditos da Lei n° 17/86 e os créditos da Segurança Social e que estando em causa o direito fundamental dos trabalhadores à sua remune-ração e à sua sobrevivência condigna, que privilégio imobiliário geral procura assegurar, justifica-se a preferência deste à hipoteca de harmonia com o art° 751 ° do Código Civil;
R) - Dado o exposto, pelas razões aduzidas e uma vez que pela aplicação do art° 152° do CPEREF, os créditos do Estado, incluindo a hipoteca legal, extinguem-se com a declaração de falência, devem, mesmo nesta hipóteses, os créditos laborais dos ora recorrentes serem graduados em primeiro lugar, pelo produto da venda dos bens imóveis, passando os créditos do Centro Distrital da Segurança Social de Braga a ser exigíveis apenas como créditos comuns;
S) - Decidindo em contrário, o douto acórdão recorrido não interpretou, nem aplicou correctamente os preceitos legais atinentes, nomeadamente os art°s 377.° do Código do Trabalho, art° 12° da Lei n° 17/86, de 14 de Junho, com as alterações constantes da Lei 96/2001, de 20 de Agosto, art° 748°, 749° e 751° do Código Civil
Dado o exposto, e com o douto suprimento de V. Exas, deve ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, ser revogado o douto acórdão recorrido, na parte em que procedeu à graduação dos créditos pelo produto da venda dos bens imóveis e ordenado que os créditos laborais dos ora recorrentes sejam graduados em primeiro lugar, com o que se fará JUSTIÇA!!

Não houve resposta.

Colhidos os vistos de lei e nada obstando, cumpre decidir as questões sub-metidas à nossa apreciação, as de saber se

I - o privilégio creditório estabelecido no art. 377.º do Código do Trabalho é aplicável aos créditos laborais constituídos antes da sua entrada em vigor – conclusões F a L;
II – o privilégio imobiliário geral estabelecido nas Leis 17/86 e 96/2001 prefere à hipoteca legal, ainda que anteriormente registada – conclusões M a Q; e se
III – as hipotecas legais de que beneficia a Segurança Social se extinguem com a declaração de falência, nos termos do art. 152.º do CPEREF – conclusão R.
Mas antes e para tanto é mister ver estarem assentes, além da reclamação e verificação de créditos antes examinada, os seguintes
factos:

- Por sentença de 2.7.2004 foi declarada a situação de insolvência da requerida Jodimonte.

- Foi realizada a apreensão:

- de bens móveis - fls. 1071 a 1075;

- de bens imóveis:
Verba n.° 1 - prédio urbano, sito no lugar de Cães de Pedra, freguesia de Creixomil, concelho de Guimarães, composto de rés-do-chão, andar e sobre piso, destinado a actividades económicas, com 3 divisões e 2 casas de banho no rés-do-chão, 4 divisões no andar e 1 divisão no entre piso, tem a área coberta de 1665 m2 e logradouro com área de 1693 m2. Confronta a Norte com Rua Cães da Pedra, a Sul e Nascente com terreno próprio e a Poente com Rua do Colégio Militar. Encontra-se inscrito na matriz urbana respectiva sob o art.° 1642 e na 28 Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o n.° 01429/ 16.11.99;

Verba n.° 2 - o prédio urbano, sito no lugar de Cães de Pedra, freguesia de Creixomil, concelho de Guimarães, composto de rés-do-chão, destinado a actividades económicas, com 3 divisões, sendo uma garagem, uma destinada a tinturaria e outra a caldeira, tem a área de 374 m2. Confronta a Norte com Cães da Pedra, a Sul e Nascente com terreno de H... J... F... e a Poente com prédio próprio. Encontra-se inscrito na matriz urbana respectiva sob o art.° 1641, e na 2a Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o n.° 01429/16.11.99.

- A favor do Centro Regional de Segurança Social do Norte encontra-se inscrita uma hipoteca legal sobre os dois prédios urbanos acima descritos, para garantia do pagamento das contribuições de Dezembro de 1992 a Agosto de 1999, a que acrescem juros de mora vencidos até Novembro de 1999;

- A favor do Centro Regional de Segurança Social do Norte encontra-se inscrita uma hipoteca legal sobre os dois prédios urbanos acima descritos, para garantia de contribuições de Setembro de 1999 a Outubro de 2000, a que acrescem os juros de mora vencidos até Novembro de 2000;

- A favor do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social - Delegação de Braga, encontra-se inscrita uma hipoteca legal sobre os dois prédios urbanos acima descritos, para garantia de pagamento de contribuições e respectivos juros relativos a Novembro de 2000 a Junho de 2001, Agosto de 2001 a Janeiro de 2003 e juros vencidos até Março de 2003.

- Foi fixada em 31.10.2003 a data da falência.

Analisando o aplicável Direito

A I questão – da aplicação imediata do Código do Trabalho aos créditos dos trabalhadores constituídos antes da sua entrada em vigor – está resolvida por norma expressa, o art. 8.º, n.º 1, da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, que aprovou (art. 1.º) o Código do Trabalho.

Nos termos do art. 3.º da dita Lei, o Código do Trabalho entrou em vigor em 1 de Dezembro de 2003.

Como dito no art. 8.º, n.º 1 da mesma Lei n.º 99/2003, e sob a epígrafe “aplicação da lei no tempo”, sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, ficam sujeitos ao regime do Código do Trabalho os contratos de trabalho e os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho celebrados ou aprovados antes da sua entrada em vigor, salvo quanto às condições de validade e aos efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento.

Tendo a cessação dos contratos de trabalho, fonte dos verificados créditos, ocorrido antes da entrada em vigor do Código do Trabalho, com a data da falência fixada em 31.10.2003, tratando-se de efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento, não lhes é aplicável o Código do Trabalho, em vigor desde 1.12.2003.

O mesmo sucede se entendermos que, conforme resulta do disposto nos arts. 3.º e 21.º, 2, e) da Lei 99/2003, de 29.7, o art. 377.º referido apenas entrou em vigor em 28.8.2004 (30 dias após a publicação da Lei 35/2004, de 27.8, que regulamentou o Cód. de Trabalho).
É o que se ensina no acórdão do STJ de 21.9.06, "o art. 377.º do referido Código ...., é aplicável a todos os direitos de crédito dos trabalhadores constituídos desde o dia 28 de Agosto de 2004, independentemente de derivarem de relações jurídicas laborais ou de instrumentos de regulação colectiva de trabalho celebrados ou aprovados conforme os casos, antes ou depois daquela data.
Apenas se exceptuam do mencionado regime, com a consequência de dever aplicar-se o pertinente regime anterior, os direitos de crédito laborais que se tenham constituído antes de 28 de Agosto de 2004 no âmbito de contratos de trabalho que se tenham extinguido anteriormente.
Assim, não é aplicável aos direitos de crédito laborais constituídos antes de 28 de Agosto de 2004 por via de contratos que anteriormente se tenham extinguido" - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (relatado pelo Ex.mo Cons.º Custódio Montes), de 30.11.2006, no Processo 06B3699, e locais nele citados. .
Pelo que se desatende o concluído de F a L.

A III questão – da extinção das hipotecas legais da Segurança Social, nos termos do art. 152.º do CPEREF – tem sido decidida por este Supremo Tribunal em impressionante uniformidade, sempre no sentido de que aquela norma se refere, apenas, aos privilégios creditórios e não abrange, nem na sua letra nem no seu espírito, as hipotecas legais.

Basta ver o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça (relatado pelo Ex.mo Cons.º Salvador da Costa), de 21/09/2006, no Processo 06B2904 da base de dados do ITIJ, nesta parte assim sumariado:
O artigo 152º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência não comporta a extinção por efeito da declaração da falência do direito de hipoteca legal da titularidade de instituições de segurança social.

E justificado:
«Entre as hipotecas contam-se as legais, que resultam imediatamente da lei, isto é, independentemente da vontade das partes, apenas sendo pressuposto da sua constituição a existência da obrigação cujo cumprimento visam garantir (artigo 704º do Código Civil).
O recorrente constituiu, nos termos da lei, designadamente por via do registo predial, hipoteca legal sobre o prédio que foi apreendido para a massa falida em função do direito de crédito relativo a contribuições para a segurança social que tinha sobre Empresa-B (artigo 687º do Código Civil).
Tendo o referido direito de hipoteca sido objecto de registo, ele produz efeitos em relação à massa falida e a terceiros, designadamente no confronto com os outros credores reclamantes que com o recorrente concorrem sobre o mencionado imóvel (artigo 687º do Código Civil).
A hipoteca consubstancia-se em garantia real de cumprimento de obrigações presentes ou futuras, condicionais ou incondicionais, conferindo ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (artigo 686º do Código Civil).
Em geral, o direito de crédito do credor hipotecário relativamente a determinado imóvel só cede perante os credores que disponham de algum privilégio imobiliário especial ou de prioridade de registo.
Com a declaração de falência extinguem-se imediatamente, passando os respectivos créditos a ser exigidos como créditos comuns, os privilégios creditórios do Estado, das autarquias locais e das instituições de segurança social, excepto os que se constituírem no decurso do processo de recuperação da empresa ou de falência (artigo 152º do CPEREF).
A estrutura do direito hipoteca legal e dos privilégios creditórios não especiais é essencialmente distinta, certo que no primeiro caso se trata de garantia real, naturalmente com a vertente de sequela, e, no segundo, do que se trata é de mera preferência de pagamento, ou seja, somos confrontados com conceitos jurídicos distintos.
É de presumir que a lei utiliza o conceito privilégios no sentido que dela própria decorre, pelo que a conclusão não pode deixar ser a de que o preceito não contém um mínimo literal susceptível de sustentar a abrangência das hipotecas legais.
Em face disso, não faz qualquer sentido que o intérprete convoque, de entre elementos extraliterais de interpretação, o fim da lei ou o seu escopo finalístico com vista à sua abrangência das hipotecas legais.
Com efeito, não estamos perante situação em que a letra da lei fica aquém do seu espírito, que justifique a extensão daquela, isto é, não é caso de operar, na espécie, a interpretação extensiva do normativo em análise.
Ainda que houvesse um mínimo literal que permitisse a interpretação extensiva do normativo em análise em termos de abranger alguma garantia real de cumprimento de obrigações, certo é que tal não resultaria do seu espírito, ou seja, do fim visado pelo legislador ao editar o preceito em causa, em termos de abrangência das hipotecas legais, certo que, além do mais, constam do registo.
Não faz, por isso, qualquer sentido a argumentação da paridade de razão com vista a integrar no normativo em análise aquilo que os seus termos, designadamente o seu elemento literal, não permite.
Do que se trata é de situação intencionalmente não inserida em previsão legal e não de omissão a carecer de integração analógica.
Inexiste, pois, fundamento legal para a aplicação analógica do normativo em análise à garantia real de cumprimento de obrigações hipoteca legal, porque entre a hipótese relativa aos privilégios que consta da lei não ocorre a necessária semelhança em relação à hipótese das preferências de pagamento privilégios creditórios (artigo 10º,n.º 2, do Código Civil)».
O assim decidido tem sido repetidamente afirmado, como se vê, sem preo-cupação de levar muito longe a averiguação, em 15.3.2005 (Ex.mo Cons.º Faria Antunes), 16.6.2005 (Saudoso Cons.º Araújo Barros) e 21.2.2006 (Ex.mos Conselheiros João Camilo e Pereira da Silva).

Pelo que, sem necessidade de outras considerações, se desatende o concluído em R.

Por fim, a II questão – do conflito entre a hipoteca legal dos créditos da Segurança Social e o privilégio imobiliário geral dos créditos laborais – também tem sido decidida por este Supremo Tribunal no sentido da decisão da Relação, colocando os créditos garantidos por hipoteca à frente dos que, como o dos trabalhadores, beneficiam de privilégio imobiliário geral.

A questão ora em apreço – mas referida a hipoteca voluntária - foi tratada no Acórdão da 6.ª secção, de 25.10.2005, publicado na Col. Jur. (STJ) 2005-III-86 e ss, com voto de vencido do aí e agora primitivo Relator.
Depois dele foi publicado o Acórdão de 8.11.2005, relatado pelo Ex.mo Conselheiro Nuno Cameira, e o de 25.11.2005, relatado pelo Ex.mo Conselheiro Oliveira Barros, todos eles no sentido seguido pela decisão da Relação ora em apreciação e que se não vê razões para alterar.
Também em 21.9.2006, por Acórdão relatado pelo Ex.mo Cons.º Salvador da Costa, e em 30.11.2006, por Acórdão relatado pelo Ex.mo Cons.º Custódio Montes, identificado na nota 1, se decidiu no indicado sentido.

Porém, temos para nós que, ao menos neste caso em que se confrontam créditos laborais com privilégio imobiliário geral e da Segurança Social por contribuições, a razão está do lado de quem gradua aqueles à frente destes, apesar da hipoteca legal que os cobre.

É do seguinte teor o artigo 12.° da Lei 17/86:

(Privilégios creditórios)

1 - Os créditos emergentes de contrato individual de trabalho regulados pela presente lei gozam dos seguintes privilégios:
a) - Privilégio mobiliário geral;
b) - Privilégio imobiliário geral.
2 - Os privilégios dos créditos referidos no n.° 1, ainda que resultantes de retribuições em falta antes da entrada em vigor da presente lei, gozam de preferência nos termos do número seguinte, incluindo os créditos respeitantes a despesas de justiça, sem prejuízo, contudo, das privilégios anteriormente constituídos, com direito a ser graduados antes da entrada em vigor da presente lei.
3 - A graduação dos créditos far-se-á pela ordem seguinte:
a) - Quanto ao privilégio mobiliário geral, antes dos créditos referidos no n.° 1 do artigo 747.° do Código Civil, mas pela ordem dos créditos enunciados no artigo 737.° do mesmo Código;
b) - Quanto ao privilégio imobiliário geral, antes dos créditos referidos no artigo 748.° do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à Segurança Social.
4 - Ao crédito de juros de mora é aplicável o regime previsto no número anterior.

A Lei nº 96/2001, de 20 de Agosto, reforçou os créditos dos trabalhadores, dando nova redacção ao art. 12º da Lei nº 17/86 e acrescentando o regime criado pelo art. 4º:

«O artigo 12º da Lei nº 17/1986, de 14 de Junho, passa a ter a seguinte redacção:
«Artigo 12º [...]
1 - ..........................................
2 - Os privilégios dos créditos referidos no nº 1, ainda que resultantes de retribuições em falta antes da entrada em vigor da presente lei, gozam de preferência nos termos do número seguinte, incluindo os créditos respeitantes a despesas de justiça.
3 - ..........................................
4 - .........................................»

Artigo 4º - Créditos dos trabalhadores exceptuados da Lei nº 17/86, de 14 de Junho

1 - Os créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação não abrangidos pela Lei nº 17/1986, de 14 de Junho, gozam dos seguintes privilégios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário geral.
2 - Exceptuam-se do disposto no número anterior os créditos de carácter excepcional, nomeadamente as gratificações extraordinárias e a participação nos lucros das empresas.
3 - Os privilégios dos créditos referidos no n.º 1, ainda que sejam preexistentes à entrada em vigor da presente lei, gozam de preferência nos termos do número seguinte, sem prejuízo, contudo, dos créditos emergentes da Lei nº 17/1986, de 14 de Junho, e dos privilégios anteriormente constituídos com direito a ser graduados antes da entrada em vigor da presente lei.
4 - A graduação dos créditos far-se-á pela ordem seguinte:
a) Quanto ao privilégio mobiliário geral, antes dos créditos referidos no nº 1 do artigo 747º do Código Civil, mas pela ordem dos créditos enunciados no artigo 737º do mesmo Código;
b) Quanto ao privilégio imobiliário geral, antes dos créditos referidos no artigo 748º do Código Civil e ainda dos créditos devidos à segurança social.
5 - Ao crédito de juros de mora é aplicável o regime previsto no artigo anterior.

Nos termos do artigo 377° do Código do Trabalho

Privilégios creditórios

1 - Os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios:
a) - Privilégio mobiliário geral;
b) - Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.
2 - A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:
a) - O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes dos créditos referidos no n° 1 do artigo 747° do Código Civil;
b) - O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes dos créditos referidos no artigo 748° do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à segurança social.

No Código do Trabalho Anotado, 3ª edição, de Pedro Romano Martinez, Luís Miguel Monteiro, Joana Vasconcelos, Pedro Madeira de Brito Guilherme Dray E Luís Gonçalves da Silva, na pág. 613 consta:
“São três as novidades relativamente ao direito anterior. A primeira consiste no alargamento do âmbito de aplicação dos privilégios creditórios a todos os “créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador”. Surge-nos, depois, a graduação do privilégio mobiliário geral “antes dos créditos referidos no nº 1 do artigo 747º do Código Civil claramente diferente da que constava dos artigos 12.°, n.° 3, alínea a), da LSA e 4.°, n.°4, alínea a), da Lei n.° 96/2001. Refira-se, finalmente, a substituição do privilégio imobiliário geral, criado pelo artigo 12.°, n.° 1, alínea b), da LSA, e alargado a todos os créditos emergentes do contrato de trabalho pela alínea b) do mesmo preceito, por um privilégio imobiliário especial sobre os “bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade, graduado nos mesmos termos em que o era aquele”.

Destes três conjuntos de normas resulta evidente a contínua e crescente preocupação do Legislador em dotar os créditos laborais de garantias que os colocavam, na fila dos credores, à frente do Estado e da Segurança Social.
…”o disposto no nº 3, al. b) do art. 12° da Lei nº 17/86, de 14/6 e nº 4, al. b) do art. 4º da Lei nº 96/2001, de 20/8, determina a aplicabilidade do regime previsto no art. 751° do Código Civil ao privilégio imobiliário por eles criado, na medida em que determina que a graduação dos créditos por ele garantidos – os créditos laborais - haverá de efectuar-se à frente dos créditos mencionados no art. 748º do Código Civil, créditos estes (do art. 748º) que beneficiam de privilégio imobiliário (especial).
A entender-se inaplicável o regime do art. 751° do C. Civil, criar-se-ia uma dificuldade de conjugação de tais normativos sempre que houvesse que proceder à graduação de créditos privilegiados referidos no art. 748° do C. Civil, créditos garantidos por hipoteca e créditos por salários em atraso, na medida em que estes cederiam, então, perante a hipoteca e aqueles (os do art. 748° do C. Civil) teriam de ficar à frente da hipoteca por força do art. 751º do C. Civil que não podia deixar de se lhes aplicar, tornando-se plenamente ineficaz (letra morta) a norma contida naqueles art. 12º, nº 3, al. b) da Lei nº 17/86 e 4º, n° 4, al. b) da Lei nº 96/2001, relegados que ficariam os créditos por salários em atraso para depois da hipoteca e, por consequência, para depois dos créditos referidos no art. 748º do C. Civil, prejudicando ou impedindo a aplicabilidade de tais preceitos legais ”.

Em suma: ao mandar (Leis 12/86, 96/2001 e Código do Trabalho) graduar os créditos laborais antes dos créditos do Estado (art. 748º) que preferem à hipoteca (art. 751º) o Legislador quis, sem sombra de dúvida, colocar os créditos do trabalho à frente da hipoteca.

Nem se veja neste comando legal assim interpretado sombra de inconstitu-cionalidade.
São do Acórdão da Relação do Porto (Ex.mo Desembargador Fonseca Ramos) de 08-11-2004, na base de dados do ITIJ, Processo nº 0455436, Documento nº RP200411080455436, estas palavras:

«Poderíamos, citar a doutrina social da Igreja e as encíclicas papais “Rerum Novarum (1891), Quadragésimo Anno (1931), Mater et Magistra (1961) e Populo-rum Progressio (1967) … para sustentar que o direito ao trabalho e ao salário são dos valores mais caros à dignidade humana e que constitui “pecado social” não pagar a quem trabalha, mas quedamo-nos pela Lei Fundamental que, a par da consagração do princípio da igualdade e da confiança, afirma no art. 59º, nº 1, a):

“Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito:
a) À retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna”.

E no nº 3:
“os salários gozam de garantias especiais, nos termos da lei”.

Considerar que a mora ou incumprimento da retribuição salarial, por não ser conhecida da generalidade dos credores, pode “surpreendê-los” no momento em que exercem o seu direito de reclamação creditória e, por isso, constituir um “ónus oculto” é, com o devido respeito, insustentável.
O empresário sabe que é um seu dever jurídico do maior relevo pagar a quem trabalha; as instituições previdenciais têm o dever de fiscalizar a situação contributiva de empregadores e empregados; a inspecção do trabalho deve assegurar o cumprimento da legislação laboral, e as entidades financiadoras, sejam elas bancos ou locadoras financeiras, dispõem de meios para acautelarem os seus interesses quando financiam as empresas. Assim, os agentes económicos sabem, ou podem saber, da real situação das empresas, não sendo razoável alegarem surpresa a menos que a falência seja fraudulenta. Importa é que sejam diligentes e cautos.
O princípio constitucional da igualdade – art. 13º da C. R. P. – não desprotege os trabalhadores com salários em atraso, sob pena de conceder um injustificado “privilégio”, lá onde mais protecção se justifica, quando existe uma situação socialmente dramática, intolerável num estado de direito, qual seja a de não se dotar de garantia sólida e exequível o direito à retribuição salarial, tutelando-o com sólida armadura jurídica.

É certo que o princípio da segurança propiciado pelo registo desvanece a possibilidade de “surpresa”, já que a sua função publicística evidencia a situação dos prédios, mormente, em caso de existência de garantia hipotecária.

Com fundamento na violação do princípio da confiança … o Tribunal Constitucional … [concretamente no Acórdão nº 363/2002, no DR IA, de 16.10.2002, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do artigo 11° do Decreto-Lei n°103/80, de 9 de Maio, e do artigo 2° do Decreto-Lei nº 512/76, de 3 de Julho, na interpretação, segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à Segurança Social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751° do Código Civil.

Mas o mesmo Tribunal Constitucional, não podendo desconsiderar a protecção que a Lei Fundamental confere ao salário, no seu aresto nº 498/2003, de 22.10, publicado no D.R. II Série de 3.1.2004, pronunciou-se pela não inconstitucionalidade da norma constante da alínea b) do nº 1 do artigo 12º da LSA, “na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela conferido aos créditos emergentes do contrato individual de trabalho prefere à hipoteca”, nos termos do artigo 751° do Código Civil, doutrinando:

«Com efeito, do lado do credor hipotecário está em causa a tutela da confiança e da certeza do direito, constitucionalmente protegidas pelo artigo 2º da Constituição e particularmente prosseguidas através do registo, como se observou, por exemplo, no Acórdão n.º 215/2000 (Diário da República, II série, de 13 de Outubro de 2000)…
Do outro lado, porém, encontra-se um direito constitucionalmente incluído entre os direitos fundamentais dos trabalhadores, o direito à retribuição do trabalho, que visa “garantir uma existência condigna”, conforme preceitua o artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição, e que o Tribunal Constitucional já expressamente considerou como direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (cfr. Acórdão n.º 373/91, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 20, p. 111 e segs. e Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, ed., Coimbra, p. 152, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 318, João Caupers, Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, Coimbra, 1985, p. 141, nota 215 e João Leal Amado, ob. cit., p. 32, nota 44).

O caso dos autos coloca-nos, assim, perante uma situação de conflito entre um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, o direito dos trabalhadores à retribuição do trabalho, e o princípio geral da segurança jurídica e da confiança no direito.

Muito embora a falência da entidade empregadora seja também a falência da entidade devedora, é precisamente este último aspecto, ou seja, a retribuição como forma de assegurar a sobrevivência condigna dos trabalhadores, que permitiria justificar em face da Constituição a solução da norma impugnada, na interpretação aludida.

Acresce ainda que a inclusão, repita-se, para o efeito agora em causa, do direito ao salário e do direito à indemnização por despedimento no âmbito da tutela constitucional do direito à retribuição é a que mais se ajusta à referência constitucional a uma “existência condigna”, exprimindo o que João Leal Amado (ob. cit., p. 22) designa de carácter alimentar e não meramente patrimonial do crédito salarial, neste sentido (ou seja, no confronto com os créditos dos titulares de direitos reais de garantia levados ao registo).

Nesta conformidade, deve entender-se que a restrição do princípio da confiança operada pela norma impugnada não encontra obstáculo constitucional».

«Discorrendo acerca do princípio da democracia social, que não consideramos alheio à complexa problemática do recurso, cabem as conside-rações do Professor Gomes Canotilho, in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 6ª edição, pág. 348:

“Para além da dimensão subjectiva do princípio da democracia social, implícita no reconhecimento de numerosos direitos sociais (direitos subjectivos públicos), o princípio da democracia social, como princípio objectivo, pode derivar-se ainda de outras disposições constitucionais. Desde logo, a dignidade da pessoa humana (cfr. art. 1°) é considerada noutros países como um princípio objectivo e uma “via de derivação” política de direitos sociais.
Do princípio da igualdade (dignidade social, art. 13°), deriva-se a imposição, sobretudo dirigida ao legislador, no sentido de criar condições sociais (cfr., também, art. 9º/d) que assegurem uma igual dignidade social em todos os aspectos (cfr. por ex., arts. 81.°/a, b e d e 93°/c).
Do conjunto de princípios referentes à organização económica (cfr. arts. citados) deduz-se que a transformação das estruturas económicas visa também uma igualdade social.
Neste sentido, o princípio de democracia social não se reduz a um esquema de segurança, previdência e assistência social, antes abrange um conjunto de tarefas conformadoras, tendentes a assegurar uma verdadeira “dignidade social” ao cidadão e uma igualdade real entre os portugueses (art.9º/d».
... estando em causa direitos fundamentais aparentemente colidentes, como sejam o direito de confiança ínsito no estado de direito e o direito ao salário, tendo este um valor mais relevante que aqueloutro, por contender com o indeclinável direito a uma vida digna e ter mais que natureza patrimonial, uma insofismável natureza alimentar, visando a subsistência pessoal, é este que deve prevalecer, numa hierarquia de normas constitucionais».

Dizer que aos privilégios imobiliários gerais regulados em leis avulsas se aplica o regime do art. 749º do CC porque no Código Civil os privilégios imobiliários eram sempre gerais (art. 735º, nº 3, do CC, na redacção originária) é proibir ao Legislador a conformação de interesses que só a Ele em cada momento compete e esquecer que a nova redacção dada ao referido nº 3 do art. 755º - Os privilégios imobiliários estabelecidos neste Código são sempre especiais – pelo Dec.-lei nº 39/2003, de 8 de Março, deixa intocados os privilégios imobiliários gerais constantes de leis extravagantes, como as aqui em causa.
Se os privilégios imobiliários gerais em causa não foram estabelecidos pelo CC, não há que lhes aplicar nenhuma norma do CC, nem dos privilégios gerais (art. 749º) nem dos especiais (art. 751º). Antes se deve respeitar a preferência estabelecida pela lei que os criou.

Tal preferência está claramente expressa no nº 4 do art. 4º da Lei nº 96/2001:
4 - A graduação dos créditos far-se-á pela ordem seguinte:
a) Quanto ao privilégio mobiliário geral, antes dos créditos referidos no nº 1 do artigo 747º do Código Civil, mas pela ordem dos créditos enunciados no artigo 737º do mesmo Código;
b) Quanto ao privilégio imobiliário geral, antes dos créditos referidos no artigo 748º do Código Civil e ainda dos créditos devidos à segurança social.

Mandando graduar os créditos laborais à frente dos créditos do Estado com privilégio imobiliário – os do art.748º CC - o Legislador quis, por razões bem ponderosas e já julgadas sem mancha de inconstitucionalidade, conceder àqueles créditos preferência sobre créditos privados (e das autarquias e segurança social) como os do art. 751º do CC, designadamente a hipoteca, ainda que anterior, créditos estes sempre graduados atrás daqueles do art. 748º.

Perde todo o sentido a referência à nova redacção dada aos art. 749º e 751º do CC quando o intérprete se atenha, como deve – art. 8º, nº 2 e 9º, n.os 2 e 3 CC – à letra e sentido daquele art. 4º da Lei 96/2001, aceitando a graduação ali determinada, ou seja, à frente dos créditos do Estado do art. 748º que preferem à hipoteca e ainda dos créditos devidos à segurança social.
Respeitando esta graduação fixada nas leis 17/86 e 96/2001 nenhuma lacuna (como dito nos Acórdãos deste Supremo Tribunal, de 22.6.2005, no Processo 05B1511 e de 5.5.2005, no Processo 05B835, da base de dados do ITIJ) ou ineficácia (como escrito nos Acórdão deste Tribunal, de 7.6.2005, no Processo 05A1774 e de 13.1.2005, Processo 04B4398, da mesma base de dados) existe que permita a aplicação, por analogia, do art. 749º do CC.

Assim como não colhe doutrina certamente muito perfeita de jure condendo mas imprestável de jure condito.

O novo Código do Trabalho – aqui inaplicável – abandonou a figura do privilégio imobiliário geral mas criou o privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade; e manteve exactamente nos mesmos termos a graduação do privilégio imobiliário especial que estabeleceu:

b) - O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes dos créditos referidos no artigo 748° do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à segurança social.

Nem se acene com o papão do fim do financiamento pelos credores hipotecários às actividades económicas e consequentes prejuízos para os trabalhadores:

- As hipotecas legais da Segurança Social não garantem qualquer financia-mento feito à falida; e, apesar de garantidos por hipoteca legal, os créditos aqui em causa não deixam de ser créditos de contribuições devidas à segurança social à frente dos quais o Legislador mandou, expressamente, graduar os créditos laborais. Bem sabendo que havia dotado tais créditos com hipoteca legal e outros privilégios mandados caducar em caso de falência do devedor;

- Nem o direito de retenção conferido ao promitente-comprador com traditio pelo n.º 3 do art. 442.º do CC, na redacção introduzida pelo Dec-lei n.º 236/80, de 18 de Julho, arruinou a construção civil ao longo do quarto de século que leva de vigência.

Por tudo se impõe a graduação dos créditos salariais à frente dos garantidos pela hipoteca e o provimento do recurso.

Decisão

Termos em que, na concessão da revista se decide:

a) – revogar o Acórdão recorrido e
b) - mandar prevalecer o decidido em 1.ª Instância,
c) – graduando os créditos laborais dos Recorrentes à frente dos créditos da Segurança Social.

Sem custas por delas estar isenta a Segurança Social – al. g), do n.º 1 do art. 2.º do CCJ de 1996.


Lisboa, 14 de Dezembro de 2006

Afonso Correia (relator)
Faria Antunes (com a declaração de que votei a decisão, apenas por ser referente à hipoteca legal da Segurança Social.
Sebastião Povoas.