Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | SALVADOR DA COSTA | ||
| Descritores: | ADVOGADO TESTEMUNHA SIGILIO PROFISSIONAL INCIDENTE IMPUGNAÇÃO DE TESTEMUNHA ORDEM DOS ADVOGADOS CASO JULGADO FORMAL | ||
| Nº do Documento: | SJ200612190044467 | ||
| Data do Acordão: | 12/19/2006 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA. | ||
| Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
| Sumário : | 1. Os advogados só podem revelar factos abrangidos pelo segredo profissional se tal for autorizado pelo presidente do conselho distrital da Ordem dos Advogados na sequência do reconhecimento da necessidade do depoimento para a defesa da sua dignidade, dos seus direitos e interesses legítimos ou dos do seu cliente ou representante. 2. A noção de caso julgado decorre do conceito de trânsito em julgado, que ocorre quando a decisão em causa já não seja susceptível de recurso ou de reclamação, e o seu âmbito objectivo envolve a parte dispositiva do julgado e a decisão das questões preliminares que sejam o seu antecedente lógico-necessário. 3. Exclusivamente reportado às relações jurídicas processuais, a amplitude do caso julgado é meramente formal, só produzindo efeitos no processo em que for proferida a decisão susceptível de recurso de agravo. 4. A ofensa do caso julgado formal ocorre quando no mesmo processo é proferida decisão contrária a outra sobre a relação processual, salvo se esta, por sua natureza, for insusceptível de recurso de agravo. 5. O despacho que recusou o depoimento de um advogado como testemunha sob o fundamento da sua inabilidade em razão de sigilo profissional por ter intervindo como tal nas negociações antecedentes à instauração da acção não é afectado no quadro da ofensa do caso julgado pelo acórdão da Relação que revogou o subsequente despacho que negou a concessão de prazo a fim de ser obtida a dispensa do referido sigilo e a posterior admissão do depoimento. * * Sumário elaborado pelo Relator. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I "AA" intentou, no dia 14 de Março de 2005, contra BB, acção de prestação de contas, com processo especial, a fim de a última prestar contas relativas a rendas e despesas concernentes a identificado prédio em conformidade com o contratado entre ambas, atinente à partilha de rendas. A ré negou a existência do mencionado contrato e a sua obrigação de prestação de contas, o que a autora, em resposta, negou, e o processo prosseguiu na normal fase da instrução. No dia 19 de Outubro de 2005, na audiência de produção de prova, a ré impugnou da testemunha oferecida pela autora, CC, e o tribunal não o admitiu a depor. Antes do termo da audição das testemunhas oferecidas pela autora, esta requereu que a referida testemunha fosse ouvida, por assumir interesse para o exame e decisão da causa e o apuramento da verdade material, lhe fosse fixado prazo razoável pelo tribunal para obtenção da autorização prevista no artigo 87º, nº 4, do Estatuto da Ordem dos Advogados, o que foi indeferido. A autora agravou do referido despacho, o processo prosseguiu, foi proferida sentença no dia 12 de Dezembro de 2005, por via da qual a acção foi julgada improcedente, e aquela interpôs recurso de apelação. A Relação, por acórdão proferido no dia 29 de Junho de 2006, dando procedência ao recurso de agravo, anulou os termos do processo a partir do despacho recorrido e determinou ao tribunal da 1ª instância, a prolação de despacho concedente à recorrente de prazo razoável para ela obter a obtenção da dispensa de segredo profissional relativamente à mencionada testemunha. Agravou BB para este Tribunal com fundamento na violação do caso julgado, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação: - formou-se caso julgado formal quanto à decisão do incidente de impugnação em apreço, a qual não pode, por isso, ser objecto de modificação posterior, impondo-se a respectiva força obrigatória à Relação, nos termos do artigo 672º do Código de Processo Civil; - ao considerar procedente o agravo e ao determinar dever ser proferido despacho pelo tribunal da 1ª instância a conceder prazo razoável à recorrida para a obtenção de dispensa de segredo profissional relativamente à testemunha em causa, a Relação incorreu em ofensa de caso julgado formal; - o acórdão recorrido violou os artigos 672º e 675º do Código de Processo Civil. Respondeu AA, em síntese de conclusão: - são diversas as questões processuais suscitadas na sucessão de decididos, sendo, por isso, diverso o escopo dos despachos, e, por inerência, do decidido na segunda instância; - é diverso o quadro circunstancial que subjaz aos despachos proferidos, e por correlação, ao decidido na segunda instância, isto é, a coisa decidida; - o objecto do primeiramente decidido é o impedimento de depor, enquanto que o objecto do posteriormente decidido é o levantamento do impedimento; - as questões a decidir são diversas nos seus pressupostos, no quadro circunstancial que lhes subjaz, na sua fundamentação jurídica, no que é o pedido, no decidido e, por conseguinte, insusceptíveis de sobre as mesmas haver oposição de julgados. II É a seguinte a dinâmica processual que releva no recurso de agravo em causa: 1. A ré declarou impugnar a admissão da testemunha CC, com a seguinte argumentação: "Determina o artigo 618º, nº 3, do Código de Processo Civil deverem escusar-se a depor os adstritos ao segredo profissional, e o artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados prescreve o sigilo profissional sobre os advogados. CC é advogado e actuou nessa qualidade no âmbito das negociações para a resolução do presente litígio em representação da autora. Sem prejuízo da confissão que cabe à testemunha desde já indica como prova os documentos juntos pela autora, dos quais resulta expressamente essa qualidade, documentos cuja junção aos autos expressamente já impugnou por ser nulo o seu valor como meio de prova. Esta consequência resulta directamente do nº 5 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados que refere não poderem fazer fé em juízo as declarações feitas por advogado em violação do sigilo profissional." 2. A autora respondeu o seguinte: "Opõe-se ao requerido, por não procederem os fundamentos da impugnação deduzida pela ré. Com efeito, o artigo 87º do Decreto-Lei nº 15/2005, de 26 Janeiro, prevê no nº 1 que o advogado apenas é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita aos factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, o que não acontece no caso. A testemunha actuou sempre a título pessoal e nunca como advogado, muito menos no exercício profissional da advocacia. 3. A Juíza proferiu então o seguinte despacho: "CC é advogado, interveio nas negociações que antecederam a instauração desta acção e de outras conexionadas com as mesmas e elaborou a minuta do contrato de folhas 96 a 98. A presente impugnação funda-se no facto de a testemunha CC ter agido em representação da autora, como advogado, nas negociações objecto dos presentes autos e outros com os mesmos conexionados. Ficou provado que a testemunha efectivamente é advogado, sendo que o próprio confessou encontrar-se inscrito na respectiva Ordem à data da elaboração da minuta do contrato de folhas 90, e posteriormente até à presente data. A testemunha praticou actos próprios do exercício da advocacia, como expressam os documentos a que se aludiu. A qualidade de advogado, no nosso ponto de vista, é indissociável da sua qualidade enquanto amigo/familiar da autora, certo que, como referiu a testemunha DD, a ré BB afirmou que a testemunha exercia as funções de advogado, sendo enquanto tal que interveio nas negociações que antecederam os presentes autos, e em igual convicção se encontrava o seu colega da parte contrária. Consigna o artigo 87º, nº 1, alíneas e) e f), do Estatuto da Ordem dos Advogados estarem obrigados a segredo profissional, no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha das suas funções ou da prestação dos seus serviços relativamente a factos que a parte contrária do cliente ou os respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio e a factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo. Consigna o nº 2 do mesmo preceito legal que a obrigação de segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não a representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, directa ou indirectamente, tenham qualquer intervenção no serviço. Face ao que precede, considero que se tem de entender que a intervenção da testemunha nestes autos foi efectuada na qualidade de advogado, estando assim, em conformidade com o disposto no artigo 87º, nºs 1, alíneas e) e f), e 2 do Estatuto da Ordem dos Advogados, sujeito a segredo profissional. Pelo exposto, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 618º, nº 3, do Código de Processo Civil e 87º, nºs 1, alíneas e) e f), e 2, do Estatuto da Ordem dos Advogados, defiro o incidente de impugnação e não admito a testemunha CC a depor. 4. No fim da inquirição das testemunhas oferecidas pela autora, esta expôs e requereu oralmente: "Atentos os fundamentos de facto e de direito invocados no despacho de V. Exª que julgou procedente o incidente de impugnação, e por se revelar com interesse para o exame e decisão da causa, bem como para o apuramento da verdade material, requeiro seja ainda ouvida a testemunha CC, caso, em prazo razoável, a fixar pelo tribunal, seja concedida a autorização prevista no artigo 87º, nº 4, do Estatuto da Orem dos Advogados." 5. A ré respondeu: "atento que o despacho que deferiu o incidente de impugnação contra o mesmo só cabe recurso nos termos legais. É justamente pressuposto prévio da dispensa de sigilo profissional a obtenção de decisão de dispensa do sigilo pelo presidente do conselho distrital, o que já deveria ter sido efectuado. Em qualquer caso, para a hipótese de isso lhe vir a ser requerido, seguir-se-ão os termos legais quanto ao respectivo depoimento testemunhal, cabendo perfeitamente ao tribunal, no uso dos poderes conferidos pelo artigo 265º do Código de Processo Civil, realizar todas as diligências instrutórias que julgue adequadas, em razão do que poderá ser inquirida qualquer pessoa que tenha conhecimento de factos relevantes para o apuramento da verdade. Dado não haver decisão do presidente do conselho distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, o requerimento não tem qualquer objecto." 6. A Juíza da causa proferiu, então, o seguinte despacho: "Considerando os depoimentos já efectuados e bem assim o facto de estarem ainda por inquirir as testemunhas arroladas pela ré, não considera este tribunal ser necessário, por ora, com vista ao esclarecimento da verdade dos factos, a inquirição da testemunha CC. Acresce que a autorização do presidente do conselho distrital da Ordem dos Advogados deveria ser prestada previamente à inclusão da referida testemunha no respectivo rol. Como referiu o advogado da ré, o tribunal não se furtará à realização de quaisquer diligências que considere necessárias à descoberta da verdade dos factos em causa nestes autos, não devendo nenhuma das partes esquecer que se trata de um processo de prestação de contas, sendo o seu objecto exactamente esse, ser ou não ser devida a prestação de contas pela ré à autora. Pelo exposto, não se vê necessidade de prolongar, eventualmente, o tempo necessário para terminar a inquirição das testemunhas, aguardando pela autorização, que deveria ser prévia, para a testemunha CC depor. Por outro lado, a decisão deste tribunal já foi tomada e não foi objecto de impugnação. Assim sendo, indefere-se o requerido." 7. O acórdão da Relação expressou o seguinte a título de motivação da revogação do despacho proferido no tribunal da 1ª instância: "A necessidade de prévia dispensa do segredo profissional não obsta a que, não admitido o advogado arrolado como testemunha, por o tribunal haver concluído, em decisão do incidente suscitado pela parte contrária, estar aquele sujeito a segredo profissional, seja concedida a necessária dispensa e, então, inquirida a dita testemunha. O que tal carácter prévio da dispensa implica é a impossibilitação de prestação do depoimento em matéria sujeita a segredo profissional, sem que a concessão daquela esteja verificada, com o afastamento, assim, de depoimentos de validade condicionada à obtenção de dispensa. Assim, aponta a consideração de que apenas com aquela decisão ficou definida no processo a ocorrência do correspondente impedimento, e logo a necessidade de obtenção da referida dispensa. Só então fica arredada a possibilidade de a testemunha em causa poder ter tido conhecimento dos factos por outro motivo que não fosse o exercício da advocacia. Obtida a desvinculação do segredo profissional pelo advogado apresentado como testemunha, não pode o tribunal recusar o seu depoimento. A decisão proferida no incidente de impugnação da testemunha em causa não opera caso julgado formal quanto à impossibilidade de ser concedido prazo para a obtenção de dispensa de segredo profissional e, obtida aquela, ser inquirida a testemunha respectiva, pois que tal decisão só se pronunciou sobre o depoimento da dita testemunha na ausência de dispensa do segredo profissional. Mal seria, de resto, que, podendo o tribunal, encerrada a discussão da causa, se não se julgar suficientemente esclarecido voltar à sala da audiência, ouvir as pessoas que entender e ordenar mesmo as diligências necessárias - artigo 653º, nº 1, do Código de Processo Civil - não devesse já conceder prazo à parte que arrolou como testemunha um advogado impedido de depor, na consideração de se encontrar sujeito a segredo profissional - para que obtida fosse, junto do conselho distrital da Ordem dos Advogados, a dispensa daquele. Sempre se trataria de solução menos conforme ao princípio da cooperação em sentido material, plasmado no artigo 266º, nº 1, do Código de Processo Civil." III A questão decidenda é a de saber se a Relação, com a prolação do acórdão mencionado sob II 7 ofendeu o caso julgado decorrente do despacho mencionado sob II 3. Tendo em conta o conteúdo dos aludidos acórdão e despacho e das conclusões de alegação formuladas pela recorrente e pela recorrida, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática: - dinâmica processual do incidente de impugnação; - a obrigação dos advogados de segredo profissional; - conceito legal de caso julgado formal; - alcance do caso julgado formal; - infringiu ou não a Relação o caso julgado decorrente do despacho em causa? - síntese da solução para o caso espécie decorrente da dinâmica processual envolvente e da lei. Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões. 1. Comecemos pela análise do objecto do incidente de impugnação. Entre os inábeis para depor como testemunha contam-se os incapazes, os que possam depor como partes e os adstritos ao segredo profissional quanto aos factos por ele abrangidos (artigos 616º, 617º e 618º, nº 4, do Código de Processo Civil). Deduzida a escusa com fundamento em sigilo profissional, é aplicável, com as necessárias adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e de dispensa do dever de sigilo invocado (artigo 519º, nº 4, do Código de Processo Civil). O juiz, depois do juramento da testemunha, deve perguntar-lhe se ela é parente, amigo ou inimigo de qualquer das partes, se está para com elas em alguma relação de dependência, se tem interesse directo ou indirecto na causa (artigo 635º, nº 1, do Código de Processo Civil). E se verificar que o declarante é inábil para ser testemunha, não a admitirá a depor (artigo 635º, nº 2, do Código de Processo Civil). A parte contra quem for indicada a testemunha pode impugnar a sua admissão com os mesmos fundamentos por que o juiz pode obstar ao seu depoimento (artigo 636º, nº 1, do Código de Processo Civil). No caso vertente, não foi a testemunha CC que se escusou a depor, nem foi a Juíza, no fim do interrogatório preliminar, a não admitir o seu depoimento, porque foi a parte contrária contra quem ela foi oferecida que deduziu o incidente de impugnação. O incidente de impugnação em causa visa impedir que a testemunha seja admitida depor. A impugnação é deduzida após o interrogatório preliminar e, se for admitida, a testemunha é perguntada à matéria de facto e, se a não confessar, o impugnante pode comprová-la por documentos ou testemunhas, findo o que o juiz decide se a testemunha deverá ou não depor (artigo 637º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil). Foi o que efectivamente ocorreu no caso em análise, em que o incidente culminou na declaração de não admissão do depoimento da testemunha CC. 2. Atentemos agora na obrigação de segredo profissional dos advogados decorrente do respectivo Estatuto. Os advogados são obrigados a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhes advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços (artigo 87º, nº 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados - EOA). Trata-se, por um lado, de factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, além do mais os que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio (artigo 87º, nº 1, alínea e), do EOA). E, por outro, de factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo (artigo 87º, nº 1, alínea f), do EOA). Os actos praticados pelos advogados com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo (artigo 87º, nº 5, do EOA). Mas os advogados podem revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital da Ordem dos Advogados. 3. Vejamos agora, em tanto quanto releva no caso vertente, o conceito legal de caso julgado formal. O caso julgado caracteriza-se essencialmente pela não susceptibilidade de impugnação de uma decisão em razão do seu trânsito em julgado, que decorre, por seu turno, da não susceptibilidade de interposição de recurso ordinário ou de reclamação (artigo 677º do Código de Processo Civil). Assim, a noção de caso julgado decorre do conceito de trânsito em julgado que ocorre quando a decisão em causa já não seja susceptível de recurso ou de formulação de reclamação. Reportado exclusivamente às relações jurídicas processuais, a amplitude do caso julgado é meramente formal, isto é, só produz efeitos no processo em que for proferida a decisão susceptível de recurso de agravo. A ofensa do caso julgado formal ocorre quando, no mesmo processo, é proferida decisão contrária a outra sobre a relação processual, salvo se esta, por sua natureza, for insusceptível de recurso de agravo (artigo 672º do Código de Processo Civil). É que, transitada em julgado a referida decisão sobre questões processuais, não pode o órgão jurisdicional que a proferiu, ou aquele que esteja acima dele no quadro da hierarquia dos tribunais, substituí-la ou modificá-la. A existência de casos julgados formais contraditórios, implicante do cumprimento daquela que em primeiro lugar transitou em julgado, a que se reporta o nº 2 do artigo 675º do Código de Processo Civil, não é aplicável no caso vertente, porque um dos despachos em confronto - o mencionado sob II 6 - ainda não transitou em julgado. 4. Vejamos agora, em aproximação ao caso em análise, o alcance do caso julgado em geral. A propósito do alcance do caso julgado, expressa a lei que a sentença constitui caso julgado nos limites e termos em que julga (artigo 673º do Código de Processo Civil). O segmento limites e termos em que julga significa que a extensão objectiva do caso julgado se afere, em regra, face às normas substantivas relativas à natureza da situação que ele define, à luz dos factos jurídicos invocados pelas partes e dos pedidos formulados na acção. A dúvida surgiu por virtude de não ter passado do Código de Processo Civil de 1939 para o actual o que se prescrevia no parágrafo único do artigo 660º, segundo o qual se consideravam resolvidas, em termos de caso julgado, as questões sobre que recaísse decisão expressa e as que constituíssem pressuposto ou consequência necessária desse julgamento. Mas não há fundamento legal para considerar que o legislador tenha visado, com a nova formulação do artigo 673º do Código de Processo Civil, excluir do âmbito do caso julgado as questões que constituam pressuposto necessário da decisão. Assim, com efeito, foi expresso no Anteprojecto publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 123, página 120, que a nova solução legal não teve por finalidade a consagração da solução oposta, mas deixar à doutrina o seu estudo mais aprofundado e à jurisprudência a sua solução, caso por caso, mediante os conhecidos processos de integração da lei. O caso julgado abrange, sem dúvida, a parte decisória do despacho, sentença ou acórdão, e a dúvida apenas se coloca em relação aos fundamentos enquanto pressupostos necessários da decisão (artigos 659º, n.º 2, in fine, e 713º, n.º 2 e 726º do Código de Processo Civil). Com vista a determinar o restante plano de abrangência do caso julgado, importa identificar, por um lado, as questões meramente instrumentais ou secundárias em relação ao thema decidendum bem como as impertinentes, como é o caso de declarações enunciativas, opinativas ou desnecessárias, designadas por obiter dicta. E, por outro, atentar nas questões fáctico-jurídicas prévias ou preliminares ao thema decidendum tão lógica e necessariamente conexas com o segmento decisório que este não pode delas ser dissociado na definição do quadro normativo envolvente. Sabe-se que os segmentos decisórios de sentenças ou acórdãos do tipo de declaração de absolvição, de condenação, de titularidade do direito de propriedade sobre determinada coisa, de resolução de um contrato, de reconhecimento de um direito de preferência e de substituição do comprador pelo preferente no contrato de compra e venda, de suspensão da instância até que seja decidida noutro processo alguma questão prejudicial, estão tão lógica e necessariamente ligados a decisões de outras questões, como que constituindo um todo unitário, que os primeiros só fazem sentido se conexionados com as segundas. Na interpretação do sentido e alcance da lei, deve o intérprete presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (artigo 9º, nº 3, do Código de Processo Civil). Em consequência, tendo em linha de conta a economia processual e a certeza das relações jurídicas, importa que se conclua no sentido da extensão do caso julgado à decisão das questões preliminares que sejam antecedente lógico-necessário da parte dispositiva do julgado. 5. Atentemos agora se a Relação infringiu ou não o caso julgado decorrente do despacho mencionado sob II 3. Como o recurso em análise só pode ter por objecto a questão da ofensa ou não pela Relação do caso julgado, não cabe a este Tribunal pronunciar-se sobre a solução do acórdão de anular o processado para possibilitar a audição da testemunha CC se verificada a condição de dispensa do sigilo pela Ordem dos Advogados. O primeiro despacho em confronto, em relação ao qual se sustenta a violação do caso julgado, consubstanciou-se na declaração de não admissão do depoimento da testemunha CC, sob o fundamento da sua inabilidade para depor na causa, em razão de sigilo profissional, essencialmente por virtude de ter intervindo como advogado nas negociações que antecederam a instauração da acção, elaborando a minuta de identificado contrato, sob invocação dos artigos 618º, nº 3, do Código de Processo Civil e 87º, nºs 1, alíneas e) e f), e 2 do Estatuto da Ordem dos Advogados. O segundo despacho da Juíza do tribunal da 1ª instância, cuja decisão foi a de indeferimento, do qual foi interposto recurso para a Relação, incidiu sobre requerimento para a concessão de prazo a fim de ser obtida a dispensa do sigilo profissional da testemunha pela entidade competente e a posterior admissão do depoimento. Os respectivos fundamentos foram a desnecessidade da inquirição da testemunha para o esclarecimento da verdade e de eventualmente prolongar o tempo necessário para a inquirição das testemunhas aguardando a autorização da Ordem dos Advogados, dever esta ser prestada previamente à inclusão da testemunha no respectivo rol, não se furtar o tribunal à realização das diligências necessárias à descoberta da verdade e ter a decisão já sido tomada sem impugnação. Assim, este último despacho incidiu sobre questão processual diversa daquela que envolveu o primeiro, certo que este teve por objecto a inabilidade ou não de CC para depor em virtude de estar obrigado a sigilo profissional, e aquele incidiu sobre a admissibilidade do depoimento concedida que lhe fosse pela entidade competente a dispensa da obrigação de sigilo. Os fundamentos que necessariamente basearam os dois despachos não são, por isso, idênticos, ou seja, não foram proferidos no âmbito do mesmo quadro circunstancial, pelo que se conforma com os factos e a lei a motivação expressa pela Relação no sentido de que a decisão proferida no incidente de impugnação, por só se ter pronunciado sobre o depoimento de testemunha não dispensada do segredo profissional, não formava caso julgado formal em termos de impossibilitar a concessão de prazo para a obtenção de dispensa de segredo profissional e de, obtida, a testemunha fosse inquirida. Na realidade, a Relação sindicou uma decisão e respectivos fundamentos não coincidente com a decisão e os fundamentos consubstanciados no despacho que a antecedeu. Dir-se-á que se trata de questões processuais conexas mas diversas na sua estrutura e quadro circunstancial. Por isso, ao invés do que a recorrente alegou, a Relação não infringiu o caso julgado decorrente da decisão do incidente de impugnação ao proferir o acórdão recorrido em causa. 6. Vejamos, finalmente, a síntese da solução para o caso espécie decorrente da dinâmica processual envolvente e da lei. A noção de caso julgado decorre do conceito de trânsito em julgado que ocorre quando a decisão em causa já não seja susceptível de recurso ou de reclamação. Reportado exclusivamente às relações jurídicas processuais, a amplitude do caso julgado é meramente formal, isto é, só produz efeitos no processo em que for proferida a decisão susceptível de recurso de agravo. O âmbito objectivo do caso julgado estende-se aos fundamentos da decisão que com ela estejam estruturalmente conexionados. Os despachos proferidos pelo tribunal da 1ª instância assumem diversidade não só quanto aos respectivos segmentos decisórios como também relativamente à fundamentação com eles estruturalmente conexionados. A Relação, ao revogar o segundo dos referidos despachos não ofendeu o caso julgado decorrente do primeiro. Improcede, por isso, o recurso Vencida, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil). IV Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas. Lisboa, 19 de Dezembro de 2006. Salvador da costa Ferreira de Sousa Armindo Luís |