Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B2373
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: COMPROPRIEDADE
DIVISÃO DE COISA COMUM
DIVISIBILIDADE
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
POSSE
USUCAPIÃO
Nº do Documento: SJ200801290023737
Data do Acordão: 01/29/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
1. É condição de procedência de uma acção de divisão de coisa comum a existência de uma situação de compropriedade.

2. Se, quando a acção foi proposta, a compropriedade já tinha cessado por se ter verificado a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade singular de parte determinada do prédio, o pedido de divisão tem de improceder.

3. Se, por escritura pública de partilha de uma herança, foi adjudicada metade de um prédio indiviso a cada um de dois dos herdeiros, que já se encontravam, cada um, na posse de parte determinada do prédio desde que fora celebrado o contrato-promessa correspondente, exercendo sobre ela em exclusivo os poderes próprios do direito de propriedade singular, é desde essa data que se conta o prazo necessário à aquisição, por usucapião, desse direito.

4. Não tendo chegado a possuir o prédio como comproprietários, não é condição de aquisição daquele direito, por usucapião, a inversão do título da posse.
Decisão Texto Integral:



Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. Em 14 de Julho de 2003, AA e mulher, BB, intentaram, no Tribunal da Comarca de Lousada, uma acção de divisão de coisa comum contra CC e mulher, DD.
Para o efeito, alegaram que, por escritura pública de partilha da herança de EE e FF, lavrada em 23 de Agosto de 1983, lhes foi adjudicada “metade indivisa do prédio urbano descrito na verba 1, em anexo à referida escritura (…) sendo que a outra metade foi adjudicada ao aqui Réu marido”; que, de qualquer modo, “sempre por si e antepossuidores haviam adquirido a respectiva propriedade por usucapião”, que disseram invocar “para todos os devidos e legais efeitos”, por estarem na sua posse, por si, “há mais de 15 anos” e, “por si e antepossuidores (…) há mais de 20 anos”, durante os quais ininterruptamente se comportaram, objectiva e subjectivamente, como seus proprietários, publicamente e sem qualquer oposição, e na convicção de não causar prejuízo a ninguém; que actualmente, o prédio, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada “sob parte no nº 20.607, fls. 32, Livro B-4, e inscrito na matriz urbana (nova) sob o artigo 1540, da freguesia de Meinedo”, se encontra “ainda uno e indiviso, é composto por duas casas, distintas, com capela, anexos e logradouros juntos e caminho de servidão”; que já tinham “apresentado na Conservatória do Registo Predial de Lousada o registo a seu favor, da transmissão de metade do citado prédio”; e, finalmente, que o “imóvel é passível de divisão”.
Pediram, assim, que se decidisse que o prédio é divisível e que se procedesse à respectiva divisão em substância, nos termos dos artigos 1052º e segs. do Código de Processo Civil.
Na contestação, os réus vieram dizer que, apesar de sempre ter havido acordo entre todos os herdeiros no sentido de que a metade poente do prédio ficasse a pertencer ao autor e a metade nascente ao réu, a adjudicação foi feita em comum porque o “prédio estava inscrito num único artigo matricial, não sendo então possível dividi-lo em concreto e adjudicar separadamente cada uma das duas partes.
Segundo afirmaram, essa vontade comum a todos os herdeiros constava já de um contrato-promessa de partilha celebrado, após a morte de sua mulher, EE, entre FF e seus filhos, em 11 de Agosto de 1976, data a partir da qual o autor AA e o réu CC “entraram na posse da sua metade do prédio em causa que, por acordo entre todos os herdeiros, assim foi concretizada e aos mesmos foi adjudicada”, e que desde então, a passaram a utilizar, ininterrupta, pacífica e publicamente, como “verdadeiros proprietários”, realizando obras de conservação e melhoramento e nela fazendo a sua residência, “com conhecimento e consentimento de todos os herdeiros”, com a consciência de não estarem a prejudicar ninguém.
Disseram, ainda, que as duas metades do prédio eram divididas por um caminho que se situava na parte deles, réus, e que era utilizado como servidão pelos autores.
Deste modo, “se outro título não tivessem, os Réus contestantes teriam adquirido, por usucapião, o direito de propriedade sobre a descrita metade nascente do prédio (…), o que expressamente se invoca, para os legais efeitos”, tal como, “do mesmo modo e em circunstâncias idênticas, os Autores adquiriram o direito de propriedade sobre a mencionada metade poente do prédio em causa”.
Consequentemente, sustentaram que o pedido de divisão não podia proceder porque o prédio já se encontrava dividido desde 11 de Agosto de 1976, data da promessa de partilha.
Finalmente, os réus descreveram as diversas obras que realizaram na parte do prédio que consideram sua (nomeadamente transformando em casa de habitação uma construção nela existente), e que entendem ter valor muito superior a essa mesma parte, o que sempre lhes permitiria adquirir a correspondente propriedade por acessão imobiliária.
Replicando, os autores, por entre o mais, alegaram que, em 3 de Junho de 1988, os réus propuseram contra eles uma acção de divisão do mesmo prédio, que não veio a ser julgada quanto ao mérito por ter sido declarada extinta a instância, mas cuja propositura revelaria, por um lado, que os agora réus consideravam então que o prédio se encontrava em regime de compropriedade e, por outro, que as partes não estavam de acordo quanto ao modo de efectuar a divisão; que o caminho referido pelos réus “é um caminho de servidão”, na verdade, mas que também serve outros prédios, como ficou estabelecido na escritura de partilha, e que onera o prédio comum; que contestaram muitas das obras realizadas pelos réus, assim se opondo à posse que estes vêm exercendo sobre o lado nascente do prédio; e que os réus não registaram a seu favor qualquer aquisição.
Pelo despacho de fls. 93, foi determinado que a acção prosseguisse, nos termos do nº 3 do artigo 1053º do Código de Processo Civil.
Por sentença de 17 de Fevereiro de 2006, de fls. 255, a acção foi julgada improcedente, por não se verificar “um dos requisitos essenciais para a procedência da presente acção – a compropriedade”.
O tribunal entendeu que os réus provaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre a metade nascente do prédio; e que os próprios autores, ao alegar a aquisição, também por usucapião, reconheceram a falta daquele mesmo requisito; não tendo, porém, pedido que fosse reconhecido, a seu favor, o direito de propriedade correspondente, restava-lhes, se assim entendessem, propor uma acção de reivindicação para o efeito.
Esta sentença veio, porém, a ser revogada pela Relação do Porto de 12 de Dezembro de 2006, de fls. 332.
Em primeiro lugar, e na sequência da impugnação, pelos apelantes, da decisão sobre alguns pontos da matéria de facto, a Relação alterou a decisão da 1ª instância relativamente a determinados factos e concluiu que “Assim fixado o quadro de facto sobre que deve aplicar-se o direito, verifica-se que os réus não demonstraram factos de que resulte terem exercido sobre a metade nascente do mencionado prédio, posse boa para usucapião. Efectivamente, para além da referida oposição do autor, o réu actuou sem revelar que agia com intenção de exercer, como seu titular, o direito de propriedade sobre a metade nascente do prédio. Antes pelo contrário, em acção dirigida contra os aqui autores, foi a juízo pedir a divisão do prédio, pretensão que baseou na alegação de que o mesmo estava indiviso. Consequentemente, a acção, enquanto se sustenta em que o aludido prédio está em compropriedade, deve ter êxito, pelo que, nesse âmbito, o recurso é bem fundado”.
Em segundo lugar, a Relação, considerando que “a questão da divisibilidade é de conhecimento oficioso” e que “pode resultar de prescrição da lei”, julgou que o prédio era indivisível, porque, “visto o disposto no (…) artº 6º do DL 555/99, de 16 de Dezembro, o prédio a dividir tem de confrontar com uma via pública, o que aqui não se verifica”.
Assim, julgou “a apelação procedente na parte respeitante à questão da indivisão do prédio”, revogando a sentença recorrida; mas julgou “a acção improcedente quanto ao pedido de divisão em substância”, e determinou que os autos prosseguissem “nos termos do artº 1056º nº 2 do C.P.C.”, apesar de os autores apenas terem pedido a ”divisão em substância”(cfr. nº 1 do artigo 1052º do Código de Processo Civil).

2. Quer os autores, quer os réus, recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça; ambas as revistas foram admitidas, com efeito devolutivo e subida imediata, nos próprios autos.
O recurso interposto pelos autores veio, todavia, a ser julgado deserto, por falta de alegações (cfr. despacho de fls. 379).
Os réus concluíram a sua alegação da seguinte forma:
“1º- O prédio em causa já não se encontra em compropriedade, tendo sido dividido por acordo constante da promessa de partilha outorgada entre os herdeiros de EE, entre os quais os aqui Autores e Réus, em 11-8-1976, ficando a pertencer ao Autor marido a metade poente do dito prédio, e a metade nascente ao Réu marido (…).
2º- A partir da data da promessa de partilha, os Autores entraram na posse da dita metade, dela retirando todas as utilidades e proveitos que a mesma produz ou pode produzir, e nela fazendo obras, com ânimo de verdadeiros proprietários ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, pelo menos até 1997, pois foi só nesta data que o Autor manifestou a sua posição, fazendo exposições à Câmara Municipal de Lousada.
3º- Os Réus também exerceram os actos de posse que ficam mencionados com ânimo de verdadeiros proprietários, não obstando a isso a circunstância de o Réu marido, em 1988, ter intentado no Tribunal de Lousada uma acção de divisão de coisa comum destinada a obter a divisão do prédio em causa, pois que naquela data ainda não tinha decorrido o lapso de tempo necessário para se operar a usucapião e, como o aqui Réu não tinha título de propriedade sobre a parte do prédio que estava a possuir, tentou obtê-lo através da acção de divisão de coisa comum.
4º- Acontecendo que veio até a desistir da Instância, terminando assim a acção, pois o Réu bem sabia que, com o decurso do respectivo prazo, obteria o título da usucapião.
5º- Completou-se, assim, em Agosto de 1996, o prazo de vinte anos da posse dos Autores para estes adquirirem por usucapião o direito de propriedade sobre a metade nascente do prédio em causa.
6º- Já que a sua posse tinha todos os requisitos para conduzir à usucapião.
7º- Deixou, assim, o prédio de estar em compropriedade em Agosto de 1996.
8º- Por outro lado, ainda que não tivesse operado a usucapião a favor dos Réus, sempre estes teriam adquirido o direito de haver para si o domínio ou propriedade da metade nascente do prédio em causa por acessão industrial imobiliária pagando aos Autores a parte que lhes cabe no valor do terreno em que foram incorporadas, já que as mencionadas obras que realizaram de boa fé até ao ano de 1997 têm um valor muito superior ao do terreno em que foram incorporadas, como já tinham à data da incorporação.
9º- Não existe, pois, compropriedade entre os Autores e os Réus em relação ao prédio em causa, que, portanto, não está indiviso, mas já se encontra dividido.
10º- Assim, deveria o douto Tribunal ‘a quo’ da Relação do Porto confirmar a sentença também douta do Tribunal de 1ª instância e, assim, julgar a acção totalmente improcedente.
11º- Não o tendo feito, o acórdão aliás sempre douto do Tribunal da Relação do Porto, ora em recurso, violou, por incorrecta interpretação, entre outros, o disposto nos artºs 1287º, 1292º e 309º, do Código Civil, e ainda o disposto no artº 1052º e artº 1053º, nº 4, estes do Cód. de Proc. Civil.
12º- Assim, não tanto pelo alegado como pelo doutamente suprido, deverá dar-se provimento ao recurso revogando-se o acórdão recorrido do Tribunal da Relação do Porto e confirmando-se inteiramente a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância.
13º- Assim se fará, como sempre, a mais perfeita e sã justiça.”

3. Vêm definitivamente provados das instâncias os seguintes factos:

1) Por escritura pública de partilha outorgada em 23 de Agosto de 1983 em Lousada e exarada a fls. 48 a 52 do Livro de Notas para escrituras diversas n. 354 B por óbito de EE e FF, pelos outorgantes AA e mulher, BB, GG e marido, HH, II e mulher, JJ e CC e mulher, DD, que outorgou por si e na qualidade de procurador de LL e marido, MM, foi declarado que aos primeiros e quartos outorgantes, respectivamente autores e réus nesta acção, era adjudicado a cada um metade indivisa do prédio da verba nº 1, ou seja, o " prédio urbano de rés-do-chão e primeiro andar, capela, cortes e logradouro junto, sito no lugar de S. Mamede, freguesia de Meinedo, Lousada, a confrontar do norte, sul e nascente com AA e do poente com caminho camarário, descrito na CRP sob parte do n. 20697, a fls. 32 do Livro B 54 e inscrito na matriz sob o art. 1097 com o valor matricial de 280.000$00”.
2) O prédio supra aludido encontra-se actualmente descrito na matriz urbana nº 1054;
3) Em 11 de Abril de 1976, foi celebrado um contrato promessa de partilha que teve por objecto a herança de EE Leite, falecida em 20 de Julho de 1974, por FF, viúvo desta, e seus filhos, entre os quais o autor e o réu;
4) Por este contrato ficou acordado que o autor AA receberia o lote nº 4 no qual estava incluído o prédio denominado "Casa Velha e Casa Nova" e ficou acordado que o réu marido receberia o prédio denominado “Casa do Beiral com Capela e duas cortes";
5) Correu termos no 1º Juízo da comarca de Paredes uma acção de divisão de coisa comum sob o nº 76/88 com vista à divisão do mesmo prédio urbano e à mudança de local da servidão de passagem que onera o prédio, proposta pelos agora réus contra os autores, que terminou sem julgamento de mérito, conforme resulta da certidão de fls. 60 a 69;
6) A adjudicação em comum e partes iguais na escritura a que se alude em 1) resultou da necessidade de cumprir um formalismo legal já que aquele prédio estava inscrito num único artigo matricial, o 1097 da freguesia de Meinedo, Lousada, e não era possível em concreto dividir o prédio em duas partes e adjudicar uma ao autor e outra ao réu;
7) A vontade do autor marido e do réu marido bem como de todos os que intervieram na escritura foi a que a metade poente do prédio conhecido por "Casa Velha e Casa Nova" ficaria a pertencer ao autor e a metade nascente conhecida por "Casa do Beiral" com capela e anexa e logradouro ficaria a pertencer ao réu CC;
8) A partir da celebração do contrato promessa de partilha a que se alude em 3) e 4) cada um dos herdeiros tomou conta e passou a deter a sua metade do prédio em causa; quanto aos réus, só mais tarde foram residir para o local, após obras que para o efeito executaram, e cuja execução não era possível ocultar;
9) A metade do lado poente que ficou a pertencer ao autor é separada da metade do lado nascente por um caminho;
10) Desde a data da outorga do contrato promessa de partilha, em 11 de Agosto de 1976, que os réus ocuparam a metade nascente nela fazendo várias obras de conservação, de ampliação e de beneficiação e retirando dela todas as utilidades e proveitos que a mesma produz ou pode produzir, utilizando-a para sua habitação e do seu agregado familiar desde 1983;
11) De forma ininterrupta;
12) À vista de toda a gente;
13) Com o conhecimento de todos os herdeiros e designadamente dos autores, os réus desde há cerca de 20 anos realizaram e vêm realizando obras na metade nascente do prédio, transformando, ampliando e beneficiando a primitiva construção da "Casa do Beiral", com eira, logradouro e capela;
14) E a construção urbana sita naquela metade do prédio que não era destinada a habitação foi transformada pelos réus numa casa de habitação constituída por primeiro andar e rés-do-chão, tendo no primeiro andar três quatros, dois quartos de banho, uma cozinha e uma sala comum ampla e no rés-do-chão uma adega para armazenagem de vinho e uma garagem;
15) As obras foram realizadas em 1981 e 1982 e quando foram executadas valiam 19.500,00 € e valem actualmente 45.500,00 €;
16) Os réus fizeram obras de restauro na capela;
17) No ano de 1999 construíram no logradouro da primitiva "Casa do Beiral" um anexo novo, de amplas divisões para arrumos, armazém e engarrafamento de vinhos produzidos pela Quinta, que tem um valor de 9.200,00 €;
18) As obras referidas em 17) foram levadas a cabo com conhecimento de todos os herdeiros e com o seu consentimento, com excepção dos autores, dando-se por reproduzido quanto às demais obras efectuadas pelos réus o ponto 13;
19) O terreno onde as obras foram incorporadas à data da sua realização não valia mais de 3.900,00 €;
20) O autor remeteu à Câmara Municipal de Lousada, em 29 de Agosto de 1997, o documento junto a fls. 70, em 13 de Maio de 1998 os documentos juntos a fls. 72 e 73, em 27 de Novembro de 1998 os documentos juntos a fls. 76 e 77, e em 5 de Dezembro de 1998 o documento junto a fls. 78.

Cumpre entretanto relembrar que, ao julgar a apelação, a Relação alterou em alguns dos pontos impugnados pelos apelantes o julgamento da matéria de facto efectuado em 1ª Instância. Em particular, o Tribunal de Lousada tinha considerado provado que os factos constantes do ponto 10) – ou seja, que desde a data da outorga do contrato promessa de partilha, em 11 de Agosto de 1976, os réus ocuparam a metade nascente, nela fazendo várias obras de conservação, de ampliação e de beneficiação e retirando dela todas as utilidades e proveitos que a mesma produz ou podia produzir, utilizando-a para sua habitação e do seu agregado familiar desde 1983 – tinham ocorrido “sem oposição de ninguém e com exclusão de qualquer pessoa” e tinham sido praticados “com ânimo de verdadeiros proprietários e com a consciência de não causarem prejuízo a outrem”.
Considerando que a prova produzida demonstra “que o aqui autor se opôs à realização de obras no prédio, pelo aqui réu, invocando estar o mesmo indiviso, isto em 1997 e em 1998” e que, “também no tocante ao elemento psicológico da posse, há elementos no processo que fazem concluir que o aqui réu não [estava] convencido de que era titular do direito correspondente à actuação que aqui invoca, pois em 1988 (…) alegou num processo judicial factos de que resulta que o prédio em questão estava indiviso”, a Relação deu como não provados os pontos acabados de referir e introduziu algumas alterações em outros, já constantes da lista de factos provados acima transcrita. E, na sequência desta apreciação, a Relação julgou, como se viu, que a posse invocada pelos réus não era “boa para usucapião”, pois que, “para além da referida oposição do autor, o réu actuou sem revelar que agia com intenção de exercer, como seu titular, o direito de propriedade sobre a metade nascente do prédio. Antes pelo contrário, em acção dirigida contra os aqui autores, foi a juízo pedir a divisão do prédio, pretensão que baseou na alegação de que o mesmo estava indiviso”.

4. Sendo certo que são as conclusões dos recorrentes que delimitam o objecto do recurso, como resulta do disposto no artigo 684º do Código de Processo Civil, em particular do seu nº 3, a questão que tem de ser analisada no presente recurso é a de saber se ocorreu ou não, pelos recorrentes, a aquisição do direito de propriedade sobre a metade nascente do prédio em causa por usucapião e, se a resposta for negativa, por acessão.
A apreciação dessa questão não é impedida pelo disposto no nº 4 do mesmo artigo 684º, como se poderia pensar, por não ter sido impugnada na revista a decisão de julgar a acção improcedente “quanto ao pedido de divisão em substância”, por indivisibilidade do prédio. Com efeito, a ter ocorrido aquisição por usucapião de parte do mesmo, não relevaria uma eventual indivisibilidade que fosse imposta por lei, e que a Relação encontrou no artigo 6º do Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro (cfr. neste sentido, por exemplo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 27de Abril de 2006 (processo nº 06A1471) ou de 19 de Outubro de 2004 (processo nº 04A2988).

5. Como todos sabem, para se adquirir, por usucapião, um direito susceptível de ser adquirido por essa via, é essencial ter a posse correspondente ao direito de cuja aquisição se trata, por certo lapso de tempo (que varia, segundo as circunstâncias da posse), nos termos do artigo 1287º do Código Civil; no caso, da posse correspondente ao direito de propriedade (singular).
Como decorre do disposto no artigo 1251º do mesmo Código Civil, haverá essa posse quando se “actua por forma correspondente ao exercício” desse direito (corpus da posse), independentemente de se ser ou não titular do mesmo, e, segundo alguns (embora com diversas construções), quando essa actuação (ou seja, o exercício de poderes de facto sobre a coisa, salvo se se tratar de posse derivada, que se pode revelar por outras formas) seja acompanhada da “intenção de agir como beneficiário do direito” (artº 1253º, al.a), do Código Civil) – animus da posse.
A posse pode ainda ser titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta, nas palavras do artigo 1258º do Código Civil, relevando as diversas modalidades, desde logo, para permitirem a aquisição por usucapião e, para além disso, para a determinação do prazo necessário para esse efeito (cfr. artigos 1294º e segs. Código Civil e, por exemplo, o acórdão deste Supremo Tribunal de 3 de Fevereiro de 1999, disponível em www.dgsi.pt, processo nº 98B1043).
No caso presente, trata-se de determinar se o réu adquiriu ou não por usucapião, como alega, o direito de propriedade (individual) sobre a parte nascente do prédio que, por partilhas, foi adjudicado indiviso, em conjunto e em partes iguais, a ele próprio e ao autor marido.

6. Nenhuma dúvida se colocaria nos autos se estivesse em causa averiguar se o mesmo réu teria a posse correspondente à de comproprietário do prédio, seja resultante de apossamento (na sequência do contrato-promessa de partilhas) seja por via de sucessão na posse (em virtude da adjudicação nas partilhas subsequentes). A dificuldade encontra-se, antes, na oposição, pelo réu, da aquisição, por usucapião, da metade nascente do prédio, como proprietário individual (e não como comproprietário), em consequência da posse que, em seu entender, exerceu nessa qualidade, em termos de lhe permitir invocar, com êxito, a aquisição do direito de propriedade (individual) sobre essa mesma metade.
Com efeito, e independentemente da opção teórica que se adoptar quanto ao conceito de compropriedade, que, para a lei portuguesa (nº 1 do artigo 1403º do Código Civil), existe “quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa”, a verdade é que, sendo certo que “os comproprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular” e que são “qualitativamente iguais” os direitos dos comproprietários “sobre a coisa comum” (nº 2 do mesmo preceito), pode haver dificuldade em concluir se a posse que os recorrentes invocam deve ser considerada como correspondente à posse de comproprietário (em relação a todo o prédio, indiviso), ou à posse de proprietário individual da metade nascente do prédio.
É por isso que o nº 2 do artigo 1406º do Código Civil estabelece que, mesmo que um só dos comproprietários use a coisa comum – o que não significa qualquer infracção das regras da compropriedade, como resulta do nº 1 do mesmo preceito, ainda que quantitativamente seja diferente a quota de cada um –, tal uso “não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título”.
O mesmo se diga da modificação da coisa comum, que cada consorte pode fazer por si só, de forma a permitir-lhe melhorar as condições de uso da referida coisa, desde que respeite os limites também constantes do nº 1 do já citado artigo 1406º do Código Civil. É claro que o uso da coisa é susceptível de ser fixado por acordo dos comproprietários, e que uma das soluções encontradas pode justamente consistir em ficar convencionado que cada um tem a faculdade de usar uma parte (fisicamente) determinada da mesma, “sem chegarem a uma divisão da coisa, que ponha termo à compropriedade” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2ª ed., Coimbra. 1984, pág. 357).
Todos estes apontamentos demonstram a dificuldade atrás recordada, “dado (como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, Código cit. III, pág. 359) o carácter essencialmente equívoco em que a posse, em princípio, reveste em tais situações (dada a latitude dos poderes de uso conferidos ao comproprietário)”, motivo pelo qual o Código Civil português exige, caso se verifique que um dos comproprietários passa a utilizar toda ou parte da coisa comum como se fosse seu proprietário individual, e pretenda invocar a aquisição do correspondente direito de propriedade por usucapião, que se tenha verificado a inversão do título da sua posse, prevista no artigo 1265º do Código Civil.

7. Resulta dos factos definitivamente provados que, desde a celebração, em 11 de Abril de 1976, após a morte de EE, do contrato-promessa de partilha, entre o seu viúvo FF e os filhos de ambos, no qual ficou acordado que AA receberia um lote que incluía a parte do prédio a que respeita este processo denominada “Casa Velha e Casa Nova”, e que CC receberia um outro lote que integrava a outra parte desse mesmo prédio, conhecida como “Casa do Beiral com Capela e duas Cortes”, ficando cada parte a pertencer a cada um deles, como sabiam todos os intervenientes, “cada um dos [dois] herdeiros tomou posse e passou a deter a sua metade do prédio em causa”; que as duas partes do prédio são separadas por um caminho; que, desde essa altura, os réus “ocuparam a parte nascente fazendo várias obras de conservação, de ampliação e de beneficiação (…), utilizando-a para sua habitação e do seu agregado familiar desde 1983”; que alteraram o destino da construção urbana situada naquela metade, passando a ser destinada a habitação quando não era esse o seu fim; que essas obras foram realizadas em 1981 e 1982 e que “foram levadas a cabo com o conhecimento de todos os herdeiros”, sendo certo que os autores só em 1997 e 1998 é que se opuseram à realização de outras obras pelos réus (restauro da capela e construção de um anexo no logradouro na “Casa do Beiral”).
Para além disso, ficou ainda provado que a partilha foi realizada por escritura pública de 23 de Agosto de 1983 e que foi por este meio adjudicada metade indivisa do prédio no seu todo ao autor e a outra metade ao réu; que, todavia, todos os intervenientes na escritura sabiam que a intenção comum era que a parte poente respectiva (Casa Velha e Casa Nova) “ficaria a pertencer ao autor e a metade nascente, conhecida por Casa do Beiral”, ficaria para o réu”, não figurando tal repartição, desde logo, na escritura por não estar dividido o prédio, na altura; e que em 1988 os ora réus instauraram contra os ora autores uma acção de divisão de coisa comum, terminada sem julgamento de mérito.
Finalmente, e fundamentalmente por causa do significado atribuído à propositura desta última acção, a Relação deu como não provado que os réus agissem “com ânimo de verdadeiros proprietários e com a consciência de não causarem prejuízo a outrem”.

8. Ora estes factos demonstram, em primeiro lugar, a aquisição da posse (correspondente ao direito de proprietário singular pelo réu, do lado nascente do prédio, “pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade” individual (artigo 1263º, nº 1, do Código Civil) – apossamento – desde 1976 (celebração do contrato-promessa de partilha).
Como se escreveu no acórdão deste Tribunal de 21 de Junho de 2007 (proc. nº 07B1552, disponível em www.dgsi.pt), «verifica-se que é condição de aquisição da posse, neste caso, “uma relação de facto” entre a pessoa e a coisa que se traduza nessa prática reiterada e efectiva de actos materiais “capazes de exprimirem o exercício do direito” (Pires de Lima – Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, reimp. da 2ª ed. revista e actualizada, com a colaboração de Henrique Mesquita, págs. 25-26). Como explica, por exemplo, Carvalho Fernandes (Direitos Reais, 4ª ed., Lisboa, 2003, pág. 297), para ocorrer o apossamento exige-se “uma intensidade particular da actuação material sobre a coisa. Assim, a necessidade de a prática de actos materiais ser reiterada significa, não só uma certa repetição da actuação material sobre a coisa, mas também, e sobretudo, a necessidade de ela ser significativa da intenção de se apoderar dela”, ou, nas palavras de Menezes Cordeiro, “para consubstanciar apossamento”, terá “de se processar uma actuação de acordo com as circunstâncias, que faculte um controlo duradouro da coisa considerada” (A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, 2ª ed., Coimbra, 1999, pág. 104)».
Na verdade, se a mera promessa não teve a virtualidade de transmitir a posse correspondente ao direito de compropriedade, muito menos, naturalmente, poderia ter esse efeito quanto à posse invocada pelos réus para fundar a usucapião – ou seja, correspondente ao direito de propriedade individual.
Está provado que desde a celebração do contrato-promessa de partilha (11 de Abril de 1976) cada uma das partes deste litígio passou a exercer, em exclusivo, os poderes de uso e fruição apenas da parte do prédio que lhe foi destinada; que as duas partes estão fisicamente delimitadas por um caminho, que aliás serve de passagem a outros prédios; que, desde essa mesma altura, os réus executaram obras numa determinada edificação existente no lado nascente do prédio, que transformaram em habitação, assim lhe alterando o fim a que destinava; que esta utilização daquela parte delimitada do prédio se manteve, com estas características, ininterruptamente, à vista de toda a gente (e nomeadamente dos autores); que a transformação daquela edificação na sua residência foi igualmente realizada publicamente e sem oposição, quer dos autores, quer dos outros herdeiros; que esta situação se manteve até 1997, ano a partir do qual os autores passaram a opor-se às obras que os réus continuaram a realizar na parte nascente do prédio.
Tal actuação dos réus corresponde, pelas razões já indicadas, a uma actuação correspondente à de um proprietário singular na parte nascente do prédio, cujo início remonta a 1976, e não à de um comproprietário de todo o prédio do qual apenas utiliza uma parte, com os poderes mas também com as limitações inerentes ao estatuto de comproprietário. E manteve-se, com as características descritas (como dispõe o nº 1 do artigo 1257º do Código Civil, “a posse mantém-se enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar”), pelo tempo que a lei exige para permitir a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade singular por parte dos réus, quer se exija a duração de 15 anos, quer a de 20, nas condições previstas no artigo 1296º do Código Civil (consoante a posse se deva considerar de boa ou de má fé, respectivamente).
Por isso não tem aplicação, ao caso, a exigência de que tenha ocorrido a inversão do título da posse para que a posse exercida pelo réu marido sobre a parte nascente do prédio se tenha tornado em posse correspondente ao exercício do direito de propriedade individual, nos termos do disposto no artigo 1265º do Código Civil. Na verdade, o réu nunca teve a posse de comproprietário; da matéria de facto dada como provada resulta que desde a promessa de partilha a sua actuação correspondeu à de um proprietário singular, razão pela qual se conta desde 1976 o início do prazo para a aquisição por usucapião.
É, pois, irrelevante, do ponto de vista das condições em que foi exercido o corpus da posse, que os autores tenham passado a opor-se à actuação dos réus desde 1997, porque já tinha decorrido o prazo para a aquisição por usucapião. O efeito que essa oposição poderia ter era o de passar a considerar como de má fé a posse correspondente ao direito de propriedade singular, nos termos do nº 1 do artigo 1260º do Código Civil; mas, ainda assim, não relevaria, já depois de passados 20 anos sobre o apossamento.
E é igualmente indiferente, para concluir pela aquisição do direito invocado pelos réus, que a Relação tenha considerado, segundo as palavras que utilizou, faltar o “elemento psicológico da posse”, ou seja, a convicção, por parte dos réus, de que actuavam como proprietários singulares da parte nascente do prédio.
Com efeito, e sem necessidade de discutir que relevância tem ou não tal elemento para a aquisição por usucapião, resulta da matéria provada, mais uma vez, que a intenção de todos os intervenientes na partilha era a de que o autor marido e o réu marido ficassem com a propriedade individual correspondente a cada uma das metades que lhes foram atribuídas; e que os réus sempre desenvolveram a sua actuação em conformidade com essa intenção. Em nada altera a sua situação jurídica a propositura da acção de divisão de coisa comum que instauraram contra os ora autores em 1988, desde logo por ser manifesto que, nessa altura, não tinha decorrido nem sequer o prazo de 15 anos previsto no já citado artigo 1296º do Código Civil.

9. Poder-se-á, todavia, perguntar se a conclusão a que se chegou – a de que os réus adquiriram, por usucapião, a propriedade (singular) da parte nascente do prédio a que esta acção se refere, pois exerceram, pelo tempo legalmente necessário, a posse correspondente e invocaram a aquisição por usucapião (artigos 1292º e 303º do Código Civil), considerando-se assim proprietários, retroactivamente, desde “a data do início da posse” (artigo 1288º do mesmo Código) – não colide com o disposto no nº 2 do artigo 1406º do Código Civil.
Como, aliás, se referiu já, segundo este preceito “o uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo tendo havido inversão”, sendo certo que a inversão do título da posse (no caso, de posse como comproprietário para posse como proprietário singular), como estabelece o artigo 1265º do Código Civil, se pode dar “por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse”.
A verdade, todavia, é que, como também já se observou, a exigência de que tenha ocorrido a inversão do título da posse não tem, aqui, aplicação. Está provado que, desde a celebração da promessa de partilha, os réus actuaram como proprietários exclusivos de parte delimitada do prédio, a metade nascente, exercendo, portanto, a posse correspondente, e nunca a posse própria de um comproprietário de um prédio comum. Torna-se, portanto, desnecessário conhecer da questão da aquisição por acessão, sustentada subsidiariamente pelos réus.

10. Assim, e tal como concluíra a 1ª Instância, o prédio cuja divisão foi pedida nesta acção não se encontra, desde 1976, em regime de compropriedade, razão pela qual não pode proceder o pedido formulado pelos autores.

Nestes termos, concede-se provimento à revista, revoga-se o acórdão recorrido e julga-se improcedente a acção, absolvendo-se os réus do pedido.

Custas pelos recorridos, sem prejuízo do apoio judiciário que lhes foi concedido.


Supremo Tribunal de Justiça, 29 de Janeiro de 2008


Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa