Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B4321
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: BALDIOS
DIREITOS INDISPONÍVEIS
ACESSÃO INDUSTRIAL
CADUCIDADE
CONHECIMENTO OFICIOSO
Nº do Documento: SJ20071204043217
Data do Acordão: 12/04/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
1. O prazo a que se reporta o nº 2 do artigo 39º da Lei nº 68/93, de 4 de Setembro, é de caducidade, mas não se reporta a direitos indisponíveis.
2. O tribunal não pode conhecer oficiosamente da caducidade do direito de acção tendente a fazer valer o direito de acessão industrial imobiliária relativamente ao terreno baldio de implantação.
Decisão Texto Integral:



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I
AA e BB intentaram, no dia 9 de Junho de 2005, contra o Baldio da Freguesia de Cortes do Meio, acção declarativa constitutiva, com processo ordinário, pedindo a declaração de terem adquirido, por acessão industrial imobiliária, a área de cento e oitenta e três metros quadrados do baldio da freguesia de Cortes do Meio, Penhas da Saúde, na qual construíram identificado prédio urbano e de serem donos e legítimos possuidores da referida parcela de terreno, bem como da construção que nela implantaram e o seu direito a registarem a seu favor a área de terreno que adquiriram bem como a construção que nela incorporaram, sob o fundamento de a edificação, construída de boa fé, valer mais do que o terreno em que está implantada.
Requereram também a notificação do réu para receber deles directamente o valor do terreno no montante de € 5 490.
O réu não contestou a acção, foram declarados assentes determinados factos, os autores alegaram, e, no dia 27 de Outubro de 2005, foi proferida sentença, por via da qual o réu foi absolvido do pedido com fundamento na caducidade do direito de accionar.
Interpuseram os autores recurso de apelação, e a Relação, por acórdão proferido no dia 5 de Junho de 2007, negou provimento ao recurso com idêntico fundamento.

Interpuseram os apelantes recurso de revista, formulando, em síntese útil, as seguintes conclusões de alegação:
- a Lei nº 68/93, de 4 de Setembro, visou devolver às assembleias de compartes a gestão dos baldios, colocando na sua esfera jurídica a competência para decidir sobre eles;
- o prazo do nº 2 do artigo 39º da Lei nº 68/93, de 4 de Setembro, não é de caducidade excluída da disponibilidade das partes, designadamente da assembleia dos compartes;
- a assembleia de compartes é quem tem o poder de gestão dos baldios e de decidir se a construção deve ou não ser legalizada, conforme for o seu interesse, sob pena de a interpretação da lei ser desconforme com a Constituição;
- ela pode usar ou não da faculdade de impedir a legalização e obter a reversão das construções conforme o seu interesse, interpretação da lei que melhor se coaduna com o espírito do legislador e a Constituição;
- o acórdão violou, por deficiente interpretação, os artigos 39º, nº 2, da Lei nº 68/93 de 4 de Setembro, com as alterações da Lei nº 89/97 de 30 de Julho, 9º do Código Civil e 2º, 3º, nº 1 e 2 e 82º, nº 4, alínea b) da Constituição.

II
É a seguinte a factualidade considerada no acórdão recorrido:
1. O Conselho Directivo é o Órgão Executivo do Baldio da Freguesia de Cortes do Meio, concelho da Covilhã, que vem administrando o baldio da respectiva comunidade local.
2. A zona das Penhas da Saúde, sita na Serra da Estrela, onde existe uma zona de baldio, está integrada na área administrativa da freguesia de Cortes do Meio.
3. A Junta de Freguesia de Cortes do Meio vinha, há mais de 100 anos, administrando toda a zona de baldios das Penhas da Saúde, administração que detinha à data da entrada em vigor da Lei nº 68/93, de 4 de Setembro, e que transferiu, após a sua constituição, para os órgãos do baldio – a assembleia de compartes e o conselho directivo.
4. A administração de tal baldio pela Junta de Freguesia de Cortes do Meio foi objecto de reconhecimento pelo Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão proferido no dia 14 de Dezembro de 1994.
5. Os autores construíram no dito baldio da freguesia de Cortes do Meio uma casa de habitação de pedra, tijolo, madeira e zinco, com sessenta e três metros quadrados de área coberta e logradouro de cento e vinte metros quadrados, composta de rés-do-chão, com uma divisão assoalhada, cozinha e casa de banho, que confronta a norte e nascente com terrenos da Junta de Freguesia de Cortes, do sul com CC e do poente com a via pública, não descrita na conservatória do registo predial, inscrita na matriz urbana da freguesia de Cortes do Meio sob o artigo 641º, em cuja caderneta predial consta ser a autora titular da casa.
6. A construção mencionada sob 5 foi efectuada fora do limite da povoação de Cortes do Meio, não confronta com esta nem com outra zona urbana, e foi autorizada pela Junta de Freguesia de Cortes do Meio, na altura entidade administrante do baldio, e posteriormente, pelo Conselho Directivo do Baldio, tendo sido reconhecida a área de cento e oitenta e três metros quadrados como necessária para a implantação da edificação.
7. Reveste as características de solidez e conforto de uma qualquer casa de habitação, e está de tal forma ligada ao terreno que passaram a formar um conjunto impossível de desligar sem a destruição e inutilização da construção.
8. Os autores têm vindo a usar, fruir e habitar em nome próprio a referida casa, há mais de vinte anos, usufruindo-a como coisa própria sua, assim procedendo de forma pública, pacífica, continuamente, sem oposição de ninguém, de boa fé, com conhecimento anteriormente pela Junta de Freguesia de Cortes do Meio e, presentemente, pelo Conselho Directivo do Baldio de Cortes do Meio.
9. Antes da construção eram aqueles terrenos escarpados, agrestes e irregulares, em que a própria vegetação não abundava, pobres, impróprios para culturas, não comportando mais de um ou dois dias de pastorícia por ano.
10. A referida construção tem um valor no mínimo de vinte mil euros, e o terreno por ela ocupado não terá valor superior a € 30 por metro quadrado - € 5 490 o lote objecto desta acção - e, reportado à data construção, esse valor é inferior.
11. É impossível repor o terreno ocupado no seu estado anterior, está absolutamente inutilizado para qualquer uso como baldio, constituindo um todo inseparável de terreno e respectiva construção, tendo o novo bem ficado com um valor superior ao que o terreno tinha antes da construção.
12. A Junta de Freguesia de Cortes do Meio e o Baldio, este através dos seus órgãos representativos, designadamente o Conselho Directivo, sempre reconheceram os autores como donos da casa por eles construída.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se deve ou não declarar-se terem os recorrentes adquiriram o direito de propriedade do terreno onde implantaram a casa em causa.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação dos recorrentes, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- síntese do quadro de facto relevante;
- síntese geral do regime legal dos baldios;
- síntese do regime regularização das construções irregulares;
- ocorrem ou não os requisitos de aquisição do direito de propriedade em causa?
- caducou ou não o direito de acção dos recorrentes?
- é ou não a caducidade do referido direito de acção de conhecimento oficioso?
- síntese da solução para o caso decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas subquestões.

1.
Comecemos pela síntese do quadro de facto relevante no recurso.
Autorizados pela Junta de Freguesia de Cortes do Meio, os recorrentes construíram, fora dos limites da povoação daquela freguesia, em terreno baldio afecto aos habitantes da mesma freguesia, sem confrontação com alguma zona urbana, uma casa de habitação de piso único, com a área coberta de sessenta e três metros quadrados e logradouro de cento e vinte metros quadrados.
O valor da construção é de € 20 000 e o do terreno é de € 5 490, e os órgãos de administração do referido terreno baldio sempre reconheceram os autores como donos da casa por eles construída.
Ignora-se a data da construção, mas sabe-se que os recorrentes passaram a habitá-la há mais de vinte anos referenciados à data da propositura da acção, ou seja, desde antes de 1985.
Com a referida construção ocorre, como é natural, uma situação de ligação material definitiva e permanente entre ela e o terreno em que foi implantada.

2.
Prossigamos com a análise do regime legal geral dos baldios.
Na vigência do Código Civil de 1867, as coisas, relativamente à titularidade do respectivo direito de propriedade, eram qualificadas de públicas, comuns ou particulares (artigo 379º).
As coisas comuns, naturais ou artificiais, em que se incluíam os baldios, municipais ou paroquiais, eram as não individualmente apropriadas, cujo aproveitamento, restrito aos habitantes de determinada circunscrição administrativa, obedecia aos pertinentes regulamentos administrativos (artigo 381º).
Assim, os baldios não eram coisas públicas nem coisas particulares dos municípios ou das freguesias.
O Código Administrativo de 1940 reportou-se aos baldios, caracterizando-os como terrenos não individualmente apropriados, cujo proveito, nos termos dos regulamentos, era restrito aos indivíduos residentes em determinada circunscrição (artigo 394º).
O Código Civil de 1966, referindo-se às coisas fora do comércio, caracteriza-as como aquelas que não podem ser objecto de direitos privados (artigo 202º).
No diploma relativo ao programa da reforma agrária, o Decreto-Lei nº 203-C/75, de 15 de Abril, anunciou-se a restituição dos baldios aos seus legítimos donos, que passariam a administrá-los, através das respectivas associações, exclusivamente ou em colaboração com o Estado (Anexo 3).
Menos de um ano depois, foi publicado o Decreto-Lei nº 39/76, de 19 de Janeiro, visando alegadamente a entrega dos baldios às comunidades que deles teriam sido desapossadas, caracterizando-os como sendo os terrenos comunitariamente usados e fruídos pelos moradores de determinada freguesia ou freguesias ou parte delas (artigo 1º).
Eram coisas fora do comércio jurídico, não podendo, no todo ou em parte, ser objecto de apropriação privada, incluída a usucapião, e a sua administração foi atribuída aos compartes (artigos 2º e 3).
Na mesma data, foi publicado o Decreto-Lei nº 40/76, de 19 de Janeiro, com vista à recuperação pelas comunidades respectivas dos que haviam sido indevidamente apropriados.
Mas também procurou salvaguardar os casos em que o aproveitamento do terreno baldio teve em vista edificações que na maior parte dos casos foram obra de vizinhos de fracos recursos ou para fins agrícolas, comerciais ou industriais de manifesto interesse para a economia local.
Estabeleceu serem anuláveis a todo o tempo, nos termos de direito, os actos ou os negócios jurídicos cujo objecto tivesse sido a apropriação de baldios por particulares bem como as subsequentes transmissões que não fossem nulas (artigo 1º, nº 1).
Quando o acto de alienação, além de ter a forma legal, tivesse sido sancionado por entidade para o efeito competente, a anulação só poderia ser declarada em caso de relevante prejuízo económico ou lesão de interesses dos compartes (artigo 1º, nº 2).
Se fossem anulados os actos ou os negócios jurídicos cujo efeito fosse a passagem à propriedade privada de baldios ou das suas parcelas, a anulação não abrangia as parcelas de terreno ocupadas por quaisquer edifícios para habitação e fins agrícolas, bem como uma área de logradouro à sua volta dez vezes superior à área do terreno (artigo 2º, alínea a)).
A legitimidade para o pedido de anulação foi encabeçada nas assembleias de compartes e, na sua falta, nas juntas de freguesia (artigo 3º).
A Constituição de 1976, aprovada no dia 2 de Abril desse ano, integrou os baldios no sector de produção pública e propriedade social, na espécie dos bens comunitários com posse útil e gestão das comunidades locais (artigos 89º, nºs 1 e 2, alínea c) e 90º).
Com a revisão da Constituição em 1989, não alterada nesta matéria depois disso, os baldios são considerados meios de produção comunitários, possuídos e geridos por comunidades locais, integrando, a par dos sectores público e do privado, o sector cooperativo e social (artigo 82º, nºs 1 a 4, alínea b)).
Seguiu-se a Lei nº 68/93, de 4 de Setembro, que revogou os Decretos-Leis nºs 39/76 e 40/76, de 19 de Janeiro.
Foram qualificados como terrenos possuídos e geridos por comunidades locais, isto é, o universo dos compartes, ou seja, os moradores de uma ou mais freguesias ou parte delas que, segundo os usos e costumes, têm direito ao seu uso e fruição (artigo 1º).
Continuaram a constituir, em regra, logradouro comum, designadamente para apascentação de gados, de recolha de lenhas ou de matos, de culturas e outras fruições, nomeadamente de natureza agrícola, silvícola, silvo-pastoril ou apícola (artigo 3º).
A sua posse e gestão comunitárias significam que as comunidades locais, enquanto comunidades de habitantes, são titulares em comum dos direitos de gozo, de uso e de domínio dos meios de produção comunitários.
Não sendo bens pertencentes a entidades públicas nem a entidades privadas, importa concluir que se trata de uma terceira espécie de propriedade, encabeçada nas referidas comunidades locais.
Os actos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento que os tivessem por objecto e os relativos à sua posterior transmissão são nulos, nos termos gerais do direito, excepto nos casos expressamente previstos na presente lei (artigo 4º).
O seu uso e fruição efectiva-se de acordo com as deliberações dos órgãos competentes dos compartes ou, na sua falta, em princípio, conforme os usos e costumes (artigo 5º, nº 1).
São administrados, por direito próprio, pelos respectivos compartes, nos termos dos usos e costumes aplicáveis, ou, na sua falta, através de órgão ou órgãos democraticamente eleitos (artigo 11º, nº 1).
As comunidades locais organizam-se, para o exercício dos actos de representação, disposição, gestão e fiscalização relativos aos baldios, através de uma assembleia de compartes, um conselho directivo e uma comissão de fiscalização (artigo 11º, nº 2).
Compete à assembleia de compartes, além do mais, sob proposta do conselho directivo, deliberar sobre a alienação da exploração de direitos sobre baldios, nos termos da lei (artigos 15º, nº 1, alínea j, e 21º, alínea f)).
Pode deliberar a alienação a título oneroso, mediante concurso público, com base no preço do mercado, de áreas limitadas de terrenos baldios que confrontem com o limite da área de povoação e a alienação seja necessária à expansão da respectiva área urbana (artigo 31º, nº 1, alínea a)).

3.
Vejamos agora a vertente das construções irregulares e do prazo para a sua regularização.
No caso vertente, estamos perante a implantação de uma casa num terreno baldio ainda no domínio da vigência do Decreto-Lei nº 39/76, de 19 de Janeiro, em relação à qual os recorrentes têm tido a posse, mas que, por força da lei, é insusceptível de conduzir à aquisição do direito de propriedade do prédio globalmente considerado por usucapião.
A situação concernente à referida edificação é regulada pela lei actual, incluindo a alteração da Lei nº 68/93, de 4 de Setembro, pelo artigo único da Lei nº 89/97, de 30 de Julho, que incidiu sobre os seus artigos 30º e 39º.
É o artigo 39º desta Lei que se reporta às construções irregulares destinadas, além do mais, à habitação.
Prevê o nº 1 a implantação de construções de carácter duradouro destinadas à habitação até 4 de Agosto de 1997 no circunstancialismo previsto no artigo 31º, e estatui a possibilidade da sua alienação pela assembleia dos compartes por negociação directa (nº 1).
O condicionalismo a que se reporta o artigo 31º desta lei tem a ver, em tanto quanto releva no caso vertente, com as construções situadas em parcelas de baldio que confrontem com o limite da área da povoação em quadro de necessidade de expansão da respectiva área urbana (nº 1, alínea a)).
Resulta dos factos provados que a edificação em causa não está nas condições previstas artigo 31º, o que nos remete para o que se prescreve no nº 2 do artigo 39º ora em análise.
Prevê este normativo as referidas construções irregulares fora do condicionalismo previsto no artigo 31º, e estatui, por um lado, poderem os seus proprietários adquirir a parcela de terreno por recurso à acessão industrial imobiliária, presumindo-se, até prova em contrário, a boa fé de quem as edificou.
E, por outro, poder o autor da incorporação adquirir a propriedade do terreno nos termos do artigo 1340º, nº 1, do Código Civil, ainda que o seu valor seja superior ao acrescentado, sob pena de, não tomando essa iniciativa no prazo de um ano a contar da entrada em vigor da lei, poderem as respectivas comunidades locais adquirir a todo o tempo as benfeitorias necessárias e úteis incorporadas no terreno.

4.
Atentemos, ora, sobre se ocorrem ou não os requisitos de aquisição do direito de propriedade em causa.
Reporta-se, pois, o nº 2 do artigo 39º da Lei nº 68/93, de 4 de Setembro, segundo a alteração introduzida pelo artigo único da Lei nº 89/87, de 30 de Julho, à regularização das construções irregulares por via do instituto da acessão imobiliária industrial, a que se refere o artigo 1340º do Código Civil.
Resulta do nº 1 deste artigo 1340º do Código Civil a situação em que uma pessoa constrói, de boa fé, em terreno alheio, cuja construção tenha trazido à totalidade do prédio maior valor daquele que antes tinha, caso em que adquire a respectiva propriedade, pagando o valor que ele tinha antes das obras.
E face ao disposto no nº 2, a boa fé do autor da obra decorre de este desconhecer que o terreno era alheio ou de ter sido autorização pelo dono.
Confrontando este regime geral da acessão imobiliária industrial com a particularidade constante do nº 2 do artigo 39º da Lei nº 68/93, de 4 de Setembro, resulta, nesta última situação, a presunção da boa fé do autor da obra e o afastamento do requisito do acrescentamento de valor à totalidade do prédio.
Os factos provados revelam que a construção pelos recorrentes da casa na parcela de terreno baldio em causa foi autorizada por quem de direito, pelo que ela foi realizada de boa fé.
A referida construção tem valor superior ao do terreno de implantação e de logradouro e, em relação a tal área, acrescentou-lhe valor. Mas não está assente que tal aumento de valor se verifique, considerando toda a área de terreno de baldio.
Todavia, esta problemática não se suscita no caso vertente, visto que a lei dispensa o acréscimo de valor da construção à totalidade do prédio em causa.
Ora, perante o quadro de facto disponível e as mencionadas considerações de ordem jurídica, podiam os recorrentes, a partir do dia 4 de Agosto de 1998, impor aos órgãos de administração do baldio em causa, por via do instituto da acessão imobiliária industrial, a aquisição originária do direito de propriedade sobre a parcela de terreno onde implantaram a casa e o respectivo logradouro.

5.
Vejamos agora se caducou ou não o direito de acção dos recorrentes.
O prazo de accionamento a que se reporta o nº 2 do artigo 39º da Lei nº 68/93, de 4 de Setembro, terminou no dia 4 de Agosto de 1998, e, no acórdão recorrido considerou-se ser o mesmo de caducidade.
Reporta-se o mencionado normativo à iniciativa do autor da incorporação da construção, no prazo de um ano a contar de 4 de Agosto de 1997, de adquirir a propriedade do terreno onde ocorreu a mencionada incorporação por via do instituto da acessão industrial imobiliária nos termos do artigo 1340º do Código Civil.
Os institutos da prescrição e da caducidade são essencialmente motivados pela inércia dos titulares dos direitos substantivos na sua realização no confronto com o interesse na certeza e segurança das relações jurídicas.
Suscita-se, não raro a dificuldade de distinguir entre os prazos de caducidade e de prescrição, porque a lei não traça nenhum critério de distinção, pelo que a determinação da respectiva natureza tem de partir da interpretação das normas que se reportem a prazos de exercício de direitos.
A lei estabelece estarem sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo nela estabelecido, os direitos que não sejam indisponíveis ou a lei declare dela isentos (artigo 298º, nº 1, do Código Civil).
Assim, em regra, todos os direitos está sujeitos a prescrição, salvo os indisponíveis, como é o caso, por exemplo, dos relativos aos estados pessoais, ou, sendo de outra natureza, dela estejam excluídos por força da lei.
O prazo de prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido e, completado que seja, sem prejuízo dos casos de suspensão ou de interrupção, tem beneficiário tem a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor por qualquer modo ao exercício do direito prescrito (artigo 304º, nº 1, 306º, nº 1, 319º, 320º e 323º do Código Civil).
Os prazos de caducidade também começam a correr quando os direitos puderem ser legalmente exercidos; mas, só excepcionalmente, os prazos legais ou convencionais se suspendem ou interrompem, e só impede a sua consumação a prática, dentro prazo legal ou convencional, dos actos a que a lei atribua efeito impeditivo (artigos 328º, 329º e 331º, nº 1, do Código Civil).
Dir-se-á que, por virtude da caducidade, motivada por razões de certeza e de segurança jurídica, se extinguem em virtude do seu não exercício durante determinado prazo os direitos que, por força da lei ou de convenção, nesse prazo devam ser exercidos.
E quanto por força da lei ou por vontade das partes um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, aplicar-se-ão as regras da caducidade, salvo se a lei se referir expressamente à prescrição (artigo 298º, nº 2, do Código Civil).
Isso significa que, em caso de dúvida sobre a natureza de um determinado prazo, ou seja, se ele é de prescrição ou de caducidade, deve considerar-se que assume esta última natureza.
Expressa o artigo 39º, nº 2, da Lei dos Baldios poderem as comunidades locais, a todo o tempo, adquirir as benfeitorias necessárias e úteis incorporadas no terreno, se os autores das construções não tomarem a iniciativa, até 4 de Agosto de 1998, de aquisição da propriedade do terreno por acessão industrial imobiliária.
Trata-se pois de um limite temporal ao exercício de um direito de natureza patrimonial, sem qualquer referência à prescrição, em que estão em causa razões de certeza e segurança das relações jurídicas envolvidas.
Importa, por isso, considerar o mencionado prazo, tal como se considerou no acórdão recorrido, como sendo de caducidade.

6.
Atentemos agora sobre se a caducidade do direito em causa é ou não de conhecimento oficioso.
No plano processual estamos perante uma excepção peremptória própria de tipo extintivo (artigo 487º, nº 2, do Código de Processo Civil).
O tribunal conhece oficiosamente das excepções peremptórias cuja invocação a lei não torne dependente da vontade dos interessados (artigo 496º do Código de Processo Civil).
No que concerne à prescrição, a lei estabelece que o tribunal a não pode suprir de ofício e que a sua eficácia depende da respectiva invocação, por via judicial, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante, ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público (artigo 303º do Código Civil).
Assim, a consideração da prescrição depende da sua invocação pelas partes interessadas, pelos seus representantes ou pelo Ministério Público.
No que concerne à caducidade, ela só é de conhecimento oficioso pelo tribunal se for estabelecida em matéria de indisponibilidade das partes, nesse caso em qualquer estado do processo (artigo 333º, nº 1, do Código Civil).
No caso contrário, isto é, se a caducidade for estabelecida em matéria não excluída da disponibilidade das partes, é aplicável o regime previsto para a prescrição, ou seja, o tribunal só dela pode conhecer se for invocada por quem dela aproveita (artigo 333º, nº 2, do Código Civil).
Os direitos são indisponíveis quando os respectivos titulares deles não possam dispor por mero efeito da sua vontade, como é o caso dos direitos relativos à personalidade e ao estado pessoal lato sensu, incluindo o familiar, em que prevalecem interesses de ordem pública.
Certo é que os cidadãos integrantes das comunidades locais não podem dispor individualmente do direito de propriedade sobre os terrenos baldios nem os podem adquirir por via da usucapião (artigos 1º, nº 1 e 4º, nº 1, da Lei dos Baldios).
Com efeito, a sua usufruição individual ou colectiva limita-se à apascentação de gados, à recolha de lenhas ou de matos, ao cultivo ou outras utilizações, nomeadamente de natureza agrícola, silvícola, silvo-pastoril ou apícola, a que acima de fez referência.
Dir-se-á que o interesse público exige que se mantenha a referida propriedade comunitária, que corresponde a uma instituição que sobrevive de remoto passado, gerada pela necessidade do povoamento do território português.
Mas importa considerar que os mencionados baldios podem ser objecto de expropriação, de alienação por motivos de interesse público, de constituição de servidões, de cessão exploração por longos períodos, de arrendamento e até de extinção (artigos 10º, 26º, 27º, 29º e 31º, da Lei dos Baldios).
As referidas vicissitudes inscrevem-se na competência da assembleia de compartes, sob proposta do conselho directivo ou após a audição deste (artigos 15º, nº 1, alíneas j) e p), e 21º, alíneas f), da Lei dos Baldios).
Acresce que a lei permite a aquisição do direito de propriedade sobre parcelas de terreno baldio a quem tenha construído nelas, de boa fé, a casa de habitação, como ocorre no caso vertente.
Embora o recorrido pudesse fazer valer, no confronto dos recorrentes, o seu direito a adquirir a construção realizada pelos últimos, porque estes deixaram decorrer o prazo de exercício do direito de aquisição do terreno, não o fez porém, nem contestou esta acção, e já lá vão cerca de sete anos.
Independentemente disso, estamos perante este quadro de disponibilidade pelos órgãos de administração dos baldios em relação à parcela de terreno em causa e ao direito patrimonial dos recorrentes de adquirirem o respectivo direito de propriedade por via do instituto da acessão industrial imobiliária.
Por isso, concluímos que o prazo de um ano a que se reporta o artigo 39º, nº 2, da Lei dos Baldios se refere a direitos disponíveis.
Em consequência, não podiam as instâncias conhecer oficiosamente da excepção peremptória da caducidade, porque o seu conhecimento dependia da respectiva invocação pelo recorrido, e tal não aconteceu.

7.
Finalmente a síntese da solução para o caso-espécie decorrente dos factos provados e da lei.
Ocorrem no caso vertente os requisitos de aquisição pelos recorrentes do direito de propriedade sobre a parcela de terreno do recorrido onde implantaram a casa e o respectivo logradouro.
Caducou o direito dos recorrentes por virtude de não terem tomado a iniciativa de aquisição, por via do instituto da acessão imobiliária industrial, até 4 de Agosto de 1998, do referido direito de propriedade.
O prazo de um ano a que alude o nº 2 do artigo 39º da Lei dos Baldios não se reporta ao exercício de direitos indisponíveis, pelo que o tribunal da Relação, não podia confirmar a sentença proferida no tribunal da primeira instância que conheceu oficiosamente da excepção peremptória da caducidade.
E como a confirmou, infringiu o disposto nos artigos 496º do Código de Processo Civil e 333º do Código Civil, pelo que se impõe, por um lado, a revogação do acórdão recorrido.
E, por outro, a declaração do direito dos recorrentes no confronto do recorrido, de adquirirem o direito de propriedade sobre o terreno onde implantou a casa e respectivo logradouro por acessão industrial imobiliária, sob condição de, em cinco dias a contar da notificação deste acórdão, depositarem a favor do recorrido a referida quantia de € 5 490.

Vencido, seria o recorrido responsável pelo pagamento das custas relativas à acção e aos recursos (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Mas os recorrentes exerceram por via da acção um direito potestativo não fundado em acto ilícito praticado pelo recorrido, sendo que este não contestou, pelo que não deu causa.
Em consequência, são os recorrentes os responsáveis pelo pagamento das referidas custas (artigo 449º, nºs 1 e 2, alínea a), do Código de Processo Civil).


IV
Pelo exposto, revoga-se o acórdão recorrido e a sentença proferida no tribunal da primeira instância, declara-se a aquisição pelos recorrentes do direito de propriedade sobre o terreno mencionado sob II 5 onde implantaram a sua casa sob condição de, em cinco dias a contar da notificação deste acórdão, depositarem a favor dos recorridos a quantia de cinco mil quatrocentos e noventa euros, e condenam-se os recorrentes no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 4 de Dezembro de 2007.

Salvador da Costa (relator)
Ferreira de Sousa
Armindo Luis