Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3178/20.3T8STS.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: OFENSA DO CASO JULGADO
OBJETO DO RECURSO
CASO JULGADO FORMAL
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. A admissão do recurso com o fundamento específico da ofensa do caso julgado tem consequências no plano do objecto do recurso: a revista restringe-se à apreciação da ofensa de caso julgado, não sendo conhecidas outras questões eventualmente suscitadas, exceptuadas aquelas que sejam de conhecimento oficioso.

II. A admissão do recurso com este fundamento não implica o reconhecimento de que existe ofensa de caso julgado; a averiguação sobre se o Acórdão recorrido ofendeu, realmente, o caso julgado deve ser realizada noutra sede.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Recorrente: AA

Recorridos: I...., S.A., LX Investment Partner III, S.A.R.L., e H..., S.A.R.L.

1. Na acção intentada por AA e Outros contra I...., S.A., e H..., S.A.R.L., proferiu o Tribunal Judicial do Porto sentença com o seguinte dispositivo:

Face ao exposto, julga-se a presente acção procedente, por provada, e, em consequência declara-se reconhecida à herança aberta por morte de BB, por usucapião, a propriedade da parte do prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de ... com o número 2141, e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho de ..., com o artigo 2141, correspondente ao prédio rústico, nele anexado, com o número 1726 e inscrito na matriz predial rústica da freguesia de ... com o artigo 1222, ordenando-se o seu registo a favor da Autora, determinando-se a do prédio rústico descrito nessa dita Conservatória de Registo Predial com o número 1758 e inscrito na matriz predial rústica da freguesia de ... com o artigo 1193, livre de ónus e encargos”.

2. A adquirente habilitada LX Investment Partner III, S.A.R.L., interpôs recurso de apelação, sendo que o Tribunal da Relação do Porto proferiu Acórdão com o seguinte dispositivo:

Provido parcialmente o recurso. Declarada sanada a ilegitimidade singular da ré H..., S.A.R.L., com a sua substituição pela recorrente, LX Investment Partner III SARL, anulado o despacho que foi proferido nos termos do artigo 567º do Código de Processo Civil, e termos posteriores, incluída a sentença, devendo ser proferido despacho a conceder ao recorrente prazo para contestar nos termos legais”.

3. Inconformada, AA interpõe agora recurso de revista, pugnando pela revogação deste Acórdão e pela sua substituição por outro que, julgue procedentes os pedidos formulados sob as alíneas c) e d), com as consequências legais.

A sua alegação culmina com as seguintes conclusões:

1. A admissibilidade do presente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça decorre que está cumprido o requisito relativo ao valor da ação, situando-se este em €30.000,01, o que supera o valor da alçada do STJ e as duas instâncias não estão em conformidade, pelo que não se verifica dupla conformidade de decisões;

2. De todo o modo caso assim se não entendesse há, pelo menos, um outro acórdão, transitado em julgado, proferido no âmbito da mesma legislação que está em completa contradição com a decisão que aqui se pretende recorrer proferido em 21-06-2018 pelo Tribunal da Relação de Guimarães sob o nº. 7153/15.1T8GMR-B.G1, cuja cópia de junta e se dá aqui por reproduzida – doc. nº. 1;

3. Na decisão que se recorre decorre a violação do caso julgado, relativamente, além do mais, à decisão de habilitação de adquirente proferida por apenso a estes autos, à decisão que julgou extemporânea a contestação apresentada e à decisão que não admitiu a intervenção espontânea da recorrida, com as consequências previstas na Lei para cada uma das decisões já transitadas em julgado;

4. E aborda questões não suscitadas nas conclusões do recurso, havendo assim um interesse geral da sociedade, na pacificação entre os dois entendimentos contraditórios, proferidos no acórdão que se recorre e no que se junta de fundamento, bem como a necessidade de impedir a violação do caso julgado, situação que lesa a segurança jurídica, princípio basilar do nosso ordenamento jurídico, daí dever sempre ser admissível o presente recurso;

5. Na a Autora, ora recorrente e depois também os intervenientes seus associados, demandaram as Rés I...., S.A., e a H..., S.A.R.L. – entidade que figurava como exequente num processo executivo que estava pendente entre as primitivas Rés com base no crédito hipotecário em que era garante os prédios registados em nome da Ré I...., S.A. - peticionando que o seu prédio fosse desanexado, com reconhecimento da sua propriedade, livre de ónus e encargos e que foi julgada procedente;

6. O recurso que foi interposto para o Tribunal da Relação pela agora recorrida não punha em causa a douta sentença, quanto à sua bondade, nem quanto à justíssima pretensão da agora recorrente, mas, outrossim, invocava a ilegitimidade da sua antecessora, a sentença ter sido proferida sem auscultação das partes e que a sentença não lhe deveria ser oponível esquecendo-se das decisões já proferidas e transitadas em julgado, com as quais se tinha conformado;

7. E do facto da sua antecessora continuar na execução onde exigia o cumprimento do crédito hipotecário a exercer todos os atos, realizando requerimentos e tomando posições como se continuasse a ser a titular do crédito, faz resultar, nesta ação, a defesa da recorrida – a alegada ilegitimidade - um verdadeiro abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium o que é nosso ordenamento inadmissível;

8. A Ré primitiva, e apenas depois de citada para presente ação, e de lhe terem sido dadas todas as oportunidades e prazos para contestar a ação, optou por não apresentar a contestação foram do prazo legal que lhe fora concedido;

9. Da decisão que julgou extemporânea a apresentação da contestação não foi interposto qualquer recurso, nem sequer apresentaram qualquer justificação, ou justo impedimento;

10. De todo o modo e como tinham informado os autos que aquela primitiva Ré tinha cedido o seu crédito à ora recorrida LX – INVESTMENT PARTNERS III SARL, (apesar de processualmente na referida execução tudo se passasse como se não tivesse ocorrido) a recorrente requereu a respetiva habilitação da cessionária, para que a mesma passasse a figurar como ré, no lugar da cedente;

11. Tendo as partes sido notificadas para, querendo contestar a habilitação, ao que as mesmas aceitaram o pedido formulado, não tendo deduzido qualquer contestação;

12. Tendo sido proferida decisão, já transitada em julgado, em que habilitou a recorrida para substituir a primitiva Ré, nesta ação, recebendo-a nos precisos termos e no momento em que a mesma se encontrava, ou seja, quando já tinha decorrido o prazo para contestar a ação;

13. Tendo também a recorrida requerido a sua intervenção espontânea nestes autos nestes autos, o que lhe foi negada essa pretensão, por decisão judicial, decisão essa que também a aqui recorrida se conformou e que transitou em julgado;

14. após ter sido habilitada, sem se opor, para a presente ação, a agora recorrida, depois já ter decorrido o prazo para as Rés contestaram sem que nenhuma delas o tivesse feito, dentro dos prazos legais de que dispunham, e sem que fosse admitida a intervenção espontânea da recorrida e depois de terem sido habilitados os restantes herdeiros - tudo por decisões judiciais que as partes se conformaram e que transitaram em julgado - foram as partes notificadas de que não tinha sido contestada a ação e de que dispunham do prazo processualmente estabelecido para alegarem, de direito, o que, quer a recorrente, quer a recorrida, o fizeram, sendo depois proferida sentença, que julgou procedente a ação;

15. Não se conformando com a douta sentença, sem no entanto nada ter pretendido colocar em causa quanto à parte substantiva da sentença, foi pela agora recorrida interpostos recurso, o qual, como decorre do artº. 635º. do CPC está delimitado pelas conclusões apresentadas;

16. O douto acórdão que se recorre entendeu apreciar um facto não alegado pela então recorrente, que não é de conhecimento oficioso, e que não fazia parte das suas conclusões, e que se prende com os princípios da gestão processual e de adequação processual, entendendo ser de permitir que a ora recorrida, que não recorreu no despacho que indeferiu a sua intervenção espontânea, que se conformou com a extemporaneidade da contestação e que aceitou ter sido habilitada nos presentes autos, aceitando. passar a ter a posição da Ré primitiva, no lugar desta e no estado em que os autos se encontravam, ser-lhe dada uma nova oportunidade para contestar a ação, o que nos parece, salvo melhor opinião, uma decisão, desde logo, invalida e nula;

17. Tal decisão extravasa largamente os limites das conclusões apresentadas pela agora recorrida, e que, como nulidade que é, deverá o acórdão, na parte que permite à recorrida ter um novo prazo para contestar a ação, declarar-se a nulidade da decisão, nessa parte, o que expressamente se invoca;

18. O acórdão do Tribunal a quo - que contou com um voto de vencido, ao que se faz aqui a devida vénia, o qual, pela sua assertividade poderíamos mesmo limitarmo-nos a dá-lo por integralmente reproduzido - entendeu que se impunha garantir o contraditório da segunda Ré, decidindo pela anulação da sentença, bem como do despacho que considerou confessados os factos articulados no articulado inicial, dando à recorrida uma nova possibilidade de contestar a ação, o que nos parece totalmente descabido e contrário às mais elementares regras do Direito e dos princípios gerais que o sustenta;

19. Tal decisão fere vários princípios basilares do Processo Civil, nomeadamente o princípio do pedido, do qual decorre que o Tribunal não pode optar por uma resolução do conflito que não lhe foi peticionada e ultrapassa largamente o que é admissível quanto aos poderes de gestão processual, possibilitando que uma parte que aceita o processo em determinado estado, conformando-se processualmente com o processo nesse estado, possa ainda ter uma nova oportunidade para contestar a ação;

20. A decisão que se recorre não tem qualquer sustento legal, uma vez que a própria Lei apenas prevê a possibilidade de repristinar o processo da decisão final até à concessão de prazo para contestar, no caso da falta de citação, o que manifestamente não é o caso e, como se referiu, não foi o que a recorrida pretendia com o seu recurso;

21. Constituindo, a decisão que agora se recorre, esta sim, uma verdadeira “decisão surpresa”, não podendo a recorrente prever tal decisão, porque não foi peticionada, para o que, consequentemente, não teve oportunidade de exercer o seu contraditório;

22. Não se compreendendo o acórdão em crise, ao por em causa os efeitos de uma habilitação, em que as partes se conformaram com os seus termos e que se encontra já transitada em julgado;

23. Quando é pacífico na jurisprudência que o habilitado sucede na posição do transmitente, tendo de aceitar o processo no estado em que se encontra – pode sim é contestar e por em causa essa habilitação, o que manifestamente não foi o caso neste processo - sendo que mudar as regras todas ao processo com o fundamento numa hipotética gestão processual, está, não a fazer-se qualquer gestão processual, mas a violar-se princípios absolutamente estruturantes e essenciais do direito, a certeza e a segurança jurídica e até o principio da igualdade das partes;

24. Quer o douto voto de vencido, quer o douto acórdão que nos referimos como fundamento de contradição com a decisão que aqui se recorre - do Tribunal da Relação de Guimarães n.º 7153/15.2T8GMR-B.G1 de 21/06/2018 cujo relator foi a Sra. Desembargadora Dra. Maria Cristina Cerdeira e no qual se pode ler: “Deste modo, estando pendente uma acção, mostra-se indiferente à decisão do incidente de habilitação de adquirente ou cessionário o facto de, nessa acção, já ter sido proferida sentença, sendo certo que o habilitado, sucedendo na posição processual do transmitente ou do cedente, passa a exercer os mesmos direitos e fica sujeito ao cumprimento das mesmas obrigações processuais que àquele competiam, (…)”.

25. Carece de fundamento legal o entendimento a que chegou o acórdão que se recorre que para garantia do contraditório e da sua defesa que a recorrida, devidamente habilitada por decisão transitada em julgado e que requereu inclusive a sua intervenção principal na ação, que foi indeferida e que a mesma se conformou, venha agora a ter um prazo para contestar, ainda para mais quando, nem o pediu, nem era objeto do recurso;

26. Como bem aprecia o voto de vencido, “Como é sabido, desde logo, se a transmissão, como no caso, não ocorrer na pendência da causa não há lugar a habilitação. Mas houve. E, como se sabe, uma decisão – do incidente de habilitação – transitada pode até ter apreciado mal os factos e aplicado erradamente a lei, mas no mundo do Direito, e em homenagem aos princípios e interesses da certeza e da segurança jurídicas, tudo se passa como se a sentença fosse expressão fiel da verdade e da justiça.”

27. No caso presente e entre muito mais, e numa situação que as próprias ré primitiva e ré habilitada que pelas suas caraterísticas, escopo, atos que foram praticando, poderão ser e parecer ser a mesma coisa não podemos esquecer que “a sentença proferida no processo principal produz efeitos em relação ao adquirente, mesmo que este não seja habilitado como adquirente, sendo que a norma do artº. 263º. nº. 3 do Cód. de Proc. Civil aplica-se aos casos em que não há habilitação, e que não ocorre a substituição do transmitente pelo adquirente, o que no presente caso ocorreu e as partes acataram e aceitaram essa habilitação, que não pode é agora, depois de transitada em julgado, ser sub-repticiamente posta em causa, ou serem mudadas as regras do processo;

28. Foram dados todos os instrumentos e armas à agora recorrida para querendo contestar a sua habilitação, onde poderia ter alegado tudo o que entendesse em sua defesa, contudo optou por aceitar a sua habilitação nos precisos termos em que foi requerida e no momento e estado em que se encontrava o processo, não tendo sequer suscitado, nem nessa altura, nem em qualquer outro momento, a questão que agora a decisão que se recorre vem suscitar;

29. Devendo assim, atento, além do mais, as conclusões anteriores e o disposto nos artºs. 668º. nº.1 e), 263º., 356º., 620º., 635º., 639º. e 668º. nº. 1 c) 20º., 356º. do CPC, ser proferida decisão em que revogue o acórdão que se recorre e confirme a decisão proferida em primeira instância, pois assim V. Excias. e como sempre e é o v/ timbre, farão, Justiça!!!!”.

4. Pugnando pela improcedência deste recurso, veio também a ré Lx Investment Partners III, S.A.R.L., apresentar contra-alegações, que concluiu nos seguintes termos:

“a) Os Autores intentaram acção declarativa com a pretensão de ser reconhecida à herança aberta por morte de BB, por usucapião, a propriedade da parte do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ... com o número 2141, e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho de ..., correspondente ao prédio rústico nele anexado com o número 1726 e inscrito na matriz predial rústica da freguesia de ... como artigo 1222, ordenando-se o registo a favor dos Autores.

b) Como tal, demandaram a sociedade H..., S.A.R.L., na qualidade de Ré,

c) A sociedade H..., S.A.R.L. não é desde 2019 titular das hipotecas, mas sim a ora Recorrente, Lx Investment Partners III, S.A.R.L.

d) E apesar da publicidade conferida pelo registo predial à transmissão ocorrida das hipotecas, ainda assim, optaram os Autores em 22/11/2020 - posteriormente ao registo da transmissão das hipotecas - darem entrada da acção declarativa, demandando a H..., S.A.R.L. e não a Lx Investment Partners III, S.A.R.L.

e) A sociedade H..., S.A.R.L. veio informar os autos que não era titular das hipotecas, invocando a sua ilegitimidade passiva, por não ter qualquer interesse em contradizer a acção.

f) Porém, foi entendimento do Tribunal de 1ª instância que a contestação era extemporânea e como tal, não admitindo a mesma, ignorado que estaríamos perante uma flagrante situação de ilegitimidade passiva da Ré, consubstanciado uma excepção dilatória de conhecimento oficioso.

g) Precludido que estavam os prazos de reação da Ré, vieram os Autores, ora Recorrentes na data de 28/10/2021 dar entrada do incidente de habilitação de cessionário contra a ora Recorrida.

h) E na data de 05/12/2022, entendendo o Tribunal que estavam reunidos os pressupostos para proferir uma decisão de mérito, notificou as partes da sentença, declarando reconhecida aos Autores, ora Recorrentes, por usucapião, a propriedade de parte do prédio urbano objecto do litígio, ordenando-se o registo a favor dos mesmos, livre de ónus ou encargos.

i) Ora, tal sentença, desacompanhada de uma prévia auscultação das partes, constituiu uma nulidade, impugnável.

j) O reconhecimento do pedido, em fase de saneamento dos autos deverá conferir às partes a oportunidade de serem ouvidas, facultando às partes a possibilidade de alegarem de facto ou de direito, ou de outra sorte, ou a oportunidade de se pronunciarem nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 3 do CPC.

k) E assim entendeu o douto Tribunal da Relação, ao julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela aqui Recorrida, pois entendendo que estará sanada a ilegitimidade singular da Ré, o Tribunal no âmbito dos poderes de gestão processual e ao abrigo do direito a uma tutela efectiva, deveria ter concedido um prazo para garantia de contraditório e de defesa, nos termos do disposto nos artigos 547º e 569º, determinando a anulação do despacho que declarou confessados os factos articulados na petição e termos subsequentes.

l) Entendimento este que saudamos, por entender ser uma solução justa e equilibrada, contribuindo para uma melhor aplicação da justiça na apreciação da causa”.

5. O Exmo. Senhor Desembargador determinou a subida dos autos a este Supremo Tribunal de Justiça.


*


Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir, in casu, é unicamente a de saber se o Tribunal recorrido incorreu na ofensa de caso julgado, conforme alegado pela recorrente.

*


II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1. Os AA intentaram a presente acção em 22.11.2020, demandando os RR. I...., S.A., e H..., S.A.R.L.

2. Requereram a desanexação do prédio dos autos com reconhecimento da sua propriedade livre de ónus e encargos.

3. Demandaram a Ré H..., S.A.R.L., na qualidade de credora hipotecária do prédio discutido nos autos (artigo 9.º da petição).

4. Juntaram documentos – certidão da CRP, na qual consta averbada - AP. 1146 de 2019/12/11 11:48:13 UTC – Transmissão de Crédito da apresent. 12 de 2006/01/05 - Hipoteca Voluntária (…) CAUSA: Cessão de Crédito, Anotação - OF. de 2017/01/31 12:30:08 UTC – SUJEITO(S) ATIVO(S): ** LX INVESTMENT PARTNERS III SARL – SUJEITO(S) PASSIVO(S): ** H..., S.A.R.L..

5. A Ré H..., S.A.R.L., por contestação apresentada extemporaneamente, deduziu a sua ilegitimidade passiva em face da cessão do crédito hipotecário à LX INVESTMENT PARTNERS III S.A.R.L, registada na CRP a 11.12.2019.

6. A contestação foi mandada desentranhar.

7. A acção não foi contestada pelos demais RR, tendo sido, em 2-03-2022, proferido despacho a considerar confessados os factos articulados na petição inicial, nos termos do artigo 567.º, n.º 1 do Código de Processo Civil e a dar cumprimento ao n.º 2 do citado normativo.

8. Em 28-10-2021, foi deduzido incidente de habilitação de cessionário da LX INVESTMENT PARTNERS III S.À.R.L,

9. Em 27-04-2022, foi proferida sentença, que transitou em julgado, a declarar habilitada a ocupar a posição processual até aqui ocupada pela Ré, H..., S.A.R.L., e, nesta qualidade, a LX INVESTMENT PARTNERS III, S.A.R.L.

10. Em 4-12.2022, foi proferida a sentença de que se recorre.

11. Nos autos não foi proferido despacho saneador.

O DIREITO

Considerações prévias – Dos termos em que o presente recurso é admitido e da (consequente) delimitação do seu objecto

Como decorre do antecedente Relatório, impugna-se no presente recurso um Acórdão do Tribunal da Relação do Porto em que, na sequências de outras decisões, se atribuiu prazo para contestar à adquirente. O Acórdão recorrido aprecia, pois, visivelmente, uma decisão interlocutória (i.e., não final nos termos do artigo 671.º, n.º 1, do CPC) que recai unicamente sobre a relação processual ou versa exclusivamente sobre matéria adjectiva1.

Ora, o artigo 671.º, n.º 2, do CPC dispõe:

“Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista:

a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível;

b) Quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme”.

Nas conclusões de recurso, são invocadas tanto a ofensa de caso julgado pelo Acórdão recorrido como a sua contradição com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães (Proc. 7153/15.1T8GMR-B.G1) (cfr., entre outras, as conclusões 2, 3 e 4).

Há que averiguar se se prefigura qualquer destas situações em que o recurso é sempre admissível, ou seja, mais precisamente, a situação prevista no artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPC, em que o recurso é sempre admissível “[c]om fundamento (…) na ofensa de caso julgado” ou / e com fundamento em “o acórdão da Relação [ ] est[ar] em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme”.

Se assim for, o recurso será admissível não obstante a restrição legal acima mencionada, com fundamento no artigo 629.º, n.º 2, ex vi do artigo 671.º, n.º 2, al. a), ambos do CPC.

Começando pela contradição jurisprudencial a que se refere a al. d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, deve concluir-se que ela não se verifica atendendo a que apreciam / decidem questões de Direito distintas.

No Acórdão recorrido estava em causa, fundamentalmente, a questão de saber se a sentença produzia efeitos em relação à adquirente num caso em que a primitiva ré / transmitente havia intervindo no processo mas era parte ilegítima. A questão era, portanto, nas palavras deste Acórdão, a de saber se “deve (ou não) ser declarada sanada a ilegitimidade singular da primitiva ré, e em tal caso quais os correspondentes efeitos na posição processual da adquirente”.

Enquanto isso, no Acórdão-fundamento questionava-se o âmbito de aplicabilidade do artigo 263.º, n.º 3, do CPC. Nas palavras deste Acórdão, a questão era a de saber “se é de aplicar ou não ‘in casu’ o disposto no artº. 263º, nº. 3 do NCPC”, ou seja, a questão de saber se é de aplicar o artigo 263.º, n.º 3, do CPC num caso em que não se verificava nenhuma das particularidades do caso apreciado e decidido no Acórdão recorrido e em que, em contrapartida, os factos relevantes e à luz dos quais foi discutida a aplicabilidade daquela norma eram o de a habilitação ter sido requerida depois de proferida a sentença e o de, estando a acção sujeita a registo, a adquirente ter registado a transmissão antes do registo da acção.

Sendo as questões de Direito distintas, não há contradição entre os Acórdãos e, não havendo contradição entre os Acórdãos, falece um dos requisitos – o requisito crucial – da al. d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC e não é possível admitir o recurso com base na contradição de julgados prevista nesta norma.

Já relativamente ao segundo fundamento – a ofensa do caso julgado, prevista na al. a) da mesma norma –, a conclusão deverá ser diferente.

A recorrente afirma que o Acórdão recorrido violou o caso julgado formado pela decisão que julgou extemporânea a apresentação da contestação pela primitiva ré proferida em 16.12.2021 (a que se referem, entre outras, as conclusões 3 e 9), pela decisão de indeferimento do requerimento de intervenção da adquirente proferida em 2.03.2022 (a que se referem, entre outras, as conclusões 3 e 13) e pela sentença de habilitação da adquirente para ocupar a posição processual da primitiva ré proferida por apenso aos presentes autos em 27.04.2022 (a que se referem, entre outras, as conclusões 3 e 12).

Estando identificados os casos julgados que a recorrente entende terem sido ofendidos e correspondendo-lhes, de facto, decisões com trânsito em julgado susceptíveis de ser ofendidas2, admite-se o recurso ao abrigo do artigo 629.º, n.º 2, al. a), ex vi do artigo 672.º, n.º 1, al. a), ambos do CPC.

Mas a admissão do recurso com este fundamento específico de recorribilidade tem consequências no plano do objecto do recurso: só será possível conhecer dos aspectos do recurso (questão e argumentos) que se prendam ou contendam com a alegada ofensa do caso julgado. Por outras palavras: a revista restringe-se à apreciação da ofensa de caso julgado, não sendo conhecidas outras questões eventualmente suscitadas, exceptuadas aquelas que sejam de conhecimento oficioso.

É, de facto, consensual que “nestas situações, a admissibilidade excepcional do recurso não abarca todas as questões que incidam sobre a exceção dilatória de caso julgado, mas apenas aquelas de que alegadamente resulte a 'ofensa' de caso julgado já constituída3.

Concretizando, a questão a apreciar neste recurso é, exclusivamente, a de saber se, ao decidir, na sequência de outras decisões, que devia ser dado à habilitada prazo para contestar, o Tribunal a quo incorreu em ofensa do caso julgado, nada mais – nenhuma outra questão ou argumento – se podendo apreciar.

Cabe, por último, esclarecer que a admissão do recurso com este fundamento não pressupõe nem envolve, de modo algum, o reconhecimento de que existe ofensa de caso julgado. A averiguação sobre se o Acórdão recorrido ofendeu, realmente, o caso julgado formado por alguma daquelas decisões deve ser realizada noutro momento – é realizada aqui no ponto seguinte.

Do objecto do recurso – Da ofensa de caso julgado

Ensina Manuel de Andrade que o caso julgado (fórmula abreviada de “caso que foi julgado”) encontra a sua razão de ser na necessidade de salvaguarda do prestígio dos tribunais e da certeza e da segurança jurídicas4.

Transitam em julgado tanto decisões relativas à relação material (caso julgado material) como as relativas a questões de carácter processual (caso julgado formal).

O caso julgado formal – que é o que está em causa nos presentes autos – tem força obrigatória apenas dentro do processo (cfr. artigo 620.º, n.º 1, do CPC), obstando a que o juiz possa, na mesma acção, alterar a decisão anteriormente proferida5.

Já se viu que a recorrente indica três decisões cuja força de caso julgado terá sido, segundo ela, violada, quais sejam:

1.ª) a decisão (transitada em julgado) que julgou extemporânea a apresentação da contestação pela primitiva ré (a que se referem, entre outras, as conclusões 3 e 9);

2.ª) a decisão (transitada em julgado) de indeferimento do requerimento de intervenção da adquirente (a que se referem, entre outras, as conclusões 3 e 13);

3.ª) a sentença (transitada em julgado) de habilitação da adquirente (a que se referem, entre outras, as conclusões 3 e 12).

É razoavelmente evidente que o Acórdão recorrido não comporta violação do caso julgado formado por nenhuma das decisões mencionada, não se decidindo em nenhuma das decisões mencionadas a questão que veio posteriormente a ser apreciada e decidida no Acórdão recorrido.

Recorde-se que, como se viu atrás, a questão apreciada no Acórdão recorrido respeitava a saber se, em face das circunstâncias (ilegitimidade da primitiva ré e respectiva sanação através da substituição processual pela adquirente), a sentença proferida nos autos produzia efeitos em relação à adquirente ou não, devendo ser dado, neste último caso, prazo para contestar à adquirente. E a decisão foi “Declarada sanada a ilegitimidade singular da ré H..., S.A.R.L., com a sua substituição pela recorrente, LX Investment Partner III SARL, anulado o despacho que foi proferido nos termos do artigo 567º do Código de Processo Civil, e termos posteriores, incluída a sentença, devendo ser proferido despacho a conceder ao recorrente prazo para contestar nos termos legais”.

Ora, a questão apreciada e decidida na 1.ª decisão era a de saber se a contestação apresentada pela primitiva ré havia dado ou não entrada dentro do prazo legalmente fixado e devia ser admitida ou considerada extemporânea (decidiu-se que “não se admite a contestação e os meios de prova ora apresentada, por extemporâneos, pelo que se considera a ação não contestada”); a questão apreciada e decidida na 3.ª decisão era a de saber se deveria admitir-se a intervenção da adquirente (decidiu-se que “não se admite a dedução do incidente de intervenção provocada ou de qualquer outro incidente de intervenção legalmente previsto”); por fim, a questão apreciada e decidida na 3.ª decisão era a de saber se a devia ou não haver lugar à habilitação da adquirente (decidiu-se “julga[r] habilitada a LX INVESTMENT PARTNERS III, S.A.R.L., devendo esta passar a ocupar a posição processual até aqui ocupada pela Ré, H..., S.A.R.L., e nesta qualidade”).

Por outras palavras e sinteticamente: para estarmos perante ofensa de caso julgado formal, a decisão do Tribunal recorrido teria de ter apreciado e decidido uma questão definitivamente decidida antes no processo; ora, isto, manifestamente, não acontece.

Conclui-se, assim, que não se verifica ofensa de caso julgado e que por esta via não há lugar à revogação da decisão do Tribunal a quo.


*


III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


*


Custas pela recorrente.

*


Lisboa, 25 de Janeiro de 2024

Catarina Serra (relatora)

Graça Trigo

Ana Paula Lobo (vencida, nos termos de declaração de voto em anexo)


Voto de vencida

Não acompanho a posição que logrou vencimento, essencialmente pelas razões que passo a indicar:

O acórdão recorrido enunciou 3 questões a decidir:

1. Ilegitimidade da ré H..., S.A.R.L., conhecimento oficioso desta excepção e suas consequências processuais;

2. Se tal ré for parte ilegítima os efeitos da sentença relativamente ao adquirente;

3. Se a sentença deveria ter sido antecedida de audição das partes;

Apenas conheceu da primeira questão – ilegitimidade da ré H..., S.A.R.L. – que afirmou “(…) é manifesta a ilegitimidade da ré, H..., S.A.R.L., logo em face da petição inicial, porquanto, como resulta dos mesmos, esta cedeu o seu crédito hipotecário à ora recorrente, que registou a hipoteca em 11.12.2019, portanto em data anterior à propositura da ação que é de 22.11.2020, donde que não restam dúvidas quanto à ilegitimidade processual desta mesma Ré, em face do teor do artigo 30º nº 3.

Esta ilegitimidade não foi declarada no processo, que não contém qualquer despacho, sequer tabelar, a conhecer dos pressupostos processuais, podendo e devendo sê-lo agora, dado que é um vício não sanável e de conhecimento oficioso.”.

Em seguida considerou possível por aplicação dos princípios da cooperação e gestão processual, proceder à sanação da ilegitimidade singular passiva por entender:” (…) é admissível o suprimento da ilegitimidade singular, porquanto, estão observados os pressupostos supra identificados: (i) inalterabilidade do objeto processual (ii) acordo das partes e do terceiro.”

Como constatou que o “terceiro”, já parte passiva na acção, não tinha tido oportunidade de contestar, dada a sua intervenção ser posterior à fase de contestação, concedeu-lhe prazo para contestar.

Esta decisão viola, em meu entender, o caso julgado formal constituído pela sentença de habilitação do adquirente que, como nela expressamente indicado, mas sobretudo por imperativo legal - intervém no estado em que a acção se encontrar – isto é depois de ter sido decidido, com trânsito em julgado que a contestação era extemporânea e, até, com fundamento na falta de contestação, considerados confessados os factos articulados pelo autor na petição.

Concederia, pois, provimento ao recurso.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2024

______


1. Cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2020 (6.ª edição), pp. 405-406. Em posição convergente, diz Rui Pinto (Código de Processo Civil Anotado, volume I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 354) sobre a noção de “decisões interlocutórias que recaem unicamente sobre a relação processual” que elas são “as que produzem caso julgado formal, nos termos do artigo 620.º, n.º 1, visto este se referir a decisões com esse objeto: 'sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual'. A unidade de interpretação do sistema processual impõe esta conclusão”.↩︎

2. Recordem-se, a propósito, as palavras de José Alberto dos Reis [Código de Processo Civil anotado, volume V, Coimbra, Coimbra Editora, 1984, p. 237]: “[d]entro do aspecto da admissibilidade do recurso cabem duas averiguações: 1.ª Se há uma decisão, com trânsito em julgado, que possa ter sido ofendida: 2.ª Se essa decisão, em confronto com a decisão recorrida, tem valor de caso julgado a respeitar, o que equivale a dizer: se entre as duas decisões existem as três identidades mencionadas no art. 502.º” (sublinhados do autor).

3. Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit., p. 54. Cfr. ainda a doutrina e a jurisprudência citada na p. 55 (nota 71).

4. Cfr. Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1979, pp. 306-307.

5. Cfr., por todos, Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra. Coimbra Editora, 1985 (2.ª edição), p. 703.