Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B4310
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: HERANÇA INDIVISA
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
CABEÇA DE CASAL
LEGITIMIDADE
PRINCÍPIO DA ESTABILIDADE DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: SJ200401150043107
Data do Acordão: 01/15/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 1119/03
Data: 05/15/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : 1. A herança indivisa aceite pelos sucessores do seu autor não tem personalidade judiciária, nem se subsume, para esse efeito, à figura de património autónomo semelhante de titular não determinado.
2. A legitimidade do cabeça de casal para cobrar os direitos de crédito da herança quando a cobrança possa perigar pela demora, a que se reporta o artigo 2089º do Código Civil, ocorre, por exemplo, nos casos de receio de insolvência do devedor e inexistência de garantia real, de necessidade de reclamação de créditos em acção executiva ou de proximidade do termo do prazo de prescrição.
3. A afectação do princípio da estabilidade da instância no plano subjectivo só pode ocorrer em consequência da substituição de alguma das partes na relação jurídica substantiva, ou no quadro dos incidentes de intervenção de terceiros ou no caso de alguma das partes haver sido julgada ilegítima por não estar em juízo determinada pessoa.
4. Tendo a acção declarativa de condenação sido intentada pela herança indivisa e prosseguido até à fase da condensação na perspectiva de ser dotada de personalidade judiciária e de legitimidade ad causam própria, não pode considerar-se intentada pela cabeça de casal ao abrigo do artigos 2089º do Código Civil e 26º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I
A herança aberta por óbito de A, dita património autónomo representado pelo cabeça de casal, intentou, no dia 28 de Dezembro de 2001, contra B, C, D e F, as três últimas na posição de sucessoras de G, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação a pagar-lhe 10 000 000$, com fundamento em acordo de acerto de contas relativas a vários negócios celebrado em Luanda, Angola, no dia 24 de Abril de 1972, entre o réu B e G, por um lado, e G, por outro, pelo qual os primeiros se teriam obrigado a pagar ao último 10 000 000$ e juros à taxa anual de 6%, assinando uma letra, mas que não tenham cumprido.
Os réus, na contestação, invocaram a transmissão por G do direito de crédito em causa, a prescrição deste, a incompetência internacional do tribunal português, por a dívida se ter vencido depois da independência da República Popular de Angola, e a ilegitimidade da ré C, o que foi objecto de resposta de sentido negativo da autora no instrumento de réplica.
Na primeira instância, na fase da condensação, o tribunal absolveu os réus da instância com fundamento na falta de personalidade judiciária da autora, sob a motivação de, pela sua aceitação efectiva, a herança deixar de estar jacente e perder a susceptibilidade de ser parte, e de a herança indivisa em causa se não subsumir à noção de património autónomo semelhante de titular não determinado.
Agravou a autora para Relação, e esta, por acórdão de 15 de Maio de 2003, sob motivação similar à adoptada na 1ª instância, negou provimento ao recurso.

Interpôs a autora recurso de agravo do acórdão da Relação, formulando, em síntese, as seguintes conclusões:
- a consideração de que a herança não tem personalidade judiciária não levaria a improcedência do recurso para a Relação, porque a acção foi instaurada pela herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de A, representada pela respectiva cabeça de casal;
- deveria entender-se, até por razões de economia processual, que está em causa a cobrança de um crédito da herança, para a qual tem legitimidade a cabeça de casal que
expressamente intervém na acção nessa qualidade, pelo que a acção devia com ela seguir os seus termos;
- não tendo assim entendido, o acórdão recorrido violou os artigos 6º e 265º-A do Código de Processo Civil, pelo que deve ser revogado e ordenado o prosseguimento da acção.

Responderam os recorridos, em síntese de alegação:
- não se trata de herança jacente, porque já aceite, pelo que a autora não tem personalidade judiciária;
- a posição assumida pela recorrente é nova em relação ao articulado na petição inicial, onde não invocou ser a cabeça de casal a autora, porque nela referiu a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de A, património autónomo representado pela cabeça de casal;
- ainda que se entendesse ter sido invocada na petição inicial, autonomamente, a qualidade de cabeça de casal, ela só podia cobrar dívidas cuja cobrança perigasse com a demora, mas não invocou esse perigo;
- a economia processual não justifica que uma petição possa oficiosamente ser transformada em nova causa de pedir e em novo pedido ou em meio de converter a fundamentação inicialmente produzida;
- a recorrente não invocou a nulidade do acórdão por não se ter pronunciado sobre os pontos de estar em causa a cobrança de um crédito da herança e de razões de economia processual imporem o reconhecimento da legitimidade da cabeça de casal, o que está prejudicado pela decisão sobre a falta de personalidade judiciária da recorrente.
II
A questão essencial decidenda é a de saber se autora é não dotada de personalidade judiciária.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação da recorrente e dos recorridos, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- conceito de personalidade judiciária em geral;
- extensão da personalidade judiciária a entidades que não tenham personalidade jurídica;
- conceito de herança jacente no confronto com o conceito de património autónomo sem titular determinado;
- é ou não a recorrente destituída de personalidade judiciária, e respectiva consequência jurídica?
- pressupostos da legitimidade ad causam do cabeça de casal para intentar acções tendentes à cobrança de créditos da titularidade da herança que administra;
- pode ou não considerar-se, na espécie, ter a acção em causa sido intentada pela cabeça de casal no quadro dessa particular legitimidade ad causam?
- síntese da solução para o caso concreto decorrente dos factos e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
A personalidade judiciária traduz-se, essencialmente, na possibilidade de requerer ou de contra si ser requerida alguma providência de tutela jurisdicional (artigo 5º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Em consonância com o princípio da coincidência entre a personalidade judiciária e a personalidade jurídica, a lei estabelece que quem a última tiver também dispõe da primeira (artigo 5º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Assim, a regra é no sentido de que todos os indivíduos, independentemente da sua nacionalidade, maioridade, menoridade, capacidade ou incapacidade, têm personalidade judiciária por virtude de, em princípio, poderem ser sujeitos de relações jurídicas (artigos 14º, nº 1, e 67º do Código Civil).
A referida regra é extensível às associações e fundações e às sociedades a quem a lei reconheça personalidade jurídica, embora só possam estar em juízo através dos seus representantes estatutários (artigos 157º, 158º do Código Civil e 5º do Código das Sociedades Comerciais).
2.
A lei atribui, excepcionalmente, personalidade judiciária a entidades que não têm personalidade jurídica.
Antes da sua última alteração, a lei de processo prescrevia que a herança cujo titular não estivesse determinado e os patrimónios autónomos semelhantes, mesmo que destituídos de personalidade jurídica, tinham personalidade judiciária (artigo 6º do Código de Processo Civil).
Actualmente, no quadro do desenvolvimento do referido normativo de pretérito, a lei estabelece terem personalidade judiciária a herança jacente e os patrimónios autónomos cujo titular não estiver determinado (artigo 6º, alínea a), do Código de Processo Civil).
Em relação à herança, a lei processual actual substituiu o segmento normativo que constava da lei anterior cujo titular ainda não esteja determinado pelo segmento normativo herança jacente.
O referido normativo atribui, assim, excepcionalmente, personalidade judiciária, por um lado, à herança jacente e, por outro, aos patrimónios autónomos semelhantes cujo titular não esteja determinado.
3.
O conceito de herança jacente, oriundo da lei civil, significa a herança aberta ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado, ou seja, o património da pessoa falecida entre o chamamento dos sucessíveis e a sua aceitação (artigo 2046 do Código Civil).
Assim, enquanto os sucessores não aceitarem tácita ou expressamente a herança, ou esta não houver sido declarada vaga para o Estado, ocorre a referida situação de jacência.
Isso significa, a contrario sensu, que a herança ainda não partilhada, mas cujos titulares quinhoantes estejam determinados, não tem personalidade judiciária.
Assim, em regra, se a herança tiver sido aceite, não obstante ainda não ter ocorrido a respectiva liquidação e partilha, o contraditório deve ser estabelecido com os herdeiros aceitantes.
Acresce que a herança indivisa não se subsume, para efeito de lhe ser atribuída personalidade judiciária, ao conceito legal de património autónomo semelhante cujo titular não esteja determinado
Com efeito, embora a herança indivisa funcione para variados efeitos como património autónomo, este só tem personalidade judiciaria se os respectivos titulares não estiverem determinados, o que, na espécie, não ocorre.
4.
Como a recorrente já não está na situação de jacência, porque os seus titulares já a aceitaram, certo é, como se concluiu no acórdão recorrido, que não é dotada de personalidade judiciária.
Ademais, embora indivisa, porque os seus titulares estão determinados, não pode aspirar a ser detentora de personalidade judiciária como sendo um património autónomo de titular indeterminado.
Assim, tal como foi julgado na 1ª instância e confirmado pelo acórdão recorrido, verificada a não jacência da recorrente como herança, queda a mesma destituída de personalidade judiciária, o que se traduz em excepção dilatória típica e insuprível, de conhecimento oficioso, implicante da absolvição dos agravados da instância na fase do processo em que ocorreu (artigos 288º, nº 1, alínea c), 493º, nº 2, 494º, alínea c), 495º, e 508º-A, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil).
5.
A regra, como é natural, é no sentido de que os direitos de crédito da titularidade da herança devem ser cobrados pelos herdeiros a quem os mesmos sejam encabeçados no acto de partilha.
Todavia, por razões de urgência, a lei atribui ao cabeça de casal a legitimidade para cobrar as dívidas activas da herança, além do mais, que aqui não releva, quando a demora possa fazer perigar a cobrança (artigo 2089º do Código Civil).
O referido normativo corresponde essencialmente ao que prescrevia o proémio artigo 2083º do Código Civil de 1867, segundo o qual, o cabeça de casal promoveria a cobrança e arrecadação das dívidas activas quando pudessem perigar pela demora.
A doutrina, a propósito do referido normativo de pretérito considerava estar a cobrança em perigo pela demora, por exemplo, nos casos de decaimento de fortuna pelo devedor e de receio da sua insolvência, de algum outro credor haver instaurado acção executiva contra o devedor e dever participar em concurso de credores, de o devedor pretender ausentar-se para o estrangeiro e a dívida não estar devidamente garantida, de o crédito estar prestes a prescrever ou o prazo de prescrição se completar durante o processo de inventário, ou de o devedor estar a dissipar ou a alienar, real ou simuladamente os seus bens (CUNHA GONÇALVES, Tratado, vol. X, 1935, pág. 669, citado por PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra, 1998, pág. 150).
A limitação da legitimidade substantiva do cabeça de casal da herança constante deste artigo e, decorrentemente, da sua legitimidade ad causam, é motivada pela ideia de curta duração da função de administração do cabeça de casal e de ser lógico e adequado que a cobrança dos créditos seja realizada pelos sucessores do de cujus a quem foram adjudicados, salvo nos casos excepcionais de urgência, como são os acima referidos.
6.
No caso vertente, conforme resulta dos termos da acção, foi a recorrente que a intentou, na perspectiva de que era excepcionalmente dotada de personalidade de judiciária e, naturalmente, no quadro da sua legitimidade própria, naturalmente representada pela cabeça de casal, por isso sem experimentar a necessidade de invocar a o perigo da demora na cobrança do crédito que pretende fazer valer na causa no confronto dos recorridos.
Citado o réu, de harmonia com o princípio processual da estabilidade da instância, salvo as possibilidades de modificação legalmente consignadas, deve aquela manter-se quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir (artigo 268º do Código Civil).
No quadro da excepção do princípio da estabilidade da instância, ela só pode modificar-se no plano subjectivo em consequência da substituição, na relação jurídica substantiva, de alguma das partes, por sucessão ou por acto entre vivos, dos incidentes de intervenção de terceiros ou no caso de alguma das partes haver sido julgada ilegítima por não estar em juízo determinada pessoa (artigos 269º, n.º 1, e 270º do Código de Processo Civil).
A pretensão da recorrente de se considerar que a acção em causa foi intentada pelo cabeça de casal nos termos do artigo 2089º do Código Civil, porque assim não foi na realidade, não assenta em mera questão de palavras, e não é consentida por qualquer das excepções ao princípio da estabilidade da instância acima referidas.
Com efeito, ao admitir-se a referida pretensão da recorrente, estar-se-ia a consentir a violação do aludido princípio da estabilidade da instância, que o tribunal não pode sufragar e, consequentemente, não pode deixar de recusar.
7.
Em consequência do exposto, a recorrente não tem personalidade judiciária e não pode considerar-se, dados os termos da causa, que a acção foi intentada pela cabeça de casal no quadro da legitimidade substantiva prevista nos artigos 2089º do Código Civil e 26º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
Improcede, por isso, o recurso.
Vencida, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
III
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 15 de Janeiro de 2004.
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís