Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A3224
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: ÓNUS DA PROVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ200610240032241
Data do Acordão: 10/24/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : 1) O STJ só pode sindicar os factos materiais fixados pela Relação se esta aceitou algum deles sem produção do tipo de prova para tal legalmente imposto ou se se mostrarem incumpridas normas reguladoras da força probatória de determinados meios de prova.

2) Salvo a ocorrência de contradições na matéria de facto impeditivas da decisão de direito, a decisão de facto só pode ser ampliada se um facto alegado, no momento e em sede adequados, relevante para a decisão jurídica do pleito, foi preterido nos momentos do nº1 do artigo 511º, 506º nº 6 ou 650º alínea f) do Código de Processo Civil ou o respectivo quesito quedou não respondido.

3) A dúvida sobre o ónus da prova ou sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.

4) Cumpre ao segurado, que demanda a sua seguradora para que esta realize a prestação a que se obrigou no contrato de seguro, alegar e provar o evento lesivo, o prejuízo reparável, o nexo causal entre ambos e a ocorrência do facto durante o período de vigência do contrato de seguro.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"AA" intentou acção, com processo ordinário, contra "Empresa-A" pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de 25 168,50 euros, acrescida de juros desde a citação para, na qualidade de sua seguradora, o ressarcir dos danos que sofreu por ter ocorrido uma inundação na sua fracção autónoma designada por letra ...- .... - do prédio situado em ...., freguesia da Nazaré.

Contestou a Ré alegando que o evento ocorreu antes da vigência do contrato de seguro.

Na 1ª instância a acção foi julgada improcedente.

A Relação de Coimbra confirmou a absolvição da Ré do pedido.

O Autor pede revista concluindo:

- Face á prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento na 1ª instância, foram incorrectamente apreciados os factos constantes dos quesitos 7º, 8º, 9º e 10º da Base Instrutória;

- Deviam ter-se tido em conta os depoimentos prestados o que inviabilizaria a prova daqueles quesitos;

- Seria necessária a formulação de novos quesitos face à divergência de danos ocorridos e da inundação;

- O Tribunal não apreciou a questão de saber se as inundações de 2000 deram causa aos danos pedidos;

- A reapreciação da matéria de facto foi deficiente;

- Devem ser adicionados quesitos a perguntar se as inundações de 2000 e 2001 ocorreram no mesmo local;

- O Acórdão violou os artigos 158º e 668º e 264º e 712º do Código de Processo Civil;

- Era à Ré que incumbia o ónus de provar que os danos reclamados foram causados em 2000 e não em 2001.

Contra alegou a recorrida pedindo a manutenção do julgado.

As instâncias deram por assentes os seguintes factos:

- O Autor é dono da fracção autónoma, designada por letra ... correspondente ao .../.... do prédio urbano situado em ..., ... ou ....., na freguesia da Nazaré, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 7353 E;

- Adquiriu-o por compra titulada por escritura pública outorgada em 2 de Março de 2000;

- No dia 7 de Julho de 2001 participou à Ré uma inundação no local;

- Vigorava, então um seguro entre Autor e Ré que cobria, além do mais, os danos causados por água no apartamento, que teve início em 27 de Outubro de 2000;

- As infiltrações de água na fracção causaram danos que o Autor comunicou à Ré enviando-lhe um orçamento;

- Em Agosto de 2000 a fracção da cave, situada imediatamente debaixo do Autor, apresentava infiltrações de água provenientes da fracção superior;

- Tal facto foi confirmado pelos vizinhos do Autor que possuem aquela cave;

- Tendo estes informado, em Agosto de 2001, o perito averiguador, que, há cerca de um ano, tinham água a infiltrar-se no tecto e paredes de um quarto e casa de banho, vinda da fracção superior;

- Esses vizinhos falaram com o Autor sobre essas infiltrações;

- O Autor continuou a utilizar a canalização do seu apartamento nas deslocações de fim de semana, mantendo, então, as canalizações em carga;

- Os danos verificados no apartamento do Autor têm como causa provável a ruptura de um cano que liga a cozinha à casa de banho, resultando infiltrações de ruptura dessa canalização;

- O Autor dirigiu-se à Ré através de cartas, de telefone, e até em viatura para tratar do assunto.

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,

1- Matéria de facto.
2- Ónus da prova.
3- Conclusões.

1- Matéria de facto.

Como julgou este STJ, pela pena do mesmo relator (Acórdão de 18 de Abril de 2006 - 06 A871) "cumpre às instâncias apurar a matéria de facto relevante para a solução do litígio, só a Relação podendo emitir um juízo de censura sobre o apurado na 1ª instância.

O STJ, e salvo situações de excepção legalmente previstas só conhece matéria de direito, sendo que, no âmbito do recurso de revista, o modo como a Relação fixou os factos materiais, só é sindicável se foi aceite um facto sem a produção do tipo de prova para tal legalmente imposto ou tiverem sido incumpridos os preceitos reguladores da força probatória de certos meios de prova."

Este principio resulta do artigo 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais - aprovada pela Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro - sendo que a intervenção do STJ restringe-se à averiguação da observância das regras de direito probatório material, artigo 722º nº2 do Código de Processo Civil, ou a mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto, artigo 729º nº3.

Mas a ampliação da matéria de facto pressupõe que o facto a inserir de novo tenha sido alegado pelas partes, no momento e em sede adequados.

Terá de considerar-se ter havido, aquando da fixação da base instrutória, preterição de "matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", nos precisos termos do nº1 do artigo 511º do diploma adjectivo.

Ora, "in casu", a Relação ao fixar a matéria de facto não incumpriu o citado nº 2 do artigo 722º (dando como assente um facto sem a produção de prova legalmente indispensável ou infringindo as normas reguladoras da força probatória de determinado meio de prova).

E quando o recorrente lançou mão da faculdade do artigo 690º A, a Relação deu estrito cumprimento ao nº5, ouvindo a "gravação dos depoimentos prestados", assim garantindo um 2º grau de jurisdição em matéria de facto, tendo concordado "com a apreciação feita sobre as mesmas pela 1ª instância" e concluído pela não ocorrência de "erro notório ou manifesto" que tenha sido cometido nessa apreciação.

Finalmente, da leitura atenta dos articulados, e perspectivando as possíveis soluções de direito, não resulta qualquer omissão de facto relevante no elenco dos quesitados.

Destarte, improcedem as conclusões da alegação em que se põe em causa o acervo dos factos assentes.

2- Ónus da prova.

Resta, de seguida, a "pulcra quaestio" da repartição do ónus da prova.

O recorrente insiste em caber à Ré a prova de que os danos ocorreram no ano de 2000 e não no ano de 2001.

Sem razão, porém.

Ao accionar o contrato de seguro cumpre ao Autor a prova do evento causador do dano; do dano - ou prejuízo - sofrido; e de que o evento ocorreu na vigência do contrato de seguro.

Na repartição do ónus da prova, nos termos do artigo 342º do Código Civil, há que apelar para o critério da normalidade. ("Aquele que invoca um direito tem de provar os factos que normalmente o integram; a parte contrária terá de provar, por seu turno, os factos anormais que excluem ou impedem a eficácia dos elementos constitutivos" - Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", I, 304; Cons. Mário de Brito, "Código Civil Anotado", I, 453; Prof. Vaz Serra, "Provas", BMJ 112-29).

O nº 3 deste preceito dispõe que em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.

Trata-se, tal como as regras de repartição, de evitar situações de "non liquet", correspondendo, na área processual, o artigo 516º do Código de Processo Civil ao dispor que "a dúvida sobre a realidade dum facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita."

Como ensinava o Prof. Castro Mendes (apud "Direito Processual Civil" II, 1987,670) "Numa acção de condenação, a dúvida sobre a existência do mútuo (facto constitutivo favorável ao autor) resolve-se contra o autor (que tem o ónus da prova) pela absolvição do réu ("actore non probante, reus absolvitur".) A dúvida sobre o pagamento (facto extintivo, favorável ao réu) contra o réu pela sua condenação."

Ora, e como atrás se acenou, no âmbito da execução de um contrato de seguro, cumpre ao segurado - ao exigir à seguradora a realização da prestação a que está vinculada - a demonstração da existência do prejuízo reparável, do nexo causal entre este e o evento tal como é tipificado no contrato de seguro e a ocorrência deste durante o período de vigência do contrato.

São estes os factos constitutivos integrantes das normas substantivas, e contratuais, que concedem o direito ao ressarcimento.

Não há, em consequência, qualquer pressuposto de aplicação do nº2 do artigo 342º ou do nº1 do artigo 344º do Código Civil pois que a alegação do evento ter ocorrido em 2000, e não em 2001, não traduz a invocação de facto impeditivo, modificativo ou extintivo nem à hipótese de inversão do ónus da prova.

Aqui chegados, e verificando-se resultar da matéria de facto não ser líquido se os danos sofridos pelo Autor resultaram da inundação de Agosto de 2000 ou de 2001, e sendo certo que o contrato de seguro só vigorava a partir de 27 de Outubro de 2000, a dúvida probatória resolve-se contra o recorrente.

Como julgou o Acórdão do STJ de 29 de Novembro de 2005 (05 A3539) "as normas sobre a distribuição do ónus da prova constituem normas de decisão, pois, se destinam, em primeira linha, a possibilitar a decisão no caso de falta de prova; mas não deixam de influenciar o comportamento das partes, consequentemente levadas a ter a iniciativa da prova para evitar o risco de decisão desfavorável".

Improcedem, assim, as restantes conclusões da alegação valendo, no eventualmente omisso, a argumentação aduzida pela Relação.

3- Conclusões.

Pode, então, concluir-se que:

a) O STJ só pode sindicar os factos materiais fixados pela Relação se esta aceitou algum deles sem produção do tipo de prova para tal legalmente imposto ou se se mostrarem incumpridas normas reguladoras da força probatória de determinados meios de prova.
b) Salvo a ocorrência de contradições na matéria de facto impeditivas da decisão de direito, a decisão de facto só pode ser ampliada se um facto alegado, no momento e em sede adequados, relevante para a decisão jurídica do pleito, foi preterido nos momentos do nº1 do artigo 511º, 506º nº 6 ou 650º alínea f) do Código de Processo Civil ou o respectivo quesito quedou não respondido.
c) A dúvida sobre o ónus da prova ou sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.
d) Cumpre ao segurado, que demanda a sua seguradora para que esta realize a prestação a que se obrigou no contrato de seguro, alegar e provar o evento lesivo, o prejuízo reparável, o nexo causal entre ambos e a ocorrência do facto durante o período de vigência do contrato de seguro.
Nos termos expostos, acordam negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 24 de Outubro de 2006

Sebastião Póvoas (Relator)
Moreira Alves
Alves Velho