Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
26412/16.0T8LSB.L2.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: AÇÃO POPULAR
LEGITIMIDADE ATIVA
LEGITIMIDADE ADJETIVA
DEFESA DO CONSUMIDOR
DIREITOS DO CONSUMIDOR
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 07/06/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - A Associação Portuguesa Para a Defesa do Consumidor – DECO – tem legitimidade, pelos seus estatutos, pela disposição do art. 31º do CPC, e art. 2º da Lei nº 83/95 de 31.08, para instaurar acção popular em defesa dos interesses difusos, seja no sentido estrito seja em sentido lato, dos consumidores, assim como dos correspondentes interesses individuais homogéneos;

II - Falece-lhe, todavia, legitimidade para formular pedidos próprios da clássica acção individual, onde cabe a cada consumidor identificar a providência jurisdicional que reputa adequada à tutela do seu interesse individual.

III – A acção popular não é admissível quando o demandado possa utilizar fundamentos de defesa específicos contra alguns dos representados pelo autor.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

 

 Em 27.10.2016, a Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor – DECO instaurou ação popular contra Volkswagen AG, SEAT S.A., SIVA – Sociedade de Importação de Veículos, S.A. e SEAT Portugal Unipessoal, Lda.

A A. alegou, em síntese:

É uma associação privada de utilidade pública, interesse genérico e âmbito nacional cujo objeto é a defesa dos direitos e interesses dos consumidores em geral;

A 1.ª R. (Volkswagen AG) é uma sociedade comercial registada na Alemanha que se dedica ao fabrico e comercialização de veículos automóveis das marcas Volkswagen, Audi, Skoda, entre outros;

A 2.ª R. (SEAT S.A.) é uma sociedade comercial registada em Espanha que se dedica ao fabrico e comercialização de veículos automóveis da marca SEAT, entre outros;

A 3.ª R. (SIVA) é uma sociedade comercial que se dedica à importação e comercialização de veículos automóveis nomeadamente das marcas Volkswagen, Audi e Skoda;

A 4.ª R. (SEAT Portugal Unipessoal) é uma sociedade comercial que se dedica à importação e comercialização de veículos automóveis nomeadamente da marca SEAT.

Sucede que a 1.ª e 2.ª RR. fabricaram e venderam veículos que as 3.ª e 4.ª RR. importaram e venderam aos consumidores em Portugal nos quais a 1.ª R. introduziu uma aplicação informática que manipula os testes que controlam as emissões de gases emitidas pelos veículos automóveis. De facto, a 1.ª R. concebeu e instalou um dispositivo manipulador nos veículos em questão, na forma de um algoritmo de software sofisticado, que deteta quando um veículo está a ser objeto de ensaio para efeitos de controlo das emissões poluentes. Através de comunicado de 22.09.2015 a 1.ª R. tornou público que segundo a investigação interna efetuada, foi apurado que o problema da manipulação das emissões poluentes abrangia o motor do modelo EA189, envolvendo cerca de 11 milhões de veículos a nível mundial, adiantando estar a estudar medidas para a resolução do problema. Segundo a A. apurou junto das 3.ª e 4.ª RR., em Portugal o número de veículos abrangidos pela manipulação supra referida é de 102 140 dos comercializados pela 3.ª R e de 23 351 dos comercializados pela 4.ª R.. A manipulação supra descrita tem consequências práticas e diretas para os consumidores que adquiriram veículos automóveis às RR.. Os veículos em causa foram homologados como respeitando a Norma Euro 5 devido à manipulação supra descrita. Sem essa manipulação não respeitariam a Norma Euro 5 pelo que nem sequer poderiam ser comercializados já que, a partir de 2011, só podiam ser comercializados veículos que respeitassem aquele standard. Ou seja, as RR. venderam aos consumidores veículos que não podiam ser comercializados, que não podiam sequer circular. Acresce ainda que as RR. aderiram voluntariamente ao Código de Conduta da Volkswagen no qual assumem especiais obrigações em matéria ambiental, de escrupuloso cumprimento da lei, regras da concorrência e convenções internacionais. Construíram, assim, a sua imagem pública, enquanto fabricante de automóveis, como uma marca defensora do meio ambiente apostada na inovação tecnológica e responsabilidade ecológica, com isso procurando ganhar a confiança e credibilidade dos consumidores quanto aos veículos que comercializam. Por outro lado, os consumidores adquiriram os seus veículos com base em várias características, entre elas, o desempenho e os consumos médios do veículo. Ora a manipulação suprarreferida afetou igualmente o rendimento, desempenho e consumo dos veículos afetados. Sendo os consumos e as emissões reais superiores aos publicitados e contratados. O que significa que ao efetuar a manipulação descrita as RR. levaram os consumidores a optar pelos veículos das marcas que representam em detrimento de veículos de outras marcas cujo rendimento, desempenho, consumos e preço, comparativamente, poderiam ser mais competitivos. Distorcendo assim a leal concorrência a que estão obrigados. Acresce ainda que o valor comercial de tais veículos no mercado de usados ficou definitivamente comprometido o que também configura um prejuízo sério para os consumidores afetados. Por outro lado, a atualização de software efetuada pelas RR. para resolver o problema não é eficaz, pois a emissão de gases NOx não cumpre a Norma Euro 5 nem, muito menos, a Norma Euro 6. E o consumo de combustível, segundo os testes realizados, é cerca de 40% superior ao declarado pelas RR.. A 1ª R. já se comprometeu a compensar os consumidores afetados nos Estados Unidos da América. Na verdade, como foi publicamente noticiado a 1.ª R. chegou a um acordo nos EUA que envolve o pagamento de cerca de 14.7 biliões de USD no qual se comprometeu com várias opções: A recomprar os veículos afetados num valor que varia entre os 12.500 USD e os 44.000 USD dependendo do valor do veículo, do ano, da quilometragem; a pagar ou perdoar os empréstimos que os consumidores tenham contratado para compra dos veículos afetados; os consumidores podem optar por ficar com os seus veículos desde que a 1.ª R. consiga repará-los de forma que eles cumpram com as normas obrigatórias em termos de emissões NOx; neste caso, a 1.ª R. comprometeu-se a repará-los e a compensar os consumidores pelos danos que tiveram com a publicidade enganosa e com a depreciação do valor do veículo num montante que pode variar entre os 5.100 USD e os 10.000 USD; os consumidores que já venderam os seus veículos afetados podem também receber uma compensação proporcional que será dividida com os compradores de tais veículos; adicionalmente a 1.ª R. acordou igualmente em pagar 2.7 biliões de USD no âmbito do Programa de Redução de Emissões como forma de compensar a sociedade pela poluição adicional que os veículos manipulados emitiram e emitem. As RR. violaram o direito à qualidade dos bens adquiridos e o direito à informação previstos nos artigos 3.º als. a) e d), 4.º e 8.º da Lei de Defesa do Consumidor. Violaram ainda o disposto no Dec.-Lei n.º 67/2003, de 08.4, já que não entregaram aos consumidores bens conformes com o contrato celebrado. Violaram igualmente o Regime das Práticas Comerciais Desleais, previsto no Dec.-Lei n.º 57/2008, de 26.3. Não sendo ainda conhecido o montante global da indemnização devida aos consumidores é lícita, nos termos do art.º 556.º n.º 1 al. b) do CPC, a formulação de pedido genérico, de condenação no montante que se vier a apurar e quantificar em incidente de liquidação a tal destinado.

Com base na factualidade alegada, pede a condenação solidária das Rés:

a. Retomar os veículos afectados pagando aos respetivos proprietários um valor que dependerá do valor inicial do veículo, do ano, da kilometragem mas que não poderá
ser inferior a um montante entre os 12.500 USD e os 44.000 USD oferecido aos consumidores norte-americanos;

b. Ou a repará-los, se for essa a opção dos consumidores e se a reparação do veículo for possível;

c.  A assumirem os custos remanescentes dos contratos de aluguer ou leasing celebrados pelos consumidores para aquisição dos veículos afectados, no caso dos consumidores optarem por fim a tais contratos;

d. A pagar aos consumidores uma indemnização pelas informações falsas produzidas e pela depreciação do valor dos veículos afectados, que não pode ser inferior a um montante entre os 5.100 USD e os 10.000 USD que a 1ª R. se comprometeu a
pagar aos consumidores norte-americanos ou, em alternativa, se o tribunal assim o entender a 15% do valor de compra do veículo”.

Foi ordenada a citação por éditos e anúncios de eventuais interessados prevista no art.º 15.º da Lei n.º 83/95, de 31.8.

Todas as RR. contestaram, arguindo diversas exceções e impugnando a matéria de facto, concluindo pela sua absolvição da instância ou, subsidiariamente, pela improcedência da ação por não provada e consequente absolvição dos pedidos.

Realizada a audiência prévia, foi proferida sentença que considerou que os tribunais portugueses não tinham competência para apreciar o litígio e consequentemente absolveu as RR. da instância.

A A. apelou dessa sentença e em 27.4.2021 a Relação de Lisboa revogou-a, declarando a competência dos tribunais portugueses para julgar o litígio.

O mencionado acórdão da Relação foi confirmado por acórdão do STJ de 14.10.2021.

Realizou-se nova audiência prévia e em 16.12.2021 foi proferida sentença na qual se julgou que a A. carecia de legitimidade ativa com a consequente absolvição das RR. da instância.

A A. apelou da sentença, defendendo a sua legitimidade para a acção.

A Relação de Lisboa, por acórdão de 26.05.2022, julgou o recurso improcedente e confirmou a sentença. 

Ainda inconformada, a Autora interpôs recurso de revista excepcional.

Com a revista, a Recorrente visa a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que “julgue verificados os pressupostos da ação popular e a legitimidade da Recorrente para intentar a presentar ação e representar os consumidores residentes em Portugal afetados pelas práticas ilegais das Recorridas, com todas as consequências legais daí decorrentes.”

A Recorrente remata a sua alegação com as seguintes conclusões úteis:

(…)

7. O teor e conteúdo do acórdão-recorrido impacta diretamente em direitos constitucionalmente consagrados (n.ºs 1 e 2 do artigo 60.º e n.º 3 do artigo 52.º da Constituição da República Portuguesa), o que, desde logo, leva à conclusão da existência de relevância social das questões em discussão nos presentes autos, cuja situação só existe por ter sido violada lei substantiva, manifestada no erro de interpretação e aplicação das normas aplicáveis, designadamente, as normas constitucionais acima citadas, os n.ºs 2 e 3 do artigo 22.º da Lei de Ação Popular, alínea f) do artigo 3.º da Lei de Defesa do Consumidor e o artigo 31.º do Código do Processo Civil.

8. Além da posição da doutrina (perfilhada pelos Professores José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, pelo Juiz Conselheiro Abrantes Geraldes e pelo Professor Miguel Teixeira de Sousa), segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, na densificação do conceito indeterminado de interesses de particular relevância social deverá apelar-se à generalizada repercussão e ao invulgar impacto que a controvérsia acarreta para o tecido social, pondo em causa a eficácia do direito e minando a sua credibilidade (quer na formulaçãolegal, quer na aplicação casuística), de modo a motivar a atenção de relevantes camadas de população e a extravasar, de forma inequívoca, os meros interesses particulares das partes ou o inerente objeto do processo.

9. A questão de in casu ter de se dar como preenchidos os pressupostos da ação popular e, consequentemente, ter a Recorrente legitimidade ativa – porquanto as infrações cometidas pelas RR./Recorridas lesaram coletivamente o bem jurídico do consumo e individualmente, de forma homogénea, a esfera jurídica dos consumidores e, bem assim, os pedidos visam, essencialmente que, com a condenação da ação das RR./Recorridas, a ação permita a cada um dos consumidores lesados exercer o seu direito à reparação dos danos –, assume grande relevância social, que não interessa apenas às partes da ação, mas, no fundo, a toda a comunidade.

10. A não ser assim, estar-se-á a pôr em causa a importância da tutela e defesa dos direitos dos consumidores, trazendo com isso um desequilíbrio entre as partes envolvidas neste tipo de relações, o que tornará mais difícil a defesa dos consumidores – não lhes podendo, por isso, ser retirada a possibilidade de proteção e defesa de modo coletivo, sendo, portanto, necessário que os ordenamentos jurídicos e os Tribunais assegurem a eficácia da aplicação destes instrumentos (como é o caso da ação popular) que permita, a estes indivíduos a defesa dos seus interesses e direitos de modo coletivo.

11. É necessário também considerar as vantagens económicas e sobretudo sociais que um instrumento de tutela coletiva apresenta pois, não raras vezes a lesão causada, se analisada do ponto de vista individual e atento o critério de custo-benefício, apresentará um custo muito elevado quando comparado com o eventual benefício, o que terá por consequência o desencorajar da perseguição judicial da lesão sofrida pelo sujeito individualmente considerado.

12. […]

13. Além do atrás referido há, ainda, que referir o alcance e a dimensão global internacional com que esta questão foi tratada e que, em Portugal, não poderá, de todo, sê-lo de modo diferente.

14. A 1.ª R./Recorrida entende que se trata de direitos coletivos como demonstram os sucessivos acordos celebrados pela 1.ª R./Recorrida nos Estados Unidos da América, na Alemanha, na Austrália e no Canadá, para compensar os consumidores dos respetivos países exatamente pelos mesmos problemas sofridos pelos consumidores portugueses.

15. No caso dos Estados Unidos da América o referido acordo teve lugar no âmbito de uma class action (ou seja,no equivalente a uma ação popular como a dos autos, com um sistema de opt-out semelhante e envolvendo situações contratuais dos consumidores abrangidos pelo acordo obrigatoriamente diferentes entre si) no Tribunal Federal de S. Francisco e envolveu situações semelhantes às descritas na presente ação popular tendo a 1.ª R./Recorrida aceite compensar os consumidores envolvidos.

16. Na Europa, aplicando-se a mesma legislação ou legislação substantiva semelhante, e consequentemente sendo os danos dos consumidores residentes na Alemanha os mesmos que os dos consumidores residentes em Portugal, a 1.ª R./Recorrida., no âmbito de um procedimento igualmente coletivo (Musterfeststellungsklagen), celebrou um acordo com a VZBV no qual aceitou compensar os consumidores residentes na Alemanha.

17. Em 2015, na Austrália, cerca de 100.000 proprietários de VW afetados pela mesma manipulação de software instauraram uma ação contra a 1.ª R./Recorrida no Tribunal Federal da Austrália tendo as partes chegado a um acordo em 06/09/2019, aprovado por aquele tribunal.

18. Em 2015 foram iniciadas ações coletivas (class actions) no Ontário e no Quebec contra a VW e a Audi exatamente com os mesmos fundamentos das ações descritas anteriormente e da presente ação. Em dezembro de 2016 as partes em ambas as ações chegaram a um acordo que abrange todo o Canadá.

19. De forma absolutamente recente, de referir ainda o exemplo do Reino Unido, onde ação foi posta com os mesmos fundamentos, tendo em final do mês de maio de 2022 a VW chegado a acordo numa ação que envolve mais de 90.000 condutores em que aceitou pagar um montante total de € 230M.

20. Em todas as situações citadas se verificava a mesma variedade de situações individuais que as RR./Recorridas e o Tribunal de Primeira Instância e o Tribunal da Relação de Lisboa, entendem existir na presente ação e, em todas elas, as RR./Recorridas, ou melhor a 1.ª R./Recorrida, aceitou indemnizar coletivamente os consumidores afetados não relevando a situação contratual específica. Estes factos demonstram com clareza que, relativamente ao que está em discussão na presente ação, os interesses em causa são interesses de uma coletividade de consumidores e não apenas os seus interesses individuais.

21. Além dos acordos atrás referidos, na União Europeia, aplicando-se a mesma legislação ou legislação substantiva semelhante, e consequentemente sendo os danos dos restantes consumidores europeus semelhantes aos dos consumidores residentes em Portugal, foram interpostas as diferentes ações judiciais.

22. Na Alemanha, em maio de 2020, o Tribunal Federal Alemão (Bundesgerichtshof) decidiu que a manipulação das emissões dos carros pela VW causou danos aos consumidores e que, em consequência, estes têm direito a ser indemnizados.

23. Em Itália, a ação coletiva apresentada pela associação de consumidore Altroconsumo junto do tribunal de Veneza foi declarada admissível em 2016 tendo o tribunal condenado a VW a pagar a cada consumidor uma indemnização de cerca €3.000,00.

24. Na Bélgica, a ação coletiva apresentada pela associação de consumidores Test-Achats junto do Tribunal de Bruxelas foi igualmente declarada admissível em dezembro de 2018, correndo atualmente os seus termos.

25. Nos Países Baixos, em 2018, a Dutch Authority for Consumers and Markets (ACM) multou o Grupo VW em €450,000 com fundamento em práticas comerciais desleais

A VW recorreu desta decisão para o tribunal administrativo de Roterdão. O tribunal decidiu suspender o processo aguardando uma decisão do TJUE sobre a noção de "dispositivo defeituoso" que foi finalmente proferida em dezembro de 2020 (Caso C-693/18, CLCV e Outros) pelo que o processo foi retomado recentemente.

26. Em Espanha, em janeiro de 2021, o tribunal de 1ª Instância de Madrid (Mercantil No1) decidiu, no âmbito da ação apresentada pela organização de consumidores OCU, que o dano para os consumidores pode ser assumido como estabelecido quando é uma consequência lógica e indefetível da prática desleal.

Consequentemente, o Tribunal de Madrid condenou a VW a pagar €16,3M a cerca de 5.400 consumidores.

27. Em França, a ação coletiva apresentada pela associação de consumidores CLCV contra a Volkswagen em setembro de 2020 junto do Tribunal de Paris (Tribunal Judiciaire de Paris) está a correr os seus termos.

28. Na Áustria, as várias ações apresentadas pela associação de consumidores Verein  für Konsumenteninformation (VKI) junto de vários tribunais austríacos também estão a correr os seus termos depois da confirmação da competência dos tribunais austríacos pelo TJUE.

29. Fora da Europa, no Brasil, em outubro de 2017, o tribunal do Estado do Rio (Cartórioda 1ª Vara Empresarial) condenou a Volkswagen a pagar R$1 bilhão (aprox. €150 M) a 17.000 proprietários de automóveis.

30. Em todos os processos judiciais citados está em causa a dimensão coletiva dos direitos dos consumidores – o direito de os consumidores serem ressarcidos pelos danos que sofreram devido às infrações das RR./Recorridas – e, não só tais ações foram consideradas admissíveis como, naquelas em que houve condenações, os tribunais proferiram-nas independentemente da situação individual de cada consumidor ou da sua específica situação contratual.

31. Para a apreciação da situação em crise é irrelevante se os consumidores pretendem manter os seus veículos e que estes sejam devidamente reparados ou se pretendem que estes sejam retomados assim como se celebraram um contrato de compra e venda, de leasing ou de aluguer. Nenhum destas diferentes situações interfere com o direito dos consumidores a serem ressarcidos pelos danos já referidos – direito coletivo de todos e individual homogéneo de cada um.

32. No quadro acima referido e que, como se viu, extravasa o plano nacional, todos os países em que foi levada à discussão judicial a questão agora em apreço têm reconhecido e aceite a legitimidade das associações de consumidores, não existindo dúvidas sobre a qualificação dos interesses como coletivos e individuais homogéneos.

33. Em Portugal, se assim não for (o que sucederá caso se mantenha a decisão do acórdão-recorrido), os consumidores portugueses ver-se-ão prejudicados relativamente a todos os restantes consumidores, violando-se um quadro geral que visa assegurar uma coerência na tutela coletiva, harmonizando-se as posições tomadas em cada um dos sistemas jurídicos, protegendo o fim último – o direito dos consumidores.

34. O que, sendo Portugal um dos poucos países da União Europeia que tem, há muito tempo, previsto na sua legislação a possibilidade de instauração de ações coletivas, sendo dotado da legislação mais avançada e eficaz devido aos regimes de opt out e da legitimidade das partes, é realidade que, em caso algum, se poderá aceitar.

35. Dito de outro modo, a manutenção da decisão do acórdão-recorrido corre o risco de tornar a ação popular totalmente inútil, criando uma desconfiança dos consumidores relativamente à forma como os Tribunais servem a justiça e, conforme a jurisprudência acima citada, pondo em causa a “tranquilidade ou, enfim, situações que põem em causa a eficácia do direito e põem em dúvida a sua credibilidade, quer na formulação legal, quer na aplicação casuística.”

36. No douto acórdão-recorrido, e depois de uma extensa referência às disposições constitucionais e legais aplicáveis ao caso dos autos, conclui aquele Tribunal, em concreto, pelo seguinte: “a ação popular alegadamente instaurada pela A. resvala dos terrenos da tutela coletiva, onde deveria conter-se, para os terrenos da ação individual, onde cabe a cada consumidor lesado alegar os factos concretos que fundam o seu direito e identificar a providência jurisdicional que reputa adequada à respetiva tutela do seu interesse individual. Para tal, a A. carece de legitimidade.”.

37. Por sua vez, no acórdão-fundamento (proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.09.2016 no âmbito do processo n.º 7617/15.7T8PRT.S1), conclui em sentido diverso: “Quando se destina à proteção de interesses coletivos, ela permite a coletivização de uma massa de ações individuais, mas como estão em causa bens privados de vários sujeitos, não pode dispensar uma análise individualizada da situação de cada um dos seus titulares.”.

38. E continua: “A legitimidade popular deve ser aferida em função de dois elementos: o poder de representação do autor popular, ou seja, a faculdade que cabe ao demandante de representar os titulares do interesse difuso; e o interesse em demandar do autor popular, isto é, a vantagem que o demandante retira da procedência da ação. Os representados numa ação popular têm de ser titulares de um mesmo interesse individual homogéneo, ou seja, todos devem ser atingidos pela violação de um mesmo interesse difuso ou todos devem estar em risco de serem afetados pela ofenda de um mesmo interesse difuso.”.

39. Continuando ainda: “Ora, em face disto e dos conceitos acimareferidos, entendemos que estamos perante interesses coletivos, passiveis de serem invocados numa ação popular. Na verdade, o que está aqui em causa é o interesse ou interesses dos autores e de cada um dos titulares de contratos de crédito para habitação, interesse ou interesses estes definidos nos termos acima referidos, fundamentalmente ligados ao pagamento das prestações. Face ao objeto da presente ação definido, como se sabe, pelo pedido e pela causa de pedir - não estão aqui em causa quaisquer particularidades, nomeadamente as decorrentes da eventual “multiplicidade dos factos que caraterizam a relação do Banco com todos e cada um dos seus mutuários”, como se escreveu na sentença recorrida, particularidades estas que, eventualmente e em fase ulterior do processo poderão ser apreciadas.”.

40. Concluindo finalmente que, “Tal como a ação foi proposta, é perfeitamente possível  uma apreciação indiferenciada de cada um dos titulares dos empréstimos, sendo que competirá ao Tribunal, numa fase ulterior do processo, averiguar se as particularidades invocadas pela podem ser abstraídas para a tomada de uma decisão numa ação popular, tendo sempre em atenção, como acima ficou referido, que a tutela coletiva não é possível sem a abstração do “lastro de individualização” que é caraterística das situações “standard”. que ter sempre em atenção que os elementos de facto a ter em conta não são os que eventualmente existam como específicos de cada situação, mas também os elementos de facto comuns a todas elas, devendo o Tribunal exercer o devido controlo sobre a prevalência daqueles primeiros elementos que eventualmente existam sobre os elementos de facto comuns que sustentam os pedidos formulados, sem nunca perder de vista a tendencial abstração daqueles elementos particulares como base quase necessária para a possibilidade da existência da ação popular. Na verdade, se qualquer elemento particular invocado por um demandante fosse suficiente para descaraterizar imediatamente o interesse como coletivo, praticamente seria impossível a existência de qualquer ação popular, ficando esta, na realidade, na disponibilidade daquele.”

41. Estão verificadosos requisitos de aplicação do disposto na alínea c) don.º1 do artigo 672.º do Código do Processo Civil, porquanto: (i) a incidência de ambos os acórdãos é sobre a mesma questão fundamental de direito (pressupostos da ação popular semelhante e pedidos e causas de pedir quem na sua execução, são também eles semelhantes; (ii) existe uma contradição entre a resposta dada pelo acórdão- recorrido e pelo acórdão-fundamento, já transitado em julgado; (iii) a oposição entre acórdãos é frontal e não apenas implícita ou pressuposta; (iv) a questão de direito sobre a qual se verifica a controvérsia (mais uma vez, pressupostos da ação popular e respetiva legitimidade para intentar a ação) foi essencial para determinar o resultado numa e noutra das decisões; (v) a divergência verifica-se num quadro normativo idêntico (no caso, Constituição da República Portuguesa, Lei de Ação Popular e Lei de Defesa do Consumidor e (vi) inexiste acórdão de uniformização sobre a questão jurídica em causa a que o acórdão recorrido tenha aderido.

42. Analisados os acórdãos em causa – acórdão-recorrido e acórdão-fundamento –,constata-se que o cerne em qualquer deles gira à volta da questão dos pressupostos da ação popular e respetiva legitimidade para instauração da ação correspondente.

43. Enquanto no acórdão-recorrido foi decidido, com base no petitório formulado, que a ação popular resvala dos terrenos da tutela coletiva para os terrenos da ação individual onde cabe a cada consumidor alegar os factos concretos que fundam o seu direito e identificar a providência jurisdicional que reputa adequada à respetiva tutela do seu interesse fundamental.

44. Já no acórdão-fundamento, tendo em conta o núcleo da matéria posta à apreciação do Tribunal, e pese embora as diferentes particularidades de cada um dos consumidores/titulares envolvidos, decidiu aquele que estavam reunidos os pressupostos da ação popular, sendo do interesse de qualquer daqueles titulares que lhe fosse reconhecido o direito, sendo certo, de acordo com o acórdão-fundamento, que poderão exercer ou não e da forma que tiverem por mais conveniente, a faculdade contida nesse direito, se reconhecido.

45. O acórdão-recorrido recorre ao pedido para definir o interesse lesado e esquece-se que será na causa de pedir que deve encontrar esse mesmo interesse. As consequências jurídicas concretas da lesão dos direitos dos consumidores são meras repercussões da lesão do bem jurídico que fundamenta a ação popular e não o próprio interesse em causa. O direito à reparação dos danos (seja qual for a forma como esta reparação se materializa) é um interesse individual homogéneo, porque pode ser divisível na esfera de cada um conforme decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça.

46. As ações populares, principalmente, as que respeitam aos interesses do consumidores abrangem quer os interesses individuais homogéneos, quer os interesses coletivos quer os interesses difusos por força do disposto na alínea f) do artigo 3º da Lei de Defesa do Consumidor e nos n.ºs 2 e 3 do artigo 22.º da Lei de Ação Popular.

47. Na presente ação o que está em causa é o software introduzido pela 1ª R./Recorrida nos veículos que respetivamente as RR./Recorridas produziram, importaram e venderam e que manipula os testes que controlam as emissões de gases de tais veículos. O que está em causa igualmente é a falta de informação e a prestação de informação falsa na produção, importação e venda de veículos aos consumidores. O que está em causa são os danos que tais comportamentos provocaram nos consumidores que adquiriram tais veículos, nos locais em que o fizeram.

48. As lesões provocadas pelas infrações das RR./Recorridas - que são as mesmas e são genéricas, independentes da situação individual de cada consumidor: 1.ª R./Recorrida introduziu tal manipulação e as 2.ª a 4.ª RR./Recorridas importaram e venderam tais veículos aos consumidores - afetaram um elevadíssimo número de consumidores.

49. Tais infrações lesaram coletivamente o bem jurídico do consumo e individualmente, e de forma homogénea, a esfera jurídica dos consumidores. Os pedidos visam, essencialmente que, com a condenação da ação das RR./Recorridas, esta permita a cada um dos consumidores lesados exercer o seu direito à reparação de danos.

50. O dano dos consumidores é também o mesmo: adquiriram veículos convencidos que tinham determinadas características, nomeadamente, de emissão de gases e de desempenho e tal não correspondeu à verdade estando lesados no seu património.

Logo, existe não só um interesse coletivo de todos os consumidores afetados em Portugal como um interesse individual homogéneo de cada um deles a serem ressarcidos pelo dano que sofreram.

51. A apreciação jurídica da situação que deu origem aos danos sofridos pelos consumidores é, também, necessária e inequivocamente a mesma. A apreciação a ser feita pelo tribunal nesta ação é se a introdução de um dispositivo é uma ação ilícita, culposa e se é causa adequada ou não dos danos aos consumidores. A apreciação é única e indiferenciada. A quantificação e determinação da amplitude do dano é que decorre de uma ação individual. E por exigir-se esta determinação individual é que os interesses dos consumidores lesados deixam de ser apenas interesses coletivos e passam a ser interesses individuais homogéneos.

52. Significa isto que, para além de acontecer senão em todas na grande maioria das ações populares, o facto da situação concreta de cada consumidor no que diz respeito à quantificação dos danos que sofreu com a prática ilegal das RR./Recorridas ser diferente em nada interfere com os interesses para cuja defesa a ação popular foi criada. O direito de cada um destes consumidores lesados a ser compensado pelos danos sofridos consubstancia um seu interesse individual, sendo que a lesão praticada por cada uma das RR./Recorridas é igual na substância e na forma, afetando a pluralidade dos seus clientes de forma homogénea, pelo que, coletivamente, estamos perante a necessidade de tutela do mesmo interesse coletivo.

53. Na verdade, para a apreciação da situação em crise é irrelevante se os consumidores pretendem manter os seus veículos e que estes sejam devidamente reparados ou se pretendem que estes sejam retomados assim como se celebraram um contrato de compra e venda, de leasing ou de aluguer. Nenhum destas diferentes situações interfere com o direito dos consumidores a serem ressarcidos pelos danos já referidos – direito coletivo de todos e individual homogéneo de cada um.

54. O que está em causa na presente ação é também a responsabilidade de cada uma das RR./Recorridas mesmo quando entre elas e o consumidor não foi celebrado, diretamente, um contrato dado que: a responsabilidade pela prestação de informação cabe a qualquer interveniente na cadeia de produção consumo (n.ºs 1 e 2 do artigo 8.º da Lei de Defesa do Consumidor), sendo solidária a responsabilidade dos vários intervenientes na cadeia desde a produção à distribuição (n.º 5 do artigo 8.º da Lei de Defesa do Consumidor); a responsabilidade pela qualidade dos bens e serviços (artigo 4.º da Lei de Defesa do Consumidor) cabe igualmente quer ao vendedor, quer ao importador, quer ao produtor já que releva para efeitos da conformidade dos bens com o contrato (n.º 1 do artigo 2.º e artigo 6º da Lei n.º 67/2003); a responsabilidade pelas práticas comerciais desleais é também de todas as recorridas já que todas elas contribuíram embora de formas diferentes para a sua conceção, divulgação e disponibilização ao consumidor (alínea b) do artigo 3.º e artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 57/2008 e n.º 5 do artigo 8.º da Lei de Defesa do Consumidor).

55. Por fim, a legitimidade ativa da Recorrente decorre diretamente da lei. Nos termos dos artigos 14.º e 2.º n.º 1 in fine da Lei de Ação Popular, a Recorrente representa por iniciativa própria e sem necessidade de mandato ou autorização expressa, todos os titulares dos direitos ou dos interesses em causa, neste caso, todos os clientes das recorridas que sejam consumidores portugueses ou residentes em Portugal e que tenham sido afetados pelas práticas das recorridas. E representa-os, realce-se, independentemente de ter ou não interesse direto na demanda, o que constitui uma exceção ao disposto no artigo 30.º do Código do Processo Civil em que se faz depender a legitimidade do autor do interesse direto em demandar.

56. Face a todo o exposto, importa concluir que se verificam os pressupostos da ação popular e que a Recorrente tem legitimidade para a propositura da ação, tendo o acórdão-recorrido, ao decidir da forma como o fez, incorrido em violação da lei (designadamente dos n.ºs 1 e 2 do artigo 60.º e n.º 3 do artigo 52.º da Constituição da República Portuguesa; dos n.ºs 2 e 3 do artigo 22.º da Lei de Ação Popular, da alínea f) do artigo 3.º da Lei de Defesa do Consumidor e do artigo 31.º do Código do Processo Civil), o que impõe a respetiva revogação.


///

Contra alegaram as Recorridas, tendo formulado as seguintes conclusões (suprimem-se as relativas à inadmissibilidade da revista).

(…)

   (…) mesmo que admitido o recurso, o mesmo deverá ser julgado improcedente, sendo confirmadas as decisões da 1.ª Instância e do Tribunal a quo, que negaram à Autora legitimidade para instaurar a presente ação popular nos termos em que o fez.

  .  A ação popular apenas é admissível se estiverem emcausa (i) interesses individuais difusos ou individuais homogéneos, com uma dimensão trans-individual e (ii) que suscitem a invocação pelos demandados de meios de defesa puramente comuns; pelo contrário, se a apreciação individualizada da situação de cada um dos titulares dos direitos for imprescindível, então o caso já não se enquadrará no âmbito material da ação popular. 

Revertendo  ao caso  sub judice, o facto de a matéria dos autos estar relacionada com o direito do consumo e de a Autora, pelos seus âmbito de atividade e estatuto, ser uma associação de defesa dos direitos dos consumidores não basta para fundamentar a legitimidade popular da Autora; era ainda necessário que a Autora demonstrasse – o que não fez - que atua no exercício e prossecução de um direito difuso lato sensu com uma dimensão transindividual, e insuscetível de gerar a possibilidade de invocação, pelos demandados, de meios de defesa individualizados e próprios de cada um dos demandados. 

v.  Desde logo e em primeiro lugar, os pedidos (e sua causa de pedir) não subsumem o âmbito material da ação popular / da legitimidade popular. 

w. Para além dos pedidos de natureza preventiva ou inibitória, os únicos pedidos admissíveis no âmbito de uma ação popular instaurada por uma associação, como acontece neste caso, são pedidos indemnizatórios (Secção 3.2.1 §172). Ora, os concretos pedidos formulados pela Autora, não têm natureza preventiva / inibitória ou indemnizatória (no caso dos pedidos formulados sob as alíneas a), b) e c) da Petição Inicial), e não traduzem um pedido de indemnização global tal como previsto no artigo 22.º, n.º 2, da Lei de Ação Popular (no caso do pedido vertido na alínea d) do petitório), pelo que não se subsumem ao âmbito material da ação / legitimidade popular 

x. A legitimidade popular que é reconhecida à Autora não admite que esta se substitua a cada um destes consumidores no seu direito de exercício jurídico-processual com a extensão que pretende, designadamente (i) na tomada de decisão quanto à execução / manutenção de cada um dos seus contratos de compra e venda / de utilização de veículos, (ii) na tomada de decisão quanto ao exercício do suposto direito à alegada reparação do veículo e/ou (iii) na tomada de decisão quanto à alegada resolução do contrato e retoma do veículo.

 y.  E nem se diga que seria admissível a prolação de uma decisão que deixasse em aberto a concretização, em função da vontade individual de cada consumidor, das variadas alternativas que, na prática, cada um dos pedidos formulados suscita. A figura da condenação genérica não admite esta hipótese e não existe qualquer outra via processual que a admita.Por outro lado,o exercício,por cada consumidor,das opções que cada pedido compreende não pode ser concebido em sede extrajudicial (a lei não o admite e o direito de defesa e contraditório das aqui Rés não o tolera)

segundo lugar, os interesses individuais sub judice não são interesses individuais homogéneos, não traduzem uma dimensão supra-individual, nem recaem sobre bens gozados de forma concorrente pela comunidade.

aa. . Pelo contrário, o julgamento dos pedidos deduzidos pela Autora depende da apreciação de factos específicos atinentes a cada uma das viaturas, seus proprietários e respetivos contratos de compra e venda (e respetivos enquadramentos jurídicos), o que não se coaduna com uma tutela coletiva como a que é visada por uma ação popular (Secção 3.2.1 §189) 

As especificidades associadas a cada consumidor não se refletem apenas ao nível da definição do quantum da lesão individual, mas também e desde logo ao nível dos factos que têm de ser demonstrados para aferir da existência de facto ilícito e da verificação de danos e, em geral, para aferir a procedência de cada um pedidos formulados na Petição Inicial.

 Os fundamentos de heterogeneidade aqui em causa são factos e questões centrais que contendem, nomeadamente, (i) com a qualificação dos titulares dos interesses em causa como consumidores ou não, (ii) com a própria existência de facto ilícito, (iii) com a própria existência de dano, (iv) com a definição do quantum desse dano e (v) com a concreta pretensão peticionada (Secção 3.2.2 §221)

.  própria existência de um defeito é uma premissa individual e heterogénea, na medida em que o conceito de defeito é também um conceito subjetivo, que depende das expectativas e finalidades de cada consumidor.

 A referida heterogeneidade tem consequências não só ao nível da fixação do quantum dos danos, mas, e antes, ao nível da própria existência do direito ao respetivo ressarcimento

 Nesse sentido conclui o parecer.

  Em terceiro lugar, a admissibilidade da presente ação implicaria que as Rés ficassem impossibilitadas de exercer os meios de defesa de que poderiam lançar mão caso as pretensões que aqui surgem aglomeradas fossem acionadas individualmente, por cada um dos consumidores titularesdos direitos em causa,oquenãosepodeadmitir (Secção3.2.3).

De facto, os pedidos formulados pela Autora convocam a invocação, pelas Rés, de meios e fundamentos de defesa específicos para cada titular dos interesses individuais em causa, variando com respeito (i) a cada um dos proprietários, locatários ou utilizadores em causa e,ainda,com respeito (ii)acada um dos múltiplos,indeterminados eindividualizados factos e enquadramentos jurídicos que potencialmente fundamentam cada um dos quatro pedidos da ação – o que impede o exercício cabal do direito de defesa das Rés, condicionando-o fatalmente.

 

Veja-se, por exemplo, as exceções perentórias de caducidade e de prescrição de direitos e também a exceção dilatória de falta de interesse processual da Autora e dos consumidores por esta supostamente representados, cujos respetivos fundamentos, apenas no caso concreto de cada veículo / consumidor, poderão ser sindicados (Secção 3.2.3 §§231-233).

Em suma: o uso efetuado in casu pela Autora da ação popular e a interpretação prosseguida por esta quanto ao regime da ação e legitimidade popular consubstancia uma interpretação dos artigos 1.º e 2.º da Lei de Ação Popular em sentido desconforme com o disposto nos artigos 2.º, 13.º, 20.º, n.º 4, e 52.º, n.º 3, da CRP (que consagramo princípio do Estado de Direito, os direitos de defesa, ao contraditório e à igualdade de armas, todos eles corolários do princípio do processo justo, o princípio da igualdade e o direito de ação popular). Assim, sob pena de violação dos princípios e direitos constitucionais supra referidos, deve o Tribunal interpretar os artigos 1.º e 2.º da Lei de Ação Popular num sentido conforme à CRP, ou seja, no sentido de que a lei constitucional não permite a instauração de uma ação popular por reporte a interesses (heterógenos) como os que estão em causa nos autos, nem a formulação de pedidos que têm subjacente tais interesses (heterógenos), que não têm um conteúdo puramente indemnizatório e que desconsideram as particularidades (individuais e heterogéneas, relativas a cada um dos consumidores especificamente considerados) que a apreciação e decisão dos mesmos necessariamente compreende (Secção 3.3 §§235-239)

Assim, deve o Tribunal desaplicar a norma que se extrai dos artigos 1.º e 2.º da Lei de Ação Popular caso interpretada (como propõe a Autora) no sentido contrário ao supra exposto, por inconstitucionalidade dessa interpretação normativa, o que desde já se requer e suscita para todos os efeitos, devendo, pelo contrário, ser adotada uma interpretação conforme à CRP, nos termos melhor explicitados supra (Secção 3.3 §240).

Em face do disposto, é forçoso concluir que decidiu bem o Acórdão Recorrido e que a revogação desta decisão violaria o disposto nos artigos 13.º, 20.º, n.º 4 e 52.º, n.º 3, da CRP, na Lei de Ação Popular, mormente nos seus artigos 1.º e 2.º, e nos artigos 3.º, 4.º e 278.º, n.º 1, alíneas d) do CPC (Secção 3.3 § 241).

Em consequência: Não estando em causa nenhuma das categorias de interesses para os quais a lei prevê a ação popular e não se subsumindo os pedidos formulados pela Autora no âmbito da lei / legitimidade popular, falece o pressuposto básico para que os mesmos possam ser objeto de uma ação popular e possam ser acionados por uma entidade que não o seu titular. Tal vale por dizer que a Autora não tem legitimidade ativa para instaurar a presente ação (Secção 3.4.1, §§ 242-246).

Assim, não sendo aplicável ao presente caso o disposto no artigo 2.º, n.º 1, da Lei de Ação Popular, a Autora carece de legitimidade para agir em representação dos consumidores que são titulares dos interesses individuais suscitados nos autos, o que tem por consequência a absolvição das Rés da instância, nos termos previstos no artigo 278.º, n.º 1, alínea d) do CPC, como aliás bem decidiu o Acórdão Recorrido (Secção 3.4.1, §§ 247-255).

Nesse sentido concluiu o parecer.

Não obstante, caso este Tribunal ad quem entenda que o facto de os presentes autos não se subsumirem ao âmbito material de aplicação do regime da ação e/ou que legitimidade popular não consubstancia a exceção de ilegitimidade da Autora, sempre deverá absolver as Rés da instância por falta de fundamento jurídico-processual para a instauração da presente ação sob a forma de ação popular, o que configura uma exceção dilatória inominada, nos termos do artigo 576.º, n.º 2, do CPC.


///

A questão decidenda resume-se em saber se a Autora/recorrente tem legitimidade – não para instaurar uma acção popular, que a tem desde logo em face da norma do art. 31º do CPC que rege sobre a legitimidade na acção para tutela de interesses difusos – mas para formular os concretos pedidos que apresentou.

Fundamentação.

O factualismo a levar em consideração é o que consta do Relatório supra e ainda o seguinte:

O artigo 3.º dos Estatutos da DECO consagra que:

1 - A Associação tem por objeto a defesa dos direitos e dos legítimos interesses dos consumidores, podendo para o efeito desenvolver todas as atividades adequadas a tal fim, nomeadamente:

a) Fomentar o agrupamento dos consumidores para a defesa dos interesses que lhes são próprios;

b) Realizar análises comparativas da qualidade e preços dos produtos e serviços existentes no mercado;

c) Coligir elementos e elaborar estudos sobre a evolução dos preços e dos consumos;

d) Criar serviços de consulta dos consumidores;

e) Divulgar os resultados dos estudos e análises, bem como todas as informações suscetíveis de desenvolver a capacidade de análise crítica dos consumidores;

f) Informar os associados e o público em geral acerca das suas atividades, podendo promover a edição de publicações, diretamente ou por intermédio de organizações ou empresas em que participe;

g) Promover reuniões para debate de problemas relacionados com o seu objeto;

h) Apoiar ou comparticipar em ações úteis à melhoria das condições de vida da população e à defesa do meio ambiente;

i) Colaborar em geral com entidades nacionais ou estrangeiras que prossigam fins análogos ou que, pela sua natureza, possam apoiar as ações desenvolvidas pela Associação;

j) Promover a realização de ações de formação e de outras iniciativas de informação de consumidores e de profissionais, destinadas à educação e ao desenvolvimento de uma sã cultura para o consumo, podendo, para esse efeito, candidatar-se a projetos e a fundos de financiamento nacionais e internacionais;

l) Desenvolver formação profissional na área do consumo e áreas transversais;

m) Estabelecer protocolos e realizar parcerias conjuntas com outras entidades, públicas ou privadas;

n) Integrar organizações internacionais sem fins lucrativos que prossigam fins similares, em particular a promoção e defesa dos direitos dos consumidores;

o) Integrar grupos de trabalho, conselhos consultivos ou outros comités de entidades públicas ou privadas, no âmbito das suas atribuições;

p) Promover a formação e cultura jurídica no domínio do direito do consumo;

q) Defender, promover e representar, por todos os meios legais e judiciais ao seu alcance, os interesses coletivos e individuais dos consumidores;

r) Representar individualmente os consumidores em mecanismos alternativos de resolução de conflitos de consumo.

O direito.

A legitimidade consiste numa posição da parte perante determinada acção – posição que lhe permite dirigir a pretensão formulada ou a defesa que contra esta possa ser oposta. Precisamente para assinalar esta referência concreta da legitimidade à acção, os autores antigos designavam-na por legitimidade ad causam – legitimação para determinada acção – em contraposição à legitimatio ad processum, que era a capacidade judiciária. (Manual de Processo Civil, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio da Nora, 2ª edição, pag. 131).

O conceito de legitimidade consta do art. 30º do CPCivil, segundo o qual:

1. O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer.

2. O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.

3. Na falta de indicação em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito de legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor


A legitimidade, quer activa, quer passiva, não é algo de fixo, afere-se pelo pedido e causa de pedir, tal como os apresenta o autor. (Ac. STJ de 14.10.2004, P. 04B2212).

Isto em termos gerais, pois que relativamente à legitimidade na acção popular o critério consta do art. 31º, ali identificada como acções para tutela de interesses difusos.

Como é consabido, a acção popular tem como objecto a tutela de interesses difusos, o que compreende os interesses difusos stricto sensu, os interesses colectivos e os interesses individuais homogéneos.

Os primeiros, os interesses difusos são insusceptíveis de individualização, como por exemplo os interesses na preservação do ambiente, e do património cultural.

Os interesses colectivos dizem respeito a um grupo, uma categoria, um conjunto de pessoas ligadas entre si por uma relação jurídica (pertença a um associação, a uma classe, a uma categoria) – Jorge Pegado Liz, Introdução ao Direito e à Política de Consumo, Notícias Editoras, 1999, pag. 227.

Nos interesses individuais homogéneos os membros do conjunto são titulares de direitos subjectivos clássicos, perfeitamente cindíveis, cuja agregação resulta apenas da similitude da relação jurídica estabelecida com a outra parte, relação jurídica de conteúdo formalmente idêntico (Jorge Pegado Liz, ob. cit. Pag. 228).

Os interesses individuais homogéneos, esses são a expressão individualizada dos interesses colectivos ou dos interesses difusos.

O direito de acção popular está expressamente consagrado no art. 52º, nº3 da Constituição da República Portuguesa, nos seguintes termos:

É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:

a) promover a prevenção ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural;

b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais

A concretização e tradução práticas, no campo do direito processual, do direito de petição e acção popular, consta da Lei nº 83/95 de 31.08.

Diz o art. 1º, sob a epígrafe “Âmbito da presente lei”:

1. A presente lei define os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de acção popular para a prevenção ou a perseguição judicial das infracções previstas no nº3 do art. 52º da Constituição.

2. Sem prejuízo do disposto no número anterior, são designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consume de bens e serviços, o património cultural e o domínio público.

Nos termos do nº1 do art. 2º “são titulares do direito procedimental participação popular e do direito de acção popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda.”

No que tange ao escopo da sentença a proferir na acção popular civil (a lei prevê também a acção popular administrativa), o legislador concentra-se na responsabilização civil subjectiva e objectiva do agente, nos arts. 22º e 23.

No art. 22º, nº1, determina-se que “a responsabilidade por violação dolosa ou culposa dos interesses previstos no nº1 constitui o agente causador no dever de indemnizar o lesado ou lesados pelos danos causados.”

No nº2 do mesmo artigo, explicita-se que “a indemnização pela violação de interesses de titulares não individualmente identificados é fixada globalmente.”

Sendo incontroverso a legitimidade da Autora/recorrente para instaurar uma acção popular, em representação dos consumidores que adquiriram em Portugal veículos automóveis produzidos e/ou comercializados pelas RR, os quais alegadamente tinham inserido um software que mascarava a emissão de gases poluentes em níveis superiores aos permitidos por lei, o que importa saber é se tem legitimidade para formular os concretos pedidos da acção.

Entendeu o acórdão recorrido que não, posição que justificou nos termos seguintes:

A A. instaurou ação popular em representação dos consumidores que adquiriram em Portugal veículos automóveis produzidos e/ou comercializados pelas RR., os quais alegadamente tinham inserido um software que mascarava a emissão de gases poluentes em níveis superiores aos permitidos por lei.

A A., como resulta dos seus estatutos, acima transcritos na parte relevante, está legitimada para instaurar ação popular em defesa dos interesses difusos (em sentido estrito e em sentido lato) dos consumidores, assim como dos correspondentes interesses individuais homogéneos.

Porém, a A. não tem legitimidade para apresentar em juízo pedidos de providência jurisdicional próprios da clássica ação individual, norteada pela tutela do interesse individual de cada um dos consumidores concretamente lesados.

Ora, é nisso que desemboca a ação proposta, conforme decorre do petitório formulado.

Com efeito, a A. pretende que o tribunal condene as RR. a retomarem os veículos afetados pagando aos respetivos proprietários um valor que dependerá do valor inicial do veículo, do ano, da kilometragem mas que não poderá ser inferior a um montante entre os 12.500 USD e os 44.000 USD oferecido aos consumidores norte-americanos, ou a repará-los, se for essa a opção dos consumidores e se a reparação do veículo for possível; a assumirem os custos remanescentes dos contratos de aluguer ou leasing celebrados pelos consumidores para aquisição dos veículos afetados, no caso dos consumidores optarem por porem fim a tais contratos; a pagarem aos consumidores uma indemnização pelas informações falsas produzidas e pela depreciação do valor dos veículos afetados, não inferior a um montante entre os 5.100 USD e os 10.000 USD ou, em alternativa, se o tribunal assim o entender, a 15% do valor de compra do veículo. Por sua vez nas suas contestações as RR. aduziram argumentos suscetíveis de questionarem cada uma das diversas pretensões imputáveis a cada consumidor em concreto, se identificado, seja em termos de formação da vontade de contratar, de dano concretamente sofrido, de reparação já efetuada, de caducidade do direito a ser exercido.

Assim, a ação popular alegadamente instaurada pela A. resvala dos terrenos da tutela coletiva, onde deveria conter-se, para os terrenos da ação individual, onde cabe a cada consumidor lesado alegar os factos concretos que fundam o seu direito e identificar a providência jurisdicional que reputa adequada à respetiva tutela do seu interesse individual.

Para tal, a A. carece de legitimidade.”

Dissentindo do assim decidido, a Recorrente alega que se devem ter por preenchidos os pressupostos da ação popular e, consequentemente, ter a Recorrente legitimidade ativa – porquanto as infrações cometidas pelas RR./Recorridas lesaram coletivamente o bem jurídico do consumo e individualmente, de forma homogénea, a esfera jurídica dos consumidores e, bem assim,

os pedidos visam, essencialmente que, com a condenação da ação das RR./Recorridas, a ação permita a cada um dos consumidores lesados exercer o seu direito à reparação dos danos –, assume grande relevância social, que não interessa apenas às partes da ação, mas, no fundo, a toda a comunidade.”

Será assim?

É pacífico que nas acções para tutela de interesses difusos não existe propriamente um direito subjectivo nem uma relação jurídica de que o autor seja titular. Por isso, o art. 31º do CPCivil concedeu especialmente legitimidade activa a cidadãos no gozo dos seus direitos civis, a autarquias locais, associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e Ministério Público, nos termos previstos na lei.

Na acção popular, ao contrário dos interesses directos e individuais em que o critério aferidor da legitimidade consta do art. 30º do CPC, está em causa a tutela de interesse meta-individuais, que não apresentam relação identificável e imediata com o indivíduo, desenquadrado da sua inserção comunitária.

Deste modo, como refere Sérgio Nuno Marques Antunes, in O direito de acção popular no contencioso administrativo, pag. 72, citado no Acórdão do STJ de 20.10.2005, supra citado:

 “Em termos gerais, deve entender-se que, nos casos de acção popular, a legitimidade é conferida ao cidadão uti civis (ou uti universis) e já não uti singulari, pois a sua atribuição opera-se, então, a partir da integração dos sujeitos numa categoria -universo, abstracta e objectivamente definida, não havendo lugar à indagação ou especificação do interesse desse sujeito em cada caso concreto.”

No que especificamente respeita a este tipo de acção, refere Miguel Teixeira de Sousa que “a legitimidade popular é um pressuposto processual, pelo que deve ser apreciado em função do objecto da acção popular.


Tendo isto presente, revertamos ao caso dos autos.

Nos três primeiros pedidos, a Autora e ora Recorrente pede a condenação dos RR a:

- Retomar os veículos afectados pagando aos respetivos proprietários um valor que dependerá do valor inicial do veículo, do ano, da kilometragem mas que não poderá
ser inferior a um montante entre os 12.500 USD e os 44.000 USD oferecido aos consumidores norte-americanos; ou

-  A repará-los, se for essa a opção dos consumidores e se a reparação do veículo for possível;

-  A assumirem os custos remanescentes dos contratos de aluguer ou leasing celebrados pelos consumidores para aquisição dos veículos afectados, no caso dos consumidores optarem pôr fim a tais contratos;

Estes pedidos não são os próprios da acção popular, em qualquer das modalidades que esta pode assumir no direito português: acção preventiva, acção anulatória, acção repressiva, acção indemnizatória ou supletiva ou substitutiva (cf. Paulo Otero, “A acção popular, configuração e valor no actual direito português”).

 O pedido de condenação das RR a retomar os veículos, está dependente, como bem se observa no Parecer junto aos autos da autoria dos Professores Paulo Mota Pinto e Maria José Capelo, de um evento futuro e incerto: a manifestação de vontade, por cada um dos consumidores, da resolução dos contratos de aquisição dos veículos.

Acresce, como é bom de ver, que quer aquele pedido quer o formulado em alternativa, de condenação da Ré a reparar os veículos, “se a reparação for possível”, são aptos a suscitar uma multiplicidade de questões, seja no plano dos factos seja no plano do direito, nas particularidades de cada caso, permitindo às demandadas invocar fundamentos de defesa específicos.

O mesmo se passa com o pedido de assunção nos custos remanescentes nos contratos de aluguer e leasing, no caso de os consumidores optarem por pôr fim a tais contratos.

Ora como decidiu o Acórdão deste STJ de 08.09.2016, P. 7617/15: “a acção popular não é admissível quando o demandado possa invocar contra algum ou alguns dos representados uma defesa pessoal, isto é, quando possa utilizar fundamentos de defesa específicos contra algum desses representados.

Assim, a possibilidade de o demandado numa acção popular invocar diferentes defesas contra vários representados pode ser utilizada como um critério prático para verificar se eles são titulares de um mesmo interesse individual homogéneo.”

Como bem referido no Parecer junto aos autos da autoria dos Professores Paulo Mota Pinto e Maria José Capelo, “a acção fundou-se em direitos individuais com origem contratual diferenciada, dos quais fez emergir pedidos de condenação em prestações de facere, dependentes de atos futuros e incertos de cada consumidor, e prestações de carácter indeterminável, que não obedece aos fins típicos de uma acção popular, à luz do quadro normativo aplicável à acção popular no ordenamento jurídico português.” 

Subscreve-se inteiramente o seguinte passo do acórdão recorrido:

“A Autora, como resulta dos seus estatutos (…), está legitimada para instaurar acção popular em defesa dos interesses difusos (em sentido estrito e em sentido lato) dos consumidores, assim como dos correspondentes interesses individuais homogéneos.

Porém, a Autora não tem legitimidade para apresentar em juízo pedidos de providência jurisdicional próprios da clássica acção individual, norteada pela tutela do interesse individual de cada um dos consumidores concretamente lesados.”

Vejamos por último o pedido formulado em d), em que se pede a condenação solidária dos RR a:

“Pagar aos consumidores uma indemnização pelas informações falsas produzidas e pela depreciação do valor dos veículos afectados, que não pode ser inferior a um montante entre os 5.100 USD e os 10.000 USD que a 1ª R. se comprometeu a pagar aos consumidores norte-americanos ou, em alternativa, se o tribunal assim o entender a 15% do valor de compra do veículo”.

O art. 553º, nº1. do CPC, admite a formulação de pedidos alternativos, “com relação a direitos que por sua natureza ou origem sejam alternativos, ou que possam resolver-se em alternativa.”

“Na base do pedido alternativo está uma obrigação alternativa, de tal forma que o direito do autor fica satisfeito efetuando-se uma só das prestações, podendo afirmar-se que são juridicamente equivalentes. O art. 553º do CPC refere dois tipos de direitos alternativos: os que o são originariamente ou por natureza e os que, embora não o sejam inicialmente, se podem resolver em alternativa. A primeira espécie prevista nos arts. 543º e ss do CCivil, é aquela em que a obrigação nasce ou se constitui de modo alternativo.

(…)

Por seu turno, os direitos que se podem resolver em alternativa respeitam a casos em que o credor, perante o incumprimento do devedor, tem a hipótese de optar por uma das várias soluções que a lei lhe concede.” (Código de Processo Civil Anotado, I, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa). 

Patentemente que não estamos perante uma obrigação alternativa.

A Autora/Recorrente deixou ao critério do tribunal a opção pela condenação dos RR em indemnização a fixar entre 5.100 USD e os 10.000 USD, ou, se assim se entender, “em 15% do valor de compra do veículo.”

Trata-se de formulação de pedido inadmissível, por não sendo pedidos alternativos nem pedidos subsidiários (art. 554º do CPC), deixar ao tribunal a opção pela procedência de uma ou outra das alternativas, o que o nosso ordenamento processual não prevê.

Por outro lado, estando em causa “a violação de interesses de titulares não individualmente identificados, a indemnização é fixada globalmente” (art. 22º/2), não nos termos em que foi formulada na acção.

Tem inteira razão o acórdão recorrido quando a finalizar refere:

“A acção popular alegadamente instaurada pela Autora resvala dos terrenos da tutela colectiva, onde deveria conter-se, para os terrenos da acção individual, onde cabe a cada consumidor lesado alegar os factos concretos que fundam o seu direito e identificar a providência jurisdicional que reputa adequada à respectiva tutela do seu interesse individual.”

Com o que improcedem na totalidade as conclusões da Recorrente.

Decisão.

Termos em que se nega a revista e se confirma o acórdão recorrido.

Sem custas, art. 4º, nº1, b) do Regulamento das Custas Processuais.

Lisboa, 06 de julho de 2023

Ferreira Lopes (relator)

Manuel Capelo

Nuno Pinto Oliveira