Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08S459
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA GRANDÃO
Descritores: PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
FACTOS CONCLUSIVOS
ACIDENTE DE TRABALHO
CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
DEPENDÊNCIA ECONÓMICA
Nº do Documento: SJ20080916004594
Data do Acordão: 09/16/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I – Inscrevem-se nos poderes do STJ em matéria de facto, os de distinguir a matéria de facto da matéria de direito e, consequentemente, determinar se certa resposta deve, ou não, ser eliminada, utilizando, sendo esse o caso, o mecanismo correctivo enunciado no n.º 4 do art. 646.º do CPC.
II - Consistindo uma das questões jurídicas a dirimir em determinar a natureza jurídica do contrato que vigorava entre as partes, assumem cariz conclusivo e, por isso, devem eliminar-se, as afirmações constantes da matéria de facto, de que o sinistrado trabalhava «sempre sob as ordens e direcção do réu (…)» e, bem assim, que aquele desenvolva a sua actividade de pintor «sob a autoridade, direcção e fiscalização do réu (…)».
III - Não se demonstra a existência de um contrato de trabalho, se da factualidade provada apenas decorre que o sinistrado foi contratado pelo réu para, «mediante retribuição», pintar uma moradia pertencente à sua filha e genro, pertencendo ao réu as tintas, utensílios e apetrechos necessários, que indicava ao sinistrado o que fazer e quais os materiais a utilizar.
IV - A dependência económica a que alude o n.º 2 do art. 2.º da LAT pressupõe, por um lado, a integração do prestador da actividade no processo empresarial de outrem (elemento que pode ser coadjuvado com a continuidade no exercício da actividade) e, por outro, que a actividade desenvolvida não seja aproveitada por terceiro.
V - Não pode afirmar-se a referida dependência económica se da factualidade apenas consta que o sinistrado foi contratado para pintar a referida moradia, e se desconhece os dias em que o mesmo ali exerceu a actividade, ou seja, não resulta a sua integração no ciclo produtivo da entidade a quem ele serviu.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:



1- RELATÓRIO


1-1

AA e BB esta última por si e em representação de sua filha menor CC, intentaram, no Tribunal do Trabalho de Aveiro, a presente acção especial, emergente de acidente de trabalho, contra DD e mulher EE, FF e mulher GG, reclamando dos demandados, conforme discriminação prestacional e quantitativa lavrada na P.I., a reparação do acidente laboral de que foi vítima mortal HH, respectivamente marido, pai e avô das identificadas Autoras.
Em contestação conjunta, os Réus peticionam a necessária improcedência da acção, dizendo que não haviam aprazado qualquer vínculo prestacional, designadamente laboral, com a vítima, e que esta apresentava, à data do acidente, uma taxa de alcoolemia de 1,35 g/l.
1.2.
Foi exarado despacho saneador, de que recorreram os Réus DD e mulher, cujo recurso foi recebido como agravo e com subida diferida.
Instruída e discutida a causa, veio entretanto o M.mo Juiz a julgar a acção totalmente improcedente, absolvendo os quatro Réus do pedido.
Da respectiva sentença apelaram as Autoras.
Sob o fundamento – não impugnado – de que as apelantes apenas censuravam o segmento decisório que absolvera o Réu FF, deixando incólume o demais sentenciado – a absolvição dos restantes Réus – firmou a Relação o entendimento de que se mostrava definitivamente prejudicado o conhecimento do recurso de agravo.
Enfrentando, de seguida, a apelação, cujo objecto circunscreveu, como anunciara, no sobredito segmento, a Relação deu-lhe parcial provimento, por via do que condenou “... o Réu FF a pagar à Autora AA a pensão anual vitalícia do montante de € 1.535,52, elevável e actualizável nos sobreditos termos, e ainda a pagar-lhe o subsídio de morte e as despesas de funeral, nos montantes, respectivamente, de € 4.387,20 e € 1.462,40, tudo acrescido de juros à taxa legal, como referido, no mais se absolvendo o Réu do pedido”.
1.3.
Contra tal Acórdão apenas reagiu o Réu FF, mediante a presente revista, onde convoca o seguinte núcleo conclusivo:
1- em face da matéria dada como provada, impunha-se a absolvição do recorrente: veja-se o grau de alcoolemia; a casa é propriedade da família Alcatrão; as obras não foram feitas na casa do FF; não se sabe em que circunstâncias se deu o acidente, pelo que se não pode considerar o mesmo como acidente de trabalho; o falecido estava com uma escada de ferro que o FF não conhecia, quando ele tinha uma escada;
2- no caso em litígio, as AA. não alegaram a existência de um contrato de trabalho, nem tal se pode inferir da factualidade provada;
3- trata-se de um contrato autónomo, com todas as características de contrato de empreitada, porquanto a Lei exige uma dependência económica que não se encontra provada nos autos;
4- não se provou qualquer retribuição, nem o seu principal meio de subsistência: um elemento “sine qua non”;
5- os arts. 4º e 8º do D.L. 143/99 excluem do âmbito dos acidentes de trabalho os serviços eventuais ou ocasionais. E pintar uma pequena moradia é um trabalho ocasional e excepcional;
6- o pedido do FF não tinha natureza lucrativa;
7- as AA. fizeram um pedido certo e determinado, pelo que o Acórdão tinha de cingir-se a ele. Tendo ido além disto, o Acórdão é inconstitucional;
8- nunca se pode dar como provado que o falecido era pintor, em face da prova documental existente nos autos: não estava colectado nem inscrito na Segurança Social;
9- o Sr. Procurador junto da Relação é da mesma opinião do recorrente;
10- o falecido actuou de forma grosseira, gravemente negligente e em estado de alcoolemia abundante, atendendo a que ainda estávamos da parte da manhã;
11- o próprio douto Acórdão em crise decide que falta a base para que se possa estabelecer uma relação causa/efeito. Isto é falta de nexo de causalidade adequada, estando o Acórdão em contradição com a decisão;
12- nunca o Acórdão poderia ir para o salário mínimo, atentos os motivos supra invocados;
13- a fls. 377 há um ofício da Segurança Social, onde a AA fez um requerimento a pedir prestações por morte do marido, o que significa que a AA quer receber duas vezes pelo mesmo evento;
14- se não se entender assim, então temos na matéria de facto dada como provada factos que estão em contradição uns com os outros: o ponto 6 está em contradição com os pontos 16 e 17; o ponto 15 está em contradição com o ponto 19, o que implica nulidade do julgamento em 1ª instância;
15- houve erro de interpretação e aplicação do direito no douto Acórdão censurado, pelo que este, além de nulo, é inconstitucional;
16- foram violados, entre outros, os arts. 2º n.ºs 1 e 2 da Lei 100/97, 4º e º do D.-Lei 143/99, 342º n.ºs 1 e 3 do C.C., 3º e 3º -A do C.P.C., 12º, 13º, 202º, 203º 204º e 205º da C.R.P., além da doutrina e jurisprudência citadas;
17- assim, deve dar-se provimento ao recurso e absolver-se o recorrente.
1.4.
A Autora AA contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso e a integral confirmação do julgado.
1.5.
A Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, cujo Douto Parecer não mereceu resposta das partes, sustenta a concessão da revista.
1.6.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


2- FACTOS

2-1
A 1ª instância fixou a seguinte factualidade:
1- CC nasceu no dia 10/3/95 e é filha de II, solteiro, e de BB, solteira;
2- BB nasceu no dia 17/12/966 e é filha de HH e AA;
3- AA casou com HH, tendo o casamento sido dissolvido por óbito do cônjuge marido;
4- HH nasceu no dia 19/3/946 e morreu no dia 1/7/04;
5- os primeiros RR. são casados entre si e vivem em comunhão de cama, mesa e habitação;
6- a casa referida infra em 8- é propriedade e está na posse dos RR. DD e EE, actualmente emigrantes em França;
7- à data da morte, HH tinha uma taxa de alcoolemia de cento e trinta e cinco centigramas por litro (1,35 g/l);
8- o R. FF contratou HH para, mediante retribuição, pintar uma residência unifamiliar, constituída por um único piso, sita na Rua do ..., n.º 40, ..., Mira;
9- HH trabalhou na obra no dia 1/7/2004, e em dias anteriores não concretamente apurados, sempre sob as ordens e direcção do Réu FF;
10- em 1/7/2004, HH desenvolvia a actividade de pintor sob a autoridade, direcção, fiscalização e dependência económica do Réu FF;
11- era o Réu FF quem indicava o que fazer e quais os materiais a utilizar;
12- todos os materiais (tintas), utensílios e apetrechos eram fornecidos pelo Réu FF;
13- em circunstâncias não concretamente apuradas, HH caiu;
14- como consequência directa e necessária da queda, HH sofreu lesões traumáticas raqui-medulares, que foram causa única, exclusiva e directa da sua morte;
15- em comunhão de vida com HH viviam a sua mulher, a filha BB e a sua neta CC, filha da BB;
16- a Ré GG foi vítima, há 3 anos, de um acidente de viação, ficando paralítica na cama, e nada sabe dos factos que se discutem nesta acção;
17- cerca das 12 horas, uma vizinha foi alertá-lo a sua casa, dizendo que estava um homem deitado no chão perto da porta da garagem da sua filha;
18- junto ao HH estava uma escada de ferro, que o Réu FF não conhecia;
19- a A. BB trabalha na agricultura, nos terrenos cultivados pela mãe.
2.2.
A 2ª instância considerou não escrita a expressão “dependência económica do Réu FF”, integrada no ponto 10, confirmando no mais a factualidade supra transcrita.

3- DIREITO

3.1.
Conquanto tenha absolvido todos os Réus do pedido, a 1ª instância fê-lo, apesar disso, com motivação diversa:
- relativamente ao casal DD/EE, bem como à Ré GG, deixou expresso que os mesmos tinham sido absolutamente alheios à actividade prestacional exercida pelo sinistrado;
Relativamente ao Réu FF, entendeu que a relação contratual estabelecida entre ele e o sinistrado não caracterizava um contrato de trabalho subordinado, tendo apenas ocorrido a prestação “de um trabalho eventual, de curta duração”, sem que a actividade assim desenvolvida tivesse assumido “natureza lucrativa” para o mencionado Réu, o que tudo afastava a reparabilidade do dano.
Pelo contrário, entendeu a Relação que o sinistrado e o Réu FF celebraram entre si um contrato de trabalho e que o serviço prestado pela vítima, à data do acidente, não podia ser havido como “eventual” nem tão pouco, como “ocasional”.
Na presente revista – e na esteira da tese que sempre perfilhou – continua o recorrente a sustentar que a factualidade apurada não evidencia a celebração, entre os referidos intervenientes, de um contrato de trabalho – nem de outro legalmente equiparado, por não ocorrer uma situação de dependência económica – além de que a actividade prestacional da vítima sempre deverá ser considerada como “eventual” e de “curta duração”.
Como se vê, a questão nuclear em debate, nesta fase recursória, continua a reportar-se à reparabilidade do acidente ajuizado, seja por virtude de um contrato de trabalho aprazado entre o Réu FF e o sinistrado, seja porque este se encontrava, à data do evento, na dependência económica daquele Réu.
Ainda no contexto dessa reparabilidade, o recorrente invoca a total omissão probatória sobre as circunstâncias em que se produziu o acidente, bem como o estado de alcoolemia da vítima no momento dessa produção.
A par disso, também o recorrente censura, por pretensa contradição, parte da factualidade vinda das instâncias.
São estas, em síntese, as questões que corporizam o objecto da revista.
3.2.1.
Como o acervo factual constitui a base necessária para a decisão de mérito, justifica-se que a nossa pronúncia comece por incidir sobre os reparos que o recorrente dirige à factualidade coligida.
Neste contexto, observa o recorrente que existe contradição, por um lado, entre o ponto 6 e os pontos 16 e 17 e, por outro, entre o ponto 15 e o ponto 19.
Nos termos do art. 729º nb.º 3 do C.P.C., as eventuais contradições que se anotem na decisão factual constituem um dos vícios – a par da sua insuficiência – em que a lei consente uma intervenção correctiva oficiosa por parte do Supremo, mediante o reenvio do processo ao tribunal “a quo”.
Perante o carácter oficioso dessa intervenção, há que enfrentar a censura do recorrente, sem embargo de se reconhecer que, no contexto dos presentes autos, a fase adjectiva adequada para tal adução seria a da apresentação das contra-alegações atinentes ao recurso de apelação das Autoras, nos termos do art. 684º-A do Código de Processo Civil.
E, apreciando a questão, cabe dizer, desde logo, que nem sequer vislumbramos o alcance dos reparos produzidos.
Na verdade, mal se percebe como – e em que medida - a propriedade e a posse referidas no ponto 6 podem conflituar com a situação em que se encontra a Ré GG (ponto 16) e (ou) com as circunstâncias em que o Réu FF soube do acidente (ponto 17)!
Do mesmo passo, torna-se evidente que a “comunhão de vida” mencionada no ponto 15 não só não contraria como, pelo contrário, se harmoniza de todo com a actividade laboral atribuída à Autora BB – ponto 17.
Aliás, nem o recorrente se afadiga em nos fornecer qualquer subsídio em abono da sua tese, pois que se limita a aduzir, sem minimamente a motivar, a referida contradição.
3.2.2.
Outra das incursões oficiosas que a lei consente ao Supremo no âmbito da decisão sobre a matéria de facto – a par da eliminação de contradições e da superação de insuficiências – reporta-se à factualidade com natureza conclusiva e àquela que inclui matéria de direito.
Na verdade, quando o art.º 646º do C.P.C. – que cuida da intervenção e competência do Tribunal Colectivo na discussão e julgamento da causa – estabelece, no seu n.º 4, os limites da validade e atendibilidade das respostas proferidas nesse domínio, está a reflectir sobre questões que integram matéria de direito, na justa medida em que essas respostas podem constituir uma ofensa de normas jurídicas probatórias.
Por isso, tem-se entendido que o Supremo é competente para distinguir a matéria de facto da matéria de direito e, consequentemente, determinar se certa resposta deve, ou não, ser eliminada, utilizando, sendo esse o caso, o mecanismo correctivo enunciado naquele sobredito preceito.
No caso doa autos, uma das questões jurídicas a dirimir consiste na qualificação do vínculo celebrado entre o sinistrado e o Réu FF, designadamente se esse vínculo assume natureza laboral: como tal, a respectiva matéria de facto não pode conter expressões que se conexionem directamente com esse “thema decidendum”.
Ora, examinando a factualidade firmada pelas instâncias – e como também adverte a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta – verifica-se que na parte final dos pontos 9 e 10 se consignou, respectivamente, que o sinistrado trabalhou “sempre sob as ordens e direcção do Réu FF” e, bem assim, que aquele desenvolvia a sua actividade de pintpor “sob a autoridade, direcção e fiscalização do Réu FF”.
Tais expressões consagram, por si só, a existência de um vínculo de subordinação jurídica, decorrente do poder de direcção conferido pela lei ao empregador, sendo que tal vínculo constitui, sem mais, o elemento preponderante da qualificação de um contrato como laboral.
Deste modo, será forçoso reconhecer que as mencionadas expressões teriam a virtualidade de resolver, em sede factual, aquela questão jurídica ora em debate.
Daí que se imponha a sua necessária eliminação, aliás como o mesmíssimo fundamento de que a Relação se socorreu para também eliminar a expressão “na dependência económica do Réu FF” (cfr. 2-2).
3.3.1
O acidente dos autos ocorreu em 1 de Julho de 2004, pelo que o regime jurídico atendível é o que decorre da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (“Regime jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais”) – arts. 41º n.º 1 e 71º n.º 1, respectivamente daquele e deste diplomas.
O art. 1º da referida Lei, que cuida do seu objecto, estatui, no seu n.º 1, que “os trabalhadores e seus familiares têm direito à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais nos termos previstos na presente lei e demais legislação regulamentar”.
Sob a epígrafe “Âmbito da Lei”, estabelece, por seu turno, o seu art. 2º:
“1- Têm direito à reparação os trabalhadores por conta de outrem de qualquer actividade, seja ou não explorada com fins lucrativos.
2- Consideram-se trabalhadores por conta de outrem para efeitos do presente diploma os que estejam vinculados por contrato de trabalho ou contrato legalmente equiparado e os praticantes, aprendizes, estagiários e demais situações que devam considerar-se de formação prática e, ainda, os que, considerando-se na dependência económica da pessoa servida prestem, em conjunto ou isoladamente, determinado serviço”.
Como se vê, tudo reside em saber se o sinistrado dos autos podia ser considerado como um trabalhador por conta de outrem, para efeitos de reparabilidade dos danos que o acidente lhe provocou.
E, para tais efeitos, cabe anotar, desde logo, que não é determinante a vinculação do sinistrado a um contrato laboral visto que a lei alarga o direito de reparação a trabalhadores “... na dependência económica da pessoa servida”, ainda que não vigore, entre as partes, um típico contrato de trabalho.
3.3.2.
Nos termos do art. 1152º do Código Civil e 10º do Código do Trabalho, “contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta”.
Decorre desta definição que a “subordinação jurídica” do trabalhador à sua entidade patronal constitui o elemento essencialmente caracterizador do contrato de trabalho, que o permite diferenciar de outros vínculos afins.
Como diz Monteiro Fernandes, “... A subordinação jurídica consiste numa relação de dependência necessária da conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato, face às ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do mesmo contrato e das normas que o regem” (in “Direito do Trabalho”, 11ª ed., pág. 131).
Apesar desta convergente orientação, nem sempre é fácil identificar, no plano concreto, os elementos diferenciadores dos diversos contratos afins.
Por isso, a doutrina e a jurisprudência têm-se socorrido, nessa tarefa distintiva da verificação, ou não, de determinados índices, a apreciar casuisticamente e interdependentes entre si.
Como mais relevantes, é comum coligir os seguintes:
- a vinculação a horário de trabalho; a utilização de bens ou utensílios fornecidos pelo destinatário da actividade; a execução da actividade em local definido pelo empregador; a fixação da remuneração em função do tempo de trabalho; a obediência a ordens e sujeição à disciplina da empresa; a existência de controlo externo do modo de prestação da actividade exercida; o direito a férias e o pagamento de subsídios de férias e de Natal; a inserção do trabalhador numa organização produtiva; a observância dos regimes fiscal e de segurança social próprios do trabalho por conta de outrem.
Cabe ainda referir que cada um dos apontados índices, tomados de per si, assumem natural relatividade, o que implica a necessidade de formulação de um juízo global, face à relação jurídica concreta.
É dizer que a pretendida qualificação do contrato deve ser feita caso a caso, comportando uma necessária margem de indeterminação, e até de subjectividade, na valoração dos indícios disponíveis.
Importa anotar, por fim, que cabe ao demandante, como facto constitutivo do seu arrogado direito, provar a celebração do vínculo invocado – art. 342º n.º 1 do Código Civil.
3.3.3.
A factualidade atendível, expurgada já da matéria conclusiva firmada pelas instâncias, apenas evidencia que o sinistrado foi contratado pelo Réu FF para, “mediante retribuição”, pintar uma moradia unifamiliar pertencente à sua filha e genro, sendo essa a actividade que o mesmo desenvolvia à data do acidente, sabendo-se também que era aquele Réu, a quem pertenciam as tintas, utensílios e apetrechos necessários, que indicava ao sinistrado o que fazer e quais os materiais a utilizar.
As referidas indicações e a assinalada propriedade dos meios não indiciam, só por si, a existência de qualquer subordinação jurídica, certo que também noutros contratos, designadamente na prestação de serviços, “... o beneficiário da actividade pode dar orientações e instruções genéricas, relacionadas com a forma e o conteúdo do resultado a alcançar, e fornecer os materiais que hão-de ser utilizados”, como avisadamente recorda a Exma Procuradora-Geral Adjunta.
Por outra banda, a simples existência de “retribuição” tanto se coaduna com o “tempo de trabalho”, típico do vínculo laboral, como se harmoniza com o “resultado da actividade” contratada, inerente à prestação de serviços.
Em contrapartida, nada se sabe sobre a existência de um horário de trabalho nem sobre a eventual concorrência de qualquer outro índice atendível.
Cabe dizer, aliás, que o Acórdão em crise, para afirmar a natureza laboral do vínculo, se socorreu da factualidade ora eliminada e que, a manter-se, não podia conduzir efectivamente a solução diversa.
Mas, como, essa factualidade não pode ser considerada, só podemos concluir que as Autoras não lograram provar que a relação vinculística entre o sinistrado e o Réu FF configurasse um contrato de trabalho.
3.3.4.
Aqui chegados, importa saber agora se a peticionada reparação, posto que não ancorada em contrato de trabalho, ainda é susceptível, apesar disso, de se confortar na previsão de transcrito art.º 2º n.º 2 da L.A.T.: dependência económica do sinistrado relativamente ao Réu FF.
Procurando fixar o sentido daquele comando normativo, Pedro Romano Martinez discorre como segue:
“No artigo 2º n.º 2 da L.A.T. alarga-se o conceito de acidente de trabalho aos infortúnios que ocorram com quem não seja trabalhador por conta de outrem, de modo a abranger aqueles que tenham contratos equiparados (como o do trabalho no domicílio), os praticantes, aprendizes e demais formandos, bem como outros trabalhadores, sem contrato de trabalho, mas que prestem uma actividade na dependência económica da pessoa servida.
O problema reside em saber quando se deve considerar que existe dependência económica nos termos do art. 2º n.º 2 da LAT. Por um lado, a dependência económica pressupõe a integração do prestador da actividade no processo empresarial de outrem e, por outro, o facto de a actividade desenvolvida não poder ser aproveitada por terceiros. Já não parece de aceitar que se enquadre na noção de dependência económica o acto de o prestador da actividade carecer da importância auferida para o seu sustento ou o da sua família.
A integração no processo produtivo da empresa beneficiária, que será talvez o factor relevante para a existência de dependência económica, pode ser coadjuvada com a continuidade no exercício da actividade, pois, por via de regra, não haverá integração num processo produtivo empresarial, se a actividade é desenvolvida de forma esporádica. Não sendo o empregador uma empresa, dificilmente quem prestar serviços com autonomia poderá considerar-se na dependência económica da pessoa servida, até porque o legislador pretendeu, de algum modo, excluir do âmbito da Lei dos Acidentes de Trabalho os acidentes ocorridos na execução de trabalhos de curta duração fora do seio empresarial (art. 8º, n.º 1, alínea B) da LAT).
Por outro lado, a dependência económica pressupõe que a actividade desenvolvida por quem presta o serviço só aproveita ao seu beneficiário, de molde a não poder conferir quaisquer vantagens a terceiros. Será o que ocorre no caso de o trabalhador autónomo realizar certa actividade, cujo resultado, sendo rejeitado pelo beneficiário, não poderá ser aproveitado por outrem.
Na dúvida em relação a dada actividade, presume-se que o trabalhador se encontra na dependência económica da pessoa em proveito da qual o serviço é prestado (art. 12º n.º 3 do Decreto-Lei n.º 143/99) (in “Direito do Trabalho”, Abril de 2002, pág. 746 – sublinhados nossos).
À luz destes ensinamentos, também podemos afoitamente concluir que os autos não noticiam a questionada “dependência económica”, antes evidenciam que o sinistrado prestou a sua actividade ao Réu FF de forma ocasional e esporádica, o que afasta, desde logo, a referida presunção.
Neste contexto, é decisivo ponderar que o sinistrado apenas foi contratado para pintar uma moradia, desconhecendo-se os dias em que o mesmo ali exerceu tal actividade, estando consequentemente excluída a sua integração no ciclo produtivo da entidade a quem serviu.
Como assim, devemos concluir, também nesta vertente, pela irreparabilidade do acidente ajuizado.
3.4.
As conclusões anteriores prejudicam necessariamente o conhecimento das demais questões suscitadas pelo recorrente: não estando demonstrada a ocorrência de um sinistro reparável, não há que averiguar a sua etiologia e (ou) eventual “descaracterização”.

4- DECISÃO

Em face do exposto, concede-se a revista, revogando-se o Acórdão impugnado e repristinando-se a sentença da 1ª instância..
Custas, na Relação e no Supremo, a cargo das Autoras, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam..
Lisboa, 16 de Setembro de 2008

Sousa Grandão (relator)
Pinto Hespanhol
Vasques Diniz