Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02A4264
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERNANDES MAGALHÃES
Nº do Documento: SJ200301140042646
Data do Acordão: 01/14/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 283/02
Data: 05/27/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

O "A" intentou acção declarativa ordinária contra B pedindo a sua condenação a entregar-lhe um identificado prédio e a pagar-lhe a título de prejuízos materiais a quantia mensal de 60.000$00 até se consumar tal entrega.

O processo correu termos com contestação do R que alegou, em suma, ser arrendatário do mesmo com pagamento atempado das rendas, e, após audiência de julgamento foi proferida sentença a julgar a acção procedente.

Inconformado com tal decisão dela interpôs o R recurso de apelação, sem êxito, pelo que recorre agora de revista.

Fórmula nas suas alegações as seguintes conclusões:
1- O contrato de arrendamento é de natureza obrigacional ou creditória e não real e, por isso, não caduca nos termos do artº 824º, nº2 C.Civil, onde apenas se libertam os direitos de garantia e demais direitos reais.
2- A caducidade do contrato de arrendamento apenas se verifica nos casos em que a própria lei o prevê (cfr. artº 1051º C.Civ.), sendo que, nos restantes, inclusive, a lei, expressamente, aduz haver transmissão da posição contratual (artº 1057º C.Civ).
3- Têm finalidade e estruturas processuais diferentes a Secção V, do Capítulo VI, do Livro II do C.C., onde se especifica uma das garantias especiais das obrigações - a hipoteca - e a Secção III do Capítulo VII do mesmo Livro, onde se delimita a realização coactiva das prestações, sendo que apenas relativamente a esta - fase em que o Estado e não o particular agúde o património do devedor - se determina que, em relação ao exequente são ineficazes os actos de disposição ou oneração dos bens penhorados (artº 819º C.C.).
4- Tal não ocorre na hipoteca em que, ao contrário, é licito ao titular do bem alienar ou onerar os bens hipotecados, sendo que a consequência de tal comportamento é apenas a inerente à possibilidade do vencimento antecipado do crédito hipotecário: não o distratar dos negócios efectuados ou dos ónus criados (artº 695º C.C.).
5- A decisão recorrida, ao ter entendido de outro modo, violou os artºs 695º, 824º, nº2, 819º d), 105º A e 1057º todos do C.C., artº 1 RAU e 888º CPC, pelo que deve ser revogada, determinando- -se que o arrendamento, dada a sua natureza, é válido mesmo perante o credor hipotecário, julgando-se improcedente o pedido.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

A matéria de facto provada é a considerada como tal no acórdão recorrido e resultante do julgamento da 1ª instância, ou seja:
A)
O A. é dono e legítimo possuidor do prédio urbano sito na Rua ..., Casa de rés-do-chão, 1°, 2° andar e logradouro - S.C. 121 m2; logradouro 254 m2, freguesia de S. João da Madeira sob a ficha n° 01431/020491 e inscrito na matriz sob o artigo 3311º, conforme doc. junto pelo A. sob o n° 1 que aqui se dá por integralmente reproduzido.
B)
O A. adquiriu tal prédio por arrematação em hasta pública, em 9/7/96, efectuada nos autos de Execução Ordinária com o n° 255/95 que o A, moveu contra C e D e E , conforme doc. junto pelo A. sob o n° 2 que aqui se dá por integralmente reproduzido.
C)
Por escritura pública datada de 20/1/93 foi constituída a favor do A. hipoteca voluntária sobre o prédio em questão, registada a seu favor pelas Ap. 05/29/1/93 e 05/080293 pela inscrição C-3, conforme doc. juntos pelo A. sob os nºs 1 e 2 que aqui se dá por integralmente reproduzido.
D)
Em 27/11/95 o A. registou a seu favor a penhora sobre o aludido imóvel através da inscrição F-1, conforme doc. junto pelo A. sob o n° 1 que aqui se dá por integralmente reproduzido.
E)
A aquisição do prédio pelo A. encontra-se definitivamente registada a seu favor desde 11/11/96, conforme doc. junto pelo A. sob o n° 1 que aqui se dá por integralmente reproduzido.
Da Base Instrutória:
1º)
O A. interpelou o R. para desocupar o prédio em 16/1/98.
2°)
O R. recusou-se a entregar ao A. o imóvel.
3°)
Alegando a qualidade de arrendatário.
4°)
A recusa por parte do R. em entregar o imóvel e a permanência nele causa ao A. a impossibilidade de obter compensação se optasse pelo arrendamento do imóvel.
5°)
Se o A. optasse por arrendar o imóvel obteria uma renda mensal não inferior a 60.000$00.
6°)
O imóvel encontra-se bem situado, fica perto da Câmara Municipal.
7°)
Entre C e o R. foi celebrado contrato de arrendamento do prédio em causa em 16/9/93, pela renda inicial anual de 300.000$00, a pagar em duodécimos de 25.000$00, sendo a renda das renovações subsequentes a resultante das actualizações legais .
8°)
O R., desde 16/9/93, sempre pagou as rendas que se foram vencendo.
9°)
Primeiro, ao senhorio.
10°)
Depois ao fiel depositário.
11º)
E por depósito na F, após a arrematação.
12°)
À entidade que junto de si indagou da razão da ocupação do prédio (G ), respondeu o R. através da carta de 16/03/98, constante de fls 42.

Feita esta enumeração, e delimitado como está o objecto do recurso pelas conclusões das alegações do recorrente começaremos por dizer que carece de razão.

Com efeito, a questão a decidir é a de saber se o posterior arrendamento de prédio hipotecado com garantia anteriormente registada, caduca ou não em face do preceituado no nº2 do artº 824º do C.Civ. e no actual artº 888º CPC (correspondente ao artº 907º CPC na redacção anterior à reforma).

É assim a questão de saber se o disposto no artº 1057º C.Civ. se aplica ou não aos casos de venda (arrematação em hasta pública) em processo executivo de um imóvel hipotecado que foi objecto de arrendamento por contrato não registado, celebrado após o registo da hipoteca e se é ou não eficaz em relação à instituição bancária, ora recorrida, credora hipotecária e arrematante.

Ora como se decidiu no Ac. deste STJ de 6/7/2000 - Procº 1881/00 desta 6ª Secção, CJ. VIII, II, 2000 pág. 150 - "a venda judicial, em processo executivo de fracção hipotecada faz caducar seu arrendamento, não registado, quando posteriormente celebrado à constituição e registo daquela hipoteca, por na expressão direitos reais mencionada no artº 842º, nº2 C.Civ. se incluir, por analogia, aquele arrendamento (no mesmo sentido Ac. deste STJ de 3/12/98, BMJ 482/219).
E isto porque preferentemente se deve ter em conta o interesse protegido no dito nº2 do artº 842º C.Civ., projectado nas características próprias e singulares do contrato de locação.

Acentue-se a este propósito a natureza obrigacional do contrato de arrendamento (apesar de algumas vezes discordantes), não sendo de olvidar que o legislador pode atribuir alguns traços de realidade a direitos não reais (Adolfo Di Rajo - Delle oblligazioni in generale, 1988, pág. 141).

Ou seja, a inerência, como realidade de fundo de que a sequela é a manifestação dinâmica, é característica da absolutidade, mas "de uma manifestação de inerência não pode deduzir-se, sem mais, a absolutidade do direito".
É o que se passa com o citado artº 1057º C.Civ..
O negócio jurídico que aqui determina a sucessão de direitos e obrigações é"apenas o de transmissão do direito com base no qual foi celebrado o contrato locativo".

Tal disposição legal consagra o princípio "emptio non tollit locatio", com a ressalva das regras de registo, onde se situa justamente a posição do credor hipotecário, e, por outro lado, a tramitação processual, mormente em fase executiva, não se harmoniza completamente com a estrutura substantiva.

Como refere Henrique Mesquita Obrigações e Ónus Reais, Teses, Almedina, pág. 140, o artº 1057º C.Civ. é também inaplicável à venda da coisa locada em processo executivo. Esta hipótese deve considerar-se incluída na regra do nº2 do artº 824º, sendo, portanto, inoponíveis ao comprador as relações locativas constituídas posteriormente ao registo de qualquer garantia (no mesmo sentido Oliveira Ascensão, ROA, ano 45, pág. 345 e seg?).

Como se salienta também nos citados Acórdão deste STJ:
Apesar de um manifesto intuito de proteger o bem da estabilidade da habitação, não pode entender-se que o legislador houvesse querido deixar sem protecção os direitos dos credores titulares de garantias reais registadas com anterioridade relativamente à celebração da invocada relação locatícia, pelo que os bens arrematados em hasta pública por credor com garantia real anterior se transmitirão para o adquirente novo proprietário livres e desembaraçados do ónus locatário, nos termos e para os efeitos do nº2 do artº 824º do Cód. Civil vigente.
Só por esta via interpretativa se obviará a que a oneração do prédio urbano através de celebração posterior de contrato de arrendamento impossibilite ou pelo menos dificulte o ressarcimento completo do credor com garantia real.
Sabe-se da negativa repercussão em termos de valor-preço que a celebração de um tal pode provocar...
E há que atentar também em que o disposto no artº 696º C.Civ. (indivisibilidade da hipoteca) se completa com o preceituado no nº2 do artº 824º do mesmo Código, para assim, se obstar ao desvanecimento da garantia hipotecária.
Tudo isto a significar também que a subsunção da relação locatícia na fórmula legal "demais direitos reais" do nº 2 do artº 824º do C.Civ. é de fazer por recurso à analogia, por se presumir que, relativamente a tal hipótese, procedem as razões justificativas da regulamentação expressa adoptada para os direitos reais de gozo em geral contemplada no mesmo preceito de lei - cfr. artº 10º C.Civ.
Sabe-se que a aplicabilidade da lei por analogia se funda em ser de presumir que, se a lei prevê determinado caso e o regula de certa maneira, da mesma maneira teria regulado os outros casos relativamente aos quais procedam as razões justificativas daquela regulamentação e em que devessem evitar-se dissonâncias no sistema jurídico (RLJ 103/360)
Por tudo o exposto, e sem necessidade de mais amplas considerações, improcedem as conclusões das alegações do recorrente, sendo de manter o decidido no acórdão recorrido, que não cometeu quaisquer nulidades, nem violou quaisquer disposições legais, "maxime" as mencionadas pelo recorrente.

Decisão:
1- Nega-se a revista.
2- Condena-se o recorrente nas custas.

Lisboa, 14 de Janeiro de 2003
Fernandes Magalhães
Silva Paixão
Armando Lourenço