Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1032/08.6TYLSB.L1.S1.
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: TRIBUNAL DE COMÉRCIO
COMPETÊNCIA MATERIAL
RESPONSABILIDADE DO GERENTE
SOCIEDADE COMERCIAL
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/11/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO COMERCIAL
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Doutrina: - Brito Correia, Direito Comercial, Sociedades Comerciais, vol. II, 4.ª, p. 305 e ss..
- Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, vol. II, Das Sociedades, p. 205 e ss..
- Ferrer Correia, Sociedades Comerciais (policopiado), p. 348 e ss..
- Paulo Olavo e Cunha, in “Breve Nota sobre os Direitos dos Sócios (das sociedades responsabilidade limitada) no âmbito do Código das Sociedades Comerciais”, in Novas Perspectivas do Direito Comercial, p. 230 e ss..
- Pupo Correia, Direito Comercial, 7.ª ed., p. 517.
Legislação Nacional: CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 72.º E 75.º
LEI N.º 3/99, DE 13 DE JANEIRO (LEI DE ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS): - ARTIGO 89.º, N.º1, ALÍNEA C).
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
- DE 18-12-2008 - P. 3907/2008 IN WWW.DGSI.PT
- DE 17-9-2009 – P. 94/07.8TYLSB.L1.S1
Sumário : I - O Tribunal de Comércio é o competente em razão da matéria para acção que a sociedade intente, nos termos conjugados dos arts. 72.º e 75.º do CSC, pois estamos face a uma acção relativa ao exercício de direitos sociais (art. 89.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 3/99, de 13-01 – LOFTJ).
II - Essa acção visa a responsabilização dos gerentes ou administradores que, no exercício das suas funções, causem prejuízos à sociedade, acção relativa ao exercício de direitos sociais com expressão no direito de os sócios exigirem, no interesse da sociedade, o pagamento da indemnização por tais prejuízos.
III - O facto de, beneficiando a sociedade com o desfecho da acção em termos patrimoniais, reflexamente beneficiarem os seus sócios, não retira que estejam em causa direitos sociais, nem desqualifica a acção como uti universi.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA-S... – IMOBILIÁRIA E INVESTIMENTOS, S.A. instaurou, em 3 de Setembro de 2008, no Tribunal de Comércio de Lisboa acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra BB, CC e DD pedindo a condenação solidária dos réus a pagarem à autora o montante de 2.148.684€, acrescido dos respectivos juros de mora, com fundamento em que os réus foram seus administradores executivos e no exercício dessas funções decidiram os termos em que se deveria efectuar o investimento e participação numa outra sociedade, bem como executaram todos os actos visando tal propósito, vindo a autora no seguimento de uma auditoria externa a descobrir que da referida actuação dos réus resultaram para a sociedade prejuízos patrimoniais vultuosos resultantes não só do investimento inicialmente realizado, que se revelou excessivo, mas ainda dos danos emergentes e lucros cessantes que ascendem ao valor global do pedido.

2. O Tribunal de Comércio julgou-se incompetente em razão da matéria por entender que a presente acção instaurada pela sociedade, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 72.º do Código das Sociedades Comerciais visando a responsabilização dos seus ex-administradores por actos danosos praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, não constitui acção cuja matéria seja da competência dos tribunais de comércio por não constituir acção relativa ao exercício de direitos sociais em conformidade com o disposto no artigo 89.º/1, alínea c) da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aplicável ao caso.

3. Por sua vez o Tribunal da Relação, apoiando-se em jurisprudência deste Supremo Tribunal, revogou a decisão de 1ª instância, considerando competente o Tribunal de Comércio para preparar e julgar a presente acção.

4. Deste acórdão recorre, de revista, o réu DD- à presente acção aplicam-se já as regras processuais ditadas pela reforma de 2007 - que sustenta, em síntese, na sua minuta de recurso, o seguinte:

- Que, na presente acção, em que a autora pretende responsabilizar civilmente os réus por danos a esta alegadamente causados por actos ou omissões praticados por estes, enquanto administradores daquela, com preterição dos respectivos deveres legais ou contratuais (artigo 72.º/1 do C.S.C.), não está em causa qualquer direito próprio dos sócios, mas um invocado exclusivo direito da sociedade - o direito desta a ser indemnizada por eventuais prejuízos sofridos na sua esfera jurídica.

- Que é irrelevante o facto de a procedência da presente acção poder ter eventualmente efeitos indirectos, mais ou menos remotamente, nos interesses dos sócios, tendo estes, nessa medida, um interesse reflexo no resultado da acção, porquanto (i) a titularidade do correspondente exercício de um direito social - critério determinante para a atribuição da competência - não se confunde com a titularidade de um eventual interesse reflexo que o sócio possa ter na procedência da acção e (ii) admitir que são direitos sociais para efeitos de atribuição de competência material do tribunal quaisquer direitos que uma sociedade pretenda fazer valer em juízo. significaria que qualquer causa em que se fizesse valer direitos de uma sociedade teria que ser decidida pelo tribunal de comércio.

- Que a pretensão indemnizatória da autora não consubstancia o exercício de um direito social, na medida em que não se funda em qualquer elemento constitutivo das participações sociais dos sócios ou em qualquer direito subjectivo dos sócios da autora, mas sim em alegados prejuízos sofridos directamente na esfera jurídica desta.

- Que a própria acção pela qual os credores da sociedade pretendam exercer o direito indemnizatório de que a sociedade seja titular, nos termos do artigo 78.º/2 do C.S.C., é inequivocamente da competência do tribunal comum, visto manifestamente não estar em causa o exercício de qualquer direito social.

- Que, subsidiariamente face ao exposto, o recorrente considera que a causa de pedir não versa sobre matéria societária, na medida em que a autora se limita a imputar aos réus comportamentos, factos, decisões de natureza eminentemente civilística, a saber e no essencial: a simulação de contratos e a alegada utilização de fundos da autora em benefício próprio.

- Donde resulta que a relação jurídica material em debate, segundo a versão apresentada em juízo pela autora, não pode ser reconhecida para efeitos de atribuição de competência material, como justificada a atribuição de competência do tribunal de comércio para o respectivo conhecimento, fundamentando-se previsivelmente a solução jurídica do litígio em normas de direito comum.

- Que o elemento teleológico da norma do artigo 89.º da L.O.F.T.J. não aponta no sentido de se atribuir competência ao tribunal do comércio em quaisquer questões relativas à actividade das sociedades - por um lado, são vários os exemplos jurisprudenciais de interpretação restritiva das alíneas constantes do artigo 89.º que sobre esta matéria não ficou muito explícito o efectivo pensamento e vontade do legislador.

Apreciando:

5. A competência em razão da matéria afere-se em função dos factos reveladores da relação jurídica controvertida , tal como a mesma é configurada pelo autor da acção na respectiva petição inicial.

6. Ora, na petição inicial, está em causa uma indemnização no montante de 2.148.684€ exigida pela sociedade aos seus anteriores administradores que, no exercício das suas funções e no âmbito de várias operações de natureza comercial traduzidas na aquisição pela autora de participações noutra sociedade, resultou um diferencial entre o custo que deveria corresponder à aquisição de participações nessa sociedade e o montante registado na contabilidade da autora.

7. Mais se alega, na petição, que o dinheiro desembolsado pela autora se efectuou mediante transferência bancária ou emissão de cheques, na sua quase totalidade a favor dos réus, quer directamente, quer através de entidades por estes participadas e/ou controladas.

8. Toda a realidade que a petição documenta foi constatada na sequência de uma auditoria que a autora solicitou tendo em vista avaliar , para efeitos de venda, o valor a pedir pela venda da sua participação na aludida sociedade.

9. Por aqui se vê que na base do pedido avulta um conjunto de operações societárias, de evidente complexidade, razão pela qual nem mesmo a esta luz se poderia dizer que a averiguação de facto que está na base do pedido de indemnização escapa à averiguação de qualquer questão de ordem societária.

10. Seja como for, o Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou (cf. Ac. do S.T.J. de 18-12-2008- Salvador da Costa - P. 3907/2008 in www.dgsi.pt). no sentido da competência em razão da matéria dos tribunais de comércio para as acções em que os sócios demandam gerentes ou administradores pelos prejuízos causados à sociedade por actos praticados no exercício das suas funções.

11. E constitui direito social - assim a lei expressamente o declara no artigo 77.º/2 do C.S.C.- o pedido de indemnização pelos danos causados. Com efeito, tal pedido será exigido pelos sócios uti singuli, direito que lhes é reconhecido, podendo obviamente, se a sua pretensão social não for satisfeita, intentarem acção social contra os responsáveis.

12. No caso de, por simples maioria, se formar deliberação social no sentido de a acção ser proposta pela sociedade (artigo 75.º do Código das Sociedades Comerciais), será então a sociedade a demandar os responsáveis

13. Esta acção, tal como a acção a que se refere o artigo 77.º do C.S.C., é uma acção relativa ao exercício do direito que assiste aos sócios de exigirem o ressarcimento da sociedade pelos prejuízos causados que igualmente os afectam.

14. Também o Supremo Tribunal já se pronunciou no sentido de que o pedido de indemnização deduzido nos termos do artigo 72.º e 75.º do C.S.C. se traduz num pedido de indemnização relativo a um direito social.

15. Assim, no Ac. do S.T.J. de 17-9-2009 (Fonseca Ramos) 94/07.8TYLSB.L1.S1, a este propósito referiu-se o seguinte:

"Ora, no caso, é a sociedade quem demanda os anteriores sócios-gerentes por actos considerados de má gestão, reclamando uma indemnização que, a ser concedida, reverterá não para eles enquanto actuais sócios e gerentes, mas para a sociedade que assim seria indemnizada pelos danos causados pela culposa má gestão dos RR.

A má gestão dos gerentes ou administradores pode afectar a sociedade ou direitos particulares dos sócios, daí que seja relevante para aferir da competência material do Tribunal de Comércio, saber se numa determinada acção estão em causa direitos sociais, pois só no que a eles respeita aquele tribunal é materialmente competente para julgar as 'acções relativas ao exercício de direitos sociais'.

O conceito de 'direitos sociais' tem sido alvo de variada e elaborada doutrina – cf. Ferrer Correia, Sociedades Comerciais (policopiado), p. 348 e ss.; Brito Correia, Direito Comercial, Sociedades Comerciais, vol. II, 4.ª, p. 305 e ss.; Pupo Correia, Direito Comercial, 7.ª ed., p. 517; Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, vol. II, Das Sociedades, p. 205 e ss.

Paulo Olavo e Cunha – in “Breve Nota sobre os Direitos dos Sócios (das sociedades responsabilidade limitada) no âmbito do Código das Sociedades Comerciais”, in Novas Perspectivas do Direito Comercial, p. 230 e ss, – escreve:

'A posição jurídica de cada sócio não se traduz unicamente em direitos sobre o património social; trata-se de uma situação (recheada de direitos, deveres, ónus, expectativas jurídicas) ou posição complexa (que resulta da sua participação, do regime legal do tipo de sociedade e das cláusulas que subscreveu) perante a pessoa jurídica societária'.

Luís Brito Correia, alude aos direitos sociais ou corporativos, como 'os direitos que os sócios têm como sócios da sociedade e que tendem à protecção dos seus interesses sociais'.

A acção intentada pela sociedade contra os anteriores sócios-gerentes a quem é pedida uma indemnização - a favor da sociedade - baseada na sua actuação culposa e geradora de prejuízos é uma acção uti universi que exprime o exercício de um direito social".

16. Assim, tal como se disse, o direito de os sócios exigirem, no interesse da sociedade, a indemnização aos gerentes e administradores que, no exercício da actividade societária e aproveitando-se da sua função, lesarem a sociedade, tal direito insere-se no âmbito dos seus direitos sociais. A lei, como se disse, faculta-lhes, nas condições mencionadas, o exercício judicial desse direito se não puder ser exercido pela sociedade por falta de deliberação social que o permita.

17. Quando a sociedade age em juízo, ela está a fazer valer o seu interesse que é naturalmente o interesse dos seus associados - interesse mediato ou reflexo, é certo - mas um interesse que é a projecção do direito que lhes assiste de exigir indemnização aos responsáveis. Por isso, e como se mencionou no referido acórdão,

"procedendo a acção, a quantia em que os RR. forem condenados reverte para a sociedade, não para as pessoas singulares que negociaram com os RR. a aquisição da sociedade, pelo que a acção exprime o exercício de uma verdadeira acção uti universi".

O facto de, beneficiando a sociedade com o desfecho da acção em termos patrimoniais, reflexamente beneficiar os seus sócios, não retira que estejam em causa direitos sociais nem desqualifica a acção como uti universi.

18. Não pode, assim, deixar de se confirmar o acórdão recorrido.

Concluindo:

I- O Tribunal do Comércio é o competente em razão da matéria para acção que a sociedade intente, nos termos conjugados dos artigos 72.º e 75.º do Código das Sociedades Comerciais, pois estamos face a uma acção relativa ao exercício de direitos sociais ( artigo 89.º/1, alínea c) da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais).

II- Essa acção visa a responsabilização dos gerentes ou administradores que, no exercício das suas funções, causem prejuízos à sociedade, acção relativa ao exercício de direitos sociais com expressão no direito de os sócios exigirem no interesse da sociedade o pagamento da indemnização por tais prejuízos.

III- O facto de, beneficiando a sociedade com o desfecho da acção em termos patrimoniais, reflexamente beneficiarem os seus sócios, não retira que estejam em causa direitos sociais nem desqualifica a acção como uti universi.

Decisão: nega-se a revista.

Custas pelo recorrente

Supremo Tribunal de Justiça,

Lisboa, 11 de Janeiro de 2011.

Salazar Casanova (Relator)*

Azevedo Ramos

Silva Salazar

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* Sumário elaborado pelo relator