Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B4400
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LUCAS COELHO
Descritores: AUTOMÓVEL
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
DIREITO A REPARAÇÃO
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
ÓNUS DA PROVA
INDEMNIZAÇÃO DE PERDAS E DANOS
Nº do Documento: SJ200503150044002
Data do Acordão: 03/15/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 9566/03
Data: 06/01/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - No caso de compra e venda de automóvel defeituoso, os direitos à reparação ou à substituição previstos no artigo 914 do Código Civil - e também no artigo 12, n.º 1 da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, que veio estabelecer «o regime legal aplicável à defesa dos consumidores» - não constituem pura alternativa ou opção oferecida ao comprador, antes se encontrando subordinados a uma sequência lógica: primeiro, o vendedor está adstrito a eliminar o defeito; e só não sendo possível ou apresentando-se demasiado onerosa a reparação, fica obrigado à substituição da viatura por outra da mesma marca e modelo;
II - Denunciado tempestivamente o defeito e pedida a reparação pela autora adquirente, o mero eventual atraso na eliminação do defeito pelas rés alienantes não confere por si só o direito à substituição, antes pressupondo, em virtude da aludida «sequência lógica» reparação/substituição, a prévia conversão da mora na reparação em incumprimento definitivo desta obrigação, mediante interpelação admonitória nos termos do n.º 1 do artigo 808 do Código Civil;
III - E tratando-se de saber se a não reparação é elemento constitutivo do direito à substituição do automóvel (artigo 342, n. 1), ou se é ao invés a reparação seu facto impeditivo (n. 2), deve na dúvida considerar-se o facto como constitutivo (n. 3), impendendo por consequência sobre a autora o ónus probatório da não eliminação do defeito;
IV - Entregue a viatura nas oficinas das rés para reparação, e facultada por estas acto contínuo à compradora outro veículo de substituição temporária do mesmo nível, que esta aliás utilizou até cerca de duas semanas depois de lhe ter sido comunicada pelas rés a reparação do seu automóvel e a disponibilização deste para ser levantado, improcede o pedido de indemnização por despesas de deslocação resultantes da privação do uso do veículo no período referido;
V - Comunicando as rés à autora que o veículo desta se encontrava cabalmente reparado sem defeito, e pronto para entrega, sem que ela tenha comparecido para levantar ou experimentar a viatura, forçando as rés a resguardá-la e parqueá-la nas suas instalações, em cumprimento de um dever acessório de conduta, nem por isso gratuito, responde a compradora omissa pelos custos desse parqueamento;
VI - Carece, por conseguinte, de fundamento a alegação da autora, segundo a qual não solicitara a recolha do automóvel, posto que nas circunstâncias descritas justamente a aceitou mercê de uma «actuação de vontade de aceitação» (Annahmewillensbetätigung) e de um uso ou «comportamento socialmente típico» (sozialtypisches Verhalten).
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
"A", residente na Amadora, instaurou na actual 15.ª Vara Cível da comarca de Lisboa, em 3 de Julho de 1997, contra 1.ª B - Comércio e Reparação de Veículos Automóveis, Máquinas Agrícolas e Industriais, Lda., com sede em Santarém, e 2.ª C - Sociedade de Importação de Veículos Automóveis, S.A., sediada na Amadora, acção ordinária com fundamento no cumprimento defeituoso da obrigação de entrega do automóvel novo marca Volkswagen Polo 1.4. GI, de matrícula HX, emergente de contrato de compra e venda, de 28 de Janeiro de 1997, mediante o qual o comprou à 1.ª ré, com garantia de um ano do fabricante representado em Portugal pela 2.ª ré, por 2.640.000$00, pagos a pronto na mesma data.

O automóvel foi entregue no próprio dia pela vendedora, e logo a autora e seu filho detectaram anomalias de funcionamento: o veículo efectuava um desvio muito acentuado e anormal para a direita, obrigando a circular devagar, com permanentes correcções da trajectória.

Denunciado o defeito à 1.ª ré no referido dia 28 de Janeiro, o automóvel entrou dias depois nas oficinas desta em Santarém, foi intervencionado pelos mecânicos, que não eliminaram o defeito, impondo nova entrega nas oficinas a 19 daquele mês, com idênticos resultados, posto que o Volkswagen continuava a apresentar o mesmo inicial desvio de direcção.

Nas oficinas da 2.ª ré na Azambuja, onde o automóvel deu entrada em 28 de Fevereiro de 1997, os mecânicos da C comunicaram que iam proceder à mudança de peças que poderiam estar na origem do defeito, na mesma data sendo facultado à autora um VW Polo de substituição.

Todavia a montagem das peças não resolveu a anomalia, impondo-se novos testes, de forma que, persistindo o defeito em 7 de Março, a autora exigiu à 1.ª ré, por carta de 9 de Março de 1997, que lhe entregasse outra viatura nova da mesma marca e modelo, sem defeito, em lugar do automóvel avariado, e assumisse a responsabilidade pelos prejuízos decorrentes da imobilização do veículo e das despesas de deslocação a Santarém.

A missiva não obteve resposta, até que, por carta de 6 de Maio de 1997 a 1.ª ré informou da entrega da viatura, após correcção da anomalia detectada, solicitando do mesmo passo a devolução do VW Polo de substituição emprestado à autora durante a reparação, tendo-se esta limitado a reiterar, em 8 de Maio, o pedido de entrega de outro veículo novo isento de anomalia, ou, em alternativa, a devolução do preço pago pelo automóvel defeituoso.

Na noite de 19 para 20 de Maio o veículo VW Polo de substituição desapareceu de junto da residência da autora com os objectos pessoais do filho que nele se encontravam: uma canadiana, livros, um chapéu de chuva, uma bolsa de óculos, uma carta para consulta de médico e recibos de portagem, originando a respectiva denúncia policial. Mas no dia seguinte a 1.ª ré comunicou que esta outra viatura se encontrava em seu poder, indo proceder à devolução dos objectos que estavam no seu interior, os quais foram efectivamente recebidos, salvo ao que parece a canadiana e vários recibos de portagem.

Seguiu-se uma troca de correspondência entre o advogado da autora e a 1.ª ré, destacando-se: a comunicação desta de 28 de Maio informando que as deficiências da viatura tinham sido totalmente removidas, não se justificando por isso a substituição por uma nova, comunicação reiterada mais tarde no sentido de que a autora poderia levantar o automóvel em Santarém contra o pagamento do parqueamento entretanto usufruído; a comunicação de banda da autora, a 2 de Junho, solicitando informação detalhada relativa às anomalias verificadas, sua natureza e intervenções efectuadas, reiterada a 17 de Junho também quanto ao pedido de entrega da viatura nova, e, ulteriormente, de recusa de pagamento da quantia do parqueamento.

Conclui a autora no sentido de que as rés são solidariamente responsáveis, nos termos dos artigos 907, 910, 913 e 921 do Código Civil, e do artigo 12 da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, pela entrega de um automóvel novo em substituição do veículo deficiente, assim como pelos prejuízos que sofreu em consequência do defeituoso cumprimento, a 1.ª enquanto vendedora, a 2.ª na qualidade de importadora e representante em Portugal da produtora dos automóveis Volkswagen, ambas havendo actuado com manifesta falta de cuidado e diligência ao colocarem no mercado um veículo automóvel portador dos defeitos descritos.

Pede nos termos expostos a sua condenação:

a) na substituição do Volkswagen Polo de matrícula HX por outro automóvel novo, da mesma marca e modelo, mas em perfeitas condições, num prazo não superior a 5 dias;
b) no pagamento à autora da quantia de 320 000$00 - compreendendo a indemnização dos prejuízos líquidos, com referência a 4 de Julho de 1997, resultantes da privação do veículo (270 000$00, dado que ela e os seus familiares têm de recorrer a transportes públicos e táxis nas deslocações diárias, à razão de 6 000$00/dia), e as despesas com as deslocações às oficinas das rés em Santarém e na Azambuja a pedido destas (50 000$00) -, acrescida de juros legais a contar da citação;
c) no pagamento da quantia de 6 000$00 diários correspondentes à privação do uso do veículo, desde 4 de Julho de 1997 até à sua substituição, acrescida dos juros à taxa legal;

d) na devolução de todos os objectos e documentos pessoais existentes dentro do VW Polo de substituição quando a 1.ª ré o subtraiu à posse da autora.

2. Contestada a acção por uma e outra rés, deduziu a B reconvenção, pedindo a condenação da autora a pagar-lhe o quantitativo total de 261 000$00, com juros legais até integral pagamento, englobando a importância de 120 000$00 (10 000$00 por dia), a título de privação do uso do Polo de substituição entre 6 e 20 de Maio de 1997, 12 dias pelo menos em que alegadamente a autora o usou e fruiu sem título, e ainda a soma de 141 100$00 pelo parqueamento do veículo da autora desde 7 de Maio do mesmo ano (à razão de 850$00 diários).

Prosseguindo o processo os trâmites legais, veio a ser proferida sentença final, em 30 de Outubro de 2002, que julgou parcialmente procedentes acção e reconvenção.

Assim, no tocante à acção: o pedido de substituição por um automóvel novo, indicado supra, alínea a), foi considerado improcedente; o pedido líquido relativo à privação do veículo [supra, alínea b)], foi objecto de condenação no que se liquidar em execução, com os juros legais a contar da citação; o pedido genérico quanto aos mesmos danos indicado supra, alínea c) deu lugar a condenação na importância diária a liquidar em execução; quanto, por seu turno, ao pedido enunciado supra, alínea d), foi a 1.ª ré condenada a restituir à autora todos os objectos pessoais existentes dentro do veículo de substituição.

Relativamente à reconvenção, condenou-se a autora a pagar à 1.ª ré o parqueamento a que haja lugar relativamente ao Volkswagen Polo de matrícula HX, até ao seu levantamento, consoante se liquidar em execução, sendo a mesma absolvida do pedido relativo à privação do uso do veículo de substituição.

Apelou a autora, e apelaram as rés, cada uma por sua parte, impugnando inclusive a decisão de facto, tendo a Relação de Lisboa julgado improcedente o recurso da primeira e concedido provimento aos recursos das segundas com a consequente revogação da sentença «na parte em que condenou as rés para além da devolução de uma bolsa de óculos, uma carta de consulta do médico e de livros».

3. Do acórdão neste sentido proferido, em 1 de Junho de 2004, dissente a autora mediante a presente revista, sintetizando em sequência alfabética a respectiva alegação nas 15 conclusões que se reproduzem:

3.1. «Entenderam os Venerandos Juízes da Relação que o veículo se encontra efectivamente reparado, o que sucedeu em 6 de Maio de 1997, visto que em tal data as recorridas enviaram à recorrente uma comunicação informando-a que o veículo se encontrava reparado e que estava a partir de tal data pronto para entrega, pelo que não tem a recorrente direito à substituição do veículo nos termos do artigo 914° do Código Civil (conclusão A);

3.2. «A simples comunicação em como o veículo se encontrava reparado, sem que tivesse sido feita efectivamente prova de tal reparação, não constituiu um facto extintivo do direito da autora a que o seu veículo automóvel fosse substituído por outro de igual marca e modelo e em perfeitas condições de circulação, pois o que resulta da matéria dada como provada é que o veículo apresentava um defeito - desvio da direcção para o lado direito que fazia com que o veículo não circulasse numa trajectória em linha recta, desviando-se sempre para a direita - e que embora sujeito a diversas intervenções e substituição de peças, o defeito permanecia (B);

3.3. «Verificam-se os requisitos que conferem à recorrente o direito a requerer a substituição da coisa: o veículo apresenta um defeito; sujeito a diversas reparações o defeito mantinha-se; tendo sido substituídas algumas peças o defeito mantinha-se; o veículo tem natureza fungível; a recorrente exerceu o direito de requerer a substituição da coisa. De todos estes factos foi feita prova (C);

3.4. «Tendo os defeitos da viatura sido dados como provados, quem tinha que provar que a viatura se encontrava sem qualquer defeito eram as recorridas e estas não fizeram qualquer prova nesse sentido (D);

3.5. «Ao entregarem à recorrente um veículo com defeito as recorridas não cumpriram com as suas obrigações contratuais, não tendo cumprido o contrato (E);

3.6. «Quando a recorrida enviou à recorrente carta de Maio de 1997 a dizer que o carro estava reparado, há muito que a recorrente já tinha exercido seu direito a requerer a substituição do veículo, pois a comunicação da recorrente de 9 de Março de 1997, que faz fls. 22 dos autos, teve carácter interpelatório e visava resolver a título definitivo esta situação, já que não poderia a recorrente ficar eternamente à espera que as recorridas continuassem a tentar resolver o defeito, pois o carro já estava nas oficinas há mais de mês e meio, já tinha sofrido diversas intervenções e reparações, sem que o problema fosse definitivamente solucionado e a situação era tanto mais gravosa pelo facto de o defeito ter sido detectado logo no dia da compra do veículo (F);

3.7. «Não é exigível a um consumidor, cujo carro novo apresenta um defeito logo no dia da aquisição, que o carro esteja para arranjar mais de quatro meses até que a vendedora afirme que este se encontra arranjado, mas sem que faça qualquer prova do efectivo arranjo (G);

3.8.«A recorrente adquiriu um carro novo e com todas as intervenções que sofreu e substituições de peças o carro já não era novo, pelo que a recorrente, mesmo que o carro se apresentasse sem defeito, o que não [foi] provado, já se encontrava prejudicada. Mesmo que a viatura em 18 de Junho de1997 estivesse efectivamente reparada, e isso, repete-se, não foi provado, a verdade é que ninguém é obrigado a esperar que uma viatura nova esteja quatro meses para ser reparada, não tendo o direito de exigir a sua substituição. E que no decurso de tal prazo não seja dada resposta satisfatória aos pedidos formulados, que os defeitos não sejam reparados. E, acima de tudo, que dentro de tal prazo se peça a substituição por uma nova e tal pedido não seja satisfeito (H);

3.9. «A recorrente solicitou que lhe fossem prestados esclarecimentos quanto às intervenções sofridas pelo veículo e procedimentos adoptados, sem que as rés lhe tivessem prestado qualquer esclarecimento (I);

3.10. O facto do veículo se poder apresentar eventualmente hoje em dia sem a deficiência inicial - o que, repete-se, não está provado - não afastaria em nada aquilo que consta do pedido da recorrente, pois ainda que as intervenções que foram realizadas no veículo pudessem eventualmente ter alcançado o seu objectivo, fariam com que de facto ele já se não trate de um veículo novo mas usado, porque intervencionado, em muito, e de forma sigilosa e estranha, pois, as recorridas recusaram-se sistematicamente a dar informação e conhecimento da totalidade das intervenções feitas (J);

3.11. «O douto acórdão recorrido violou o disposto, entre outros, no artigo 12.° da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, e ainda o artigo 914.° do Código Civil (L);

3.12. «A recorrente tem igualmente direito a ser ressarcida dos prejuízos decorrentes da privação do veículo, desde a data em que o entregou às recorridas, e até que lhe seja entregue o veículo de substituição (M);

3.13. «Tendo a viatura sido enviada para as oficinas da ré C é clara a privação de uso da mesma, bem como as despesas relacionadas com as deslocações a Santarém e à Azambuja, visto que a recorrente se encontrava privada do uso da viatura que havia adquirido (N);

3.14. «O douto acórdão, igualmente violou o disposto no n.° 4 do referido artigo 12.° da Lei n.º24/96, e ainda no artigo 909.° aplicável por força do artigo 913,° ambos do Código Civil, ao ser decidido não condenar as recorridas a pagar à recorrente a referida indemnização (O);

3.15. «A recorrente, por outro lado, não solicitou às recorridas que armazenassem o veículo dos autos, nem isso está sequer alegado pelas Recorridas nos autos.» (P).

4. As rés apresentaram contra-alegações, pronunciando-se pela confirmação do acórdão sub iudicio.

Sendo justo destacar pelo brilho e rigor técnico-jurídico, a conspícua contra--alegação da recorrida B, a que adiante ainda regressaremos, na qual, além da questão prévia, digamos, já abordada no despacho liminar, se desenvolve uma exposição modelar da problemática implicada no presente recurso.

Tanto que a co-ré C se limitou a manifestar-lhe adesão.

E o objecto da revista, no conspecto exposto, considerando a respectiva alegação e suas conclusões, à luz da fundamentação da decisão sub iudicio, compreende estritamente as seguintes questões:
a) a de saber se a autora tem direito a receber das rés um novo carro da mesma marca e modelo em perfeitas condições de funcionamento;
b) e as indemnizações pela privação do uso do veículo, bem como pelas deslocações a Santarém e à Azambuja;
c) ficando em contraponto isenta de pagar o questionado parqueamento da viatura pós reparação.
II
A Relação de Lisboa considerou assente a matéria de facto já dada como provada na 1.ª instância - com determinadas correcções e alterações devido à procedência de impugnações deduzidas em apelação -, para a qual, não impugnada e devendo aqui manter-se inalterada, desde já se remete nos termos do n. 6 do artigo 713 do Código de Processo Civil, sem prejuízo de pertinentes alusões.

1. A partir da factualidade que teve como provada, à luz do direito considerado aplicável, a sentença decidiu a problemática colocada em sede de acção e reconvenção nos termos já inicialmente relatados.

E a Relação resolveu singelamente em sentido negativo as questões que vêm de se enunciar como objecto da revista, de forma em derradeiro termo a suscitar confirmação, quer da decisão propriamente dita, quer dos respectivos fundamentos, para que se remete, nos termos do n.º 5 do artigo 713 do Código de Processo Civil - sem prejuízo do que adiante se observará.

Torna-se, efectivamente, mister explicitar o sentido do aresto e testar sumariamente a resistência que oferece à dialéctica cruzada das alegações dos litigantes nas três vertentes aludidas.
2. Assim, em primeiro lugar, a questão do direito, reivindicado pela recorrente, ao abrigo do artigo 914 do Código Civil - e também do artigo 12, n. 1, da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, que veio estabelecer «o regime legal aplicável à defesa dos consumidores» -, à substituição do automóvel defeituoso por um novo carro da mesma marca e modelo.

2.1. Provou-se em resumo que o defeito do automóvel - um desvio constante de trajectória para a direita - fora detectado pelo filho da demandante no próprio dia da aquisição, 28 de Janeiro de 1997, e, neste dia denunciado à B, recolheu o veículo acto contínuo às instalações desta, e depois às oficinas da C na Azambuja para reparação.

Em 6 e 28 de Maio e a 18 de Junho seguintes a B comunicou à autora que a viatura se encontrava reparada e pronta para entrega, tendo a deficiência sido totalmente removida sem que o veículo tenha restado minimamente afectado, mas aquela não apareceu para levantar ou experimentar a viatura..

Entretanto, por carta de 9 de Março de 1997, fez a autora solicitar às rés a substituição do automóvel original por outra viatura nova de idêntica marca e modelo, em perfeitas condições de funcionamento.

Considera, porém, a Relação de Lisboa, face ao artigo 914 do Código Civil, não assistir à recorrente no conspecto sumariado o direito à pretendida substituição. Segundo este normativo, o vendedor é obrigado a reparar o defeito da coisa alienada e, se o defeito não for integralmente reparado, a substituí-la por outra. Isto é, o legislador fez depender o direito à substituição da não eliminação do defeito, mediante a expressão condicionante «ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível», bem reveladora de que não se confere assim ao comprador um «direito de opção».

A autora só teria, por conseguinte, direito à substituição, sublinha o tribunal a quo, «se as rés não tivessem conseguido eliminar o defeito detectado na viatura comprada, o que não se provou», redundando a falta de prova da não eliminação do defeito - na tónica interpretativa do acórdão para que se propendeu no despacho liminar -, em desfavor da parte onerada com o respectivo ónus.

2.2. Diga-se que o entendimento exposto acerca do artigo 914.º é sufragado pela recorrida B louvando-se em prestigiosa doutrina.

O direito à substituição da coisa defeituosa consagrado nesse artigo e no artigo 12.º da Lei n.º 24/96 só existe «quando a reparação do defeito pelo vendedor não seja possível e não quando, por capricho, essa solução pareça mais conveniente ao comprador».

Não existe assim, à luz dos citados preceitos, «um puro direito de opção do comprador», o que é o mesmo que dizer, recordando um autor, que a «concorrrência electiva das pretensões reconhecidas por lei ao comprador não é um absoluto: sofre em certos casos atenuações e a escolha deve ser conforme ao princípio da boa fé, e não cair no puro arbítrio do comprador, sem olhar aos legítimos interesses do vendedor» (1) ..

Noutro pendor doutrinário, considera-se que os diversos direitos reconhecidos ao comprador da coisa defeituosa não podem ser exercidos em alternativa, definido-se entre eles uma espécie de sequência lógica»: primeiro está o vendedor adstrito a eliminar o defeito»; e só «não sendo possível ou apresentando-se como demasiado onerosa a eliminação», fica obrigado à substituição (2) .

2.3. Sustenta nuclearmente a autora, em contraponto, não terem as autoras provado, como lhes incumbia, demonstrado por sua vez o defeito, que o automóvel esteja realmente reparado e pronto para entrega, replicando a B ao invés que o ónus probatório da reparação lhe competia a ela.

Pensa-se tudo ponderado que a razão está do lado desta.

Tratando-se na realidade de saber se a não reparação é elemento constitutivo do direito de substituição (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil), ou se é antes a reparação seu facto impeditivo (n.º 2), deve em caso de dúvida o facto considerar-se constitutivo (n.º 3).

Incumbia, por conseguinte, à autora demonstrar a não eliminação do defeito, o que, como a Relação observa, não se provou, tanto obstando à pretendida substituição do veículo.

E não objecte a recorrente, salvo o devido respeito, que exerceu o direito de substituição mediante a carta de 9 de Março de 1997 - momento em que a viatura de facto ainda não tinha sido dada como reparada -, com efeito «interpelatório» definitivo, diz, ou «constitutivo» daquele direito na sugestiva terminologia da B, em todo ocaso como que imobilizando a alternativa prioritária da reparação.

Na verdade, o exercício do direito de substituição pressuporia então, se não erramos, tendo em mente a «sequência lógica» reparação/substituição de que há pouco se falava, a prévia conversão da eventual mora na reparação em incumprimento definitivo desta obrigação, mediante interpelação admonitória nos termos do n.º 1 do artigo 808.º do Código Civil, carácter que a carta de 9 de Março a todas as luzes não assume.

3. Improcedendo nos termos expostos o direito à substituição da questionada viatura, resta a pretensão da recorrente às indemnizações pela privação do uso desta - 270.000$00 com transportes públicos e táxis alternativos à razão de 6.000$00 diários -, e pelas deslocações a Santarém e à Azambuja, a pedido das rés, no montante de 50.000$00.

Observa o acórdão recorrido que estes factos foram levados aos quesitos 32.º e 33.º, respectivamente, tendo o primeiro recebido a resposta não provado, e provando-se no tocante ao segundo tão-somente que os familiares da autora se deslocaram àquelas localidades.

Provou-se ademais que a 28 de Fevereiro de 1997 a viatura em causa deu entrada nas oficinas da C na Azambuja, e que nesse mesmo dia foi facultado à autora o VW Polo de substituição - que aliás manteve até 19/20 de Maio, recebida já a comunicação das rés de que o seu automóvel estava reparado.

Nas condições referidas improcederam, sem motivo de censura, os pedidos de indemnização aludidos.

4. Insurge-se por fim a autora quanto à condenação nas despesas de parqueamento a liquidar em execução, alegando em suma não o ter solicitado.

Considera, todavia, o acórdão recorrido dever a recorrente suportar essas despesas por isso que, comunicando-lhe as rés em 6 de Maio que o carro estava reparado, eliminado o defeito, e pronto para entrega, a autora não impugnou o facto nem apareceu para o levantar, forçando as rés a resguardá-lo no seu parque de veículos, sob pena de ser responsabilizada pelo seu desaparecimento ou por qualquer dano que o pudesse atingir.

Não nos merece reparo a decisão recorrida também nesta terceira vertente.

Reparando a viatura, e aprestando-a para entrega, cremos efectivamente que impendia sobre as rés um dever acessório de conduta de se constituir depositária da mesma, resguardando-a com os cuidados devidos, na expectativa do seu levantamento pela proprietária.

E um semelhante depósito não tinha que ser gratuito.

Argumenta a autora que «não solicitou às recorridas que armazenassem o veículo dos autos» (conclusão P, supra, II, 3.15.).

Julga-se, no entanto, que, tendo sido avisada e não indo levantar o carro, aceitou o parqueamento, não mediante uma declaração negocial, mas por virtude de uma «actuação de vontade» (Willensbetätigung) de aceitação, e de um uso ou «comportamento social típico» sozialtypisches Verhalten) (3)., mecanismos com afloração no artigo 234.º do nosso Código Civil (4) .
III
Nos termos expostos, improcedendo as conclusões da alegação, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.
Custas pela autora recorrente (artigo 446.º do Código de Processo Civil).

Lisboa, 15 de Março de 2005
Lucas Coelho,
Bettencourt de Faria,
Moitinho de Almeida.
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(1) José Calvão da Silva, Compra e Venda de Coisas Defeituosas - Conformidade e Segurança, Almedina, Coimbra, págs. 80, 119 e segs., citado na contra-alegação da B.
(2) Pedro romano Martinez, Direito das Obrigações (Parte Especial). Contratos, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2001, págs. 40 e segs., também evocado pela B.
(3) Veja-se sobre o tema, com outros desenvolvimentos, Karl Larenz, Allgemeiner Teil des deutschen Bürgerlichen Rechts, 6. Auf., C. H. Beck, München, 1983, § 28, págs. 518, 519 e segs., 522 e seguintes
(4) Pires de lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição revista e actualizada, com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1987, págs. 221 e seguintes..