Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B815
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NORONHA DO NASCIMENTO
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITO
DEVEDOR
NOTIFICAÇÃO
EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO
Nº do Documento: SJ200406030008152
Data do Acordão: 06/03/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 3929/03
Data: 10/20/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : I) A notificação ao devedor (prevista no art. 583º do C.C:) de que o seu credor cedeu o crédito a outrem pode ser feita através da citação para a acção proposta pelo credor-cessionário contra o devedor.
II) Até à citação o crédito é inexigível porque a cessão é inoponível ao devedor (a quem até aí nada havia sido comunicado); com a citação a cessão torna-se eficaz e, por extensão, o crédito exigível nos termos do art. 662º, nºs. 1 e 2, do C.P.C..
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A Autora "A, S.A." propôs acção declarativa com processo ordinário contra B pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de 3.770.350$20 e juros de mora vincendos à taxa legal sobre 2.941.368$00.
Alega para tanto que é titular daquele crédito que lhe foi cedido pela anterior titular - a sociedade "C, S.A." - e que advinha de um contrato de concessão - distribuição celebrado entre esta e o Réu e que havia sido resolvido pela cedente por incumprimento do Réu.
Na 1ª instância, a acção foi julgada procedente mas, em recurso interposto pelo Réu, veio o Tribunal da Relação do Porto a revogar essa decisão, absolvendo o Réu do pedido.
Fundamenta-se esse acórdão para tanto no facto de a cessão de créditos não ter sido notificada ao Réu-devedor não lhe sendo, por isso, oponível.
Inconformada, recorre de revista a Autora concluindo as suas alegações da forma que resumidamente se indicam:
a) a cessão produz efeitos imediatos entre as partes;
b) por isso o credor-cessionário pode interpelar o devedor para o pagamento;
c) essa interpelação foi feita no presente caso através da citação para a presente acção já que tal citação tem, entre outros, o efeito de interpelar o devedor para pagar;
d) assim a notificação exigida pelo art. 583º, nº. 1, do C.Civil pode ser efectivada através da referida citação.
e) foram violados os arts. 557º, nº. 1, 583º, nºs. 1 e 2, e 585º, do C.Civil.
Pede a concessão da revista julgando-se por isso a acção totalmente procedente.

Contra-alegou o recorrido, defendendo a bondade da decisão.
Dão-se por reproduzidos os factos provados nos termos do art. 713º, nº. 6, e que não foram minimamente postos em xeque.

1º) Está em causa nesta acção determinar qual a amplitude do art. 583º do C.Civil (como todos os que se citarem sem indicação expressa de diploma); na verdade o que se questiona é saber se a citação do Réu para a presente acção tem os efeitos da notificação a que alude aquela norma como pressuposto essencial da eficácia da cessão de créditos em relação ao devedor.
Os factos provados podem, sucintamente, resumir-se da seguinte forma:
a) a sociedade "C, S.A." tinha um crédito de 3.770.350$20 sobre o Réu;
b) cedeu esse crédito à Autora a sociedade "A, S.A." por contrato escrito de 18/11/98;
c) não se provou que a cedente e/ou a cessionária tivessem notificado essa cessão ao Réu antes da propositura da presente acção;
d) a Autora-cessionária propôs esta acção peticionando o crédito cedido, em Agosto/99, para a qual o Réu foi citado.
O acórdão recorrido considerou que a cessão não foi notificada ao devedor pelo que lhe era inoponível nos termos do art. 583º; e essa notificação tinha que ser anterior à propositura da acção porquanto os requisitos de validade e eficácia da cessão teriam que estar já na titularidade da Autora aquando da introdução da acção em juízo.
Não tendo isto sucedido, o pedido teria que soçobrar - tal foi o raciocínio argumentativo do acórdão.
Cremos, porém, que a solução terá que ser outra.

2º) Como negócio jurídico contratual a cessão de créditos é válida e eficaz entre as partes independentemente da sua eficácia em relação ao devedor.
A validade da cessão depende da inexistência de vício formal ou substancial e a sua eficácia entre os contraentes é imediata a menos que estes tenham estipulado outra coisa.
Significa isto, por conseguinte, que no caso em apreço a validade e eficácia da cessão entre cedente e cessionário ocorreu logo que o contrato foi outorgado, tornando-se a cessionária a titular imediata do crédito cedido.
Simplesmente, a lei faz depender a eficácia da cessão em relação ao devedor do conhecimento que este tenha de que o crédito foi cedido. A lei não impõe como condição para a eficácia a autorização do devedor; impõe sim, como regra geral, que ele já saiba que o seu credor cedeu o crédito a outrem.
Esse conhecimento do devedor pode comprovar-se de três formas distintas: ou porque foi notificado, ou porque aceitou a cessão (o que revela que a conhecia) ou, muito simplesmente, porque se demonstrou que o devedor já sabia da cessão.
A notificação e a aceitação estão contempladas na previsão do nº. 1 do art. 583º; o conhecimento pré-existente de que houvera cessão está contemplado no nº. 2 da mesma norma.
O que resulta daqui é um corolário evidente: o que torna a cessão eficaz em relação ao devedor é o facto de este a conhecer e esse conhecimento pode revelar-se de várias maneiras entre as quais a notificação efectuada por um dos contraentes da cessão.
Esta regra geral só não vigora um caso excepcional: no de conflito de credores-cessionários previsto no art. 584º.
Aqui, e por razões específicas de segurança probatória atento o facto de haver credores conflituantes que poderiam beneficiar da fluidez de uma prova que vai incidir sobre um facto eventualmente também fluído (a prova do conhecimento geral que o devedor teria da cessão), o legislador foi mais rigoroso exigindo uma prova mais formal que passa pela notificação ao devedor ou pela aceitação deste.
A exigência de rigor que este art. 584º introduz para a hipótese que prevê, faz lembrar a maior exigência probatória que o art. 789º do C.Civil de Seabra previa em termos gerais para o conhecimento da cessão dada ao devedor e que devia revestir " forma autentica ".
Aliás, nesse Código - mais ainda do que no actual - era bem visível a diferença dos efeitos da cessão entre as partes contraentes e dos efeitos em relação ao devedor (art. 789º).

3º) No caso dos autos não há credores-cessionários conflituantes, pelo que não há que lançar mão no disposto no art. 584º.
Vale isto por dizer que a cessão de créditos em jogo tornou-se eficaz perante o Réu-devedor logo que este tomou conhecimento dela; e o conhecimento ocorreu, obviamente, com a citação para a presente acção.
É certo que não se provou que antes da propositura da acção o Réu soubesse da cessão; mas isso apenas importa para concluir que a cessão era-lhe inoponível por força desse desconhecimento até àquele exacto momento.
Enquanto o desconhecimento da cessão perdurasse, esta era ineficaz perante o Réu; com a citação para a acção, o Réu tomou conhecimento da cessão que passou a ser-lhe oponível.
A inoponibilidade da cessão ao Réu provocava, enquanto perdurasse, a inexigibilidade da sua dívida para com o cessionário; mas com a citação e o início da eficácia da cessão, a dívida passava a ser imediatamente exigível pelo novo credor.
Na verdade, o conhecimento que a citação implica noticiando ao Réu que o seu credor passou a ser outro não pode significar outra coisa senão que o novo credor pode exigir-lhe o pagamento do crédito de que ele é, agora, o titular.
A citação do Réu para a acção traz consigo, por conseguinte, a eficácia da cessão que o novo credor pode invocar e, por arrastamento, a exigibilidade da dívida que o Réu vai ter que solver ao novo titular.
Isto mesmo emerge, de modo líquido, do art. 662º, nºs. 1 e 2, do C.P.C..
Daí que não concordemos com o aresto deste Supremo Tribunal a que o acórdão recorrido alude.
A eficácia não contende com a validade. Esta conexiona-se com a valoração formal ou substancial do contrato; aquela conexiona-se tão-só com a produção de efeitos de um acto cuja validade já está prefixada.
Daí que no caso presente - assente de modo iniludível a validade do contrato de cessão - a eficácia comece a efectivar-se com o mero conhecimento pelo devedor de que a sua dívida foi cedida a outro credor.
Aqui, a eficácia da cessão para com o devedor relaciona-se com a exigibilidade da dívida; ou seja, logo que o devedor soube da cessão (e soube-o pela citação) a divida passou a ser-lhe exigível pelo novo credor.
Tem, pois inteira razão a recorrente; o que significa que o recurso deve proceder.

4º) É claro que não é totalmente igual dar-se conhecimento da cessão ao devedor antes da propositura da acção condenatória ou no decurso desta através da respectiva citação; mas a diferença reporta-se tão-só ao encargo de custas tal como se infere do nº. 3 do art. 662º do C.P.C.
Se a comunicação da cessão se faz ao Réu-devedor através de acção judicial e este não impugna o pedido, quem dá causa àquela é o credor-cessionário que usou injustificadamente da via judicial quando podia ter feito uma mera notificação extra-judicial. Daí que, nesta hipótese, impenda sobre ele o pagamento das custas como aquela norma estipula, em consonância, aliás, com a regra geral do art. 449º do C.P.C.
Mas isto em nada interfere com a substância da relação material: não é por ter usado de modo excessivo uma via judicial que o credor deixa de ser titular de um direito de crédito que lhe deve ser pago.

Termos em que se concede a revista, revogando-se o acórdão recorrido, e condenando-se o Réu no pedido.
Custas pelo Réu.

Lisboa, 3 de Junho de 2004
Noronha do Nascimento
Moitinho de Almeida
Bettencourt de Faria