Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
554/08.3TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: PIRES DA ROSA
Descritores: ASSOCIAÇÃO
LEGITIMIDADE ADJECTIVA
PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
INTERESSE EM AGIR
PATRIMÓNIO COLECTIVO
DIREITO AO BOM NOME
DIREITO À IMAGEM
DIREITO A HONRA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/04/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - Uma Associação de Escoteiros, sendo uma associação civil (de escoteiros), tem como primeira legitimidade defender o seu próprio nome, o nome do movimento (escotismo) cujo método e prática defende como instrumento para, complementarmente à acção da família, da escola e da religião, contribuir para o desenvolvimento integral dos jovens.
II - Para além do património pessoal que cada escoteiro associado em si mesmo transporta, do qual é o exclusivo e legítimo titular e que é atingido quando a figura do escoteiro enquanto tal é atingido, existe um património colectivo que a associação, por sê-lo, congrega e do qual ela é titular legítima e exclusiva.
III- É direito de uma associação, que pretende complementarmente à acção da família, da escola e da religião, contribuir para o desenvolvimento integral dos jovens, defender o bom nome, a imagem e a reputação que possam induzir os jovens a seguir o caminho indicado pelo movimento que corporiza o seu ideal.
IV- Por isso, quando a figura do escoteiro é beliscada, independentemente da ofensa concreta de que cada um dos escutas se pode sentir alvo, também a associação, por si, se pode sentir vítima de uma tal ofensa no seu nome, imagem ou reputação e, como tal, terá, necessariamente, interesse directo em demandar que a ofendeu.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


ASSOCIAÇÃO DOS AA intentou, no Tribunal Cível da comarca de Lisboa, em 22 de Fevereiro de 2008, contra
1ª - MEDIA BB ( PORTUGAL ) S......., UNIPESSOAL, LDA
2ª - MEDIA CC – SERVIÇOS DE APOIO A..........., LDA
3ª - CC/.LISBOA – P........, LDA
4ª - DD, S.A ( R... )
5ª - EE – SOCIEDADE........................, S.A.
6ª - FF – TELEVISÃO ................, S.A.
7ª -GG, S..... S.A.
8ª - HH– COMERCIALIZAÇÃO DE....................., S.A.
9ª -II ......., S.A. acção com processo especial para tutela de publicidade, que recebeu o nº554/08, da 10º Vara Cível, 3ª secção, pedindo a condenação das rés absterem-se de utilizar a campanha publicitária ( que identificam ) pelo menos na parte e em todos os suportes de divulgação onde a figura do “escoteiro” seja interveniente, referenciada ou visível, presente e futura, e conotada com a imagem de “parvo” ou outra análoga, confirmando-se a decisão proferida na providência cautelar;
a fixação de sanção pecuniária compulsória de 5 000,00 euros por cada dia em que não for cumprido o determinado nos presentes autos e por cada ré incumpridora ( art.829º-A do CCivil ).
Contestam as 1ª e 2ª rés ( fls.65 ) começando por arguir a ilegitimidade activa da autora.
Contesta 3ª ré ( fls.106 )
Contesta a 6ª ré ( fls.160 )
Contesta a 5ª ré ( fls.150 )
Responde a autora ( fls.178 ), designadamente à invocada excepção de ilegitimidade.
Em despacho saneador-sentença de fls.193 a 204 a 10ª Vara Cível de Lisboa, julgando procedente a excepção de ilegitimidade, absolveu as RR da instância.
A Associação dos AA, inconformada, interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Este Tribunal, em acórdão de fls.303 a 321, revogou a decisão recorrida e ordenou a sua substituição por outra que considere a apelante como parte legítima e determine o prosseguimento da lide.
Inconformadas, pedem agora revista para este Supremo Tribunal as 1ª e 2ª rés ( fls.333 ) – mas, por despacho de fls.415 foi o recurso julgado deserto por falta de alegações - e a 5ª ré ( fls.349 ), cujo recurso foi admitido para seguir nos autos e no efeito meramente devolutivo.
Alegando, CONCLUI a recorrente:
A. A capacidade das pessoas colectivas abarca todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins, salvo os vedados por lei e os inseparáveis das pessoas singulares, sendo que, neste particular, não se encontram excluídos da capacidade de gozo das pessoas colectivas alguns direitos de personalidade, como o direito ao bom nome e à honra;
B. A natureza, âmbito e limites de protecção do direito das pessoas colectivas ao bom nome e à honra encontram-se conformados e limitados pela consideração social própria da pessoa colectiva, e devem ser aferidos exclusivamente no quadro da actividade social desenvolvida, ou seja, na vertente da imagem, de honestidade na acção, de credibilidade e de prestígio social no cumprimento das suas funções sociais;
C. Uma associação que não é criada com o objectivo de representar cidadãos ou associados no exercício de direitos pessoalíssimos, como sejam os de personalidade, e cujos estatutos não o prevêem no seu objecto social, não possui "legitimidade activa processual" para executar actos que levem à representação, no caso dos autos, da classe dos escoteiros, ou mesmo de cada um dos seus associados, na defesa do seu bom nome enquanto escoteiros individualmente considerados ou considerados como classe;
D. O acórdão recorrido sufraga tese de direito suportada em erro de interpretação dos normativos presentes nos artigos 70º, n°1, 72º, n°s 1 e 2, 73.º, 160º, n°s 1 e 2, todos do Código Civil, e, ainda, artigo 26º, n°1 da Constituição da República Portuguesa, violando, em consequência, o normativo adjectivo vertido no artigo 26º, n°s 1 a 3 do Código de Processo Civil.
Contra – alegando a fls.401 pugna a recorrida Associação dos AA pelo bem fundado do acórdão recorrido, com o improvimento do recurso.
Estão corridos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
FACTOS considerados nas instâncias:
1. A Autora é uma associação civil fundada em 1913, constituída em 1917 pelo Decreto n.º 3.120-B, de 10/05/1917, declarada de utilidade pública pelo Decreto-lei n.º 460/77, de 7/11, com carácter educativo, de livre adesão, alheia a partidarismos políticos, sem fins lucrativos e de âmbito nacional.
2. E que tem por finalidade, complementarmente à acção da família, da escola e da religião, contribuir para o desenvolvimento integral dos jovens, através do método e prática do escotismo, ajudando-os a desenvolver as suas capacidades como indivíduos, procurando torná-los cidadãos úteis e felizes nas comunidades onde se inserem e a desempenharem um papel construtivo na sociedade.
3. Nos termos do art.º 37º n.º1, al. c) dos estatutos da A., cabe à chefia nacional representar a associação em juízo e fora dele, activa e passivamente, vinculando-se com a assinatura de dois membros eleitos
4. Em 20 de Janeiro de 2008 teve início uma campanha publicitária da cadeia de lojas Media .......t, desenvolvida pela T....../Lisboa – Publicidade, Ld.ª, e intitulada por esta de “Greetings from Parvónia” ou “Parvónia”, assente em spots desenvolvidos para televisão, rádio, outdoors e site Media .......t, com o slogan “Eu é que não sou parvo”.
5. A campanha publicitária tinha e tem como ideia central a criação de uma nação fictícia, intitulada de “Parvónia”, onde vivem os seus originários cidadãos, os “Parvos”.
6. Segundo o publicitado no site Media .......t ( http://www.media.......t.pt/home, mais exactamente em http://www.media.......t.pt.fun ), existia uma pasta dedicada à “Parvónia”, sendo que esta e os seus “cidadãos” caracterizam-se por:
A parvónia é um local muito distante, nos confins do mundo, onde nada mesmo nada acontece. Um local onde ninguém vai ou visita e que nem aparece no mapa! Todos os cidadãos da Parvónia têm como principal característica a sua parvoíce e, por isso, não se importam de não ter acesso à tecnologia, não saber o que é variedade e poder escolher, em especial, não se importam mesmo nada de pagar fortunas para ter qualquer produto.
Uma comitiva da Parvónia foi enviada a Portugal porque ouviram falar da Media .......t n.º500 na Europa e querem finalmente aprender o que são preços baixos. Será uma missão árdua e com muitas aventuras para estes verdadeiros Parvónios mas todos eles sabem que só no n.º1 da Europa conseguem saber o que são preços realmente baixos... e se conseguirem aprender isso... nunca mais serão enganados!”.
7. No site Media .......t podia ainda ver-se a descrição dos “Parvónios” ou “Parvos” que visitam a loja:
GENERAL, ........., MISS PARVÓNIA, PRESIDENTE” “Todos os cidadãos da Parvónia têm como principal característica a sua parvoíce. São desligados do mundo, vivem no antigamente e basicamente são PARVOS!
8. Seguia-se um link: “Aqui pode saber mais sobre estes parvos...”, através do qual se podia ver a descrição de cada personagem, sendo que a personagem “Escoteiro” era descrito como:
Alto, magro e com péssimo corte de cabelo é a prova viva da total falta de orientação deste grupo. É o mais trapalhão e se houver uma poça de água para pisar ou uma porta para ir contra... é com ele.
O excesso de crachás dá que pensar e o facto de andar sempre de bússola na mão não o ajuda rigorosamente em nada”.
9. Em seguida, no site podia ainda visionar-se um dos spots televisivos.
10.As personagens apareciam igualmente em panfletos de promoção comercial de artigos do Media .......t.
11.Existiam ainda dois spots televisivos que estavam a passar nos canais da RTP, SIC e TVI, onde se podiam ver as quatro personagens a entrar e interagir numa loja Media .......t.
12.Num desses spots, intitulado a “chegada”, resultava que as quatro personagens não conseguem ou sabem subir a uma escada e ainda referem “eu sou Parvo”.
13.O segundo spot mostrava as personagens já dentro da loja Media .......t, onde a personagem “Escoteiro” surgia de calções em baixo, sentado no óculo de uma máquina de lavar a roupa enquanto diz “Tantas sanitas, na parvónia não ser assim”.
14.O spot termina com as personagens a carregarem a máquina de lavar roupa com o “Escuteiro” sentado no óculo com os calções em baixo.
15.Na campanha a personagem “escoteiro” apresenta-se com roupas iguais às que os Escoteiros utilizam com excepção para as meias e calçado, sendo representada como um “Parvo”.
17.A campanha foi produzida pela R. TWA/Lisboa – Publicidade, Ld.ª a pedido das duas primeiras RR., tendo sido distribuída e divulgada desde 20 de Janeiro, terminando na altura em que o procedimento cautelar foi decidido.
18.Durante esse período a campanha passou nos canais da RTP, SIC e TVI.
19.As brochuras estiveram disponíveis.
20.Houve outdoors espalhados, pelo menos na cidade de Lisboa.
21.E os sites do Media .......t e da R. T...../Lisboa-Publicidade, Ld.ª, reproduziam a campanha.

A autora, Associação dos AA, é uma associação civil fundada em 1913, constituída em 1917 pelo Decreto n.º 3.120-B, de 10/05/1917, declarada de utilidade pública pelo Decreto-lei n.º 460/77, de 7/11, com carácter educativo, de livre adesão, alheia a partidarismos políticos, sem fins lucrativos e de âmbito nacional. E que tem por finalidade, complementarmente à acção da família, da escola e da religião, contribuir para o desenvolvimento integral dos jovens, através do método e prática do escotismo, ajudando-os a desenvolver as suas capacidades como indivíduos, procurando torná-los cidadãos úteis e felizes nas comunidades onde se inserem e a desempenharem um papel construtivo na sociedade.
Uma AA é uma associação dos escoteiros e uma associação dos escoteiros a primeira legitimidade que tem há-de ser a de defender o seu próprio nome, o nome do movimento – o escotismo – cujo método e prática defende como instrumento para, complementarmente à acção da família, da escola e da religião, contribuir para o desenvolvimento integral dos jovens.
Este movimento, como método e prática para o desenvolvimento integral dos jovens, representa em si mesmo aquilo que se entende como um património moral que se lhes oferece e que, portanto, ab initio se tem que defender como pressuposto da validade dessa mesma oferta.
Independentemente da ofensa que uma qualquer conduta de terceiro possa representar para um qualquer concreto associado e o seu individual património pessoal, existe uma património colectivo que é posto em causa quando alguém que transporta em si mesmo o nome da sociedade é, em virtude do nome e da condição nominal que transporta, atingido na honra, no bom nome, na imagem ou na reputação.
Ou seja, para além do património pessoal que cada escoteiro associado em si mesmo transporta, do qual é o exclusivo e legítimo titular e que é atingido quando a figura do “escoteiro” enquanto tal é atingido, existe um património colectivo que a associação, por o ser, congrega e do qual ela é titular legítima e exclusiva.
E é assim que, quando a figura do “escoteiro” é beliscada, independentemente da ofensa concreta de que cada um dos escutas se pode sentir alvo, também a associação por si se pode sentir vítima de uma tal ofensa.
E se se sente ofendida no seu bom nome, imagem ou reputação, terá necessariamente interesse directo em demandar quem o ofendeu porquanto da procedência da acção poderá ver posto termo à ofensa e reparados os danos sofridos.
Ora, é exactamente este interesse directo em demandar representado pela utilidade derivada da procedência da acção que define o conceito de legitimidade tal como vem inscrito no art.26º do CPCivil.
A capacidade das pessoas colectivas abrange todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins – reza o nº1 do art.160º do CCivil.
E o primeiro e primacial direito de uma associação que pretende complementarmente à acção da família, da escola e da religião, contribuir para o desenvolvimento integral dos jovens é defender o bom nome, a imagem e a reputação que possam induzir os jovens a seguir o caminho indicado pelo movimento que corporiza o seu ideal.
Portanto, a Associação dos AA tem capacidade para exercitar, defendendo, esse seu direito. Que é seu, próprio, específico, para além do direito pessoal de cada um dos seus associados
E se tem capacidade tem também, em princípio, legitimidade. Própria, exclusiva. Se como na presente acção tal como ela, autora, a coloca, tal como ela formula a causa de pedir e o pedido, ela tem o interesse na procedência da acção que propõe.
E é disto que tratamos quando tratamos da legitimidade enquanto pressuposto processual de uma acção ( cuja procedência ou improcedência não é questão que nos ocupe, ainda e agora ).
Nenhuma ofensa se verifica, na decisão recorrida, nem ao art.70º, nº1 do CCivil, nem aos arts. 72º, n°s 1 e 2, 73.º. Nem ao art.160º, n°s 1 e 2, do mesmo código
Muito menos ao artigo 26º, n°1 da Constituição da República Portuguesa – a Associação autora tem uma personalidade colectiva própria e é essa personalidade, e não outra qualquer, que ela tem o direito ( e o dever ) de defender. E é no âmbito dessa exclusiva defesa que ela estrutura a sua acção, cuja utilidade é evidente. Ela é parte legítima.
D E C I S Ã O
Na improcedência do recurso, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.
Custas a cargo da recorrente.
Lisboa, 04 de Fevereiro de 2010

Pires da Rosa (Relator)
Custódio Montes
Alberto Sobrinho