Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06S3955
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA PEIXOTO
Descritores: NATUREZA DO CONTRATO
CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
Nº do Documento: SJ200702140039554
Data do Acordão: 02/14/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : 1. Constitui contrato de prestação de serviços e não de trabalho aquele pelo qual a trabalhadora se obrigou a prestar à ré/associação desportiva os serviços de limpeza dos balneários e lavagem dos equipamentos, mediante determinada retribuição mensal, serviços esses que eram efectuados a seguir aos treinos ou jogos ou no dia seguinte.
2. A obrigação assumida é uma obrigação de resultado e não de meios, o que, desde logo, inculca a ideia de que o objecto do contrato celebrado entre as partes era a obtenção de um determinado resultado (a limpeza dos balneários e a lavagem dos equipamentos dos jogadores) e não propriamente a actividade que a autora teria de prestar para alcançar aquele resultado.
3. Discutindo-se na acção a natureza laboral do contrato, não pode dar-se como provado na matéria de facto que a autora foi admitida trabalhar sob as ordens, a direcção e subordinação da ré, apesar de na linguagem corrente tais expressões serem usadas para expressar uma determinada realidade de facto.
4. O Supremo pode dar oficiosamente como não escritas as referidas expressões. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam na secção social do Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório
"AA" propôs a presente acção no Tribunal do Trabalho de Vila Nova de Gaia contra a Associação Desportiva de ..., pedindo que a ré fosse condenada a pagar-lhe a importância correspondente às retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento até à data da sentença, bem como a indemnização de antiguidade e diversas importâncias a título de retribuição de férias, subsídios de férias e de Natal e de indemnização por violação do direito a férias.

Em resumo, a autora alegou que foi admitida ao serviço da ré em Março de 1998, para trabalhar sob as suas ordens, direcção e subordinação, mediante a retribuição mensal líquida de 350 euros, tendo sido por ela ilicitamente despedida em 7 de Julho de 2002, por falta de processo disciplinar e de justa causa e mais alegou que nunca gozou férias nem recebeu qualquer retribuição a título de férias e de Natal.

A ré contestou alegando que o contrato celebrado com a autora não era de trabalho, mas sim de prestação de serviços, não tendo ela, por isso, direito aos créditos salariais peticionados.

Na 1.ª instância, decidiu-se que o contrato celebrado entes as partes era um contrato de trabalho subordinado e que a autora tinha sido ilicitamente despedida, tendo, por isso, a ré sido condenada a pagar à autora a quantia de 2.250 euros a título de indemnização de antiguidade, bem como a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença referente às retribuições que ela teria auferido desde os 30 dias que antecederam a data da propositura da acção até à data da sentença (5.11.2004) e às retribuições de férias, subsídios de férias e de Natal referentes aos anos de 1998 e seguintes, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação.

A ré apelou da sentença, impugnando a decisão proferida sobre a matéria de facto e a qualificação jurídica dada ao contrato, mas o Tribunal da Relação do Porto julgou improcedente o recurso, o que levou a ré a interpor o presente recurso de revista, cujas alegações concluiu da seguinte forma:

1. O presente recurso tem por objecto a qualificação da relação jurídica existente entre a autora AA e a recorrente Associação Desportiva de ...., como contrato de trabalho (como pretende aquela) ou como contrato de prestação de serviços (como pretende esta).
2. O douto acórdão recorrido decidiu tratar-se de contrato de trabalho.
3. Para aferir da existência de contrato de trabalho ou de prestação de serviços devem verificar-se um conjunto de indícios que apontem num ou noutro sentido, apreciados na globalidade e sempre em função do caso concreto.
4. No caso concreto destes autos, devem ser ponderados indícios como:
5. No tocante ao horário de trabalho, não foi dada por provada a existência de qualquer horário de trabalho.
6. Quanto ao indício prestação de resultado ou desempenho de actividade, não restam dúvidas que a autora foi contratada para apresentar um resultado perante a recorrente, como produto do seu desempenho, que consistia na limpeza dos balneários e o tratamento das roupas.
7. Não fora assim e como se compreenderia que a autora não reclamasse subsídio de férias e de Natal durante tantos anos.
8. Sobre o indício da retribuição, verifica-se que a matéria dos itens 15 e 16 está em contradição com aqueloutra também considerada provada nos itens 44, 45 e 46 do mesmo acórdão recorrido.
9. A respeito do indício segurança social e regime fiscal, sempre a autora agiu nessa conformidade, com a consciência de que recebia retribuição como prestadora de serviços e não como assalariada e que partilhava essa receita do seu agregado com a colaboração do marido BB e da própria filha de ambos.
10. Por isso, declarou e confessou na acta (24/09/2004) que nunca incluiu essas retribuições na declaração de IRS como remuneração provinda de um contrato de trabalho, devendo a confissão da acta citada ser conjugada com a matéria provada dos itens 15 e 16 da sentença.
11. O conjunto e escassez dos indícios dados como provados, para a qualificação do contrato em crise como contrato de trabalho, impõe a consideração do desempenho da autora com o de prestação de serviços, na esteira da doutrina geralmente aceite e da jurisprudência maioritária (Acórdão da Relação do Porto de 19/2/2001 - Colect. Jurisp., ano 2001, tomo I, pág. 251; da Relação de Lisboa de 2/2/2000, in Colect. Jurisp., Tomo I, pág. 270; da Relação do Porto de 9/10/2000, Colect. Jur., ano 2000, tomo IV, pág. 246 e Ac. S.T.J. de 22/11/2000, in Col. Jurisp.-Ac. ST J , III, pág. 288).
12. As escassas instruções da recorrente não podem considerar-se indício de subordinação (Acórdão da Relação de Lisboa já citado e respectivas considerações das presentes alegações).
13. Ao decidir de forma diversa, o douto acórdão recorrido violou o correcto entendimento do disposto no art.º 10.º e 12.º do Código do Trabalho e no art.º 1154.º do Código Civil.

A autora não contra-alegou e, neste Supremo Tribunal, a Ex.ma magistrada do M.º P.º emitiu parecer, a que as partes não responderam, no sentido da confirmação do julgado.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. As questões
O objecto do recurso restringe-se à questão de saber se o contrato, ao abrigo do qual a autora prestou a sua actividade à ré, deve ser considerado de trabalho (tese da autora e das instâncias) ou de prestação de serviços (tese da ré).

III. Os factos
Os factos dados como provados na 1.ª instância e que a Relação manteve integralmente são os seguintes:
1) A autora foi admitida ao serviço da ré, em Março de 1998, para trabalhar sob as suas ordens, direcção e subordinação, contra a respectiva remuneração e desempenhava as funções de técnica de equipamento e funcionária de campo.
2) As funções exercidas pela autora eram desempenhadas por esta de acordo com as instruções dadas pela ré.
3) Nos últimos anos, a remuneração mensal da autora era de 350,00 € líquidos.
4) No dia 7 de Julho de 2003, cerca de 19h30 e após ter sido solicitada para arrumar as roupas dos jogadores, a autora foi despedida pela ré.
5) A ré despediu a autora sem efectuar um processo disciplinar.
6) À data do despedimento, a autora auferia como vencimento mensal a quantia de 375,00 € líquidos.
7) A autora não gozou as férias vencidas em 01/01/2003 nem recebeu qualquer quantia pelo ano de trabalho prestado em 2002.
8) Desde que a autora se encontra ao serviço da ré, esta nunca lhe pagou os montantes referentes ao subsídio de férias e subsídio de Natal.
9) Enquanto trabalhadora ao serviço da ré, a autora nunca gozou férias.
10) A autora nunca recebeu qualquer quantia a título de subsídio de Natal.
11) A autora assumiu perante a ré a obrigação de prestar os seguintes serviços: limpar os balneários e lavar os equipamentos.
12) A autora executava os serviços de limpeza dos balneários e lavagem dos equipamentos a seguir aos treinos ou provas desportivas da ré ou nos dias seguintes.
13) Lavava as roupas e equipamentos na máquina do campo.
14) Não era a ré quem escolhia ou comprava os produtos de limpeza, sacos do lixo, vassouras e diversos, mas era a autora quem assim procedia.
15) A autora pediu à anterior Direcção da ré para que regularizasse a situação na Segurança Social.
16) Tendo a citada Direcção anterior à actual, de acordo com a autora, acordado em declarar as horas dos serviços prestados à Segurança Social, para poder beneficiar das respectivas regalias sociais.
17) O cartão junto a fls. 9 é um cartão emitido pela Associação de Futebol do Porto destinado aos diversos colaboradores dos clubes inscritos naquela, de molde a permitir o acesso gratuito a todos os eventos desportivos em que a ré seja interveniente.
18) Em 7 de Julho de 2003, o Presidente da Direcção da ré fez sentir à autora que a Direcção estava descontente com a qualidade dos serviços prestados.
19) Tendo-lhe manifestado esse desagrado que era também o resultado de diversas queixas de directores e associados.
20) Comunicou-lhe ainda, nessa data, que o clube (A.D.G.) prescindia dos seus serviços.
21) Como de facto aconteceu.
22) A autora endereçou à R. a carta de fls. 38, em 30/09/2003.
23) A que foi dada a resposta constante dos documentos de fls. 40 e 41, onde expressamente se informa que, analisados os elementos disponíveis na A.D.G., "concluímos pela inexistência de qualquer vínculo laboral.
24) A autora nunca tinha gozado férias, nem recebido subsídios de férias e de Natal.
25) A autora foi contratada pela ré, no ano de 1998.
26) Para trabalhar sob a direcção, ordem e subordinação da ré.
27) A autora, inicialmente, foi trabalhar para a ré auferindo o salário mensal líquido de 60.000$00.
28) A autora, entre outras funções, encarregava-se de lavar e tratar dos equipamentos e balneários.
29) Fazia-o como trabalhadora, por conta e ordem da ré.
30) A autora tinha que comparecer todos os dias ao campo de ... de ...., ou, pelo menos, estar à disposição da Associação Desportiva de ...., para assim que fosse necessária a sua presença, esta tinha que comparecer ao serviço.
31) Durante cerca de 20 dias por ano, que correspondia ao período de férias do clube, a autora, embora não tivesse que estar permanentemente no seu local de trabalho, estava disponível para exercer a sua actividade.
33) Era a própria ré que dizia à autora que, durante esse tempo, bastava que a mesma fosse ao campo em dias alternados, a fim de verificar se estava tudo em condições e, que quando fosse necessário, contactavam-na para ela ir fazer o que fosse necessário.
34) O que efectivamente acontecia durante cerca de 2 a 3 semanas por ano.
35) Auferindo no final do mês o salário habitual.
36) A autora, durante um período de cerca de 30 dias e ocasionalmente, lavou os equipamentos dos jogadores em casa.
37) Mas tal facto devia-se apenas à boa vontade da autora que o fazia apenas e tão só, quando a máquina de lavar que existia na sede do clube se avariava.
38) A autora era gratificada pelo referido em 18º e 19º da resposta [à contestação] (1).
39) Uma forma de compensar os gastos com a luz e utilização da máquina.
40) Era a autora quem escolhia os materiais que utilizava nas suas tarefas diárias ao serviço ré.
41) Naturalmente, sendo a autora a empregada que lidava com os produtos de limpeza e outros acessórios, era esta que, quando necessitava, informava a direcção da necessidade de obter os determinados produtos.
42) A ré dizia à autora para escolher e encomendar os produtos.
43) Fazia-o por conta da ré, era esta que lhe dizia para escolher os produtos e era a ré que os pagava.
44) A autora veio, efectivamente, a descobrir que a ré não se encontrava a fazer os devidos descontos para a Segurança Social.
45) Tendo solicitado a rápida solicitação da regularização da sua situação na segurança social.
46) Descobrindo a autora que a ré, apesar de estar a efectuar descontos para a segurança social, estava a fazê-lo apenas por parte do salário.

IV. O direito
1. Os factos em apreço ocorreram todos antes de 1 de Dezembro de 2003, ou seja, antes da entrada em vigor do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 99/32003, de 27 de Agosto (vide art.º 3.º, n.º 1, da referida Lei). Por essa razão, o seu enquadramento jurídico tem de ser feito à luz dos normativos legais então em vigor, mais concretamente à luz da LCT (2) e da LCCT (3).

Ora, segundo o art.º 1 da LCT "[c]ontrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta". Por sua vez, nos termos do art.º 1154.º do C. C., "[c]ontrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição".

Como resulta do confronto dos referidos conceitos, aqueles dois contratos distinguem-se no que diz respeito à retribuição que é um elemento essencial do contrato de trabalho, ao contrário do que acontece no contrato de serviços, onde pode existir ou não e no que toca ao objecto do contrato que no contrato de trabalho é constituído pela própria actividade de uma das partes, enquanto que no contrato de prestação de serviços se traduz apenas na prestação de um determinado resultado dessa actividade.

Todavia, como a doutrina e a jurisprudência vêm salientando, o que verdadeiramente distingue aqueles dois tipos de contratos é a forma como o trabalhador exerce a sua actividade, uma vez que ambos os contratos pressupõem, apesar da diversidade dos seus objectos, a prestação de uma certa actividade e a obtenção de um determinado resultado.

Na verdade, no contrato de trabalho a actividade que uma das partes se obriga a desenvolver a favor da outra não constitui um fim em si mesmo; visa a prossecução de certos resultados de natureza económica por parte da pessoa a quem aquela actividade aproveita: Por sua vez, no contrato de prestação de serviços a obtenção do resultado que uma das pessoas se obrigou a proporcionar à outra implica necessariamente da sua parte a realização de uma certa actividade, qual seja o trabalho necessário para alcançar o resultado prometido.

A diferença está na forma como a actividade (o trabalho) é efectivamente exercida num e noutro caso.

Assim, no contrato de trabalho, a actividade é exercida sob a autoridade e direcção da parte que dela beneficia, o que vale por dizer que é prestada sob as suas ordens, orientações, instruções e fiscalização, isto é, mediante subordinação jurídica. Tal resulta inequivocamente do conceito legal de contrato de trabalho, do disposto no n.º 1 do art.º 39.º da LCT, nos termos do qual "[d]entro dos limites decorrentes do contrato e das normas que o regem, compete à entidade patronal fixar os termos em que deve ser prestado o trabalho" e do estatuído no art.º 20.º, n.º 1, al. c), da LCT que impõe ao trabalhador o dever de "[o]bedecer à entidade patronal em tudo o que respeite à execução e disciplina do trabalho, salvo na medida em que as ordens e instruções daquela mostrem contrárias aos seus direitos e garantias".

Porém, no contrato de prestação de serviço as coisas já não se passam assim: A subordinação jurídica não existe, uma vez que a parte que se obrigou a proporcionar à outra determinado resultado do seu trabalho não está sujeita à direcção e à autoridade da outra, no que diz respeito ao modo como deve realizar o trabalho necessário à obtenção do resultado que se obrigou a proporcionar-lhe. A sua actividade é exercida em regime de autonomia e não em regime de subordinação e daí advém a distinção que comummente é feita entre trabalho subordinado e trabalho autónomo.

No plano teórico, a distinção entre aqueles dois tipos de trabalho é fácil de fazer, mas na ordem prática as dificuldades são frequentes, não só por causa da autonomia técnica com que certas actividades são exercidas, mesmo quando prestadas em regime de contrato de trabalho, mas também porque o contrato de prestação de serviços (o trabalho autónomo) não é absolutamente incompatível com a existência de orientações e instruções, pois, como diz Bernardo Lobo Xavier (4), "em certos contratos de trabalho a prestação do trabalhador é efectuada com tanta autonomia que dificilmente se divisam os traços da subordinação jurídica ou a retribuição está tão ligada à execução de produtos acabados que a situação se aproxima muito das do trabalho autónomo. Por outro lado, a autonomia do trabalho não é incompatível com a execução de certas directivas da pessoa servida e de algum controlo desta sobre o modo como o serviço é prestado."

As dificuldades da distinção resultam da mutação que o modelo tradicional da relação de trabalho tem vindo a sofrer, a que não são alheios os fenómenos da desmaterialização do trabalho, da terciarização da economia, da proletarização das profissões liberais e do surgimento de novas estruturas empresariais.

Assim, por um lado, tornou-se, hoje, frequente a celebração de contratos de trabalho para o desempenho de actividades que tradicionalmente eram consideradas como profissões liberais, isto é, exercidas por profissionais livres, ou seja, por trabalhadores em regime de autonomia (por exemplo, a medicina, a advocacia e a arquitectura) e, por outro lado, passou a ser crescente o número de empresários em nome individual que, hoje, prestam múltiplos serviços às empresas que anteriormente eram realizados por trabalhadores internos. E, além disso, é cada vez maior número de actividades cujo exercício implica, pela sua elevada especificidade, uma grande autonomia técnica, mesmo quando são prestadas em regime de trabalho subordinado, pois, como diz Pedro Romano Martinez (5), há hoje uma multiplicidade de profissões que podem ser exercidas com autonomia ou mediante contrato de trabalho e a autonomia técnica e a criatividade, que são inerentes a algumas delas, tornam, por vezes, difícil a qualificação de uma determinada situação jurídica em concreto.

Efectivamente, diz aquele autor, são muitas as situações em que a subordinação jurídica do trabalhador não transparece em todos os momentos da vida da relação, havendo, muitas vezes, até, uma certa aparência de autonomia, mas que nada tem a ver com a autonomia que é típica do contrato de prestação de serviços, por se tratar apenas da chamada autonomia técnica que tem a sua razão de ser na natureza da actividade e na qualificação profissional do trabalhador e não na falta de autoridade e direcção do empregador que, apesar da autonomia técnica com que o trabalhado é realizado, continua a ser por ele organizado, orientado, controlado e utilizado (6).

E essas situações vão sendo cada vez mais, pois, como diz MAZZONI (7) (citado por Monteiro Fernandes (8) "[q]uanto mais o trabalho se refina e assume carácter intelectual, mais difícil é estabelecer uma nítida diferenciação, porque a subordinação tende a atenuar-se cada vez mais, na relação de trabalho subordinado, e a avizinhar-se daquela genérica supervisão, por parte do empregador, que se encontra também na relação de trabalho autónomo e que corresponde a um direito do comitente."

E as dificuldades agravam-se quando estamos perante actividades que normalmente são exercidas como profissão liberal (fenómeno que vai sendo cada vez mais frequente e a que Victor Russomano (9) expressivamente apelida de "proletarização das profissões liberais) e que a própria lei admite que possam ser exercidas em regime de contrato de trabalho, sem prejuízo da autonomia técnica requerida pela especial natureza das mesmas (art.º 5.º da LCT).

Por outro lado, há contratos de prestação de serviço em que a autonomia do trabalhador não é total e, aparentemente, às vezes nem sequer existe. É o que acontece quando, por força do estipulado no contrato o trabalho é prestado nas instalações e utilizando os equipamentos e matérias primas da outra pessoa e dentro de horário contratualmente convencionado e quando a remuneração é paga não em função do resultado, mas do tempo despendido. Nestes casos, a autonomia do trabalhador é muito restrita, mas, como refere Monteiro Fernandes (10), tal decorre das condições contratualmente estabelecidas, fundadas no consenso das partes e não da efectiva autoridade de uma perante sobre a outra.

Uma coisa é certa: na vigência da LCT competia ao trabalhador alegar e provar os elementos constitutivos do contrato de trabalho, quando os direitos por ele peticionados em juízo se baseassem na existência daquele tipo de contrato (art.º 342.º, n.º 1, do C.C.), uma vez que a LCT não continha qualquer presunção nesse sentido, ao contrário do que agora acontece com o Código do Trabalho (vide art. 12.º do C.T.).

Deste modo, ao abrigo da referida LCT (que ao caso em apreço é aplicável, como já foi dito), incumbia ao trabalhador alegar e provar que prestava a sua actividade para outra pessoa, que o fazia mediante o pagamento de uma retribuição e que a sua actividade era exercida sob a autoridade e direcção dessa outra pessoa.

Como decorre do que já foi dito, a prova dos elementos constitutivos do contrato de trabalho nem sempre é fácil, sobretudo no que diz respeito à subordinação jurídica. De facto, embora a prova da subordinação jurídica possa ser feita directamente, alegando e provando as ordens que, no dia a dia, são dadas ao trabalhador no decurso da sua actividade, a verdade é que essa prova nem sempre é fácil, mormente nos casos em que a actividade é exercida com grande autonomia técnica. Haverá, então, que recorrer à chamada prova indirecta que se traduz na alegação e prova de factos que, tendo em conta o modelo prático em que o conceito de subordinação em estado puro se traduz, correspondem a indícios da existência daquela subordinação. Isto porque, como diz Monteiro Fernandes (11), "a subordinação não comporta, em regra, a mera subsunção (...) é um conceito-tipo que se determina por um conjunto de características; daí o uso de um "método tipológico" baseado na procura de indícios que são outras tantas características parcelares do trabalho subordinado, segundo o id quod plerumque accidit", ou, melhor, de acordo com o modelo prático em que se traduz o conceito de subordinação em estado puro".

Não sendo possível fazer a prova directa da subordinação, será com base nos indícios recolhidos que a qualificação jurídica do contrato será feita. Não através de um juízo subsuntivo, mas através de um juízo de mera aproximação entre os dois modelos analiticamente considerados (o da situação concreta e o do modelo típico da subordinação), juízo esse que será sempre um juízo de globalidade, uma vez que cada um dos indícios, tomados de per si, tem um valor muito relativo que pode variar de caso para caso.

Os indícios que habitualmente são referidos pela doutrina e pela jurisprudência são os chamados indícios negociais internos e os indícios negociais externos. O primeiro grupo compreende engloba o local onde a actividade é exercida, a existência de horário de trabalho de trabalho, a propriedade dos instrumentos de trabalho, o tipo de remuneração, o direito a férias remuneradas, o pagamento de subsídio de férias e de Natal, o recurso a colaboradores, o regime de faltas, o regime disciplinar, o repartição do risco e a integração na organização produtiva. O segundo grupo inclui a exclusividade da prestação, o tipo de imposto pago pelo prestador da actividade, a sua inscrição na Segurança Social e sua filiação sindical.

Assim, se a actividade for prestada na empresa, junto do empregador ou em local por ele indicado, estaremos, por via de regra, perante um contrato de trabalho. E o mesmo acontece se o prestador da actividade estiver sujeito a horário de trabalho fixo, se os bens e utensílios de trabalho lhe forem fornecidos pelo beneficiário da sua actividade, se a retribuição lhe for paga em função do tempo de trabalho, se tiver direito a férias remuneradas e se lhe forem pagos os subsídios de férias e de Natal. E constituem, ainda, indícios da existência de contrato de trabalho o facto do prestador da actividade não poder recorrer a colaboradores por si contratados, o facto de não perder o direito à retribuição, quando, por causa que não lhe seja imputável, não puder prestar a sua actividade, o facto de prestar a sua actividade apenas a um beneficiário, o facto de estar sujeito ao regime de faltas e à disciplina da empresa que beneficia da sua actividade, o facto de estar sujeito ao regime fiscal dos trabalhadores por conta de outrem, o facto de se encontrar inscrito na Segurança Social como trabalhador dependente e o facto de se encontrar sindicalizado.

Mas importa ter presente (repete-se) que a existência daqueles indícios não é só por si suficiente para concluir no sentido da subordinação jurídica que caracteriza o contrato de trabalho, uma vez que muitos desses índices também aparecem no contrato de prestação de serviço, não por força do contrato em si, mas por força das estipulações contratuais acordadas entre as partes. É o que acontece muitas vezes com a determinação do local de trabalho que pode estar dependente da actividade a desenvolver e com a fixação de um horário de trabalho para a realização da actividade que pode estar dependente do período de funcionamento da empresa ou das horas de laboração das máquinas (Pedro Romano Martinez (12) e com os materiais e instrumentos de trabalho (Monteiro Fernandes (13).

2. Revertendo, agora, ao caso em apreço e tendo presente a matéria de facto, poderíamos dizer que a resolução da questão suscitada no recurso não oferecia dificuldades. Com efeito, para além de estar provado que a autora auferia da ré a quantia mensal de 350,00 euros líquidos (facto n.º 3), também foi dado como provado que ela foi admitida ao serviço da ré, "para trabalhar sob as suas ordens, direcção e subordinação contra a respectiva remuneração" (facto n.º 1), "para trabalhar sob a direcção, ordem e subordinação da ré (facto n.º 26) e que exercia as suas funções "como trabalhadora, por conta e ordem da ré" (facto n.º 29).
Acontece, porém, que os "factos" referidos nos n.os 1 e 26 não podem ser considerados como tal, no contexto da presente acção. Com efeito, embora se admita que as expressões trabalhar sob as ordens, a direcção e subordinação de alguém possam, em certas circunstâncias, ser incluídas na matéria de facto, uma vez que na linguagem comum são usadas com um sentido eminentemente fáctico, a verdade é que no contexto da presente acção isso está absolutamente fora de questão, dado que o thema decidendum consiste precisamente em saber se a autora trabalhava ou não sob a autoridade e direcção da ré, ou seja, sob as ordens e subordinação da ré. Ora, neste contexto, como é óbvio, as expressões referidas fazem parte do conceito legal do contrato de trabalho, assumindo, por isso, um significado eminentemente jurídico, o que obsta a que sejam incluídas na decisão da matéria de facto, pois, como se disse no recente acórdão deste tribunal, proferido em 7.2.2007 no processo n.º 3538/06, da 4.ª Secção (14), a propósito da expressão sob a autoridade de orientação, "numa acção em que se discute se determinado contrato reveste, ou não, natureza laboral, a matéria de facto não deve conter expressões semelhantes à transcrita - que se conexionam directamente como o "thema decidendum" - pois que o vínculo de subordinação jurídica, decorrente do poder de direcção conferido por lei ao empregador, constitui o elemento preponderante daquele módulo contratual".

E nem se diga que o Supremo não pode imiscuir-se nessa matéria, pelo facto de a recorrente não ter suscitado nenhuma questão a este respeito e uma vez que o Supremo só pode conhecer do erro na apreciação das provas e na fixação da matéria de facto nos casos expressamente referidos no n.º 2 do art.º 722.º do CPC, ou seja, quando tenha havido ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, o que vale por dizer quando tiver havido violação do direito probatório material (substantivo).

É que, no caso em apreço, o que está em causa não é propriamente a questão de saber se houve ou não um erro na apreciação das provas e, consequentemente, na fixação da matéria de facto, mas sim a questão de saber se no elenco factual foram incluídos "factos" que verdadeiramente o não são, questão essa que manifestamente é uma questão de direito e não de facto e que, por isso, cai na área da competência do Supremo, como em situação similar foi dito no acórdão de 13.7.2006, proferido no processo n.º 1.073/06, da 4.ª secção deste tribunal (15).

Efectivamente, como se escreveu neste último acórdão, "saber se a resposta a determinado quesito deve ser considerada como não escrita, nos termos do n.º 4 do art.º 646.º do CPC, por alegadamente conter matéria de direito ou por conter factos que só possam ser provados por documento ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes, constitui matéria de direito e não de facto, de conhecimento oficioso até, uma vez que ao Supremo cabe aplicar o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido (art.º 729., n.º 1, do CPC). De outro modo, o Supremo poderia ver-se constrangido a aplicar o direito a "factos" que verdadeiramente o não eram."

A este respeito, como também se disse no mencionado acórdão, mantém plena actualidade o que dizia A. Reis (16), em anotação ao art.º 653.º do CPC, acerca do excesso nas respostas dadas aos quesitos. Dizia ele que não havia meio específico de reacção contra tal anomalia, mas que tal também não era necessário, pois, ao tribunal colectivo não compete decidir questões de direito nem decidir questões de facto que não lhe foram postas. Todavia, "[s]e decidir uma e outras, a sanção deve ser a mesma: considerar-se não escrita a resposta (...)" e "para fazer valer essa sanção não se torna necessário empregar qualquer meio processual de impugnação ou ataque; não é preciso reclamar, nem arguir nulidades, nem recorrer. Basta que a parte interessada chame a atenção para o excesso cometido e peça que se considere sem efeito a decisão proferida. Em vez de reclamar, nos termos da alínea h), o advogado denunciará a anomalia e pedirá ao juiz que vai proferir a sentença, ou ao tribunal superior para o qual interponha recurso, que não tome em consideração a resposta exorbitante do tribunal colectivo, tal qual como no caso de este se ter pronunciado sobre questões de direito".

No caso em apreço, a recorrente nem sequer chamou a atenção para o excesso referido, mas isso não obsta a que, oficiosamente, se dê como não escrito o teor dos n.ºs 26 e 29 da matéria de facto supra, bem como as expressões "para trabalhar sob as suas ordens, direcção e subordinação" contidas no n.º 1 da aludida matéria de facto.

3. Expurgada que foi a matéria de facto dos conceitos jurídicos que dela constavam, importa averiguar, agora, se a autora prestava a sua actividade à ré em regime de trabalho subordinado ou não.
E adiantando, desde já a resposta, diremos que os indícios contidos na matéria de facto não são suficientes para dar uma resposta afirmativa. Senão vejamos.

Antes de mais importa salientar o tipo de obrigação que a autora assumiu perante a ré. Como consta do n.º 11 da matéria de facto, "[a] autora assumiu perante a ré a obrigação de prestar os seguintes serviços: limpar os balneários e lavar os equipamentos". A obrigação assumida é evidentemente uma obrigação de resultado e não de meios, o que desde logo, inculca a ideia de que o objecto do contrato celebrado entre as partes era a obtenção de um determinado resultado (a limpeza dos balneários e a lavagem dos equipamentos dos jogadores) e não propriamente a actividade que a autora teria de prestar para alcançar aquele resultado.

Depois, importa referir que da matéria de facto não resulta que a autora estivesse sujeita a um horário de trabalho. Pelo contrário, está provado que "[a] autora executava os serviços de limpeza dos balneários e a lavagem dos equipamentos a seguir aos treinos ou provas desportivas da ré ou nos dias seguintes" (facto n.º 12), o que deixa antever que ela quem escolhia o momento para executar aqueles serviços.

Por outro lado, está provado que a autora nunca gozou férias e que nunca recebeu os subsídios de férias e de Natal (factos n.os 8, 9, 10 e 24), o que também indicia a favor da inexistência do contrato de trabalho.

Foi dado como provado, é certo, que a autora tinha de comparecer todos os dias no campo de Arcos de Amoreira, ou, pelo menos, estar à disposição da ré, para comparecer quando a ré considerasse necessária a sua presença (facto n.º 30), mas daí não resulta que a autora estava sujeita a um horário de trabalho e o facto dela ter de comparecer quando a ré entendesse necessária a sua presença constitui um indício a favor da existência de um contrato de prestação de serviços, pois dele parece resultar que aquilo que à ré interessava realmente não era a actividade em si mesma, mas antes o resultado que através dela pretendia obter: a limpeza dos balneários e a lavagem dos equipamentos.

E também foi dado como provado que a autora estava inscrita na Segurança Social, mas provado está também que essa inscrição ocorreu a pedido da autora e que a direcção da ré acedeu a tal, para que ela pudesse beneficiar das respectivas regalias sociais, o que inculca a ideia de que se tratou de inscrição de favor (factos n.ºs 15 e 16).
E provou-se, ainda, que a autora desempenhava as suas funções de acordo com as instruções dadas pela ré (facto n.º 2) e que auferia uma retribuição mensal (facto n.º 3). Estes factos são normalmente indícios da existência do contrato de trabalho, mas a verdade é que também podem ocorrer numa relação de trabalho autónomo, não sendo, por isso, só por si decisivos e suficientes para qualificar de trabalho subordinado o vínculo que, in casu, foi estabelecido entre as partes.

Finalmente, importa referir que não há razões para ordenar a ampliação da matéria de facto, ao abrigo do disposto no n.º 3 do art.º 729.º do CPC, uma vez que todos os factos alegados pelas partes foram objecto de apreciação expressa na decisão proferida sobre a matéria de facto, sendo certo, no que toca à subordinação jurídica, que a autora se limitou a alegar de uma forma conclusiva que foi admitida ao serviço da ré, em Março de 1998, para trabalhar sob as suas ordens, direcção e subordinação (art.º 1.º da petição inicial e art.º 5.º da resposta à contestação), que desempenhava as suas funções de acordo com as instruções dadas pela ré (art.º 3.º da p.i.) e por conta e ordem da ré (art.º 8.º da resposta à contestação).

Concluindo, diremos que competia à autora alegar e provar os factos que permitissem concluir de forma inequívoca pela natureza laboral da relação jurídica estabelecida com a ré e que essa prova não foi feita, quiçá por ela não ter alegado factos suficientes nesse sentido, o que implica que sejamos obrigados a concluir que o contrato em causa não era de um contrato de trabalho subordinado, mas sim um contrato de prestação de serviço e, consequentemente, a julgar procedente o recurso interposto pela ré e a absolver esta do pedido.

Com efeito, tratando-se de um contrato de prestação de serviços, a autora não tem direito aos créditos que reclamou a título de férias, de indemnização por violação do direito a férias, de subsídios de férias e de Natal, uma vez que entre as partes nada foi convencionada a esse respeito e a lei só reconhece o direito a esses créditos nos casos em que o contrato seja de trabalho subordinado.

E o mesmo se diga relativamente à indemnização de antiguidade e às retribuições que a autora teria auferido desde a data da cessação do contrato até à data da sentença peticionadas pela autora. A lei também só prevê o direito a esses créditos quando estiver em causa a cessação do contrato de trabalho por despedimento ilícito, o que no caso não acontece, uma vez que o contrato celebrado pelas partes não era de trabalho, mas sim de prestação de serviços.

V. Decisão
Nos termos expostos, decide-se conceder a revista, revogar o acórdão recorrido e absolver a ré do pedido.
Custas pela autora, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2007
Sousa Peixoto
Sousa Grandão
Pinto Hespanhol
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(1) - Ou seja, pelos factos referidos nos n.os 36 e 37.
(2) - Forma abreviada de designar o regime jurídico do contrato individual de trabalho aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49.408, de 24 de Novembro de 1969.
(3) - Forma abreviada de designar o regime jurídico da cessação do contrato individual de trabalho e da celebração e caducidade do contrato de trabalho a termo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro.
(4) - Curso de Direito do Trabalho, Verbo, 2.ª edição, pag. 302.
(5) - Direito do Trabalho, Almedina, Abril 2002, p. 298.
(6) - Ob. e local citado na nota anterior.
(7) - Manuale, I, p. 249
(8) - Direito do Trabalho, 12.ª ed., Almedina, p. 134.
(9) - Curso de Direito do Trabalho, 6.ª Ed., Curitiba, 1997, p. 61, citado por Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, Almedina, p. 299.
(10) - Direito do Trabalho, I, 11.ª edição, Almedina, pag. 141.
(11) - Ob. cit., p. 143.
(12) - Ob. cit., p. 308-309.
(13) - Ob. cit., p. 141.
(14) - De que foi relator o Conselheiro Sousa Grandão.
(15) - Subscrito pelos mesmos Conselheiros que subscrevem este.
(16) - Código de Processo Civil anotado, 1962, reimpressão, Coimbra Editora, vol. IV, p. 559.